Rebentos: Mostra Internacional de Cinema Emergente – Sessão 6

SENTIDO Y RAZÓN (2021)

um filme de Martín Pizarro Veglia

Poster de Sentido y Rázon, de Martín Pizarro Veglia © Direitos Reservados

Toda a gente conhece aquela célebre frase (mal) atribuída a Emma Goldman, figura central do movimento anarquista americano: “Se eu não puder dançar, esta não é a minha revolução”. Não que alguém o tenha dito por ela – ela simplesmente disse outra coisa. O que ela de facto disse foi que a felicidade teria de ocupar um lugar central no movimento, que a alegria não é apenas consequência da revolução, mas sua parte integrante.

Martín Pizarro Veglia parece aqui dar “sentido e razão” não apenas à posição de Emma Goldman através dos dois dançarinos que ocupam as ruas durante os protestos de 2019, no Chile, mas também à própria prática dos dançarinos. Não se trata, portanto, de dançar por dançar, mas de se apropriar do espaço público, dando-lhe um novo uso que tente escapar à dicotomia público-privado, central à construção do Estado moderno. O mesmo poderá ser dito do fotógrafo que documenta os protestos, as cargas policiais, os feridos, as barricadas. Mais do que uma ode à arte ou à sua dimensão política (“se esta não for política, não passa de decoração”, diz o fotógrafo), Sentido e Razão mostra como as capacidades e saberes de cada um podem ganhar um novo uso nestes momentos que suspendem a temporalidade de um mundo que já há muito perdeu qualquer sentido e razão.

João Ayton

KING MAX (2021)

um filme de Adèle Vincenti-Crasson

Poster de King Max, de Adèle Vincenti-Crasson © Direitos Reservados

King Max é um coming-of-age com temas que são cada vez mais comuns no cinema: o universo queer e as consequências e aventuras pessoais que este universo acarreta.

O espelho, representado no primeiro plano do filme, é um elemento chave na construção da curta-metragem: é ele a representação do desejo de mudança, que se revela crucial para a personagem principal. O corpo e o olhar o corpo, através do espelho, mostram esta vontade que se revela quase como uma necessidade de mudança. Mais tarde, percebemos que este desejo se transforma numa outra coisa. 

Dentro de casa, a personagem principal sente-se refém, aprisionada e infiel a si mesma. A corrida que precede a cena familiar mostra isso mesmo, uma vontade de libertação, que talvez seja possível na festa à qual acaba por ir parar. Nessa festa, a personagem recebe uma makeover e, mais uma vez, com a ajuda do espelho e da performance de uma Drag King, esta compreende que a vontade de mudança, antes tão indispensável, se transforma mais numa necessidade de aceitação, dela sobre si própria. É naquela festa, que a nossa personagem compreende que não é preciso forçar a mudança mas simplesmente pode ser aquilo que quiser ser, quando quiser ser. Ouvimos “we don’t have any gender” e sentimos esta libertação acontecer. A personagem, que antes tínhamos visto fragilizada no espelho, torna-se naquilo que dá título ao filme: King Max.

Inês Moreira

BEYOND (2021)

um filme de Julius Lagoutte

Poster de Beyond, de Julius Lagoutte © Direitos Reservados

Cidade. Gruas. Uma mulher. Somos apresentados a esta personagem feminina, que sabemos ter acabado de perder o seu irmão num acidente de trabalho, e que nos vai guiar ao longo do filme. Beyond compõe-se quer de planos em que vemos esta personagem, quer de planos em que vemos e ouvimos o que ela vê e ouve. É um filme desprovido de diálogo, cor e de personagens, onde tudo se passa interiormente nesta personagem única que o acompanha do início ao fim. Este dispositivo parece bastar para nos transmitir a mensagem pretendida: uma viagem de aceitação a uma nova fase da vida, agora sem o seu irmão.

Uma reflexão curta sobre a solidão, a perda e aquilo que fica para lá disso. Os espaços, antes habitados pelo irmão, são agora aquilo que restou dele e são abraçados dessa forma pela nossa personagem principal. As expressões faciais desta são o que constrói a narrativa, num filme que fala através das emoções e dos silêncios. E, apesar de à primeira vista parecer de difícil empatia, o espectador acaba por se ver envolvido no filme através desta personagem feminina que o encara de frente numa quebra da quarta parede. 

Inês Moreira

O QUE QUEDA DE NÓS (2021)

um filme de Miguel Goméz Abad

“Em tempos de auge, a conjectura de que a existência do Homem é uma quantidade constante e invariável pode entristecer ou irritar; em tempos que declinam (como este), é a promessa de que nenhum opróbrio, nenhuma calamidade nem nenhum ditador poderá empobrecer-nos” 

Jorge Luis Borges, El Tiempo Circular
Poster de O Que Queda de Nós, de Miguel Goméz Abad © Direitos Reservados

Ao contrário do imaginário e das mais típicas representações do que seria o fim do mundo – as guerras nucleares, as catástrofes “naturais”, etc. –, Miguel Goméz Abad apresenta-nos em O que Queda de Nós um fim dos tempos bucólico, envolto por montanhas, ao som da chuva, na companhia de duas mulheres. Os seus contornos são-nos vedados, o “inimigo” não tem rosto. Mas é na aparente oposição entre a calmaria de uma vida nas montanhas e o seu entorno incógnito que jaz a virtude do filme: o apocalipse não contará com os seus cavaleiros, não será um acontecimento catártico, mas antes lento, moroso, banal e normal – porque normalizado. O fim do mundo é o que já aqui está, e o desmoronar de toda e qualquer experiência, a pobreza de toda e qualquer relação com pessoas, coisas e lugares, que cada vez mais se apresenta como inevitabilidade histórica e como único caminho possível, é apenas um dos seus sintomas. A catástrofe da nossa liquidação reside precisamente aí, em liquidarmo-nos uns aos outros no mais profundo desespero pela sobrevivência.

