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Lisboa, cidade triste e alegre: Uma Cidade Despersonalizada

Este filme tem o mérito de entender que qualquer tentativa de procurar um título que melhor se lhe adequasse seria em vão. 

O mais recente documentário de João Trabulo, exibido na secção de Sessões Especiais do IndieLisboa, é uma homenagem ao trabalho de duas grandes figuras da fotografia portuguesa. Elas são Victor Palla e Manuel Costa, autores de um dos livros de fotografia com maior projeção internacional de sempre, o qual se intitula precisamente Lisboa, Cidade Triste e Alegre, publicado pela primeira vez em 1959. Este livro circulou por fascículos em pleno regime fascista, pois, só desta forma – enviando os fascículos diretamente para o correio dos poucos que sabiam da sua existência – era possível escapar à censura.

Uma imagem com texto, pose

Descrição gerada automaticamente
Lisboa, cidade Triste e Alegrem de Victor Palla e Manuel Costa © Pierre von Kleist

 Depois de esquecido por quase meio século, foi, em 2003, considerado por Martin Parr e Gerry Badger, no seu livro The Photobook: A History, um dos livros de fotografia mais importantes do pós-guerra. Mas, sem nunca abandonar o livro, falemos um pouco do filme. 

Chegámos a Lisboa pelo rio, como no início do Recordações da Casa Amarela, mas esta já não é a Lisboa de César Monteiro, muito menos a Lisboa que nos é apresentada por Victor Palla e Manuel Costa. É uma cidade moderna construída sobre todos esses lugares famosos que nunca veremos. O filme quer mostrar esse contraste.

Entendemos que muitos destes lugares ainda existem, no entanto já não seriam hoje um tão fiel retrato de Lisboa, se for ainda possível fazer um. Em 2019, por ocasião dos 25 anos de Lisbon Story, Wim Wenders esteve em Lisboa e afirmou que presentemente – pelo menos no ocidente – seria impossível voltar a fazer filmes sobre cidades. Tal seria consequência natural da globalização.

 Somos levados a questionar o que caracteriza um lugar. O que faz deste livro um retrato tão fiel de Lisboa é provavelmente o que transforma um espaço num lugar. Para discutir isto são então chamados a intervir no documentário Álvaro Siza Vieira – que partilha a atividade profissional com os dois autores do livro – e Teresa Siza. Numa conversa informal entre ambos fica esclarecido que para se retratar uma cidade é preciso captar-lhe a vida. Os espaços são necessários, mas não suficientes.

O que caracteriza então a vida de uma cidade? Serão com certeza as pessoas que a habitam, herdeiras do seu passado. Jorge Silva Melo, que tão recentemente nos deixou, diz-nos, no documentário que é comum que os velhos abandonem gradualmente as cidades, mas nunca tão radicalmente como acontece hoje. Uma cidade que quase ficou sem habitantes, sem ninguém que salvaguarde a sua cultura. Não seria esta a característica que constituía a impossibilidade de filmar cidades para Wenders? A ausência de uma cultura própria? O encenador deixa-nos ainda com o aterrador testemunho que cito de memória: “O cinema poderá continuar a viver nas casas, mas sem as pessoas o que será feito do Teatro”.

Quando Thomas Struth começa a fotografar ruas de cidades alemãs, e até americanas, ele fá-las representar quase sempre vazias, como forma de representar uma vida feita no privado, um certo recolhimento. Estas contrastam completamente com as ruas de cidades asiáticas cujo artista entende terem uma vida social muito mais ativa. Certamente que se fotografasse Lisboa na época do livro, o fotógrafo alemão representaria a cidade cheia de gente, pois a vida fazia-se nas ruas. Vitor Palla e Manuel Costa souberam vê-lo.

Thomas Struth - Contemporary Art Part II Lot 241 May 2011 | Phillips
Nanjing Xi Lu, Shanghai, de Thomas Struth © Phillips

O filme vai deixando estas questões no ar e avança para a outra grande questão que faz deste livro um objeto tão relevante da história da fotografia a nível internacional, que é o entendimento da natureza fragmentária do próprio processo fotográfico, natureza partilhada com a poesia. 

Através desse entendimento, os dois autores, talvez precisamente por não serem fotógrafos de formação, são capazes de olhar para a imagem e retirar dela o que mais lhes interessa, realizando crops, algo muito mal visto à época. Todas essas imagens – que poderiam ter-se ficado pelos parentescos circunstanciais ao neorrealismo italiano – são instrumentalizadas em função de um objeto que é em si um livro de poesia gráfica, mais até do que de fotografia. É como se a máquina fosse um estorvo necessário à sua produção. Isso constitui uma revolução.

Ao longo do documentário passamos por diversos planos – por norma fixos – desta nova Lisboa, alternados pelas fotografias do livro, que, como documentos históricos, são reveladoras das mudanças, e claro, pelo testemunho de quem viveu nesta antiga cidade, cheia de personalidade, mas nunca descrita como melhor. Marcada pela pobreza da maioria, que, no entanto, parece recordar esses tempos distantes com alguma nostalgia típica da infância, mas reconhecendo-os sempre como difíceis. 

O documentário termina como começa, pelo rio, como quem acompanha uma personagem que está de visita, um olhar de fora.

São ainda de realçar as intervenções de Sérgio Mah, André Príncipe, José Pedro Cortes, e Margarida Gil, para além de todos os que já foram mencionados.

Tiago Leonardo

[Foto em destaque: Lisboa, cidade Triste e Alegre, de João Trabulo  © IndieLisboa]

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