Ingeborg Bachmann: Journey into the desert: o sonho da paisagem sem obstáculos

“Tu és o meu assassino”, diz Ingeborg Bachmann (Vicky Krieps) a Max Frisch (Ronald Zehrfeld), o seu companheiro controlador, ciente da influência negativa daquele homem que a impede de se tornar a escritora independente e livre que pretende ser. Ingeborg Bachmann: Journey into the desert, de Margarethe von Trotta, é o filme biográfico da escritora e poeta austríaca, Ingeborg Bachmann. A realizadora alemã volta a um género que conhece bem, tendo já assinado, anteriormente, biografias como Hannah Arendt (2012) ou Searching for Ingmar Bergman (2018), entre várias outras ao longo da sua carreira.

Apesar de algo insípido e formalmente preso a um cinema convencional e comum, o filme também tem momentos de grande primor estético e surrealista. É justamente quando o filme se permite a isso, que a energia emancipadora de Ingeborg vem à tona e ficamos mais agarrados à sua história.

A proposta da realizadora alemã é contar em paralelo duas alturas distintas da vida da escritora: a primeira, quando vive com o escritor suíço Max Frisch; a outra, quando viaja pelo deserto com o seu novo amante Adolf Opel (Tobias Resch). O título do filme remete para essa viagem que, além de literal, é também metafórica. O deserto pode ser visto como símbolo de um caminho infinito e sem obstáculos pelo qual a escritora tenciona correr. Essa corrida acaba mesmo por acontecer. A dada altura Ingeborg confidencia a Adolf  que sempre teve o sonho de “ter relações com vários homens, jovens e bonitos, ao mesmo tempo”. Quando esse desejo se realiza e consegue “vingar-se” da clausura onde o universo masculino a pretende encerrar, acontece mesmo essa correria livre pela paisagem deserta, da qual emana a sua alegria.

Ingeborg Bachmann: Journey into the desert, Margarethe von Trotta © Wolfgang Ennenbach 

Talvez pouco conhecida fora da Alemanha, Ingeborg Bachmann é retratada neste filme como uma mulher brilhante de fulgor desafiante e corajoso, rumo à expectativa da sua total emancipação. Procurando libertar-se de um marido controlador e de feitio machista, que teima em intrometer-se na sua vida, o casamento é entendido por si como um impedimento da liberdade feminina. Entre a convenção do casamento e da vida doméstica, e a energia criativa que guarda, Ingeborg não consegue encontrar o equilíbrio, pelo que o único caminho é despojar-se dessas convenções. Ingeborg Bachmann: Journey into the desert é hábil a mostrar o exemplo de uma mulher que faz uso da sua coragem para conseguir a independência individual e criativa num mundo, como constatamos em muitas cenas, ocupado por homens. A notável interpretação de Vicky Krieps oferece momentos de enorme emoção e, apesar de, como foi dito anteriormente, o filme estar demasiado formatado na sua conceção, a realização de von Trotta é exímia e pouco há a apontar nesse sentido. Faltou apenas ser mais como Ingeborg Bachmann e desembaraçar-se corajosamente das amarras que restringem a sua força cinematográfica.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Ingeborg Bachmann: Journey into the desert, Margarethe von Trotta © Wolfgang Ennenbach]

A Verdade Universal no Pesadelo Febril

Nunca deixará de ser deprimente ver um filme único e perceber que a maioria dos grupos de críticos e espectadores, unidos nos usuais círculos de pensamento precoce logo após sair da sala, estão unidos num desdém pelo filme. Trocam críticas que, em grande parte, mostram uma incompreensão das regras que o filme está a criar para si próprio, tentando então colocá-lo em caixas pré-existentes no qual este não encaixa.

Perpetrator, de Jennifer Reeder, é um retrato surrealista do horror sentido por jovens raparigas durante a mudança da puberdade face às suas mudanças corporais e psicológicas e a nova visão exterior social em que é colocada.

A identidade visual da cineasta, que, em vez de uma formação oficial em cinema, estudou artes visuais, descende diretamente das suas primeiras curtas metragens de video art (seria plausível imaginar este filme como um produto artístico da autoria das protagonistas de Lullaby e Nevermind, curtas realizadas e protagonizadas por Reeder em 1999). A estética artística do filme é experimental de uma forma muito única: uso recorrente de duplas exposições, efeitos digitais, que se auto-evidenciam, e diálogos líricos e teatrais. Os burburinhos acusavam o filme de ser uma amadora pastiche lynchiana (cineasta normalmente associado a uma exploração da mitologia americana que a fita com níveis iguais de fascínio e horror), o que não só demonstra uma falta enorme de tato face à obra (e uma compreensão completamente errónea de Lynch em si), mas também uma incapacidade de ver esta linguagem não-normativa como algo trabalhado e propositado, em vez de equívocos de um artista amador (a primeira curta-metragem de Jennifer Reeder é datada de 1993, e a sua filmografia é extensa…).