O que resta de nós, então? O filme não o pergunta, afirma-o. Mas será isso o que nos resta?

João Ayton

Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.

Rebentos: Mostra Internacional de Cinema Emergente – Sessão 5

FRUTO DO VOSSO VENTRE, 2021

um filme de FÁBIO SILVA

A partir da casa familiar, das filmagens caseiras do pai até então desconhecidas, das fotografias dos irmãos que nunca conheceu ou dos planos do bairro onde os pais em tempos viveram, Fruto do Vosso Ventre, de Fábio Silva, desenvolve-se como uma narrativa arqueológica que procura dar significado — ou sentido — ao vazio deixado pela figura paternal. Poder-se-ia dizer que o filme é uma espécie de Carta ao Pai, um confronto não apenas com essa mesma figura, tão vaga e pesada quanto distante e dolorosa, mas também e acima de tudo com a “fuga, geralmente para dentro” e com a “pressão geral provocada pelo medo, pela fraqueza e pelo desespero” (Kafka) que recai sobre a figura do filho. Mas se, por um lado, o filho procura compreender essa ausência mergulhando no passado, abrindo gavetas, vendo cassetes antigas e desabafando com a mãe, por outro, ele acaba lentamente por preenchê-la, tornando-a, por isso mesmo, ainda mais evidente através da sobreposição das filmagens caseiras do pai aos planos do filme, nomeadamente aquela com que fecha o filme e que, nas palavras de Fábio, é “hoje impossível, mas que toda a vida desejei”.

João Ayton

MEIO ANO-LUZ, 2021

um filme de LEONARDO MOURAMATEUS

Num estilo documental que relembra o cinéma verité dos anos 60, Half a Light-Year chega-nos pelos olhos do brasileiro Leonardo Mouramateus. E será esta curta-metragem uma viagem por metade da distância que a luz percorreria num ano?

É inegável a relevância dada ao espaço e ao tempo nestes 18 minutos de filme. Em relação ao primeiro, há uma ligação muito próxima à cidade, uma Lisboa filmada com carinho e com verdade. Filmam-se os seus recantos e as pessoas que os preenchem no seu dia-a-dia, quase como se estivéssemos perante uma sinfonia da cidade ou uma carta de amor à Lisboa contemporânea.

Quanto ao tempo, este é utilizado como instrumento da narrativa. A dada altura no filme, as personagens autointitulam-se “viajantes do tempo” e parece que a câmara aprende a viajar com elas, por vezes para lugares e tempos diferentes daqueles que elas nos falam. O que vemos nem sempre é o que ouvimos. Um homem, sentado num degrau numa esquina, desenha no seu caderno, enquanto ouvimos um casal falar sobre uma carteira perdida. No final do filme, percebemos que visualmente a história que acabámos de ouvir começa ali, naquele plano da carteira perdida de que já tínhamos ouvido falar.

Há uma vertente quase de fantasia, engano e ficcionalização presentes no filme, apesar do seu género documental. As vozes que ouvimos levam-nos para diferentes lugares, e os desenhos que vemos confundem-se com esses lugares e com essas histórias. Fazer cinema é contar histórias e as personagens deste filme fazem isso muito bem.

Inês Moreira

CORPSELAND, 2020

um filme de YANG LIU

Uma respiração ofegante é o que ouvimos quando o filme inicia, todavia essa exaustão não abandona o espectador até ao final do filme. Corpseland monta um cenário distópico, onde coisas estranhas acontecem a um ritmo alucinante. 

O grafite é a primeira técnica utilizada por Yang Liu para animar este cenário feito de partes de cadáveres, como o próprio título indica, e por ser uma técnica tão crua ajuda a criar uma sensação de angústia e sofrimento, que vai acompanhar a exaustão sentida inicialmente. E mesmo que no final da primeira parte, a cor apareça e a técnica se aproxime de um desenho mais realista, a sensação de angústia não desaparece. É até mais assustador porque nos parece mais próximo e mais real.

Apesar de ser uma animação distópica, Corpseland acaba por refletir os medos da nossa sociedade. As partes do corpo que marcam o campo visual do filme acabam por chamar a atenção para a desumanização desta representação, transformando-se no seu tema chave. Os gestos daqueles a quem podemos chamar personagens são robóticos, e o seu andar relembra o andar de um zombie. 

O filme carrega ainda uma metáfora religiosa, talvez como forma de condenar a maneira como esta religião sobrevive nos dias de hoje. Associamos muitas vezes àqueles que seguem cegamente a fé, uma sensação de brainwash. Os motivos religiosos, como cruzes, remetem para os perigos daqueles que seguem algo sem questionamento. 

Este cenário de Corpseland revela-se recheado de conotações políticas e sociais que terminam no lugar que é a sala de cinema. Poderá esta ser uma chamada de atenção para nós mesmos enquanto espectadores? Se olharmos do ecrã para o espectador, nós somos o espectador, nós somos a sociedade, nós somos talvez quem perpetua estas ideias distorcidas que, segundo Yang Liu, um dia transformarão a distopia em realidade.

Inês Moreira

A VIDA É COISA QUE SEGUE, 2019

Um filme de BRUNA SCHELB CORRÊA

A Vida é Coisa que Segue, de Bruna Schelb Corrêa, é um filme sobre a vida e sobre a morte, das possíveis relações que os vivos podem ter com a morte e, também, com os mortos. Como (re)lembrar os nossos mortos? Como seguir com a vida sem aqueles e aquelas que a preencheram? Como não olhar para determinados objetos sem que eles não evoquem quem ficou para trás? Mas, também, como não olhar para o horizonte e não vislumbrar uma pessoa que julgamos morta? É destas relações e imagens de que trata o filme, que é, talvez por isso mesmo, um retrato de um “ritual de passagem”, da passagem do luto à aceitação de que as coisas seguem com e apesar dos que ficam para trás.

