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Love Letter e os reflexos de uma guerra

Um ano e meio depois da desocupação americana no Japão, estreia-se Kinuyo Tanaka como realizadora com Love Letter (1953), filme que segue um retornado da guerra que ajuda mulheres japonesas a escrever cartas para soldados americanos, enquanto procura o seu amor de infância pelas ruas de uma Tóquio destruída pela guerra. 

Baseado no romance de Fumio Niwa e com argumento de Keisuke KInishita, este foi um melodrama muito bem recebido pela crítica, estreando no Festival de Cinema de Cannes. O filme é protagonizado pelos astros Mori e Kuga: o soldado retornado e a pan pan girl – arquétipos do cinema japonês do pós-guerra. No final dos anos 40/início dos anos 50, as más condições e a falta de fonte de rendimento fizeram com que as ruas japonesas se enchessem de mulheres chamadas coloquialmente de pom pom girls ou pan pan girls. Estas solicitavam, maioritariamente, soldados americanos em busca de um futuro melhor. Eram associadas, ainda, ao termo arcaico “fallen woman” usado para descrever as mulheres que tinham perdido a sua inocência e entregado a sua alma ao pecado. 

É com estas duas personagens que Tanaka inicia a sua curta carreira como realizadora, sendo a segunda mulher a realizar filmes no Japão, ela que era uma das mais conceituadas atrizes japonesas. A Love Letter seguem-se The Moon Has Risen (1955), The Eternal Breasts (1955), The Wandering Princess (1960), Girl of Dark (1961) e Love Under the Crucifix (1962). Enquanto atriz, Tanaka conta com mais de 200 créditos, sendo reconhecida pelas suas participações regulares nos filmes de Kenji Mizoguchi. 

sighsandwhispers: Pan Pan Girls in Postwar Japan

Série de fotos intitulada “Pan-Pan Women in Japan Post WWII” – © John W. Bennett

O mais curioso em Kinuyo Tanaka foi a decisão de iniciar esta carreira trazendo-nos um filme construído a partir da perspetiva masculina. Não é Michiko, a protagonista feminina interpretada por Yoshiko Kuga, que vemos desde o início do filme, aliás esta é até mesmo uma não presença em toda a primeira metade do filme, sendo-nos apresentada através de uma fotografia que a personagem masculina segura. E é esta personagem masculina, Reikichi, interpretada por Masayuki Mori, que acompanhamos desde o início e é pela sua história que o espectador inicia o seu processo de empatização. Só mais tarde temos acesso à versão feminina deste romance. 

Love Letter é um filme que, do ponto de vista formal, se revela muito simples e direto, e talvez a narrativa acabe por ganhar destaque com isso, não se perdendo em experimentalismos. Podemos, contudo, destacar, pelo menos, duas grandes cenas: a da reunião dos dois protagonistas no comboio e a cena final. Tanaka faz uso dos planos aproximados do rosto das personagens, os close-ups, quer para destacá-los no meio da multidão, quer para destacar as suas emoções. Apesar de este ser um filme que se apoia na carta e na palavra, as emoções formam grande parte do seu conteúdo narrativo, e são transmitidas de forma exemplar por este elenco talentoso. 

A cena final nada mais é que planos intercalados, numa montagem um tanto rápida, de Reikichi e Michiko, que nunca chegam a realmente ficar juntos durante o filme, apenas podemos supor esse final para casal precisamente através desta cena. A personagem feminina é vista com um olhar mais aproximado do que a masculina, e apenas filmando as suas expressões, Tanaka eleva o seu filme a uma sublimidade belíssima. No comboio, mais ou menos a meio do filme, estamos perante uma sequência mais intensa e dinâmica, ao nível dos planos, terminando naquele que é o melhor enquadramento de todo o filme, um casal apaixonado emoldurado pela janela do próprio comboio. O espectador parece ser transportado para um museu. 

Este é um filme que se apoia muito nesta contemplação das imagens e dos seus temas. É um filme que exige uma certa predisposição à reflexão e um olhar atento para o seu conteúdo. Destacando-se a rivalidade entre os Estados Unidos e o Japão, inimigos da guerra e do pós-guerra, somos confrontados com esta até mesmo nas pequenas histórias que intercalam o plot central. Tanaka traz-nos um filme muito humano e emocional, que não parece ter pretensiosismos, mas que, no entanto, reflete este amor da realizadora pelo ato de fazer filmes, ela que dizia ser “casada” com o cinema.

Love Letter, de Kinuyo Tanaka – © Shintoho Film Distribution Committee

“Todos nós somos responsáveis pela guerra. Todos nós sofremos nestes tempos de pós-guerra. Quem não for responsável, que atire a primeira pedra.”, diz Naoto Yamaji (interpretado por Jukichi Uno) a Reikichi, e, de certa forma, também ao espectador. Estas três frases poderiam, muito bem, funcionar como resumo daquilo que é a essência e o espírito deste filme. Um filme que nos fala sobre as consequências e os reflexos de uma guerra que destruiu vidas inteiras. Uma guerra que moldou e continua a moldar narrativas, ainda que em períodos históricos diferentes.

 Ao ver este filme, pensamos em como todas estas questões continuam tão atuais nos tempos modernos, e em como estas palavras de Naoto poderiam ser tão relevantes ainda nos dias de hoje. É estranho num filme cujo título contém a palavra “amor”, conseguir-se estabelecer paralelos com os nossos tempos, onde o amor parece ser escasso. Talvez Tanaka apenas quisesse ressalvar essa crença numa prevalência do amor face à guerra e à crueldade. Love Letter é, portanto, um filme a ser revisitado, primeiro, por ser uma obra-prima do cinema do pós-guerra, e, em segundo, por haver nele uma esperança na exaltação deste amor.

O Programa 5L, no qual Love Letter está inserido, é uma secção do Indielisboa em parceria com o festival internacional de literatura e língua portuguesa, que tem como tema as Imagens da Escrita. Os cinco filmes selecionados conectam-se pela presença da carta. Ao lado de Love Letter, vemos News From Home, de Chantal Akerman, Correspondências, de Rita Azevedo Gomes, Cartas da Guerra, de Ivo M. Ferreira e I Fidanzati, de Ermanno Olmi. Numa secção onde percebemos a importância da ligação entre a escrita e o cinema.

Love Letter (1953) - IMDb
Cartaz de Love Letter, de Kinuyo Tanaka – © Shintoho Film Distribution Committee

Inês Moreira

[Foto em destaque: Love Letter, de Kinuyo Tanaka – © Shintoho Film Distribution Committee]

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