A homenagem na Berlinale antes do Óscar?

Aquele que é talvez o mais reconhecido realizador de cinema de todo o mundo é o homenageado da edição deste ano do Festival de Berlim. A verdade é que Steven Spielberg fez as delícias de várias gerações ao longo de décadas e qualquer pessoa, mais ou menos interessada em cinema, reconhecerá no mínimo um ou dois nomes da sua cinematografia. 

Rainer Rother, director artístico da Deutsche Kinemathek, e responsável por esta secção de homenagem a grandes nomes do cinema, justifica o Urso de Ouro Honorário ao realizador norte-americano da seguinte forma: “Numa carreira que abrange um período de 50 anos, Steven Spielberg deixou uma marca duradoura e decisiva na arte da narrativa cinematográfica, enquanto continua a abordar assuntos delicados. Gerações inteiras de entusiastas do cinema por todo mundo cresceram com a sua obra. A seleção de filmes da secção Homage exemplifica essa obra multi-facetada”.

Jaws (1975), Steven Spielberg © Universal Studios Licensing LLC

Talvez o momento decisivo da sua carreira, visto por muitos como um ponto de viragem na maneira de se fazer e produzir cinema, dá-se em 1975 com a estreia internacional de Jaws, apenas estreado em Portugal dois anos depois com o título de Tubarão. Este foi o filme que, nas palavras de João Botelho, “engoliu tudo e todos”. Terá sido aí que nasceram aqueles que são hoje conhecidos como blockbusters, filmes que apelam às massas e que são grandes sucessos de bilheteira. Para o bem e para o mal, tal acontecimento veio mudar o paradigma da produção mundial e os critérios das distribuidoras. 

Spielberg começou a sua carreira no fim dos anos 50 e foi Tubarão que lançou o seu nome a nível mundial. Desde aí, obras como Encontros Imediatos de Terceiro Grau (1977), Os Salteadores da Arca Perdida (1981) – primeiro filme da série de filmes de Indiana Jones -, E.T. O Extraterrestre (1982), Império do Sol (1987), Parque Jurássico (1993), A Lista de Schindler (1993) ou O Resgate do Soldado Ryan (1998), foram sucessos de popularidade que marcaram a indústria de Hollywood. 

Os Fabelmans (2022), Steven Spielberg © Storyteller Distribution Co., LLC

Steven Spielberg chega a Berlim quando ainda se encontra nas salas o seu mais recente filme, Os Fabelmans (2022), estreado no fim do ano passado. História autobiográfica que acaba por ser uma homenagem ao cinema e que está nomeado ao Óscar de melhor filme. Antes de, possivelmente, receber algumas estatuetas douradas, a Berlinale homenageia o realizador com o Urso de Ouro Honorário.

Capaz de emocionar milhões de espectadores por todo o mundo, mas, por vezes, fora de um circuito mais seletivo de festivais europeus, Spielberg tem aqui um justo tributo num dos festivais de maior renome na Europa. Esta será também uma oportunidade para rever em sala alguns desses êxitos de décadas e aproveitar para pensar sobre o conjunto da sua obra.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Steven Spielberg no set de Raiders of the Lost Ark (1981) © Lucas Film]

Abelhas, smartphones e um hotel: destaques da Competição Oficial da Berlinale

A poucos dias do início da 73ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, é pertinente um breve olhar sobre alguns dos principais destaques da Competição Oficial, onde 19 filmes são candidatos a vencer o Urso de Ouro e restantes Ursos de Prata.

Composta por filmes muitos diversos, numa variedade de formas e conteúdo, a seleção deste ano prevê-se forte, com 19 países representados e 15 estreias mundiais. Das 19 longas-metragens em competição, apenas 6 são realizadas por mulheres. Sendo menos de um terço dos filmes selecionados, a este nível a Berlinale mostra-se pouco mais representativa do que outros festivais da mesma categoria como Veneza ou Cannes.

 Ingeborg Bachmann – Reise in die Wüste © Wolfgang Ennenbach

Um dos principais destaques desta edição é o filme 20.000 especies de Abejas, estreia nas longas-metragens da realizadora espanhola Estibaliz Urresola Solaguren, que conta a história de Lucía, uma criança com disforia de género que aguarda a chegada do verão para se libertar da opressão sofrida na escola. Outros pontos a destacar são os regressos de Philippe Garrel, com Le grand chariot, e da realizadora alemã Margarethe von Trotta, com Ingeborg Bachmann – Reise in die Wüste.

 Blackberry, de Matt Johnson, também desperta curiosidade por contar a história da criação do primeiro smartphone, uma adaptação do livro Losing the Signal (2015), de Jacquie McNish. Manodrome, de John Trengove e Roter Himmel, de Christian Petzold são outros dos filmes mais aguardados. Também Portugal é representado na competição oficial com Mal Viver, de João Canijo.

Blackberry, Matt Johnson © Budgie Films Inc.

O realizador português, autor das obras Noite Escura (2004), Fantasia Lusitana (2010) ou Sangue do Meu Sangue (2011), consegue a proeza de ter dois filmes em duas competições em Berlim. Para além deste Mal Viver – que se foca num fim de semana passado num hotel e se centra na história de uma família de mulheres de várias gerações –, Canijo apresenta ainda a outra face da moeda em Viver Mal – onde acompanhamos o mesmo fim de semana da perspetiva de três grupos de hóspedes do hotel. Mal Viver estará na competição principal, enquanto Viver Mal estará na mais recente secção Encounters.

A variedade de estilos, temáticas e método dos filmes selecionados, deixa antever uma competição com vários motivos de interesse. A atriz norte-americana Kristen Stewart será a presidente do júri composto por Golshifteh Farahani, Valeska Grisebach, Radu Jude, Francine Maisler, Carla Simón (realizadora de Alcarrás, vencedor da competição no ano passado) e Johnnie To, que decidirão o vencedor do Urso de Ouro deste ano.

A 73ª edição da Berlinale decorre entre os dias 16 e 26 de fevereiro.

Abaixo segue a lista dos 19 selecionados:

20.000 especies de Abejas – Estibaliz Urresola Solaguren (Spain, 2023)

Art College 1994 – Liu Jian (China, 2023)

Bai Ta Zhi Guang – Zhang Lu (China, 2023)

Bis ans Ende der Nacht – Christoph Hochhäusler (Alemanha, 2023)

BlackBerry – Matt Johnson (Canadá, 2023)

Disco Boy – Giacomo Abbruzzese (França/Itália/Bélgica/Polónia, 2023)

Le grand chariot – Philippe Garrel (França/Suíça, 2022)

Ingeborg Bachmann – Reise in die Wüste – Margarethe von Trotta (Suíça/Áustria/Alemanha/Luxemburgo, 2023)

Irgendwann werden wir uns alles erzählen – Emily Atef (Alemanha, 2023)

Limbo – Ivan Sen (Austrália, 2023)

Mal Viver – João Canijo (Portugal/França, 2023)

Manodrome – John Trengove (Reino Unido/ EUA, 2023)

Music – Angela Schanelec (Alemanha/França/Sérvia, 2023)

Past Lives – Celine Song (USA, 2022)

Roter Himmel – Christian Petzold (Alemanha, 2023)

Suzume – Makoto Shinkai (Japão, 2022)

Sur L’Adamant – Nicolas Philibert (França/Japão, 2022)

Survival of Kindness – Rolf de Heer (Australia, 2022)

Tótem – Lila Avilés (México/ Dinamarca/ França, 2022)

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Mal Viver, João Canijo © Midas Filmes]

Avec amour et acharnement, ou se sente ou não se sente

Jean (Vincent Lindon) diz a Sara (Juliette Binoche): “Tinhas o anjo. Agora tens o diabo.” e desata a partir coisas do apartamento de Sara. O amor e a paixão são contraditórios, e não se percebe bem onde começa um e acaba o outro. Claire Denis acerta no alvo se o alvo é retratar a complexidade da paixão e do amor e o seus momentos de mais intensa alegria ou frustração, fazendo jus tanto ao título original Avec amour et acharnement como ao título português Com Amor e Com Raiva.