João Ayton

Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.

André Novais Oliveira – Da interioridade social à exterioridade doméstica

Sobre o território periférico de Contagem, cidade do estado de Minas Gerais, no Brasil, André Novais Oliveira expande a aritmética do verbo e acto de habitar para uma alteridade composta por imagens, sons e gestos a que os seus filmes dão forma, matéria e tempo num diálogo entre cinema e paisagem, cinema e vida. Em Fantasmas, Pouco mais de um mês e Quintal o movimento de rompimento e alargamento eleva-se a fenómeno poético e alegórico. 

Longe do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, dominante na produção de cinema brasileiro sobretudo até ao ano 2010, o realizador mineiro ajudou a definir um novo realismo, novo porque plural, sob o tecto da produtora Filmes de Plástico, que ele mesmo fundou com os realizadores Gabriel Martins, Maurílio Martins e o produtor Thiago Macêdo Correia. Desde 2009, a produtora tem-se afirmado no campo do Cinema de Periferia, no qual se inscrevem cada um dos seus nomes na historiografia do cinema brasileiro. Segundo Zanetti, o Cinema de Periferia caracteriza-se pela coexistência de uma dimensão interna, “que diz respeito à forma e ao conteúdo dos produtos audiovisuais em foco”, e uma dimensão externa, de viés político e social, “que diz respeito à posição simbólica ocupada por esses novos realizadores”. André Novais Oliveira, por sua vez, inverte e entrelaça o domínio de cada uma das dimensões, através de escolhas estéticas e narrativas que rompem com a distinção entre documentário e ficção e com o naturalismo expectável do Cinema de Periferia. Ao fazê-lo, o realizador coloca os seus filmes num lugar fílmico paradoxal entre uma interioridade social e uma exterioridade doméstica que construiu. 

O seu primeiro filme, Fantasmas, é um filme de um só plano-sequência e de um só propósito. Na expectativa de uma aparição, ouvem-se dois amigos conversar, sem que nunca se lhes veja o rosto, até à tomada de consciência por parte de um deles da existência de uma câmara que aponta na direcção da bomba de gasolina do outro lado da rua. A essa tomada de consciência segue-se o enunciado do propósito do filme – vislumbrar um amor do passado com a câmara, a qual irá mostrar o seu regresso, repetidamente confirmado na montagem. Vislumbrado esse amor, ao invés de se revelar a aparição que esperávamos desde o início do filme, ela prolonga-se à luz da descoberta de que os fantasmas estão no contra-campo que a câmara não mostra. 

Pouco mais de um mês, de André Novais Oliveira © Filmes de Plástico

Servindo-se de um fenómeno ele próprio fantasmagórico, o da câmara escura, Pouco mais de um mês convida-nos a entrar na atmosfera de um amor que o casal filmado, André e Élida, o realizador e a sua namorada, ainda não sabe ser amor. Ao ficcionalizar a sua vida, como se se tratasse da projecção de sombras no tecto do quarto do casal, André Novais Oliveira transforma-a na mise-en-scéne do filme, prolongando a intimidade do espaço doméstico para o espaço público, onde o filme se inscreve no tecido social das ruas de Contagem, nas quais o casal confessa um ao outro os receios do novo amor.

 

Quintal, de André Novais Oliveira © Filmes de Plástico

Quintal introduz dois elementos novos na cinematografia do realizador, a epifania e o cómico. Uma rajada de vento arrasta para o quintal de um casal de idosos, Maria José Novais Oliveira e Norberto Novais Oliveira, os pais do realizador, um portal de aspecto cósmico que vai invadir com um som crescente a sua casa. Se deste evento se esperava uma transformação na direcção narrativa do filme, na verdade, é nas acções que compõem o quotidiano do casal que a epifania se dá. De uma cassete de vídeo pornográfica antiga encontrada por casa surge uma tese de mestrado sobre movimentos estéticos do cinema pornográfico americano da década de 1990.. O tom cómico que envolve os acontecimentos do filme enfatiza o carácter surrealista da narrativa do filme, que o distancia da tendência realista que inicialmente parece seguir, nem por isso o afasta de uma reflexão social e política que começa dentro da casa de Noberto e Zezé e se expande tanto para o ginásio quanto para a academia. 

A obra inicial do realizador mineiro aponta para lugares intermédios, nem físicos nem psíquicos, onde o interior e o exterior se conjugam, onde os vários fragmentos se concentram num todo que paira como plano de fundo nos seus filmes. A pluralidade estética que encontramos nos seus filmes é atravessada pela horizontalidade da importância de cada um dos espaços filmados como lugares contíguos de diferentes vivências numa mesma realidade geográfica, Contagem. 

Cátia Rodrigues

[Foto em destaque: Fantasmas, de André Novais Oliveira © Filmes de Plástico]

Rebentos: Mostra Internacional de Cinema Emergente – Sessão 3

Rebentos é uma mostra de cinema que pretende apresentar o trabalho de jovens realizadores de todo o mundo. A mostra parte de uma iniciativa da Claraboia, uma iniciativa conjunta das associações A3 Apertum Ars e Dínamo que pretende dinamizar a cultura emergente no Concelho de Sintra, acolhida pela Casa da Juventude da Tapada das Mercês. Ao longo da mostra serão exibidas mais de 34 curtas-metragens, divididas em 7 sessões, que nos mostram diferentes géneros, técnicas e realidades sociais.