Perpetrator, Jennifer Reeder © WTFilms

Tal como não é uma pastiche lynchiana, também não é um objeto de fetichismo retro do qual era paralelamente acusado de ser. O filme não se passa nos anos 80, apresentando-se de forma completamente atemporal, pegando em arquétipos de várias épocas de forma a criar um mundo de texturas cativantes. Não se limita ao modus operandi que os verdadeiros objetos fetichistas seguem: escolher mãos cheias de objetos marcantes de uma era e conjugá-los de forma estática, tentando ressuscitar o cadáver do passado com o poder da nostalgia opiácea (observável em grande parte do cinema de terror contemporâneo). 

Muito mais facilmente poderia ser equiparado a Angela Carter e as fábulas e contos de fada tradicionais que filtra através duma visão grotesca e aterrorizada face às mudanças do corpo e da mente de uma jovem rapariga durante a puberdade.

Os elementos de referência mais evidentes não eram mencionados nas conversas: a lógica emocional e não racional do cinema de terror italiano, televisão, filmes e livros de terror para crianças, ou até cinema experimental de série Z (ao longo do filme encontram-se várias referências muito diretas a Death Bed: The Bed that Eats de George Barry) … Um dos maiores equívocos é tentar ver neste filme qualquer tipo de tentativa de se inserir no género Young Adult (ou YA). 

Perpetrator não é adolescente ou juvenil, mas sim infantil. A narrativa foca-se na protagonista adolescente de forma a representar uma no man’s land entre a infância e a vida adulta. Está presente, e em constante análise, o despertar da sexualidade e mudanças corporais únicas da puberdade, postas em perspetiva através de uma visão do mundo que ainda é dominada pelas sinapses e raciocínios de uma criança. 

Um dos exemplos mais fulcrais desta natureza é a representação das personagens adultas, vistas, não como demónios controladores, mas como bruxos misteriosos, cheios de segredos que as personagens ainda não conseguem entender (a personagem de Alicia Silverstone é o arquétipo de “bruxa solteira”, até se chama Hildy, remetendo à série original de Sabrina, The Teenage Witch…). Este mundo misterioso é visto como deficiente da vitalidade física, mental e emocional da criança, que por isso mesmo quer roubar os atributos dos adolescentes, tendo inveja de já terem começado a compreender o mundo racional e definido das formas, ainda sem terem perdido um pé firmemente posicionado no poço ctónico borbulhante da experiência real e visceral.

Perpetrator, Jennifer Reeder © WTFilms

É como se Jennifer Reeder tivesse ficado doente no dia em que entrou na puberdade, faltando à escola e ocupando-se em casa com maratonas televisivas de Goosebumps, a série de terror para crianças. Enquanto extremamente afetada pelos efeitos narcóticos do xarope para a tosse, o seu cérebro ocupa a sua mente com estas narrativas febris na sua sesta pós-episódio (infetadas por novas ansiedades que borbulham debaixo da superfície). 

A outra grande crítica que predomina o discurso que pairava após a sessão, era o da sua aparente incoerência narrativa (ou o desejo de ser aleatório como destino final estético, sem qualquer justificação). Esta psicodelia delirante não é de todo sarcástica e irónica e não tenciona propor ironia como justificação para a aparente falha. Reeder construiu uma obra que é dolorosamente genuína no que está a tratar, fazendo o filme extremamente coerente, apenas não de uma forma racional. 

É possível criticar a narrativa como mal-trabalhada e a sua metáfora como incongruente e falhada, mas essa análise, fora de ser a mais fácil e aparente, nega o facto de a cineasta estar a apresentar um mundo de verdade emocional ao invés de racional. O espectador passa uma hora e trinta e nove minutos dentro de um retrato expressionista em movimento de uma realidade emocional que é tão pura e verdadeira como a de um sonho, que, tal como esta narrativa, não está preocupado com um sentido narrativo tradicional ou uma maquinação química de metáforas legíveis em proporções de 1×1.

Todas as ansiedades e horrores de alguém que passa pela puberdade num corpo normativamente feminino são colocados em luta no ringue do cinema sob a influência de esteróides: desde o medo constante de penetração à realidade de uma nova expulsão de sangue mensal. Este pesadelo não trabalha no mundo das metáforas e analogias, mas sim numa arena selvagem de lirismos simbólicos, e é isso que faz dele uma representação artística tão impactante e cosmicamente real.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Perpetrator, Jennifer Reeder © WTFilms]

White Plastic Sky: Face ao nada que somos, a natureza prevalecerá

White Plastic Sky (Műanyag égbolt), longa de animação de Tibor Bánóczki e Sarolta Szabó, estreou mundialmente na secção Encounters. A dupla, responsável pelas curtas Les Conquérants (2013) e Leftover (2015), traz à capital alemã a sua estreia no formato longa-duração, uma ficção científica distópica passada no século XXII.