A cena inicial do filme apresenta-nos o casal Jean e Sara, mergulhando e nadando na praia, numa dança aquática pautada pelas notas do piano. Da água passamos para o interior da terra, num plano subjetivo do metro de Paris. É nessa flutuação entre ir ao fundo e vir à tona que a história se desenvolve. Denis filma de uma forma clássica a história de um típico triângulo amoroso. Sara não consegue controlar o desejo pelo antigo amante, François, e a tensão que se começa a desenvolver entre o trio de personagens vai-se intensificando através da música (quase sempre presente) e do uso de câmara lenta em algumas sequências.

Avec amour et acharnement, Claire Denis © Curiosa Films 2022

O filme da realizadora francesa está longe de ser espantoso e perde-se numa visão algo banal dos dramas passionais. Contudo, essa banalidade não é, neste caso, totalmente descartável, pois é também dela que são feitas as nossas histórias de vida, marcada por contradições, raiva, juras de paixão eterna e ódio passageiro. Claire Denis sabe filmar e sabe como contar, fazendo uso da sua sensibilidade para ir de encontro às idiossincrasias dos retratados. Ainda assim, o filme talvez não agarre o espectador mais cético e racional que, se não conseguir calçar os sapatos das personagens, questionar-se-á acerca do interesse de olhar o melodrama existencial da vida de Sara.

Denis também não esquece problemas mais atuais do nosso tempo e aproveita as cenas de Sara na rádio onde trabalha para dar voz a temáticas como os conflitos no Líbano e a luta antirracista. Embora surja apenas como apontamento e não se perceba bem a pertinência da presença desses assuntos na narrativa, essas cenas acabam por criar camadas narrativas que ajudam ao envolvimento dramático em que se situam as personagens. 

Vincent Lindon e Juliette Binoche são o centro e a força gravitacional do filme. A presença de ambos os atores é de onde o filme tira as suas maiores qualidades, nas cenas de maior paixão e violência. É mesmo essa paixão que tem algo de violento, no sentido de arrebatadora e tumultuosa, e que causa em Sara uma aflição tornada evidente na cena em que avista da varanda de sua casa o encontro entre Jean e François, com a camisola a tapar-lhe a cabeça, como se de uma virgem Maria se tratasse.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Avec amour et acharnement, Claire Denis © Curiosa Films 2022]

Masculin Feminin e a mundividência em aforismos

Pelo seu espírito insaciável e inconformado e o seu ímpeto para a criação de novas formas de ver e pensar o cinema, Godard tornou-se um nome imponente da história do cinema. A sua obra, fecunda no que toca à sua matéria e configuração, é preenchida pelos filmes mais contraditórios, complexos, sedutores e caóticos; raramente dando espaço para perceber a sua voz e as suas ideias pela boca das personagens diletantes, eróticas, selvagens e arrojadas.

Godard viveu fascinado pelas possibilidades que a invenção cinematográfica (do analógico ao digital) permitia a uma mente criadora, provocadora e observadora como a sua. O seu olhar foi um olhar sobre o mundo e a sua época. Na leviandade de algumas das suas histórias do período nouvelle vague, encontramos um íntimo olhar sobre um tempo e os seus costumes, onde podemos sentir o zeitgeist em que efervescia o processo que levaria ao movimento estudantil de 1968. 

Masculin Feminin, Jean-Luc Godard © Anatole Dauman

O que encontramos nos seus filmes é esse registo do ar dos tempos, que torna os filmes um arquivo histórico que parte do panorama social e político para a intemporalidade da intimidade das relações humanas. 

Ao longo do passado mês de janeiro, a Cinemateca Portuguesa organizou um ciclo de retrospectiva da sua obra. Oportunidade para rever em sala algumas das suas mais conhecidas e populares longas-metragens: À bout de soufflé (1960), Le Mepris (1963) ou Pierrot le fou (1965).

Aqui, vale a pena um olhar breve para um filme que ao longo de décadas fez as delícias de vários cinéfilos, que inspirou uns a irem estudar cinema e que se tornou o Godard favorito de outros. Masculin, Féminin (1966) estreou logo no ano a seguir a Pierrot le fou, e é o exemplo que aqui trazemos para entender as particularidades apontadas acima sobre o realizador francês. 

Pessoas encontram-se, falam, conhecem-se, apaixonam-se, transformam-se e seguem os seus caminhos. O intuito de Godard, segundo o próprio, seria encontrar um arquétipo específico de juventude. Dizia que “não encontrava sequer na história do cinema uma lista de filmes, ou dez filmes de tal ano, com jovens que representassem uma época”.

Masculin Feminin, Jean-Luc Godard © Anatole Dauman

Dessa vontade surgem estes protagonistas: Paul (Jean-Pierre Léaud) conhece Madeleine (Chantal Goya) num café, num encontro meramente fortuito, à semelhança de outros da vaga francesa. Neste caso é a oposição masculino x feminino ou, como a certa altura apelida, a oposição entre os “filhos de Marx e os filhos da coca-cola”, o díptico no qual o filme sustém o conteúdo da narrativa.  O filme conta com várias sequências cómicas pelo despropositado da situação e, ao bom jeito de Godard, é um filme de diálogos, conversas e aforismos, centrado na tensão existente entre a influência do socialismo na sociedade da altura e a popularidade do estilo de vida americano instalada na europa e aqui simbolizado pelo refrigerante da moda. Em plena Guerra Fria e sempre com a Guerra no Vietname como pano de fundo, a vida moderna parisiense, o quotidiano e a inquietação política são o foco dos pensamento de Paul que os vai anotando no pequeno caderno que transporta consigo.

Servindo de retrato possível da vida moderna ou retrato da vida moderna possível, o filme diverte-nos. Por ser composto por vários sketches (as cenas podiam ser vistas fora do contexto que continuavam a ter um interesse especial), o filme ganha um ritmo que o torna bastante apetecível, tornando-o reconhecido por cenas memoráveis como a da conversa de Paul e Madeleine sobre o que é para cada um o centro do mundo; ou a cena em que Paul invade a cabine do projecionista para se indignar com o formato errado em que o filme está a ser projectado.

O método aqui adotado usa certas formas do cinema verité, não havendo propriamente um guião. Os diálogos partem mesmo de entrevistas feitas aos atores e isso torna-se óbvio em algumas cenas que são um autêntico questionário às personagens. Esse dispositivo serve para chegar à visão sincera e direta dos atores que, de facto, experienciaram as transformações vividas nessa época. Paul e Madeleine guiam-nos por uma sociedade de confronto de classes, despertando-nos para a complexidade dos papéis sociais de cada um.

Um dos mais divertidos e inspiradores filmes do mestre francês, Masculin Feminin vai de encontro às eternas inquietações sobre as paixões e o estado natural da juventude, tentando capturar a sua energia e fazendo reflectir nela os “grandes acontecimentos políticos sob o aspecto de factos comuns”. Jean-Luc Godard explorou a sua arte de forma a sair de todas as gavetas onde o quisessem encerrar. Precisou sempre de se libertar das amarras de fórmulas já vistas para uma contínua exploração do novo, sempre com a sensação que estava a começar. Neste filme, acima de tudo sente-se o espírito de uma época e sente-se o espírito de Godard.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Masculin Feminin, Jean-Luc Godard © Anatole Dauman]

As ilhas em que habitamos – Lobo e Cão de Cláudia Varejão

Ao longo das nossas vidas, vestimos diferentes papéis sociais, criamos as nossas ficções e expressamo-nos com a liberdade e diversidade a que o nosso desejo nos impele. Cada um de nós, vive e sobrevive com os respectivos medos e vontades, muitas vezes limitadas pelos preconceitos instalados na conduta humana e nas relações com os outros. Todas estas questões são convocadas no mais recente filme de Cláudia Varejão.