Poster de Palavras Gastas, de Maria Giraldes © Direitos Reservados

PALAVRAS GASTAS, 2020

um filme de MARIA GIRALDES

A partir do poema “Adeus” (1950) de Eugénio de Andrade, Palavras Gastas chega como ilustração daquele que é um tema comum ao espectador: a separação. O filme acaba por refletir sobre o seu próprio género: quando as palavras deixam de ser suficientes, a animação ganha lugar. Os dois peixes que Maria Giraldes anima servem para nos guiar nesta viagem e parecem refletir diretamente uma parte do poema de Andrade:

“Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes

verdes.

E eu acreditava.

Acreditava,

porque ao teu lado

todas as coisas eram possíveis.” 

Mas agora já nada parece possível. As palavras nada mais são que uma metáfora para os sentimentos, os sentimentos estão gastos – “antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro” – e agora o que resta? 

“Não temos já nada para dar.

Dentro de ti

Não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.”

Uma bela forma de nos trazer este tema pelo qual praticamente todos nós já passamos, ainda que de formas diferentes. Nesta água temos contidas as diversas correntes, correntes que representam as diversas formas de ultrapassar uma separação e as diversas formas como esta nos pode afetar. 

Inês Moreira

Poster de Blood, de Saeid Khajenoori © Direitos Reservados

BLOOD, 2021

um filme de SAEID KHAJENOORI

Uma blusa no chão. Fragmentos de louça quebrada. Uma moldura partida. Uma garrafa de vodka vazia. Um cinzeiro. Um telefone a tocar. Uma ventoinha. Um close-up de uma mão. É assim que abre Blood do iraniano Saeid Khajenoori que demonstra mestria ao usar estas imagens para nos introduzir à história, a qual se ocupa de muito pouco diálogo. Os planos parados dos objetos conversam com o espectador que passa o filme todo a tentar juntar as peças do puzzle. 

Um homem de meia idade tenta recuperar da perda da sua mulher, mas o sangue que acredita escorrer-lhe pelo nariz não deixa. Tenta ir ao hospital mas ninguém o parece levar a sério. Apesar do nome e da descrição do filme, o espectador não vê nunca o sangue. Esta ausência representa uma dor que não é visível, uma dor que provém da alma e e a corrompe, infelizmente, até à morte.

“What is the cause of death?/ It seems he had a hard bleeding./ A hard bleeding? What do you mean?/ Nothing”. O filme apresenta uma estrutura circular sendo que o seu final rima com o início. Mas no lugar de todos aqueles objetos, vemos apenas o telefone a tocar que corta para um corpo sem cor (sem alma). O telefone revela-se mais importante que os outros objetos, fazendo-nos pensar sobre a questão da incomunicabilidade. Parece haver, desde o início do filme, uma falha na comunicação que acaba por piorar o estado deste homem que morre sozinho e distante do resto do mundo. A dor da perda revela-se fatal.

Inês Moreira

Poster de Mea Filia, de Christine Tsakmaka © Direitos Reservados

MEA FILIA, 2020

Um filme de CHRISTINE TSAKMAKA

Não é por acaso que a personagem principal, a mulher que trabalha no orfanato rodeada de crianças, se chama Antígona. À semelhança da personagem da tragédia de Sófocles, também ela é obrigada a lutar – embora se trate neste caso de uma luta interior – contra a infertilidade que se revela no seu corpo. A curta-metragem vive, assim, deste contraste entre a vivacidade infantil que rodeia a protagonista e o desejo frustrado, que partilha com o marido, de gerar vida. É neste ponto que a relação de Antígona com a pequena Danae ganha sentido. Ambas parecem encontrar a relação mãe-filha que lhes foi negada pela morte e pela doença, construindo laços tão ou mais fortes do que aqueles que unem uma família biológica.

Afonso Matos

Poster de Storgetnya, de Hovig Hagopian © Direitos Reservados

STORGETNYA, 2021

um filme de HOVIG HAGOPIAN

A Arménia é um país que prima pelo melhoramento da saúde e do bem-estar e pela riqueza de recursos dos seus sistemas. Storgetnya é um documentário que se foca numa das clínicas subterrâneas deste país, na mina Avan Salt, a 230 metros abaixo da superfície. A clínica tem foco na terapia espeleológica, uma terapia preventiva de doenças como a asma, e debruça-se numa procura por um melhoramento do sistema imunitário. 

Hovig Hagopian, jovem cineasta francês, apresenta este tema que, apesar de documentado, não se revela muito explicativo. O eixo central é a comunidade, um grupo de pessoas que se junta com o mesmo propósito: melhorar a sua qualidade de vida. Este é o tema do documentário, que se foca no estilo de vida comunitário destas pessoas. As particularidades do tratamento pouco parecem importar.

Um documentário que não é marcado pela intervenção do realizador, o qual revela muito mais observativo e contemplativo do que explicativo. Há ainda nele uma aproximação ao género literário do realismo mágico numa ideia de que algo tão estranho para o espectador comum, seja tão natural e tão caseiro para as pessoas que o vivem. Esta distância que o espectador sente do tema leva a uma quase ficcionalização do mesmo.

Storgetnya diminui a distância entre nós, espectador, e estas pessoas e dá-nos a conhecer esta realidade através da sua contemplação. E esta é talvez a maior qualidade do género documental.