Budapeste, 2123, revelam os intertítulos iniciais. De rajada, as palavras que aparecem escritas sobre um céu acessível apenas através de uma redoma descrevem o panorama. Os animais e as plantas foram extintos, e as regras de sobrevivência para os que têm a sorte de viver sob a redoma que encapsula a cidade são rígidas: volvidos os 50 anos de idade, os cidadãos sacrificam-se à Plantation – destino que partilham com quem procura refúgio de uma vida sem rumo – em prol de um bem maior. 

A trama centra-se em Stefan, um psiquiatra que ajuda crianças e jovens a prepararem-se para a eventual “transformação” dos seus entes queridos, e em Nora, a sua mulher. O ponto de vista de Stefan, através do qual passamos a conhecer a profissão e os contornos da cidade futurista, migra para Nora, prestes a voluntariar-se precocemente à Plantation: é-lhe implantada uma semente que, após muito sol e muita água, transformar-lhe-á numa árvore. Quando finalmente os vemos juntos, o semblante deprimido que se instala sugere uma tragédia em comum, impossível de ultrapassar.

White Plastic Sky, de Tibor Bánóczki, Sarolta Szabó © Salto Films, Artichoke, Proton Cinema

A aura plasticamente pacata da cidade encoberta transforma-se numa explosão de cor e música numa visita desesperada a uma discoteca, local improvável para o início de um plano de ação: ao descobrir o sucedido, Stefan embarca numa jornada criminosa para resgatar Nora. As placas no chão e nas paredes traçam o mapa de uma Hungria rochosa, e as panorâmicas de prédios abandonados transformam o cinzento numa paisagem recheada de nostalgia, percorrida na expectativa de chegar à única pessoa que pode reverter o procedimento a que Nora se sujeitou, o velho cientista responsável pelo projeto civilizacional vigente. 

Numa sobreposição de estilos de animação, das quais se destaca a técnica rotoscope (popularizada em Waking Life e A Scanner Darkly, de Richard Linklater) – que prende desde o princípio pela capacidade exímia de captar micro-expressões que fazem toda a diferença quando a palavra não é capaz de veicular a mensagem – Bánóczki e Szabó incorrem num diálogo complexo que contrapõe o bem maior à vontade pessoal. 

Apesar de envolto num ritmo por vezes disperso que dá demasiado destaque aos fragmentos mais banais da narrativa, White Plastic Sky é incisivo e valioso na sua mensagem ecologicamente carregada. Munida de uma nova sensibilidade, Nora consegue ouvir os desejos da árvore que encontram no destino final, um totem que sublinha o que filmes desde Wall-E a Aguirre, der Zorn Gottes vieram expor: face ao nada que somos, a natureza sempre prevalecerá. 

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: White Plastic Sky, de Tibor Bánóczki, Sarolta Szabó © Salto Films, Artichoke, Proton Cinema]

Manodrome: os homens a libertarem-se (violentamente) de si próprios

Os códigos da masculinidade e as ficções em torno da identidade pessoal que adotamos em sociedade são uma presença constante na personagem de Ralphie, protagonista deste Manodrome, do realizador sul-africano John Trengove. Com Jesse Eisenberg (Ralphie) e Adrien Brody (Dad Dan) nos principais papéis, o filme centra-se em Ralphie, um homem confuso do princípio ao fim do filme, que parece já não saber onde pertence nem que regras sociais é suposto seguir enquanto homem.

Com um trabalho precário como condutor de Uber, prestes a ser pai com a sua companheira Sal (Odessa Young), tudo o que acontece ao seu redor transforma-se num desafio à sua frágil masculinidade. Ralphie observa tudo com uma intensidade perscrutante, o que faz com que vista uma “cara de parvo” durante todo o filme, sendo retratado como um homem ingénuo e infantil, que cobre a cara com fita-cola por estar aborrecido em casa. No ginásio onde passa o seu tempo livre, esforçando-se para tonificar o seu corpo, a tensão homo erótica que se estabelece entre ele e os outros homens, põe-no, com esse olhar idiota, a observar os corpos de um grupo de homens negros.

É justamente essa cortina de virilidade que o filme pretende abrir, expondo a inocência de tais comportamentos. Essa confusão em que Ralphie se encontra vai fazer despertar a sua homossexualidade reprimida e fazê-lo “sair do armário” da pior das formas: cheio de fúria e raiva pelo que sente, espelhando-se no comportamento dos outros. Mais tarde, percebemos que Ralphie foi abandonado pelo seu pai e que isso terá deixado marcas fortes, abrindo espaço para uma apreciação mais psicanalítica.

Manodrome, John Trengrove © Wyatt Garfield

Tudo isto se intensifica quando o seu amigo Jason o arrasta para uma “família de homens”, cuja figura de Dad Dan surge como guia espiritual da masculinidade. Juntos, têm reuniões onde gritam frases de empoderamento (“Eu inventei o fogo e vou tirá-lo de volta. Eu inventei o sol e vou tirá-lo de volta.”), com a intenção de os libertar das amarras da sociedade e, em particular, do sexo feminino, fazendo com que vivam em abstinência sexual.