Tudo começou em 2016, quando a realizadora foi convidada para uma residência artística nos Açores, mais propriamente na zona alta de Rabo de Peixe em São Miguel. A localidade açoriana, conhecida por ser uma das mais pobres da Europa, foi o lugar onde Varejão encontrou a imagem improvável que serviu de mote para o filme: ao descer à vila piscatória, enquanto observava os pescadores que ali trabalhavam, viu aproximar-se daqueles, um grupo de raparigas transsexuais. Virilidade e vulnerabilidade, o que entendemos por masculino e feminino, cruzavam-se perante o olhar da realizadora que viu nesse cenário o conflito a explorar no filme. Desse encontro com os jovens da ilha, nasceu o impulso para a realização de Lobo e Cão (2022), título que já aponta para essa dicotomia que o filme procura perceber e desconstruir.

Daqui se denota toda a carga social que o filme carrega e que também o ultrapassa. Deste projecto, nasceu uma associação de apoio aos jovens LGBT da ilha e às suas famílias. Com um conjunto de psicólogos foram desenvolvidos psicodramas que ajudaram estas pessoas a perceber melhor o lugar do outro e a pensar a multiplicidade de formas existentes em cada um, servindo também de base para a escrita do argumento. Após este trabalho, partindo das histórias pessoais daqueles jovens e ainda das próprias vivências e memórias da realizadora, esta começou a escrever a narrativa que nos havia de guiar por este período fugaz da vida destes jovens.

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados

Ana e Luís, protagonistas deste filme, poderiam ser o lobo e o cão, numa troca e mistura de papéis sociais e normas para o que é entendido ser uma pessoa do sexo feminino e do sexo masculino. Ana talvez não seja cão, mas antes o lobo que procura ser selvagem e Luís talvez não seja o lobo que querem que ele seja, mas talvez o cão que precisa de afecto e do abraço materno. E talvez tudo se troque, tudo se confunda e nenhum deles seja lobo nem cão.

No meio do oceano atlântico, o mar surge como horizonte metafórico de fuga e liberdade. Ana é a filha do meio de três irmãos e lida com a opressão que sente aos seus desejos e à sua liberdade. Lida com os códigos que lhe são impostos, diz não saber o que significa pecar, nem o que é o bem e o mal. Luís expressa-se da forma que o faz sentir mais livre e lida com as consequências da moral conservadora da sua família e amigos.

O filme de Cláudia Varejão é claro naquilo que pretende mostrar. Dois jovens são obrigados a viver segundo os padrões normativos da sociedade, sentindo-se oprimidos num código moral com que não se identificam. Infelizes e não conseguindo viver a sua identidade em pleno, procuram vivê-la da forma possível e o filme, criando a distância que nos permite o pensamento sobre as particularidades de cada género, torna-se uma viagem que possibilita ao espectador acompanhar essas descobertas. Notamos na vivacidade das cores da fotografia do filme, o desejo inerente e contido que “não cabe na ilha”, mas que Luís e Ana transportam consigo. 

Contudo, e apesar de algumas ideias visuais interessantes, sente-se falta de alguma subtileza e engenho para evitar que o filme se torne disperso na construção narrativa de algumas personagens (algo que se poderá dever a escolhas de montagem ou da própria rodagem), e que fizesse o filme transcender mais as suas temáticas. Ainda assim, Lobo e Cão é um retrato comovente e importante daquela comunidade e que nos põe a questionar as limitações que são impostas à nossa identidade.

Ricardo Fangueiro

Entrevista a Cláudia Varejão

9 de Dezembro, Lisboa

© Direitos Reservados

O filme tem um peso social muito grande, pelas temáticas de que se aproxima e pelo trabalho feito junto da comunidade da ilha de São Miguel, em particular dos jovens queer/LGBT e das suas famílias. Como é que se articula essa vontade em ajudar aquelas pessoas com a criação de um objecto artístico como é um filme?

O filme parte de uma curiosidade. Neste caso de uma curiosidade observacional. Eu venho mais do documentário, trabalho com pessoas e aquele território interessou-me muito, porque é um território, diria, muito português. Portanto, com heranças judaico cristãs muito presentes no quotidiano e na sociedade, mas ao mesmo tempo um território onde o momento histórico e a vida contemporânea também está presente. As novas gerações trazem isso: uma liberdade de expressão, de expressão de género que aqui é muito importante. Esta questão: o que é o género? O feminino e o masculino e todos os outros géneros que cada vez nós nos permitimos mais a explorar, a validar, a integrar na sociedade… todos estes elementos estavam presentes na ilha, logo desde início. 

Portanto interessou-me muito este território isolado no mar, que tinha todos estes elementos que todos conhecemos. Só que ali era possível circunscrever a um espaço geográfico e depois de eu ver aquela cena na doca piscatória dos pescadores a falarem com miúdas transsexuais e todo esse universo polarizado, levantou-me muita curiosidade. Eu acho que a curiosidade é o motor da criação, de querer conhecer, de querer saber mais, ir à procura de respostas, e quanto mais respostas temos mais perguntas temos, não tem fim… Eu não utilizaria a palavra “ajudar”, mas “participar” na construção de melhores vidas para a comunidade. A partir do momento em que eu queria trabalhar com eles, com pessoas de lá e não levar actores, percebi que não podia não me envolver na vida real destas pessoas e a vida destes jovens é ainda uma vida cheia de sofrimento, cheia de medo… Ser adolescente é isso, mas ser adolescente queer ainda mais. É redobrado o receio de ser diferente, o receio de não pertencer, de exclusão. Quando eu fui percebendo que isto era muito latente e que causava muito sofrimento na população, foi aí que me comecei a envolver num lado mais activista. Tentei ajudar a criar este primeiro centro de apoio a pessoas LGBT e às famílias, mas este lado de trabalhar socialmente com as pessoas não foi o ponto de partida. Foi uma necessidade que apareceu durante o processo e que eu integrei. 

Agora sem dúvida que o cinema e a arte em geral têm uma participação activa na vida das pessoas. Claro que os filmes podem ajudar, desde logo a que as pessoas se sintam representadas, validadas, entendidas, e isso pode empoderar a vida das pessoas, pode dar chão, pode dar afecto. Isto acontece com um filme como pode acontecer com uma fotografia numa exposição, com a música que nós ouvimos e que tem uma letra que parece que foi feita para nós. Isso é o lado que não tem valor. A arte não tem valor nesse sentido. É um valor enorme, um valor humano, de vida, que transcende o valor financeiro, a urgência financeira, o financiamento para a cultura, enfim…

A arte pode ser vista como um espelho da realidade e parece-me que o cinema ajuda a criar a distância necessária para perceber coisas que nem sempre são fáceis de perceber para quem sempre viveu com certas narrativas instaladas. Acreditas que o cinema/os filmes/a arte têm essa capacidade de nos ajudar a ver melhor a realidade?