Inês Moreira

Poster de The Dream, de Tamara Broćić © Direitos Reservados

THE DREAM, 2020

Um filme de TAMARA BROćIć

Realização, Argumento, Produção, Edição: TAMARA BROćIć; Correção de cor: MILOS RADOVANOVIC;  Elenco: JELENA RADOVANOVIC

A paisagem onde se ergue a loja de onde nos fala Jelena corresponde ao típico lugar de passagem. Um enclave entre as estradas da montanha, uma albergue numa aldeia isolada, uma estalagem do oeste árido: todos estes lugares transmitem a sensação de uma caixa fortificada onde recuperar as forças para a viagem. Só que o que faz esta curta-metragem é dar-nos a conhecer quem está por trás deste tipo de estabelecimentos, uma matriarca com a força resiliente de uma velha árvore, vivendo a desolação do muA paisagem onde se ergue a loja de onde nos fala Jelena corresponde ao típico lugar de passagem. Um enclave entre as estradas da montanha, um albergue numa aldeia isolada, uma estalagem do oeste árido: todos estes lugares transmitem a sensação de uma caixa fortificada onde recuperar as forças para a viagem. Só que o que faz esta curta-metragem é dar-nos a conhecer quem está por trás deste tipo de estabelecimentos, uma matriarca com a força resiliente de uma velha árvore, vivendo a desolação do mundo que a rodeia, exacerbada pela perda do marido e pelo encerramento da sua loja. Os pequenos gestos ganham sentido, assim como o sonho, na ordenação da realidade dura para onde nos deixamos levar, por fim, nesse movimento de contemplação – qual cura da melancolia — de ligação à terra e aos seus ciclos. Na solidão que se segue a uma morte misteriosa e ao fecho da loja, fundada com furor em tempos idos, a mulher exerce ainda uma função vital que contraria o ímpeto destruidor do destino, sustentando as fundações desta aldeia.

Afonso Matos

Poster de Ditadura Roxa, de Matheus Moura © Direitos Reservados

DITADURA ROXA, 2020

Um filme de MATHEUS MOURA

A sociedade onde decorre a ação desta curta-metragem, com os seus problemas estruturais bem claros, funciona como uma metáfora para a bipolaridade do Brasil dos nossos tempos. O peso da religião e a separação rígida entre o povo e as elites são duas características que podemos destacar tanto no plano da ficção como, sem dúvida, no da realidade. A associação entre o poder religioso, a cor roxa dos rostos e da iconografia cristã, e a manutenção de uma ordem social que distingue os privilegiados dos outros, os rostos verdes ligados à pobreza ou a uma quase escravidão, é aqui trabalhada com mestria. O sacrifício bíblico de Isaac por Abraão inverte-se num assassinato que permite a ascensão da protagonista para uma hierarquia superior. Mas o processo, com um início aleatório despontado pelo jogo, a transformação de traços macabros e delírios distorcidos, descreve também a violência da passagem de um mundo para o outro. A festa roxa em que somos levados a entrar exalta a estranheza dessa sociedade que, sujeitando a maioria dos seus membros a uma vida no limiar da pobreza – suportada pela hipocrisia da fé – encena o seu teatro de futilidades. Por tudo isto, esta curta põe o dedo numa ferida bem aberta (no Brasil, mas não só) que, com maior ou menor mestria, continuaremos a tentar sarar.

Afonso Matos

Esta é já a terceira sessão da mostra Rebentos, que poderão acompanhar no próximo dia 9 de junho, pelas 19h30, na Casa da Juventude da Tapada das Mercês.

Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.

Rebentos: Mostra Internacional de Cinema Emergente – Sessão 2

Poster de O Mar Já Não Pára Aqui, de Pedro Augusto Almeida © Direitos Reservados

O MAR JÁ NÃO PÁRA AQUI, 2020

Um filme de PEDRO AUGUSTO ALMEIDA

Neste documento singular sobre o estuário do Sado, trabalha-se o equilíbrio entre um ecossistema afetado pela pegada humana e a rotina de quem retira dele o seu sustento. A apanha de marisco, tão antiga como a presença do homem na zona da “caldeira”, serve também como motivo para um olhar sobre a paisagem, um mundo natural onde permanecem indícios de uma grandeza anterior, alguns prédios ao longe, percursos entre destroços de embarcações. Da memória do garum romano (uma pasta de peixe salgado famosa no mediterrâneo) à mais recente abundância de ostras, afetada pela poluição, o trabalho diário nesta zona fértil continua, hoje, a ter os seus protagonistas. Uma destas presenças, que surge desde o mar, parece sugerir que – apesar do ímpeto destruidor do homem – é possível viver em harmonia com a natureza, respeitar os seus ciclos, devolver o que se tirou a mais e contribuir para a sua regeneração.

Afonso Matos

Hocchey Ta Ki? (What Is Happenin?), de Om Singh, Monjima Mullick, Sneha Das, Sawanti Das © Direitos Reservados

HOCCHEY TA KI? (WHAT IS HAPPENING?), 2021

Um filme de OM SINGH, MONJIMA MULLICK, SNEHA DAS, SAWANTI DAS

É ao pôr as mãos à cabeça, em jeito de preocupação, que a personagem masculina de Hocckey Ta Ki? descobre o objeto perdido que dá origem a esta pequena viagem de 2 minutos.

Um objeto perdido. Uma desarrumação total. Uma mulher irritada. É do humor que parte esta narrativa simples que nos irrompe como uma lufada de ar fresco. Um episódio comum, que poderia acontecer a qualquer outro casal, em qualquer outra casa, em qualquer outra parte do mundo.

A animação em stop-motion é inteligente, e parece jogar muito bem com os sons particulares e com as cores vibrantes dos objetos, transportando-nos para dentro daquela pequena casa algures na Índia.

Hocckey Ta Ki? é uma viagem que, apesar de pequena, se mostra muito acolhedora e bem conseguida, aquecendo o coração do espectador e relembrando que o cinema pode ser isto mesmo: um lugar de calor.