Trengove, que se assume como realizador queer, toca nestes assuntos de forma inteligente e sensível, o que permite uma análise cuidada das várias camadas de que somos feitos, nunca julgando a sua personagem e mostrando-a um pouco como vítima de todo um sistema que nos ultrapassa e perverte as escolhas individuais. A cena final é reflexo disso mesmo, mostrando a fragilidade de Ralphie, que surge como uma criança vulnerável nos braços de um gigante, mostrando-o quase como mártir da masculinidade tóxica.

Há vários momentos que nos agarram e que vão acentuando o conflito interior e a espiral de destruição em que aquele se encontra. Por exemplo, a tensão que se cria entre Ralphie e o Pai Natal do supermercado (o realizador assume que o filme foi propositadamente filmado na época natalícia, para sublinhar a ironia do enredo) ou as cenas com os vários clientes que entram no seu Uber, incluindo uma mulher a amamentar, uma criança a quem Ralphie “rouba” o telemóvel, e um casal homossexual.

Manodrome, John Trengrove © Wyatt Garfield

Manodrome acaba por ser frágil na sua resolução. Os melhores momentos do filme são mesmo aqueles em que a simples contemplação idiota de Ralphie sobre o mundo à sua volta cria uma tensão dramática que nos põe na sua  perspetiva, permitindo ao espectador adivinhar o que aquela mente poderá estar a pensar acerca do que vê. Isso é algo que funciona muito bem no filme. Trengove consegue, de forma inventiva, apresentar-nos uma visão curiosa sobre essa forma tóxica de masculinidade, assim como sobre os perigos do narcisismo bacoco por trás de homens que não se permitem mostrar a sua vulnerabilidade.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Manodrome, John Trengrove © Wyatt Garfield]

The Adults, um filme smaller than life

Dustin Guy Defa não é um desconhecido da Berlinale. Em 2014, competiu com o seu Person to Person ao Urso de Ouro de “curtas”, levando do festival o prémio DAAD. O cineasta é norte-americano, mas nem por isso alinha no maximalismo dos meios de produção e narrativos de Hollywood. Em vez disso, o que o autor nos propõe com a sua recente longa-metragem, The Adults (secção Encounters), é uma proposta radicalmente oposta: um filme sem plot ou dicotomias morais, um retrato minimalista, arriscamos dizer smaller than life, de três irmãos que se descobrem, sem querer, noutra fase da vida, tentando interpretar uma nova vida, uma que exige que assumam o papel de adultos.

Um abatido Michael Cera protagoniza o triângulo composto também pelas excelentes Hannah Gross e Sophia Lillis. A crónica dá-se a partir de uma viagem que o primeiro empreende de Portland à cidade natal. Dustin Guy Defa é implacável a demonstrar como a sorte e o azar perseguem este homem sem qualidades, se subtrairmos o enorme talento que Michael Cera tem em tentar provar que é o melhor jogador de póquer e divertir todos aqueles em seu redor. Nessa empresa, parece esconder uma aflitiva depressão crónica. Aliás, essa melancolia extrema perpassa o staging e montagem (co-assinada pelo realizador) de The Adults. À semelhança do seu protagonista, o filme encaminha-se humildemente sem objetivo definido. Uma reparação possível ocorre quando os irmãos relembram que se amam, apesar da tensão constante que não se explica senão no off, no fora de campo.

A Dustin Guy Defa interessa-lhe mais amar pessoas calmas, compondo com elas uma visão particular do mundo centrada no género humano, infinitamente contraditório e frágil. Numa das melhores cenas do filme, enquanto joga póquer com os amigos, Cera recorda o momento em que conheceu a morte pela primeira vez, quando viu Simba descobrir o pai morto em O Rei Leão. As suas lágrimas, que facilmente se fundamentariam pela perda da mãe, encerram algo ainda de mais complexo – o protagonista cuida de perceber se o pathos da sua retórica consegue eficazmente afetar os amigos, enquanto também tenta navegar entre várias máscaras, impedindo assim uma leitura completa das suas motivações psicológicas.

The Adults é um retrato pessoal, belamente fotografado, que atinge outro ponto alto nos momentos musicais coreografados entre os irmãos. A sua simpatia e simplicidade encontrará os seus fãs, mas não satisfará aqueles que acreditam no cinema como superação da vida.

Flávio Gonçalves

[Foto em destaque: The Adults, Dustin Guy Defa © Universal Pictures Content Group]

Não há superpoderes que redimam a propaganda

Em Berlim, é o homem do momento. Vulnerável, Sean Penn partilha as suas lágrimas, a dada altura, em Superpower, avassalado pelo horror do decorrer dos acontecimentos nos primeiros meses da invasão russa na Ucrânia, para onde foi filmar seis vezes. Parece haver, nessa cena, a possibilidade de um homem que “chora o mundo”, ou a possibilidade do silêncio face à incomensurabilidade do absurdo da guerra e das ficções das ideologias e das fronteiras. Mas a expectativa do silêncio é depressa derrotada pelo ruído com que este objeto procura ser aconchegado.