O cinema é um exercício fabuloso que nos permite uma certa distância, como ponto de partida. Nós estamos distantes do ecrã, distantes do filme e portanto vemos de fora. Mas depois há um espelhamento da vida e somos convocados para dentro. Estes dois movimentos opostos têm uma força enorme, uma força de reflexão, de pensamento e de sentir. Nós sentimos muito quando vemos, quando vemos em silêncio e quando vemos de fora. E depois há momentos de clarividência neste processo de observação. E isto é também aquilo que eu vivo quando estou a fazer, eu estou a olhar para algo, de alguma forma estou de fora, mas estou implicada nessa realidade. Tenho um olhar de relação com a realidade. Eu tenho esta experiência ao fazer que depois também acaba por se sentir nos filmes. Eu não imagino a vida sem estas ferramentas dos filmes, dos livros, da música, porque são momentos de encontro, quase como ir à igreja. São momentos de encontros espirituais, filosóficos, psicológicos em que nós nos permitimos sentir e estar em contacto com o nosso mundo interior, porque a vida é absurda. A vida é absurda. Nós estamos sempre em movimento e a cumprir papéis sociais e a cumprir tarefas, vidas académicas e vidas profissionais. E isto é para quê? Para sobreviver, para fazer parte. E a arte permite-nos reflectir um bocadinho neste absurdo da vida e o cinema, eu sou suspeita, diria que é a forma mais rica de criação, porque a vida é muito real dentro dos filmes. E isso é incrível, é uma ferramenta, é uma arma e uma arma política também, porque é uma arma de transformação. O nosso olhar enquanto vê um filme transforma-se, reencontra-se, conecta-se e depois trazemos isto tudo cá para fora, para a vida. Nós saímos tocados dos filmes, uns mais, outros menos. Mas mesmo aqueles nos quais nós não nos encontramos, validam aquilo que nós não queremos. Portanto é sempre um lugar de encontro e construção da nossa própria identidade.

Trabalhas junto da comunidade com não-actores ou actores não profissionais. Poderias ter feito este filme com actores profissionais? Até que ponto é realmente necessário essa proximidade das pessoas filmadas ao papel que representam?

Era possível, mas não era eu certamente. Tudo é possível no cinema, não existem impossíveis. Existem infinitas formas para o ofício, para se fazer…

Esta pergunta tem uma ramificação, que é perceber que cuidados é preciso ter para que o método não seja demasiado invasivo da intimidade destas pessoas? Pelo que contavas na sessão de ontem eles próprios já se confundiam com a personagem que interpretavam.

Acho que é preciso um cuidado extra, porque não existe a proteção nem o treino que os actores têm. Os actores têm treino para entrar numa personagem e saber sair dela. Isto é um trabalho impressionante. Um actor não profissional não tem estas defesas, por isso eu acho que redobra o cuidado não só do realizador, mas de toda a equipa, de proteção, de ajudar as pessoas a entrar e a sair, de ajudá-las a ir para casa depois. O que levas para casa é a experiência que tiveste, mas não levas a personagem. É preciso outra atenção e nesse sentido eu tive muita ajuda. Eu tive ajuda de psicólogos, ajuda de uma equipa que é muito experiente. Quase todas as pessoas que me estavam a acompanhar já tinham feito muitos filmes, portanto havia muita atenção a isso. Falamos todos sobre isso, de como era importante estar atento às pessoas e protege-las da dinâmica do cinema. Às vezes no plateau somos muito agressivos, brutos, temos uma série de coisas adquiridas que as pessoas não entendem. Tem que haver outra atenção e outro cuidado.

Apesar de tudo, o filme parece-me bastante positivo, luminoso, colorido…

Sim, porque isso estava lá na ilha. Estava nestas pessoas.

 …mas gostava de falar de duas cenas em particular que me parecem ser as mais violentas do filme: a cena da romaria em que o pai ataca Luís e o insulta e a cena em que a gente da ilha parece tentar converter Luís através de todo aquele ritual divino.

Quão difícil é representar a homofobia e como é feito esse trabalho com não actores? E de que forma é que isso ajuda a exorcizar preconceitos? 

É uma pergunta muito interessante, porque eu também tinha muito essa dúvida. Como é que eu vou fazer estas cenas sem ser a trabalhar com pessoas que são realmente homofóbicas? É o movimento oposto. É trabalhar com as pessoas que têm o olhar de integração da diversidade, mas com a consciência de que existe a agressão, que existe o fechamento, o conservadorismo, existe a violência. Foi a partir de um lugar bom, de pessoas boas para representar aquilo que nós não desejamos, mas que sabemos que existe e que já vimos ou sentimos. E estas pessoas, estes adultos trouxeram isso. Este pai do Luís tem isso. O pai do Luís é um homem bom. 

…Acho que também se nota isso na sua interpretação. A dificuldade que ele tem a exercer aquela violência…

Sim, ele faz aquilo como as próprias pessoas fóbicas. Elas fazem por embrutecimento da vida e parece que vemos uma humanidade lá dentro. No gesto da violência – isto é um paradoxo – vemos uma inversão da humanidade. Portanto, ela está lá. Não dá para representar uma coisa sem representar o seu oposto. Este foi o processo de trabalhar com estas pessoas. Essa luz está sempre lá, mas as pessoas estão revoltadas pelo medo, pelo medo da não pertença.

Já tiveste reações mais negativas ao filme por parte de pessoas mais preconceituosas ou homofóbicas?

            Não. Agora saímos desta sessão com escolas e, nas partes de mais intimidade entre as miúdas, sente-se o comentário, o riso nervoso, um silêncio envergonhado… Que não deixam de ser preconceitos, um lugar de pré-conceito da nossa educação, ainda de estranheza daquilo que sai da norma, deste lado mais hétero normativo da sociedade e sinto esse desconforto nos olhares, mas não de uma forma agressiva e espero não vivê-la.

Vês a própria ilha como algo simbólico da condição em que se encontram estes jovens? Essa vontade de sair da ilha e alcançar outra liberdade longe daquela bolha.

Claro. Acho que a ilha é uma metáfora para as ilhas em que todos vivemos, não só as pessoas queer. Nós todos nos sentimos em ilhas. Agora nesta sessão perguntou-se a certa altura “quem é que aqui se sente numa ilha?” e os braços levantados eram da maioria das pessoas na sala. Nós todos, de alguma forma, nos sentimos sós. Talvez seja esta a condição do ser humano. Nascemos e morremos sozinhos. E há um enorme sentido de solidão nesta ideia de ilha. Nós somos a ilha. E eu acho que o filme é muito aberto nesse sentido. Não é um filme queer. É muito mais sobre a condição humana de sermos todos tão diversos e termos tanto receio de não conseguir pertencer no dia-a-dia, à sociedade, a este teatro todo que é construído. Isto é um grande teatro. Os papéis sociais, as profissões, os papéis familiares… Isto é uma grande encenação e nós fomos educados logo de início.

Estamos sempre em ficção…

Estamos e já que é para estar em ficção, então que sejamos mais livres na ficção. Acho que é isso que o filme convoca. Já que é para ser um teatro a vida toda, então vamos experimentar vários papéis. E o ser humano permite-se pouco a experimentar diferentes máscaras e isso é que acho que provoca grande sofrimento na vida. Somos educados a ser uma coisa e a escolher ser uma coisa. E nós somos muitas coisas diferentes ao longo da vida. Estamos sempre a mudar, mas estamos sempre com medo de experimentar ser diferentes do que éramos ontem, como se isto fosse incoerente… e não é, porque nós somos uma multiplicidade de coisas. E por isso é que é muito interessante trabalhar com não-actores, porque as pessoas são muito mais autênticas. Como não têm este jogo profissional, descobrem dentro delas várias vozes e isto é um processo infinito de encontro com os mundos interiores.

Como é que vês a questão da identidade de cada um e a diversidade de que somos feitos? Porquê que achas que ainda existe a necessidade da dicotomia masculino/feminino?

Acho que é um perigo para a sociedade sairmos de um jogo que está tão profundamente instalado. Isto destrói todas as nossas convicções. Isto dá muito medo, sobretudo ao poder. Se de repente passamos todos a ser queer, ser gays, trans, diversos… isto questiona todo este sistema. O poder vem de cima, não vem de dentro. Isto é a grande luta social. Acho que é daí que vem o preconceito e acho que vem bastante da religião, porque é uma narrativa muito vincada: o homem, a mulher, a procriação. Isto questiona tudo, tudo aquilo que nos foi ensinado. Questiona esta ideia de família mais fechada, do pai, da mãe e dos filhos… questiona muita coisa, não só a própria identidade, como a própria ideia de desejo e orientação sexual. Levanta tantas perguntas, põe tanto em causa que é um perigo. É um perigo e depois permitimo-nos muito pouco. Acho que temos todos muito medo do que acontece se não correspondermos ao esperado. O que me vai acontecer? Será que vou ter lugar na sociedade? Será que vou ter trabalho? Será que vou saber quem sou? Vou-me perder? E depois como é que me volto a encontrar? Isto levanta muitos medos.

