Muito antes de nos ser possível ver na sua completude a filmografia de Frederick Wiseman, esta, a qualquer momento, que é o mesmo que dizer a qualquer filme, observa-nos, promovendo um acordo tácito que gradualmente se instala. Está em causa uma sublimação do lugar do espectador, no qual é abolido qualquer perímetro e convocado um sentido ativo de observação, que vai e vem, numa dialética de ambiguidade e abertura em relação à multiplicidade de sentidos possíveis. Em Wiseman, promove-se sistematicamente a leitura do espectador como gesto primordial na construção de sentido, que na sua subjetividade inevitável se estabelece desde a leitura mais pobre à mais rica. Assim, pensar o filme é de facto, criá-lo.
De uma forma geral, os filmes de Frederick Wiseman são campos de observação de lugares ou sistemas onde prosperam lógicas institucionais com relações de poder desiguais. Belfast, Maine (1999) enquadra-se na última fase do seu cinema, no qual esta ideia de instituição total é projetada numa lógica de corpo comunitário de valores partilhados. No caso, a comunidade é a cidade de Belfast no Maine, por onde somos levados aproximadamente durante quatro horas, numa excursão que por (várias) vezes lembra um safari, (re)visitando odores que persistem no cinema de Wiseman: o cheiro a morte dos lugares da indústria alimentar, em particular no que diz respeito ao encadeamento de ações implicadas no comércio de peixe, desde a pesca à sua preparação em postas, ou em conserva; lugares onde há mestres/oradores e aprendizes/ouvintes, desde reuniões de grupo a aulas de teatro amador, aulas de ballet ou a uma sala de aula; a experiência do fim de vida ou proximidade da morte, seja pelo estado avançado de doença, pela resposta estandardizada de um centro hospitalar, pelo relato de situações de violência doméstica ou de comportamentos tóxicos normalizados e, por fim, estabelecendo uma ligação ao primeiro ponto, pela caça e pesca do ponto de vista comercial/económico.
Nesta rota que se vai traçando desde o início do filme, o gesto é da ordem da escultura e não do desenho. Manifesta-se por exclusão, desvelando a forma a partir do bloco de imagens com as quais qualquer um de nós, em maior ou menor grau, tem uma relação próxima. As relações que subjetivamente se estabelecem não surgem como adições, mas como saídas possíveis que se colocam até mudar de cena. De forma alternada, o filme constrói-se com sequências intercaladas entre o ritual e a pedagogia, prontas a ser combinadas de acordo com o entendimento do espectador. As sequências performativas, protagonizadas pela linha de montagem, surgem como documentos visuais de instrução prática sobre as atividades desempenhadas e talvez por isso estas sejam tão hipnotizantes: engomar roupa, pescar, confeccionar donuts, embalar truta, caramelizar amêndoas, curtir pele de raposa (…) num ritual que parece tornar qualquer das atividades ao alcance do nosso fazer, com uma ciência reduzida, automatizada, que homogeneíza qualquer atividade. As sequências orais, subdivididas entre as discursivas e as interrogatórias, nas quais se desvelam novas camadas de informação, respetivamente através de um personagem que se dirige a um auditório ou de outro, cuja sua função é fazer perguntas para traçar um perfil. Entre a entrevista e a terapia, estes gestos vão sendo abordados num levantamento da cidade de Belfast a partir dos seus vários órgãos. Todo este quadro de lugares e ações se estende entre duas cenas de pintores solitários que assinalam o princípio e o fim do filme, produzindo eco com os dois tipos de paisagem — industrial e natural (ou com o choque das duas) — que surgem nos planos de corte: os quadros do rio, dos carros na estrada, das casas, do pôr do sol, do cemitério… onde apenas parece não acontecer nada.
Sebastião Casanova