Inês Moreira

Poster de Emma Forever, de Léo Fontaine © Direitos Reservados

EMMA FOREVER, 2019

Um filme de LÉO FONTAINE

O género coming-of-age foi muito querido no final dos anos 90/início dos anos 2000. A curta-metragem de Léo Fontaine, um coming-of-age atual, mostra um lado diferente destes filmes de adolescentes, onde a tecnologia e as redes sociais ocupam um lugar de destaque.

Emma Forever revela-se próximo do espectador, logo desde os primeiros minutos, transportando-nos para o universo dos filmes de Larry Clark e de séries como Skins e Skam. Todos nós já fomos adolescentes apaixonados. O que muda aqui é a geração, são os aparelhos que permitem o contacto entre os adolescentes, que querem isso mesmo: conectar-se uns com os outros. Estes dispositivos são contraditórios pois parecem permitir a aproximação dando a estes jovens mais opções de contacto, substituindo, por outro lado, o contacto físico e presencial.

Em Emma Forever somos guiados por Ugo e pelos seus dois melhores amigos: Bram e Karim. Três personagens que se revelam à margem daquele a que podemos chamar o grupo popular, no qual se encontra a Emma que dá origem ao título. Ugo apaixona-se por Emma e fantasia com ela no seu quarto, como qualquer outro adolescente apaixonado pela primeira vez. A dança que faz é uma dança comum, é uma dança simbólica da viagem que é sentir borboletas na barriga pela primeira vez.

Emma Forever abraça-nos e transporta-nos para a nossa própria adolescência. É a nostalgia que o torna tão memorável.

Inês Moreira

2610 – Bairro Zambujal, de Hugo Barros © Direitos Reservados

2610 – BAIRRO ZAMBUJAL, 2019

Um filme de HUGO BARROS

A vida no Bairro não se vive de uma forma, não se vê de uma cor, não se resume a um momento e não se sente a não ser no Bairro. E Hugo Barros sabe-o tão bem como sabe do poder das imagens, conseguindo iludir-nos ao nos fazer pensar por breves momentos que estamos também nós ali, a celebrar e dançar com aquelas crianças, aqueles homens, aquelas mulheres, aquela comunidade.

2610 – Bairro Zambujal é, mais que um retrato de uma comunidade, um convite que Hugo faz ao olhar exterior para admirar os rostos, as vozes, os sorrisos e a vida de quem vive no bairro onde cresceu. E são tantos os sorrisos que dificilmente se sai deste filme sem sorrir também e sem a vontade de poder partilhar do espírito que une estas pessoas, vindas de lugares tão diferentes.

Por isso deixemos os preconceitos, “a discriminação” (palavra que mais se houve no filme), e olhemos para a forma como se vive periferia da cidade, lutando contra a opressão com um sorriso na cara e vivendo em conjunto, num mundo em que cada vez mais se rege cada um por si.

Nuno Cintra

Poster de Thunder, de Jane Nagler © Direitos Reservados

THUNDER, 2021

Um filme de JANE NAGLER

Uma curta-metragem que evoca a superação da perda através da imaginação. Recorrendo a elementos da cultura popular associados à viagem – uma bússola, um mapa, um telescópio, etc. – somos chamados a entrar na atmosfera criada por esta criança, mesmo que transpareçam dúvidas quanto à causa que leva à sua partida ou ao objetivo dessa travessia marítima. Só pouco antes do aparecimento da tempestade se torna clara a relação do pequeno protagonista com uma figura ausente, que ele espera encontrar na luz do pólo norte. A passagem da imersão na água, em que termina a viagem imaginada, para o espaço doméstico permitirá reconhecer a importância da mãe desaparecida, que se torna presente, ainda, materializando-se na luz. É no regresso a casa que o confronto com a perda ganha uma outra dimensão. Toda a construção do espaço cénico e da narrativa culmina nessa sensação de que a imaginação – tão desenvolvida nos mais jovens – possui propriedades que a tornam capaz de subverter a realidade, ou pelo menos, pacificar o sujeito das suas feridas mais profundas, antes de este regressar, por fim, à normalidade quotidiana.

Afonso Matos

Poster de Merlich Merlich, de Hannil Ghilas © Direitos Reservados

MERLICH MERLICH, 2021

Um filme de HANNIL GHILAS

A gravidade despoletada pela morte retratada nas primeiras imagens vai sendo, progressivamente, suspensa com recurso à comédia ligeira e aos pequenos prazeres deste mundo urbano algo marginal. A figura do patriarca desaparecido parece, à primeira vista, semear o caos e a tristeza nesta comunidade islâmica de Marselha, mas tudo o que se segue – o fluxo de acontecimentos que marca a sua vida – faz com que conheçamos melhor alguns dos membros do grupo e nos interessamos, primeiro pelos seus gostos, depois pelos seus problemas. Entre as desgraças que acontecem, o acidente de carro transforma-se numa espécie de catarse através do ato de destruição. Ao contrário das pessoas, os bens materiais são recuperáveis e por isso não devemos preocupar-nos, quantas vezes demonstrando excessivo zelo, com a sua perfeição. Eis uma das coisas que esta curta-metragem poderá querer dizer. Mas se é importante esse desapego, não o deixa de ser também a recuperação do carro, no final, e a forma como ela desemboca na fala que dá título ao filme.

Afonso Matos

Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.

Rebentos: Mostra Internacional de Cinema Emergente – Sessão 1

© Imagem Rebentos 2022

HUNTING DAY/2020

um filme de Alberto Seixas

Hunting Day, de Alberto Seixas, conta a história de um homem errante que vive no campo e que, todos os sábados, vai à caça. Num desses sábados, encontra algo inesperado.

Filmado em apenas um dia em super8, na vila portuguesa de Celorico de Basto, este pequeno poema visual concede ao espectador uma atraente experiência sensorial.