Como no texto da Clarice Lispector que leste…

“Se eu fosse eu?” Se a gente pensar seriamente sobre isto, percebe que nós não sabemos e que nunca nos permitimos. Ficamos assustados com o que temos andado a fazer, mas eu acho que é um bom exercício fazermos mais vezes esta pergunta: se eu fosse eu o que diria nesta situação? Se eu fosse realmente eu, o que eu sinto, o que respondia? A maior parte das vezes ficamos pelo pensamento, mas se experimentássemos ser, que rico que seria…

De um ponto de vista formal, tens vontade de manter este método de fazer cinema no futuro ou vais procurar experimentar novas formas de construir narrativas, novas formas de mostrar aquilo que pretendes? Tens vontade de continuar a trabalhar perto de comunidades/grupos de pessoas?

            Eu acho que já estava a trabalhar bastante neste sentido de trabalhar a realidade, mas com ideias formais que construo com as pessoas. Sem dúvida, o meu grande prazer são as pessoas. Eu sinto-me uma amadora. O tempo passa e eu tenho cada vez menos certezas. Tenho muitas dúvidas e gosto muito de experimentar e sinto-me mais segura a experimentar com as pessoas do que com actores, porque estes trazem-me sempre tantas seguranças e convicções que eu fico assustada, sinto-me diminuída. Gosto muito da liberdade deste lugar de experimentação a partir do real.

Entrevista a Cláudia Varejão conduzida por Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados]

Alma Viva: Entrevista com Cristèle Alves Meira

Por altura da estreia de Alma Viva, o mais recente trabalho de Cristèle Alves Meira, tivemos a oportunidade de falar um pouco com a realizadora. Alma Viva é um regresso às origens da realizadora, filha de emigrantes portugueses em França, e mostra-nos, num registo assombroso e místico, a relação espiritual entre Salomé e a sua avó, no momento em que esta se aproxima da morte.

A herança mística que é transmitida de avó para neta é o motor da acção, aquilo que põe Salomé em movimento e que a faz entrar em conflito com o seu universo íntimo e familiar. Alma Viva toca no tema da emigração, dos rituais tradicionais, das tensões entre a população da aldeia, e faz-nos olhar para uma realidade ficcionada, para uma terra que nos parece próxima e familiar (o filme foi filmado numa aldeia em Trás-os-montes, terra da mãe da realizadora), mas que é fruto de sonhos, memórias e matéria do inconsciente. 

No equilíbrio entre o realismo da mise-en-scène e o lado fantástico e ascético que envolve a história, reside parte do encanto deste filme que faz encarnar na pequena Salomé, não só a alma da avó, como uma energia sobrenatural que nos mostra o lado mais enigmático da paisagem transmontana.

Alma Viva é um olhar fresco sobre o interior do país, sobretudo, porque não tem ambições antropológicas e serve-se de um imaginário criado pela autora para atingir camadas mais profundas da realidade.

Alma Viva, Cristèle Alves Meira © Midas Filmes

Entrevista com Cristèle Alves Meira

Cristèle Alves Meira

De onde surge o impulso para fazer este filme? Calculo que tenha um lado autobiográfico e que tenha origem num desejo de voltar a olhar para estas pessoas e estes lugares, para onde voltava todos os verões com a sua família.

É engraçado, porque muitas vezes dizem que é autobiográfico, mas o filme é uma ficção pura. Há um lado autobiográfico por conhecer aqueles décors, estar envolvida de forma mais íntima com as pessoas que aparecem na imagem e com as histórias que vou contar, mas o filme é uma ficção pura. É um filme de género quase fantástico, mas o que dá aquele ar autobiográfico é a minha opção de tornar as coisas muito realistas na forma de filmar, na forma de falar… e para mim é muito interessante, porque o público agarra no filme como se este fosse antropológico, mas na verdade essa aldeia não existe e essas pessoas não existem. Isso tudo é ficção do cinema e cada quadro, cada rosto foi exposto a uma sublimação de luz, de enquadramento e de pensamento de encenação. Aquela aldeia não existe, aqueles céus estrelados não existem, a câmara não consegue filmar aqueles céus estrelados, aqueles sons… Quando filmamos não havia nenhum insecto, não havia nenhum animal e tivemos que criar aquele ambiente sonoro, que tem que ver também com a minha vontade de criar um ambiente um pouco mágico, sobrenatural, com a presença de animais particulares que podem criar essa tensão dramática.

Quando falava em lado autobiográfico referia-me mais a essa vontade de replicar certas memórias, aspectos e vivências.

Sim, tem uma parte autobiográfica, mas é limitado pensar que é só isso, porque demorei muito tempo a encontrar a história. Sabia que queria contar a história de uma avó e de uma neta, mas a neta durante muito tempo era uma adolescente. Salomé, a protagonista, voltou a ser criança no final da escrita do argumento e depois também demorei bastante tempo a perceber qual era o equilíbrio entre as crises familiares. Queria contar as crises dessa família, a forma como vivem o luto, o momento das partilhas e essas famílias divididas entre aqueles que partiram e regressam com um poder económico muito grande e aqueles que ficaram e que sentem um complexo de inferioridade. Queria contar a família, mas não sabia no argumento o que era mais importante. Quando soube que o mais importante era a relação entre uma avó e uma neta e uma transmissão mística de um saber esotérico, aí é que comecei mesmo a tocar no assunto do filme. Mas não foi fácil, porque estava confrontada com dois tabus, o da morte e o da bruxaria, e no início ficava a tremer perante a palavra “bruxa”. Será que podia falar sobre isso?  Pesquisei muito, de forma quase antropológica. Fui ler livros sobre bruxaria em Portugal e também fui ler coisas em França, porque há uma parte em França onde há muita bruxaria. Houve um rapaz muito importante que se chama Jorge Dias, um jovem imigrante, estudante de mestrado na universidade em Lyon que fez a tese sobre a avó dele que é bruxa. Esse foi um encontro muito importante para mim, porque ele inscreveu na tese a relação que ele tinha com a avó quando regressava no verão e a via ter capacidades de médium. Foi quando li a tese dele que pensei que também poderia assumir esse tipo de temática. Havia uma vontade de falar da relação dos vivos com os mortos e da transmissão entre uma avó e uma neta. Mas, depois, para chegar lá foi um processo bastante grande de escrita da narrativa.

Esse lado espiritual descobriste com o filme? Ou já tinhas essas memórias associadas àquele local?

Já nasci numa família onde o oculto estava presente… era normal curar-se com plantas… e desde criança sempre ouvi os adultos falar sobre histórias muito estranhas de bruxas, maldades, mau olhado … e isso lembro-me que me fascinava e ao mesmo tempo aterrorizava-me. E acho que o filme está a tentar transmitir essa contradição que esse tipo de história pode criar em nós. Fascínio e terror. O que acho bastante singular é que o demónio nessa história é uma pessoa que amamos. Porque muitas vezes nos filmes de terror há muitas histórias de pessoas que são possuídas pelo demónio, que são temáticas clássicas do género fantástico, mas aqui a particularidade é que se trata da avó amada, a querida avó. Isso é que cria ali uma confusão entre amor e sofrimento, luz e obscuridade, e também a forma realista de tratar do assunto, porque, muitas vezes, nos filmes americanos ou nos teenage movies são temáticas que vemos sempre. Só que neste filme estamos num lado muito realista e muito envolvido numa comunidade. Se analisarmos bem, os rituais no filme foram completamente inventados, porque reparei também nas minhas pesquisas que cada praticante ou bruxo/a, ou curador, médium, (eles têm vários nomes), cada um tem a sua própria prática e vão buscar símbolos a várias culturas. Não há nenhum livro que diga que a magia vai ser assim e vai ser assim que vamos proceder, cada um vai ali fazer a sua receita e eu pensei a mesma coisa. Qual seria a receita do nosso filme? Então fui buscar São Jorge, fui buscar os cigarros, que é uma prática mais do xamanismo. Em Portugal nunca vi bruxos nenhuns usar cigarros, mas é uma mistura de rituais para criar uma realidade que é uma realidade de ficção para esse filme.