Nada nos preparava para o panfleto propagandístico e autocentrado que é este Superpower, indigno de ser chamado de cinema, menos ainda de documentário. Começa-se por falar sobre o frágil esqueleto da ideia inicial (documentar a transformação de Volodymyr Zelensky de ator amado pelas esferas populares de todo o território da ex-URSS a presidente da república na Ucrânia). Rapidamente, depois de um vaivém de acontecimentos narrados pelas televisões norte-americanas, o objeto torna-se crónica (da equipa de filmagem) durante os dias que antecederam e procederam o dia da invasão russa e torna-se, ainda, elegia de estilo publicitário sobre ucranianos (dos jovens cadetes às mulheres que aprendem a defender-se). 

Não deixa de ser curioso que, numa montagem que torna previsível, mas faz aguardar com expectativa o encontro entre os dois atores ocidentais (Penn e Zelensky), esta reunião, feita 15 horas após a entrada do exército russo, aconteça sem nada de especial, nem química, merecedora de nota. Mais dois encontros se sucedem, e Zelensky aproveita o seu palco para urgir a celeridade do fim da guerra, viável com mais armas.

 Sean Penn na conferência de imprensa esta manhã © GETTY IMAGES

Na manhã deste sábado, dia 18, o corealizador norte-americano utilizou a conferência de imprensa para bater na mesma tecla e pedir à NATO mais armamento e mais sofisticado, nomeadamente mísseis de longo alcance de grande precisão. Trata-se de estar “do lado certo da história”, insistiu hoje Sean Penn, embora no filme o tivéssemos ouvido falar do poder do… “amor”. Parece ser esse, afinal, o seu grande objetivo com a sua presença central no filme e agora na Berlinale – marcar o seu lugar na História, à semelhança de Putin ou Zelensky. As suas palavras não comovem e as imagens dos cadáveres impressionam, mas pelo aproveitamento vergonhoso da sua montagem sensacionalista.

Uma observação final deve ser feita aos planos filmados à altura dos copos de uísque – há, no enquadramento dos copos e de Sean Penn, que fuma e bebe constantemente ao longo de Superpower, uma expressividade que reflete a sua humilde impotência e humanidade, longe de qualquer superpoder.

Flávio Gonçalves

[Foto em destaque: Superpower, Sean Penn e Aaron Kaufman © ANADOLU AGENCY/GETTY IMAGES]

Blackberry e a crueldade da velocidade tecnológica

No final da projeção, Matt Johnson e a sua equipa subiram ao palco da sala principal do Berlinale Palast para serem aplaudidos por uma plateia divertida e convencida pelo resultado que viu na tela. O realizador canadiano acabou mesmo por confidenciar que só tinha estado na Berlinale como espectador, e que lhe diziam que nunca conseguiria ter um filme seu no festival, por estes serem demasiado divertidos e lhes faltar alguma profundidade. Em jeito de brincadeira, disse: “finalmente aconteceu, talvez porque faltavam filmes em competição e precisavam de um filme canadiano”. 

Nesta atitude reflete-se a ausência de pretensiosismo do filme, que não possui nenhuma intenção de ser mais do que aquilo que é: um filme divertido que pretende contar a ascensão e queda do blackberry de uma forma leve e engraçada.

Matt Johnson inspirou-se no livro Losing the Signal (2015), de Jacquie Mcnish,  para filmar este Blackberry, que conta, justamente, a criação deste dispositivo que revolucionou o mercado das comunicações no fim do século XX e início do século XXI. Acompanhamos os dois fundadores da Research In Motion (RIM), Mike Lazaridis e Douglas Fregin no ano de 1996, quando os dois jovens tentam vender a sua ideia, conhecido ainda como pocketlink, a Jim Balsillie. Mais tarde batizado de “blackberry” (não se explica a origem do nome, mas é dado a entender que foi algo improvisado num dos pitchings para tentar vender a um cliente), o smartphone da RIM foi o primeiro dispositivo móvel que permitia fazer chamadas e aceder à internet. 

Centrado na relação entre os dois criadores, vistos no início do filme como duas “crianças” extremamente criativas, que não tinham conhecimento empresarial suficiente para levar a cabo o potencial das suas ideias, o filme mostra-os como “nerds” viciados na cultura pop. São constantes as referências a filmes ou jogos do fim do século XX, seja nas noites de cinema organizadas semanalmente na empresa, como na roupa e acessórios das personagens. Jogos como Red Alert, Doom, Mortal Kombat, Street Fighter ou filmes como Eles Vivem (1988), as sequelas de Indiana Jones, Star Wars ou Star Trek são alusões constantes.

Blackberry, Matt Johnson © Budgie Films Inc.

Fazendo lembrar, por vezes, a série The Office, pela filmagens com câmara à mão e zooms rápidos, o filme conta uma importante parte da história da evolução tecnológica do século XXI. O momento dramático que causa a reviravolta, não só no filme, como na história da Blackberry e da RIM, é o aparecimento do primeiro Iphone em 2007. A partir desse momento, a Blackberry, que controlava cerca de 45% do mercado dos telemóveis, entra numa espiral de declínio, sem ideias suficientemente competitivas para fazer frente à Apple.