Apoiado nas texturas dadas pelo grão da imagem e nos enquadramentos da câmara, Alberto Seixas celebra esta arte que é fazer cinema. A narrativa é simples, contudo é exaltada pelo realizador que lhe emprega as possibilidades que a ficção lhe proporciona. Ouvimos um homem que entendemos ser o narrador e simultaneamente a nossa personagem principal. Este homem, por sua vez, encontra e observa um outro homem, a criatura que é espiada pela câmara. Esta criatura, que ele leva para casa como um dos animais que caça, acaba por ela mesmo lhe “caçar” as galinhas. Entendemos todas estas reviravoltas e duplicidades sem vermos realmente a ação a acontecer. A câmara de Alberto Seixas relembra a câmara de Jonas Mekas, e isto parece induzir o espectador em erro, fazendo-o acreditar que aquilo que vê é uma captação do real. E não é isso que faz simultaneamente o cinema de ficção? Não é a sua função querer passar-se pelo real? Seixas explora muito bem aqui este carácter enganoso das narrativas de ficção, sendo a sua estética próxima do documental e a sua história cheia de pequenos truques que parecem passar despercebidos.

Inês Moreira

Poster de Cineminha no Beco, de Renato Oliveira © Direitos Reservados

CINEMINHA NO BECO/2021

um filme de Renato Oliveira

Há filmes que falam de filmes, há pessoas em filmes que falam de filmes e há filmes como este Cineminha no Beco que fazem todas essas coisas. Gravado numa favela brasileira do Rio de Janeiro, com uma personagem principal nascida e criada no meio das adversidades socioeconómicas desse mundo periférico, o cinema é fundamental. A acessibilidade, a comunidade, ou o bairro são as palavras de ordem de uma história que documenta a criação de um cinema ambulante por esta favela do Rio. “Linderberg Cícero da Silva, nascido e criado na praia de Ramos” é o ciclista/projecionista que anda com o cinema às costas com o único propósito de exibir filmes para os mais novos e os seus pais. Sempre gratuitamente e com alguns apoios da cidade para comprar os materiais necessários à mostra dos filmes, Cineminha no Beco é também um retrato da parca acessibilidade que a cultura tem em comunidades marginalizadas e esquecidas.

João Reis

Poster de Reduction, de Réka Anna Szakály © Direitos Reservados

REDUCTION/2021

um filme de RÉKA ANNA SZAKÁLY

Uma garrafa de água vazia dá à costa num mundo pós-apocalíptico onde jovens e crianças andam à deriva entre montes de lixo e praias repletas de destroços. Logo no início do filme a nossa atenção é conduzida para uma figura humana com uns grandes olhos azuis a segurar outra garrafa, agora de vidro, partida no meio de uma areia cinzenta e suja. Com todos estes subtis apontamentos, que continuam ao longo do filme, Reduction é quase um ensaio ambiental e desde o início que somos absorvidos pela estranheza do local, onde não existem adultos, mas existe uma ilha distante como ponto de destino, uma qualquer utopia salvífica para o qual as crianças começam a perder a esperança.

Reduction é, no entanto, um filme misterioso, duas raparigas cruzam-se ao longo do filme para serem separadas por uma personagem estranha, entre o humano e o animal, reconfortadora, mas inquietante, que irremediavelmente as vai separar e deixar-nos a nós espectadores sem saber quem acabámos de encontrar, se a materialização de um trauma, se a criação de um novo. Se um homem, se um animal.

Num mundo sem esperança que traduz o sentimento desanimado de uma geração jovem que se vê incapaz perante o desastre climático vigente, estas personagens deambulam pelas praias, sofrem desgostos e traumas e perdem qualquer expectativa de fuga. Acabando, tal como esta personagem principal, sozinhas no meio do nada, sem qualquer absolvição.

João Reis

Poster de Self Devouring, de Mahmood Sharifi Asl © Direitos Reservados

SELF DEVOURING/2020

um filme de Mahmood Sharifi Asl

Self Devouring apanha-nos desprevenidos desde o primeiro momento e só nos deixa respirar por uma vez, quando vemos uma criança no chão a brincar, tirando-nos o fôlego e ainda nem o título sabemos. É bom que guardemos esta lufada de ar pois só a poderemos soltar quando tudo já tiver acontecido, a nós e ao pai que julga ter deixado a sua filha engolir um saco de droga. Mas isso só o saberemos a meio caminho, acompanhando a paranoia de um traficante de droga sem compreendermos a gravidade da situação. Suspeitamos, no entanto, ainda na nossa primeira respiração, que algo horroroso irá acontecer, vendo um bebé com um golpe tremendo nas mãos. Tudo o que se segue é traçado pelo sangue, que mais do que das mãos da criança escorre das mãos do pai até ser um peso morto nos seus braços. E quando voltarmos a respirar, ficaremos ainda com um nó no estômago de tanto ar perdido, num filme em que nada aconteceu que não nos tenha feito questionar o que poderia ter acontecido.

Nuno Cintra

Poster de The Last Ferry From Grass Island, de Linhan Zhang © Direitos Reservados

THE LAST FERRY FROM GRASS ISLAND/2019

um filme de LINHAN ZHANG

Se desde o início ficamos a saber que Grass Island é uma ilha de Hong Kong situada na fronteira com a China, não é inocentemente. À luz desta informação, tudo o que veremos tem o potencial de transformar noutra coisa. Todas as imagens tornam-se políticas e todos os diálogos comentários sobre a tensão entre estas duas nações. Mas deixemos esta discussão para outra altura. Afinal este também é outro filme, que de forma nenhuma depende desta informação.