Acaba por ser um universo construído a partir das tuas vivências e referências. Contudo, de que forma é que a realidade que encontraste invadiu a narrativa inicial?

O que mais transforma a escrita é a encarnação dos actores. Quando comecei mesmo a escolher os actores, a personagem transforma-se num corpo, numa voz, numa pessoa concreta que vai entrar naquele papel. Isso transforma a escrita e cada vez que acontece vou também buscar muito da realidade do actor que escolhi, para pôr nas cenas e na personagem. Por exemplo, a personagem da avó era, no argumento, uma avó muito mais austera, menos excêntrica e colorida, e a Ester Catalão foi um encontro incrível, porque ela tem essa liberdade, sensualidade, essa luz que transformou o papel da avó. E isso aconteceu com várias personagens, como com a protagonista, a Lua Michel. Quando escrevi, a personagem tinha onze anos e quando filmei ela só tinha oito. Então isso transformou a personagem. Por exemplo, o facto de conhecer o Duarte Pina de O Invisível Herói (2019), a outra curta que fiz com ele, e de saber que ele tinha capacidades de cantar, pensei: “vou pôr um grupo de músicos no meu argumento”. Então, foi o facto de conhecer esse actor e as suas capacidades instrumentais que fez nascer esse lado na personagem.

A única coisa que tento é guardar uma espontaneidade, por isso não ensaio muito com os actores, e os actores não profissionais não vão ler o texto, ter o argumento na mão, para não estarem ali a fingir. Passo muito tempo a falar com eles a explicar qual vai ser a história, a situação, mais ou menos o que eles têm de dizer… e depois eles dizem com as palavras deles, mas quase sempre é parecido com o que eu escrevi, porque escrevi a pensar neles. A metodologia é observar e conhecer muito bem as pessoas com quem vou trabalhar. Por exemplo a Marta Quina, a personagem da Gracinda, eu já sabia como ela falava, porque já a conheço. Dizia-lhe: “Oh marta, a marta vai subir as escadas, mas está muito zangada, porque os cães estiveram a dar cabo dos tomates” e já sabia que ela tinha aquela capacidade, porque na vida real ela tem essa energia. Era só dizer acção. E é bastante realista, porque sei que ela é assim. Depois com a Ester Catalão já era outra metodologia. Trabalhamos com um auricular porque muitas vezes ela esquecia-se de coisas… na verdade cada pessoa tem uma metodologia diferente.

Alma Viva, Cristèle Alves Meira © Midas Filmes

Ao ver a Lua Michel no filme, parece ter sido um casting certeiro. No entanto, ela sempre esteve ali ao teu lado. Foi uma escolha óbvia?

Cometi o erro de a ter filmado noutros filmes, mas cortei-a sempre na montagem. Ela entrou no Sol Branco (2015) como um bebé, depois entrou no Campo de Víboras (2016) tinha três anos e no Invisível Herói tinha 5 ou 6. E a cada vez foi cortada na montagem. Quando chegou aos seis anos ela disse: “Mamã, estás sempre a cortar-me” (risos). Foi outra amiga minha que a revelou num filme, porque ela estava à procura de uma criança para o filme dela e disse-lhe: “Se calhar vou-te mandar a Lua em casting, porque sempre a cortei na montagem e desta vez é um papel principal, por isso se gostares dela, já vai ter um papel onde não está cortada”. Depois desse filme, ela foi muito felicitada em festivais, ganhou prémios com essa curta e aí apercebi-me que tinha uma actriz ao meu lado e pensei porque não seria ela. Decidi então que o papel ficasse mais jovem, mas ela tem uma maturidade que nem percebemos bem a idade dela.

O filme conta com poucos actores profissionais e foca-se mais no trabalho feito com a população da aldeia. Como é que foi feita essa articulação no trabalho das personagens?

Os actores profissionais são muito importantes, mesmo que minoritários. Temos a Ana Padrão, a Jacqueline Corado, Catherine Salée, Valdemar Santos, Pedro Lacerda e o Nuno Gil.  A Ana Padrão é originária de uma aldeia ali perto e aceitou rememorar e lidar de novo com as suas origens. Isso foi muito importante, porque ela foi buscar lembranças das tias, da avó e ajudou-me a enriquecer os diálogos com palavras mesmo locais. Durante os ensaios, dias antes, ela ficou a dormir na casa da avó, porque é numa aldeia perto e perguntava: “Como é que dirias aquela palavra? Quando chove, como é que dirias?”. Fez esse trabalho para voltar a essa forma de falar e todo um trabalho do corpo, da fisicalidade, porque o seu papel é mesmo de uma pessoa de aldeia, que trabalha a terra e encarna uma masculinidade que foi buscar e que não tem nada que ver com os papéis que a Ana faz normalmente. Fico muito emocionada com a generosidade com que ela se envolveu neste projecto. É uma enorme actriz. Já tínhamos tido uma experiência juntas, fizemos o Campo de Víboras juntas, que já era um papel similar nas mesmas aldeias e isso ajudou a desenvolver a confiança. Mas nesse filme ela trabalhava uma parte mais feminina, enquanto neste ressalta um lado mais masculino.

Apesar de assombroso e fantasmagórico, o filme conserva um lado cómico. Era importante para ti realçar esse aspecto?

Sim, muito importante. A comédia, o lado mais cómico, quase burlesco, estava presente desde as primeiras linhas, porque é a forma que tenho de mostrar o carinho que tenho por estas situações extremas do ser humano, crises, guerras entre vizinhos… aquilo é tão excessivo que dá para rir e o cinema permite essa mise-en-scène, esse tom mais cómico. E não foi fácil no momento do financiamento do filme, porque apontavam esse aspecto aparentemente incoerente de, numa mesma cena, tão dramática, chegar aquele momento em que se torna tragicomédia. O desafio era enorme. Diziam que não era possível criar lágrimas e ao mesmo tempo mostrar aquela situação quase absurda. Mas sabia que na vida isso acontece. E a comédia permite uma certa crítica simpática sobre o lado materialista da emigração. Então aproveitei essa tonalidade mais cómica para dizer: “Bom, não acham que às vezes é um bocado absurdo quererem exibir as vossas riquezas?” (risos), como nas cenas em que trazem prendas, porque é um sinal de sucesso da vida lá fora. É uma forma de os infantilizar e apontar coisas mais subtis da realidade da vida dos emigrantes.

A tua formação foi toda feita em França?

Nunca vivi em Portugal. A minha formação foi para actriz. Antes de fazer cinema fiz teatro durante dez anos e depois tirei o mestrado em teatro. Nunca fiz escola de cinema, mas para escrever o Alma Viva tive um ano na escola La Fémis, para escrever o argumento. Sozinha teria sido impossível. Agora também escrevo para outras pessoas…

Pergunto isto, porque reparei no ritmo particular do filme. Estava à espera de mais densidade e mistério em algumas cenas. Como o filme tem um lado fantasmagórico, estava à espera de sentir outra densidade no tempo, na atmosfera, no som das cenas… Qual é a tua relação com o cinema português?

