Deserto Particular, uma coprodução entre a produtora brasileira Grafo Audiovisual e a portuguesa Fado Filmes, estreou esta quinta-feira, 7 de julho, nas salas de cinema portuguesas. Com realização do cineasta brasileiro Aly Muritiba, o filme teve a sua estreia no Festival de Veneza de 2021, onde foi aplaudido de pé e recebeu o Prémio do Público na secção Giornate degli Autori. Posteriormente, foi escolhido pelos membros da Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais como o candidato do Brasil ao Óscar de Melhor Filme Internacional. Nos dias de hoje, para além da estreia em sala, continua a participar e a receber prémios em inúmeros festivais no mundo inteiro.
Deserto Particular conta a história de Daniel (protagonizado pelo ator Antonio Saboia), um polícia que comete um erro que acaba por colocar em causa toda a sua carreira. Nesta nova fase da sua vida, afastado do seu antigo emprego, Daniel desdobra-se entre cuidar do pai demente e escrever a Sara (protagonizada por Pedro Fasanaro), a pessoa com quem se relaciona virtualmente. Quando esta pára de lhe responder, este decide deixar a sua terra natal e partir em busca de respostas, e de si mesmo, porque o filme é também isto: uma procura e libertação identitária. A cena inicial, na qual Daniel corre e ouvimos os seus pensamentos (que depois percebemos ser uma mensagem que escreve a Sara) representa isto mesmo, esta procura pela perceção do seu eu, mesmo que através do outro.
Muritiba filma uma história de amor numa altura onde este amor se revela tão escasso quanto necessário, como o próprio afirma: “Deserto Particular é amor em tempos de desamor”. A tentativa é de celebrar este amor, contribuindo para uma espécie de conserto de um Brasil que se encontra ferido e fragmentado. O filme demonstra mestria ao nível técnico, combinando uma excelente fotografia com uma direção de atores que eleva as personagens. A câmara do filme é certeira e escolhe não fazer grandes movimentos, o que permite libertar o espaço para as personagens que ocupam o ecrã. Desta forma, é nelas que encontramos o movimento e a significação, quer através da palavra quer através dos gestos dos seus corpos. Na verdade, a entrega dos atores e a forma como os diálogos foram escritos por Muritiba, em conjunto com Henrique dos Santos, são a chave para um trabalho minucioso sobre as emoções e os sentimentos. A este processo da palavra e do gesto, junta-se uma montagem simples e despida de folclore que, assim como a câmara, dá espaço para os outros elementos do filme brilharem. Esta montagem é da portuguesa Patrícia Saramago.
O realizador brasileiro Aly Muritiba nasceu na Baía e mudou-se para Curitiba que é, curiosamente, o movimento oposto feito no filme, no qual Daniel, que vive em Curitiba, embarca numa viagem até à Baía, estado onde vive Sara. Este drama revela-se, assim, um road movie à moda brasileira, sendo o carro um elemento essencial à narrativa. Ambas as personagens encontram-se à procura de respostas e, por isso, em movimento. O carro de Daniel parece ser uma metáfora para esse movimento, que por sua vez nos transmite a procura identitária de ambos. Daniel que, sem a carreira e sem Sara, se vê perdido no mundo e Sara, que vive no seio de uma família que a quer “consertar”. Este carro serve ainda de cenário a algumas das cenas principais do filme, como a cena em que Daniel percebe que Sara não é bem o que ele pensava ser, o que marca uma mudança no ritmo do próprio filme.
Este é um filme que se destaca pela sua estrutura bipartida. Assim, apesar de iniciar com a personagem de Daniel e durante sensivelmente uma hora este nos parecer o único protagonista desta narrativa, a meio do filme a câmara passa a seguir Sara. A mudança de foco acaba por nos ajudar a perceber a história na sua riqueza e conteúdo, dando-nos a perspetiva de ambas as suas partes. Isto torna o filme sinónimo de aceitação porque muitas vezes para haver aceitação é necessário haver conhecimento, e só dessa forma conseguimos julgar de forma imparcial as ações destas duas personagens. No final, e mesmo que não as achemos aceitáveis, pelo menos conseguimos entendê-las. Este processo ajuda-nos a caminhar para uma realidade mais próxima do ódio que do amor. Talvez seja por isso que Muritiba deixa de fora a cena de violência de Daniel, para ainda assim o espectador conseguir empatizar com esta personagem.
Deserto Particular é daqueles filmes que podemos rotular como necessário. Necessário numa altura onde a segurança é um bem demasiado precioso. Aly Muritiba parece trazer este contrassenso ao de cima pela forma como aborda a personagem de Daniel, que em primeiro lugar é polícia, e, portanto, alguém que deveria, supostamente, assegurar esse direito que é a segurança e que, na verdade, é expulso desta carreira pela prática da violência, que poderia ser quase o antónimo da mesma. É este carácter violento de Daniel que acaba por afastar Sara, que fica com medo de ser magoada (física e psicologicamente). Esta insegurança de Sara é também um reflexo da falta segurança que domina um Brasil que tem vindo a retroceder no que toca aos direitos LGBTQIA+. O filme lida ainda com este retrocesso e tenta combatê-lo com amor. Deserto Particular pode ser visto como celebração do amor em oposição ao signo conservador e tradicional que culmina em ações de ódio e guerra.
And I need you now, tonight
And I need you more than ever
And if you only hold me tight
We’ll be holding on forever
And we’ll only be making it right
‘Cause we’ll never be wrong
Together we can take it to the end of the line
Your love is like a shadow on me all of the time
(“Total Eclipse Of The Heart”, de Bonnie Tyler)
É ao som de “Total Eclipse Of The Heart” que nos chega, para além de outras, a cena final do filme que parece funcionar como culminar da desconstrução da felicidade e do amor. A personagem de Sara dizia-nos anteriormente, dirigindo-se a Daniel: “O que é que eu sou, Daniel?” “Eu sou o que você tá vendo.”. Se Deserto Particular é um filme sobre amor e identidade, Sara é a personagem que mais se encaixa neste desejo de desconstrução. A desconstrução da identidade binária e normativa que caminha de mãos dadas com a aceitação, e Daniel parece, nesta cena final, acabar também por a aceitar e, dessa forma, aceitar-se também a ele mesmo. Esta é, portanto, uma história de amor, na qual a aceitação e a liberdade para sermos quem somos e vivermos a vida que queremos viver acabam por dominar, caminhando para um mundo igualitário e de paz.
Inês Moreira
[Foto em destaque: Deserto Particular, de Aly Muritiba – © Grafo Audiovisual, Fado Filmes]