É o som do mar que nos chega primeiro nesta viagem. É também este o som que nos isolará durante o próximo quarto de hora, despedindo-se de nós apenas quando voltarmos a esta imagem, em dueto com as cordas de uma pipa. Isola-nos numa ilha com um homem, a sua mãe idosa e uma visitante que veio para o matar. “O Mestre”, assim apelidado pela assassina, terá de aceitar o seu fim. Mas antes de ir despedir-se-á do que o prende àquela ilha, daquilo que nunca mudará e do que nunca voltará a ser o mesmo.

The Last Ferry from Grass Island é um adeus à teimosia dos que a este tempo não pertencem, um olhar sobre os velhos costumes e as mutações do mundo moderno.

Nuno Cintra

Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.

Affonso Uchôa: a diferença é uma poderosa atracção 

Será uma sessão louquíssima, mas, por isso mesmo, estimulante. A diferença é poderosa atração e você terá nessa sessão um exemplar de mundos distintos atraídos por uma gravidade quase circunstancial: meu nome. 

Affonso Uchôa 

O nome de Affonso Uchôa está longe de constituir uma gravidade quase circunstancial no cinema brasileiro contemporâneo. Mais do que exemplares de mundos distintos, sobretudo pela distância de vinte anos que entre eles se entrepõe, Desígnio: caderno de notas e esboços a respeito de um filme chamado Mulher à Tarde, a primeira curta-metragem, de 2009, e Sete Anos em Maio, de 2019, são dois polos do mesmo gesto de mostrar o cinema, que neles não esgota a nossa atracção por Uchôa.

Desígnio: caderno de notas e esboços a respeito de um filme chamado Mulher à Tarde, de Affonso Uchôa © Direitos Reservados

Como o próprio título indica, Desígnio: caderno de notas e esboços a respeito de um filme chamado Mulher à Tarde é um filme sobre a realização de outro filme, Mulher à Tarde, a primeira longa-metragem de Affonso. O realizador descreve-o como um caderno visual que reúne imagens do elenco, dos ensaios e dos lugares do filme, acompanhado por anotações suas lidas em voz over. A forma documental que Desígnio: caderno de notas e esboços a respeito de um filme chamado Mulher à Tarde assume à força de ter Mulher à Tarde como objecto possui uma singularidade que se tornará característica do cinema de Uchôa. O primeiro é um documentário só e apenas na medida em que o segundo é uma ficção. Não é tanto a realidade, ou factos do mundo real, o substracto que dá origem ao filme, como habitualmente acontece no género documental, mas a possibilidade real e concretizada do(s) filme(s) na e através da ficção. Para que se torne real, para que essa possibilidade se revele diante de nós, apenas uma imagem é símbolo de uma finitude – a da tela negra, morta e possível – que habitualmente encerra o filme. Ao invés de entrar a luz pela sala, ouve-se câmara, acção e o filme continua como se estivesse a começar, como se irrompesse na tela como o real irrompe no filme.   

Sete anos em Maio, de Affonso Uchôa © Direitos Reservados

Pelo contrário, Sete Anos em Maio parte do real em direcção à ficção, em direcção ao filme. No mais assumidamente político dos filmes de Uchôa, é posto a descoberto a violência policial de que foi vítima Rafael dos Santos Rocha numa noite que irá ditar o seu futuro. Quem nos poderia contar a sua história senão o próprio Rafael dos Santos? Por um lado, o testemunho apresenta-se sob a forma pretérita do que aconteceu. Por outro lado, a ficção oferece uma instância de reflexão sobre o acontecimento quando o diálogo é introduzido com um inesperado contra-campo, quando a sua história se torna a história do outro. “A ideia do depoimento que vira diálogo é um princípio do filme: partir da forma mais básica do documentário, que é a entrevista, para a forma mais básica da ficção, que é o contra-campo. Isso era, desde o início, algo fundamental.”[1] Um é o ponto de partida do filme, o outro é o ponto de chegada, o que os une a crença de que “o real precisa ser ficcionado para ser pensado.”[2]

A extensão do que nos mostra o realizador e do cinema que por ele nos é mostrado é visível se pensarmos estes dois filmes como duas faces da mesma moeda, ou, melhor dizendo, como duas manifestações de um cruzamento entre o real e a ficção, dimensões indissociáveis do filme, o qual não é senão uma materialização da sua reunião. Sem o real a ficção não seria possível, mas sem a ficção o que é que teríamos para devolver ao real depois de o experienciarmos? 

Assim, é fácil perceber porque a ficção nos fascina tanto. Oferece-nos a oportunidade de exercer sem limites as nossas faculdades, quer para percebermos o mundo, quer para reconstruirmos o passado.[3]

Ao longo das duas décadas que separam Desígnio: caderno de notas e esboços a respeito de um filme chamado Mulher à Tarde de Sete Anos em Maio, Affonso Uchôa não abandona nem o género documental nem o ficcional, consolidando no intervalo entre ambos e a partir deles uma obra que, para lá das diferenças de cada filme, mostra-nos o cinema na sua potencialidade mais transformadora – a potencialidade de pensar e dizer, mas sobretudo de imaginar a realidade. Que outro modo há de afinidade, de aproximação do cinema à vida? 

Folha de sala da sessão dedicada ao Affonso Uchôa na Mostra de Primeiras Curtas, na Livraria Térmita, no Porto.

Cátia Rodrigues

Notas de rodapé

[1] A periferia reimaginada: uma conversa com Affonso Uchôa por Maria Chiaretti e Mateus Araújo paraAniki, Revista Portuguesa de Imagem em Movimento.

[2]  Cf. RANCIÈRE, Jacques – A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2005. p. 57.

[3] ECO, Umberto – Seis Passeios nos Bosques da Ficção. Lisboa: Gradiva.

[Foto em destaque: Sete Anos em Maio, de Affonso Uchôa ©direitos reservados]