Blackberry é bem-disposto e com bons apontamentos de humor, contando de forma eficaz e apelativa a história do gigante caído das telecomunicações. Ao jeito de filmes como Social Network  (2010) (história do Facebook) ou da série The Playlist (2022) (história do Spotify), novamente temos aqui o foco na odisseia empresarial de jovens empreendedores com ideias de sucesso a ascenderem no mundo dos negócios. 

É também o retrato cruel do desmoronar de uma amizade e de um espírito livre e apaixonado que caracterizava os dois jovens. Douglas acaba por ser despedido, por ter sempre mantido o espírito infantil, enquanto Mike se torna um cinzento e carrancudo homem de negócios, apenas preocupado com o futuro da empresa. Na cena em que Douglas chega com uma cassete do filme Tartarugas Ninja (1990) para a noite de cinema e vê que os preparativos foram abandonados e a sessão cancelada, constatamos a tristeza no seu olhar sonhador ao ver que se estavam a tornar “homens sérios”. É também quando essa paixão se esvai que a empresa nunca mais encontra o rumo para se tornar competitiva.

 O que ressalta deste filme é mesmo essa noção da rápida ascensão e igualmente rápida queda a que as empresas estão sujeitas no competitivo mercado tecnológico, sobressaindo a tristeza de ver um sonho e uma amizade desvanecer-se impiedosamente.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Blackberry, Matt Johnson © Budgie Films Inc.]

Os Orlandos do século XXI

 “Estamos convencidos que o inconsciente não é um teatro. Não é um lugar onde Hamlet e Édipo interminavelmente interpretam as suas cenas. Não é um teatro, mas uma fábrica. É uma produção!”

Gilles Deleuze

Como sucessor direto de Foucault e Butler, Paul B. Preciado é, sem qualquer dúvida, uma das vozes chave no mundo da teoria queer do século XXI. Conhecido pelas suas ideias inovadoras e voz única, ao longo do seu trabalho tem vindo a desenvolver um multifacetado estudo crítico do conceito de género que se destaca pela sua abordagem livre à biografia e um refrescante ataque à “catedral” da psicanálise. Em Orlando, Ma Biographie Politique, o autor estreia-se no papel de cineasta, onde trata os seus temas fulcrais com um olhar impressionante para o mundo cinematográfico.

O filme consiste numa (muito) livre adaptação de Orlando de Virginia Woolf, a história de um aristocrata que vive séculos sem envelhecer e de quem o corpo, a um certo ponto da sua vida centenária, passa por uma metamorfose de género noturna. O filme estabelece a personagem do titular Orlando como o arquétipo de todas as vidas e corpos trans, e a partir desta analogia cria uma autobiografia do cineasta e de muitos outros atores trans, estabelecendo um jogo constante entre as suas experiências pessoais e o livro em causa (não só a sua narrativa, mas também o seu contexto histórico e natureza metatextual).

Orlando, Ma Biographie Politique, Paul B. Preciado © Les Films du Poisson

Orlando foca-se numa constante celebração do Devir e recusa à Essência, orquestrando diversas narrativas reais e ficcionais de pessoas que pegaram nos seus destinos pelo colarinho, encarregando-se das suas próprias metamorfoses físicas e sociais. Um dos seus aspetos mais interessantes é a visão de todos estes caminhos como fluídos e constantes ao invés de viagens delineadas entre um ponto A e B. Isto é exemplificado numa das primeiras cenas: enquanto está em quadro a floresta, que é usada como décor em grande parte do filme, ouvem-se vozes a transformarem-se. O filme não se limita a passar de uma voz grave e “tradicionalmente masculina” para o seu suposto oposto: cria não só momentos de sobreposição de duas vozes, como coloca também vozes sem corpo em sucessão sem qualquer desejo de procura da sua identidade de género, chegando a uma sinfonia sonora na qual os espetros de som e de género se complementam na obliteração de hierarquias.

Orlando, Ma Biographie Politique, Paul B. Preciado © Les Films du Poisson

Já era reconhecida a mestria de Preciado no domínio do texto, mas é maravilhoso ver o quão perfeitamente a sua voz artística se adapta a uma voz visual e sonora. A sua escrita pouco ortodoxa dentro do universo da crítica académica dá-se completamente ao mundo imagético que o filme tenta transpor, onde não só os seus sujeitos e temáticas são fluídos, como também a sua forma e linguagem. Observável desde o uso de uma multitude de atores, todos representando o arquétipo e personagem de Orlando (que se desdobra em infinitas tapeçarias de experiências individuais), até à repetição de frases-chave marcantes, chocantes e únicas, que tanto aparecem em ladaínhas repetidas, como em momentos musicais (“no doubt about my sex, but the fashion of the times helps me disguise it”/Dont let freud/lacan get in the history of your mindfuck/Synthetic but not apologetic. No Doctor’s Bitch. Pharmacoliberation”).