Na verdade, para este filme não tenho referências portuguesas. Claro que vejo cinema português, mas não foi a ele que fui buscar as referências para fazer o Alma Viva. Tem mais que ver com o cinema italiano, neo-realismo, Ettore Scola, cinema espanhol, Carlos Saura… o Cria Cuervos (1976) foi o filme que mais me acompanhou. E nos filmes mais contemporâneos foi a Alice Rohrwacher ou o La Cienaga (2001) da Lucrecia Martel, muito pela forma de filmar um grupo, uma família num lugar fechado e a Lucrecia é uma rainha, um génio da encenação. Na duração dos planos, sinto, fazendo aqui uma confissão, que às vezes cortei um pouco cedo. Às vezes são 3 ou 4 segundos que acho que devia ter a mais… mas é assim, estou a aprender. Ao mesmo tempo, aquela brutalidade com cortes mais abruptos tem que ver também com a energia das personagens. Eu gosto de mudar de ritmo.  Enquanto espectadora, também sinto que, em alguns planos que se demoram mais,  muitas vezes são os realizadores a olharem para si próprios. 

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Alma Viva, Cristèle Alves Meira © Midas Filmes]

Objectos de Luz: Memórias luminosas

Comecemos pela referência bíblica: “Antes não havia nada, depois fiat lux.” Do vácuo e da escuridão nasceram a matéria e a luz. Esta frase é determinante para nos ajudar a olhar Objectos de Luz, filme de Acácio de Almeida e Marie Carré, obra escolhida para a sessão de encerramento do 20º DOCLISBOA. Para além de uma bonita homenagem à arte da luz, assim como ao caso específico do cinema português, fica o registo de uma meditação fulgurosa sobre a importância da luz enquanto criadora da matéria cinematográfica.

Objectos de Luz, Acácio de Almeida, Marie Carré © Doclisboa

Acácio de Almeida participou como director de fotografia em dezenas de filmes de realizadores como António Reis e Margarida Cordeiro, João Botelho, João César Monteiro, Manoel de Oliveira, Margarida Gil, Paulo Rocha ou Teresa Villaverde, entre muitos outros, que são revisitados neste inusitado ensaio visual. O seu amor pelo desenho da luz e a sua inscrição em imagens levou Acácio e Marie a prestarem toda a atenção e pensamento àquilo que faz existir não só o cinema, mas toda a vida. Partindo dos diálogos que Marie ia guardando dos almoços entre os dois, é a voz de Acácio, o “Homem da Luz” (como aparece creditado no genérico final), que nos guia ao longo de uma série de imagens em que a luz é a protagonista e o centro em torno do qual gravita o pensamento deste filme.

Entre as memórias invocadas e o conhecimento que foram reunindo no trabalho e na vida em conjunto, Acácio de Almeida e Marie Carré viajam no mundo da luz e das sombras, naquela que ambiciona ser uma viagem universal pelo cinema, mas também uma imponente reflexão sobre a existência das coisas. Disperso na sua forma, trabalhando com vários registos, do arquivo do cinema português a novas imagens produzidas para este filme, a obra entusiasma pelo foco que incide no acto cinematográfico, no acto de fazer cinema e tudo o que rodeia a arte de criar imagens. A dada altura, o narrador constata que, não só precisamos da luz para as criar, como para dar vida a uma bobine que contém o universo de um filme. Numa das sequências vemos uma personagem, interpretada por Manuel Mozos, a correr atrás de uma bobine que ganha vida e foge. O objectivo é claro: pará-la e perceber o que ela contém. Até que a vemos a ser projectada – iluminada e dada a ver.

Com pouco mais de uma hora de duração, este jogo de luzes vai mostrando os rostos que foram iluminados por Acácio de Almeida ao longo da sua vasta carreira no cinema. Rostos de actores como Isabel Ruth, a própria Marie Carré ou Luís Miguel Cintra, que numa das cenas mais impactantes do filme confronta-se com o seu rosto reanimado 50 anos depois do filme de João César Monteiro Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1971).

Objectos de Luz, Acácio de Almeida, Marie Carré © Doclisboa

Ao longo do filme são várias as perguntas que o narrador vai fazendo sobre a luz ou directamente a ela, “O que somos nós em relação à luz?” ou “que seria de ti sem nós?”, lembrando as palavras dirigidas ao sol em Assim Falava Zaratustra: “Ó grande astro! Que seria da tua alegria se te faltassem aqueles a quem iluminas?”. Objectos de Luz é a estreia luminosa de Acácio de Almeida e Marie Carré na realização e, mais que filme-testamento, é um filme que se alavanca nas memórias para lançar ao futuro a vontade que continuam a ter de fazer cinema.

Ricardo Fangueiro

[Objectos de Luz, Acácio de Almeida, Marie Carré © Doclisboa]

A Date in Minsk: A vida é uma ficção

A Date in Minsk é um objecto curioso por várias razões. Nikita Lavretski, realizador bielorrusso – que, para além deste, apresentou, ainda nesta edição do DocLisboa, o filme que realizou com Alexey Suhanok, Jokes About War -, é já conhecido pelo baixo ou inexistente orçamento das suas produções e por uma profunda paixão pelo cinema e engenho para construir os seus filmes. A Date in Minsk é filmado totalmente com um smartphone e um par de microfones de lapela, num longo plano sequência que dura os 88 minutos do filme. 

Através do cartão inicial e da sinopse percebemos a premissa do filme: Nikita e Volha são, na “vida real” (não é certo o que isso significa neste filme), um casal disfuncional com uma relação tóxica que dura há anos e que aqui interpretam um casal que acaba de se conhecer. O filme é todo filmado pelo terceiro elemento presente, a também realizadora bielorrussa Yulia Shatun, que vai apontando a câmara para a ação, tentando encontrar (de forma improvisada como é toda a ação o filme) o ângulo adequado para cada momento. Facilmente se percebe a potencialidade existente nesta ideia e o que ela pode alcançar.

Começando por acompanhar uma partida de bilhar entre os dois num salão de jogos, a câmara segue este casal no seu percurso até à estação de metro, onde cada um segue o seu caminho. Por entre a conversa ligeira de encontro amoroso, vai sendo revelado o contexto político e a actualidade da Bielorrússia. Rodado há poucos meses, já depois da invasão russa na Ucrânia, essa é também uma temática presente no filme e, simbolicamente ou não, ao sair do salão de jogos, Nikita veste um cachecol com as cores ucranianas.

A Date in Minsk, Nikita Lavretski © Doclisboa

Para quem não percebe russo, o constante diálogo entre as personagens que se estão a conhecer torna-se cansativo de acompanhar, já que o espectador dá por si a ler durante o filme inteiro, sobrando pouco tempo para olhar com atenção as imagens e reparar nos pormenores da ação. Contudo, o filme funciona, pois a dinâmica entre Nikita e Volha permite que do seu total improviso saia uma espécie de comédia romântica (algo que o realizador assume ter como inspiração) pautada por momentos de discussão e curiosidade pelas opiniões um do outro sobre os mais variados temas.

Do ponto de vista formal, este é um filme surpreendente. Como afirma o realizador, o aspecto performativo é o seu conceito central, daí só fazer sentido este ser realizado num só take, sem qualquer escrita de diálogos ou tópicos ensaiados. Entre a comédia e o drama, com a cidade de Minsk em pano de fundo, o jogo ficcional que o casal cria faz-nos questionar sobre as barreiras que separam a vida do cinema.A Date in Minsk acabou mesmo por vencer o grande prémio da 20ª edição do DocLisboa, “pelo conceito cinematográfico, pela preocupação com temáticas atuais, pela autenticidade dos diálogos e interpretações”, segundo as palavras do júri. Nikita Lavretski é já um dos nomes a acompanhar do cinema bielorrusso e a sua inventividade faz-nos querer seguir de perto o seu percurso.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: A Date in Minsk, Nikita Lavretski © Doclisboa]

Terra que Marca: imagens colhidas da terra

Terra que Marca, o mais recente trabalho de Raúl Domingues – que teve a sua estreia nacional nesta edição do DocLisboa -, à semelhança do seu anterior Flor Azul (2014), é o cinema do gesto e do fragmento, obra que revela uma profunda sabedoria do ato de apontar e enquadrar. Num registo de câmara à mão, a função do realizador neste filme é sobretudo a de apontar a câmara para o movimento das ferramentas, para a natureza e para o corpo das figuras humanas que aqui são vultos que pairam trabalhando a terra. 

