Young-tae e Jeong-hee vivem numa situação precária, com trabalhos part-time que permitem pouco mais do que o estritamente necessário. Tendo feito o pacto de nunca aceitar um empréstimo privado, em tempos de crise e conflito, Jeong-hee cede à pressão e aceita a dívida em segredo. Os dois colectores do empréstimo, meticulosos e ligeiramente assustadores nas suas simpáticas ameaças, aparecem um dia em casa da mãe de Jeong-hee, pressionando-a para pagar o que deve.
Hot in Day, Cold at Night é a segunda longa-metragem do casal sul-coreano – Park Song-yeol e Won Hyang-ra – que protagonizaram, escreveram e editaram o projecto juntos, sendo o papel da realização assinado por Park Song-yeol. A história é simples, não só a nível narrativo, como também a nível de cenários e realização. A verdadeira força do projecto é precisamente a simplicidade hipnótica que submete os personagens, bem como o espectador, a um estado de zumbificação. Os cenários escolhidos para o filme são banais, desarrumados e deselegantes, à parte dos poucos planos filmados perto da natureza, que rompem com as cores murchas da vida citadina num gesto de enorme beleza. Os planos, também simples, desvirtuosos e extremamente humildes, seguem uma estrutura bastante clássica de construção espacial (de planos abertos para planos fechados). O filme segue todas as regras e abraça a estética tradicionalista para efeitos extenuantes de saturação – é precisamente essa a força do filme, que quase num tom de experiencia social, age como buraco negro de emoções. Ao seguir todas as regras e restringir os momentos de ruptura com a estrutura, os momentos de beleza são raros, mas impactantes.
Este último projecto do casal aproxima-se, em muitos aspectos, da estética do grande cineasta sul-coreano Hong Sang-soo, cujo último filme estreou também em Berlim e é produzido, realizado, montado e gravado, quase exclusivamente pelo artista sul-coreano. Com efeito, o minimalismo estético na realização, nos cenários, e nos eventos, apresenta-se quase como forma de protesto contra a crescente indústria cinematográfica do país. Filmes caseiros, feitos com muito pouco capital, filmados em sítios comuns – casas, bares, parques, etc. –, com poucos atores e histórias simples – como afirma a novelista do novo filme de Hong “a história não interessa” – onde o maior ênfase é a vivência em comunidade, as conversas com os outros, o álcool e a comida. Com esta estrutura tão simplificada e muito próxima do mais reconhecido realizador sul-coreano, Park Song-yeol e Won Hyang-ra não poderiam simplesmente contar uma história diferente ou cairiam na possibilidade de se tornarem irrelevantes pelas semelhanças. Por esse motivo, o casal subverte todas estas interações. Hong preenche os filmes com uma atmosfera muito diferente, as cenas são intensas, rítmicas e confessionais, enquanto em Hot in Day, Cold at Night, as interações são murchas, aborrecidas e automatizadas.
Won Hyang-ra © Saranghaja – Hot in Day, Cold at Night
Existe no filme uma clara mensagem política, uma reflexão sobre a vida automática e desprovida de beleza e de contacto humano genuíno. Quando os protagonistas se encontram com qualquer outra pessoa, sem contar com familiares, nunca é com amigos que se encontram. Estas figuras são antes mutuamente remetidas para contactos de interesse. As conversas são quase sempre sobre dinheiro, inflação e juros. Numa dessas interações, Young-tae é contactado por um amigo de infância que irá arranjar um trabalho. Depois de se encontrarem, os dois caminham até um café, alegadamente, muito bom, mas antes de lá chegarem, Young-tae pára e obriga o conhecido a contar-lhe sobre o projecto. Assim que a conversa começa, Young-tae percebe que o tentam enganar e que se trata de um esquema em pirâmide. Ele tenta escapar, mas entretanto o vigarista chama uma conhecida sua que aparentemente também está por dentro do negócio. Young-tae fica desesperado e quase se desenrola uma cena de luta.
O grande trauma deste filme é, como dito anteriormente, o buraco negro emocional que estas crises financeiras criam não só nos protagonistas, mas também em quase todos os outros personagens – como é exemplo o amigo/contacto de interesse de Young-tae que lhe pede uma câmara no inicio do filme, vende-a e mente, pedindo para alargar o empréstimo por mais umas semanas. O desenrolar desta cena acaba com o casal, por pena, a desenvolver 1000 wons dos 3000 que conseguiram tirar como castigo pela venda da câmara. Para mais ninguém, excepto o espectador, sujeito a acompanhar todos estes lentos e desinteressantes desenvolvimentos, é este buraco negro tão grande como para os protagonistas. Que aparte de não terem hobbies, parecem também não ter muito carinho um pelo outro. Com efeito, a relação não parece constituída de amor, mas por necessidade e por dois serem melhor a resolverem problemas do que um. Os momentos alegres, ou antes, desvios de aborrecimento e tristeza, contam-se pelos dedos da mão – um deles um falso e inesperado sorriso de Young-tae. Este filme em muito vai contra os restantes filmes da Berlinale deste ano, filmes de contacto, porventura uma rebelião contra a Covid19 – há várias cenas sexuais relativamente explícitas, muita nudez e inclusive um filme inteiro dedicado à hiper-sexualidade – Un éte comme ça, de Denis Côté. Entre o casal quase não há contacto, havendo simplesmente apertos de mão quando o casal toma decisões em conjunto. Também não há olhares ou o mínimo de carácter sedutor no filme. Parece, em muitas partes, que não estamos a assistir à vida de dois humanos, mas de dois fantasmas. Que, num misto de monotonia e melancolia, já desistiram de tentar tocar nos corpos do que acreditam ser, como eles, fantasmas – sendo essa, potencialmente, a chave para reverter a situação fantasmática. O filme é triste por não haver esperança, por já não se acreditar que um toque possa confirmar a existência de um outro e, por extensão, a nossa.
Hot in Day, Cold at Night é um filme maioritariamente triste, mas que força, verdadeiramente, o espectador a viver, por um fragmento de tempo, a vida tediosa e quase desprovida de felicidade de milhões de pessoas no mundo. É, no entanto, nesta tristeza e saturação que o filme ganha a sua força – ao conseguir captar a essência fugaz da vida e ao partilhá-la com o espectador. Não é o espectador que é transportado para aquele ambiente imersivo, é antes o ambiente opressor que é transportado para este. Este filme nunca poderia ser feito com muito dinheiro, com cenários bonitos e coloridos, com qualquer tipo de pretensão ou virtuosidade que permitisse uma fuga à austeridade, um entretenimento. O espectador, como os protagonistas, torna-se também fantasma, testemunha, simultaneamente, das falhas do sistema e dos esforços que muitos fazem para simplesmente existir um dia a seguir ao outro.
Diogo Albarran
[Foto em destaque: Won Hyang-ra © Saranghaja – Hot in Day, Cold at Night]