Orlando é usado como uma metáfora e ponto de partida para a exploração dos temas da obra, onde cada sujeito real, cada Orlando do século XXI, consegue mostrar a sua vida e experiência única a partir da personagem ficcional tornada em arquétipo. Mesmo maioritariamente usando o livro de forma crítica e metatextual, é espantoso o jogo que o escritor tornado cineasta faz, não só acerca dos seus temas, mas também entre a cisão e união da escrita com a imagem em movimento. Impressionante a força de uma das suas cenas mais impactantes, onde todos os Orlandos do filme se unem num consultório (tomando o papel dos médicos que os oprimem) e, de forma literalmente cirúrgica, extraem a frase “Violence was all” do livro de Woolf. Consegue ser um comentário metatextual à própria forma da obra literária adaptada ao cinema, sem perder qualquer do seu impacto emocional.

Orlando, Ma Biographie Politique, Paul B. Preciado © Les Films du Poisson

Além do lado artístico, o lado político também deve ser destacado, e acima de tudo, complexo. Mesmo tendo as frases-chaves em repetição e outros dispositivos semelhantes que poderiam remeter, por exemplo, a Godard nos anos 60, não se fica por aí. Os métodos e dispositivos são numerosos, mas a forma e a narrativa andam sempre de mão dada. Num dos maiores exemplos, o encontro de um Orlando com o seu psiquiatra, opressor que cria uma barreira humana burocrática que o separa de uma possível autonomia médica sobre o seu próprio corpo, é equiparado ao encontro, no livro de Woolf, do espírito jovem de Orlando com o poder opressor colonialista da Rainha de Inglaterra.

O filme todo ocorre, fora das poucas exceções em décors exteriores ou pré-existentes, num soundstage. O espaço poderia facilmente fortalecer um certo distanciamento e artificialidade (importante pensar nos espaços liminais de Let Me Die a Woman, de Doris Wishman, que muitas vezes é criticado pela analogia estabelecida entre a artificialidade destes espaços e a do género dos sujeitos do documentário). Isto, neste caso, é evitado através do argumento complexo e da escolha de pessoas trans para interpretar os diversos Orlandos (nos quais depositam as suas próprias histórias de vida). Dá-se ao longo da duração um malabarismo constante entre a ficção do livro, a ficção do filme e um registo documentarista onde é criado um espaço seguro onde estas pessoas se conseguem autodefinir num devir eterno onde não têm de se preocupar com respostas fixas e destinos tangíveis.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Orlando, Ma Biographie Politique, Paul B. Preciado © Les Films du Poisson]

Someday We’ll Tell Each Other Everything, e o rastro das certezas proibidas

Someday We’ll Tell Each Other Everything, da realizadora franco-alemã Emily Atef, é um dos filmes a competir pelo Urso de Ouro na 73.ª Berlinale. Adaptado do romance homónimo de Daniela Krien, a longa-metragem que narra a relação proibida entre a adolescente Maria e Henner, um homem 20 anos mais velho, tem como backdrop uma Alemanha do Leste rural a respirar os primeiros ventos da reunificação alemã.

Maria, uma jovem acabada de entrar na maioridade, é acolhida pela família do namorado, Johannes. Os seus pais são divorciados, e a relação entre os três parece não ser a melhor; por isso, prefere a vida mais pacata dos Brendel, ajudando na quinta e na mercearia por eles gerida. Sem grande interesse pela escola, passa a maior parte do tempo agarrada aos livros, sendo Os Irmãos Karamazov o seu principal refúgio durante os dias que passam. A languidez dos dias de verão é refletida nos tons quentes que envolvem o filme e, inicialmente, pouco parece esbater a boaventura dos dias longos.

A paz cai por terra quando os olhares intensos entre Maria e Henner se fazem sentir, antes mesmo de uma aproximação palpável. O pressentimento de que algo intenso e perigoso está prestes a irromper desenvolve-se num processo paulatino de planos dolorosamente vagarosos, através de uma câmara que se constata em demasia – jorra-se o clichê quando a protagonista caminha por um campo extenso, o centeio esbatendo rispidamente contra o aparelho, sem mais a transmitir do que mera paisagem. O mergulho conseguido inicialmente pela simplicidade dos planos e dos diálogos cândidos em família é interrompido com slow-motions dramáticos e lens flares prescindíveis, que diminuem o filme à história de um amor proibido.

É sem pronunciar qualquer palavra que ambos se envolvem, depois de Henner aparecer, qual cavaleiro no cavalo branco, para ajudar Maria após um acidente. A cena é lenta e Atef tarda em desenvolvê-la: a anatomia dos corpos é microscopicamente explorada numa coreografia de ritmos extremos: o vaguear (quase) romântico dá lugar a uma ferocidade desmedida numa fração de segundos. À primeira, esta mudança reflete o fervor do desejo proibido; por outro lado, o pivot torna-se excessivo, nada mais que artefacto quando constantemente repetido sem nada adicionar, a não ser o que já sabemos: através de uma carta deixada à jovem, o eremita incompreendido firma o tipo de relação presa/predador que acaba por se estabelecer entre os dois (“Now I’ve caught you and dragged you into my cave“). 