Ao abrir o leque de imagens, encontramos as únicas palavras do filme que contam como “em tempos, vieram dois malfeitores cumprir a pena de tomar conta desta terra desabitada e em pousio. A sua sentença passou de geração em geração e foi herdada pelos homens que a trabalham. Uma mulher descalça ajeita a terra e é surpreendida por uma folha.” Da força literária destas palavras, partimos para um contacto profundo entre o trabalho da câmara e o da enxada.

Terra que Marca, Raúl Domingues © Oublaum filmes

Num dos primeiros planos do filme vemos as mãos de pessoas diferentes rasgarem o plano da vegetação e apontarem para o fora de campo. Logo desde início, fica evidente a forma peculiar como Domingues escolhe enquadrar, mostrando que tem bem ciente aquilo em que se quer focar,  podendo dizer-se de forma jocosa que, se os seus familiares trabalham o campo, Domingues trabalha o campo e o fora-de-campo. Também o som é trabalhado de forma exímia, tendo a função de destacar certos momentos ou acontecimentos e, por exemplo, segundo as palavras de Domingues, “realçar o passarinho que passa em 2 ou 3 frames”. 

Além disso, para além do seu trabalho enquanto realizador, Domingues tem vindo a trabalhar como montador  em  filmes como António Um Dois Três (2017), Canto do Ossobó (2017) ou Entre Leiras (2021). Dessa forma, tem desenvolvido uma capacidade para olhar o material que tem e juntá-lo de forma a estabelecer fortes relações entre as imagens, a encontrar rimas, texturas, sobreposições ou raccords improváveis. Sendo essencialmente na montagem que se fazem todas as derradeiras escolhas, em particular no género documental, o trabalho do montador é um trabalho de filtragem – o de separar o trigo do joio. Através de um arquivo de imagens que foi reunindo ao longo dos últimos anos, foi na montagem que o realizador descobriu o seu filme.

Terra que Marca, Raúl Domingues © Oublaum filmes

Terra que Marca é sobre o labor da terra e sobre a aproximação do realizador àqueles que são os gestos familiares, mas  é sobretudo um ensaio visual sobre a textura e cores da natureza e desse trabalho no campo. A sua técnica remete para uma certa expressão primitiva e também aí reside o fascínio pelas suas imagens: pintar o que se vê na natureza e juntar as peças de forma a criar um retrato vivo do labor familiar. O cinema tem essa força e Raúl Domingues percebe-o. Esse respeito pela terra conflui num aspeto animista que o seu filme parece também conter. Lembrando as palavras de Jean Epstein: “One of cinema’s greatest powers is its animism. On the screen there is no still life. Objects have attitudes. Trees gesture. Mountains, like this Etna, signify. Each element of staging becomes a character.” É desse espírito presente nos objetos e nos elementos que  emana a força cinematográfica do filme.

Essa sincera disponibilidade para olhar o trabalho dos familiares e para se deixar deslumbrar pelos seus gestos, ritmo e sonoridades, é a semente de onde nasce esta obra: esta terra que marca, mas que sobretudo é marcada pela presença de outra natureza – a humana.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Terra que Marca, Raúl Domingues © Oublaum filmes]

MOTELX: Destaques da Competição Nacional de Curtas

A sala 2 do Cinema São Jorge encheu-se para duas sessões de competição para o Prémio SCML MOTELX – Melhor Curta Portuguesa, seguida de uma pequena conversa com os realizadores moderada pelo Shortcutz Lisboa. Marcada por obras muito distintas, ficou notório que o cinema de terror em Portugal tem dificuldade em se libertar de ideias já vistas e alcançar algo de verdadeiramente novo face à pouca aposta das produtoras de maior renome e ao pouco orçamento de várias destas produções. Ainda assim, alguns trabalhos destacam-se.

É o caso de Cemitério Vermelho, um dos filmes mais conseguidos vistos na competição pela fidelidade ao género com que o realizador Francisco Lacerda se lança nos seus projetos. Este western spaghetti passado nos Açores, mais concretamente no Barreiro da Faneca, traz-nos a história de dois fora-de-lei que lutam por “um punhado de trocos”. Através do pastiche e do lado burlesco das personagens, o filme resulta numa boa comédia e em 9 minutos de bom entretenimento para os mais admiradores do género. Percebemos que algo se passou naquele dia e que o cowboy regressa para pedir justificações. As voltas e reviravoltas finais culminam num final empolgante.

Cemitério Vermelho, Francisco Lacerda © Cactus Sessões

Quando a Terra Sangra de João Morgado é tecnicamente o mais espantoso e prometedor dos filmes em competição. A praga que ameaça uma aldeia traz a loucura e o medo ao seio daquela comunidade. Com momentos de intenso mistério e tecnicamente surpreendente, o filme tem sequências de grande qualidade, como no caso dos sonhos surrealistas que invadem a mente deste “Homem”. Descrito como um filme sobre o desespero, Quando a Terra Sangra funciona bem na forma como constrói o terror ao redor das personagens e da aldeia. Ainda assim, o argumento acaba por não ser suficientemente poderoso face à qualidade da imagem e ao desempenho dos atores, ficando a ideia de que teria potencial para muito mais.
O Caso Coutinho de Luís Alves toma o ecrã. Vítor Norte, que interpreta a personagem principal, assume perfeitamente a essência de um idoso solitário e angustiado que é perseguido por uma força misteriosa em sua casa. O uso do preto e branco (à semelhança de Misericórdia, uma outra curta em competição) dá um ar ainda mais misterioso e aflitivo ao espaço em que o personagem principal se encontra. Também o som do filme é muito bem trabalhado, com o barulho de máquinas, da campainha e de um constante bater à porta. Tudo parece acontecer ao mesmo tempo, desnorteando ainda mais tanto a personagem principal como os que o observam.

VÓRTICE, Guilherme Branquinho © Take It Easy 2022

Por último, destaca-se o vencedor da competição, Vórtice de Guilherme Branquinho. Com Cristóvão Campos na personagem principal, partilhamos a frustração de uma pessoa que, saindo tarde do trabalho, não consegue encontrar um lugar para estacionar o carro. No entanto, rapidamente a sua frustração transforma-se em paranóia quando se apercebe que esta não é uma simples noite e tem alguém a persegui-lo. O argumento lembra o episódio “The Witness” da série Love, Death, Robots, onde também os personagens ficam presos neste vórtice estranho, numa realidade que parece tão semelhante à que pertenciam, mas que agora foi ligeiramente alterada. Também Guilherme Branquinho consegue transformar uma coisa tão mundana em algo muito maior e sinistro. O argumento está bem escrito, o ambiente segura uma tensão que é quase palpável na sala de cinema e Cristóvão Campos parece ter sido criado para esta personagem. Não é de estranhar que Guilherme Branquinho tenha levado o tão merecido prémio da noite, distinguindo-se como melhor curta portuguesa em competição.

Apesar de altos e baixos, o MOTELX continua a crescer com o sangue novo que lhe tem vindo a ser adicionado e deixa uma esperança positiva no futuro do cinema português.

[Foto em destaque: Quando a Terra Sangra, João Morgado © Lusófona Filmes]

Ricardo Fangueiro e Olena Pikho