No que diz ser um filme que quebra tabus sobre a sexualidade feminina, Atef adapta uma história pouco inovadora. O fascínio que se-lhe pode atribuir reside mais na sua rima com outras obras do que no filme em si: quando Maria fica doente sob a sua alçada, Henner torna-se protetor, remontando ao início da incomparável história de amor entre Tomáš e Tereza, protagonistas de A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera; ou, mesmo, a aproximação inevitável à relação anónima e problemática entre Paul e Jeanne em O Último Tango em Paris. Reinam as alusões ao universo da família Karamazov – o título do filme e as palavras finais, que surgem na voz de Maria, são retirados do discurso final de Alyosha, o mais novo dos irmãos, sobre como tudo será revelado no momento do Juízo Final.

É também merecedora de destaque a vertente historiográfica de Someday We’ll Tell Each Other Everything que, em paralelo com o dilaceramento interno de Maria entre duas famílias e dois homens, coincide com a reunificação de um país outrora fragmentado. Uma viagem ao lado ocidental ao som de Depeche Mode fixa a nova câmara fotográfica de Johannes e a possibilidade de estudar as Artes em Leipzig como elementos simbólicos do progresso; o regresso de um irmão perdido para o Ocidente às raízes revela que, por esses lados, até a agricultura passou por um rebranding, e o tradicional tornou-se “biodinâmico”. Numa incursão caricatural, luxos como o chantilly em lata, revistas cor-de-rosa ou viagens à Grécia e à Espanha vêm mostrar a mudança de paradigma e a possibilidade de um mundo inteiro por descobrir.
Todavia, o amour fou e as certezas juvenis de Maria a impossibilitam de desbravar esse mundo, ainda embrulhado numa espécie de misticismo esperançoso. Preso no vagar de uma tragédia obsoleta, Someday We’ll Tell Each Other Everything esgota-se num coming-of-age carregado de erotismo num flirt constante com o suspense que, ainda assim, falha em prender a respiração.

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Someday We’ll Tell Each Other Everything, de Emily Atef © Berlinale]

Em Berlim, os limites do cinema testam-se nas secções Forum e Panorama

Este ano, Susana Nobre é a primeira a levar Portugal à Berlinale. A cineasta faz no Zoo Palast, dia 18, a primeira apresentação da sua nova longa-metragem, Cidade Rabat (uma produção da Terratreme, responsável também pelo seu último No Táxi de Jack). Centrado na viagem interior de cura e transformação de uma mulher que trabalha em cinema e que acaba de perder a mãe, o filme promete ser dos mais pessoais a compor a secção Forum do Festival de Cinema de Berlim. 

O Forum, que tem por objetivo expandir o entendimento do que é o cinema, será também palco para exibir filmes como os de James Benning (Allensworth) ou Claire Simon (Notre Corps). A extensão Forum Expanded, que sai da sala de cinema sem abandonar o cinema, organiza este ano, no espaço Arsenal, a exposição coletiva “An Atypical Orbit”, que inclui a participação do fascinante Eduardo Williams, que apresenta Un GIF Larguísimo.

O Panorama, a secção mais explicitamente queer, feminista e política do festival, regressa este ano, novamente sob a alçada do programador Michael Stütz, para atribuir o Teddy Award, o mais antigo e importante prémio do cinema queer. Quando surgiu, em 1987, distinguiu Pedro Almodóvar (A Lei do Desejo) e Gus Van Sant (pelas duas curtas-metragens Five Ways to Kill Yourself e My New Friend). 36 anos depois, 30 filmes de 35 países compõem um programa diversificado que arrancou já com o filme de abertura La Sirène, de Sepideh Farsi, animação que acompanha um adolescente iraniano que trabalha como estafeta e que procura o irmão desaparecido, após um ataque devastador de mísseis iraquianos.

A cultura club como lugar de libertação, hedonismo e inebriamento será representada em filmes como o elegíaco La Bête dans la jungle, de Patric Chiha, After, de Anthony Lapia, visão sobre as vivências parisienses aconchegadas pelo techno, e Drifter, de Hannes Hirsch, errância pelas profundezas das festas e kinks de Berlim que um jovem empreende após terminar a relação com o namorado. 
Mas nem só de festa se faz esta programação repleta de títulos sobre a comunidade LGBTQIA+. Ira Sachs (Keep the Lights On) volta à realização com Passages, que, através de um triângulo amoroso, refletirá sobre o narcisismo e a inveja. Já o thriller de Sam H. Freemer, Femme, promete a vingança de uma drag queen londrina, após se envolver numa sauna gay com aquele que brutalmente a atacou.

Flávio Gonçalves

[Foto em destaque: Cidade Rabat, Susana Nobre © Terratreme Filmes]