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O Sol do Futuro e o horizonte cinematográfico de Moretti

Uma das boas surpresas de 2023, O Sol do Futuro (Il sol dell’avvenire) é o novo trabalho do realizador italiano Nanni Moretti. Presente na competição de Cannes, tem-se aqui um filme dentro do filme. Em suma, Giovanni (Moretti) é um realizador que está a gravar o seu novo longa-metragem, contextualizado durante a Revolução Húngara de 1956, enquanto precisa lidar com o casamento à beira de um colapso.

A sinopse mostra-se simples, mas Moretti transforma-a em um filme cativante e usa esta história como meio para explorar e transmitir suas percepções sobre o cenário do cinema atual. Ao mesmo tempo, apresenta também as questões políticas já vistas em sua obra anteriormente. O Sol do Futuro é o retrato de um saudosista da tradição cinematográfica. Giovani precisa lidar com as transformações nos modos de produção do cinema, mas isto torna-se uma dificuldade para quem é fortemente conectado com as convenções. A modernidade se instala cada vez mais rápido e isso o aterroriza. Esta representação é feita de forma extremamente cômica, fazendo com que nos esqueçamos das implicações que isto, de facto, pode trazer. 

O Sol do Futuro, de Nanni Moretti © Sacher Film

O contraste entre passado e presente pode ser visto na relação entre Giovanni e sua esposa, Paola (Margherita Buy). Ele, um realizador ligado à tradição e à temática histórica, precisa lidar com o trabalho de sua mulher, que está produzindo um filme de ação – à la Michael Bay. O saudosismo de Giovanni é marcado logo no início, ao querer manter a tradição de assistir um filme com sua família enquanto toma gelado, mas a esposa e a filha não podem participar. O tempo passou e é difícil para o personagem aceitar isso. Rimos do personagem e da situação, mas no fundo, todos nós carregamos tradições que são difíceis de serem mudadas.

Tensões surgem dentro de casa e fora dela, sendo uma das melhores cenas do filme a sequência em que Giovanni paralisa o trabalho de Paola para discutir sobre a ética do enquadramento da morte de um personagem – uma discussão que remonta ao polêmico travelling de Kapò (1960). Outro momento de destaque é a reunião de Giovanni com a Netflix, na qual ouvimos repetidas vezes que a plataforma está presente em 190 países e as “regras” estabelecidas por eles para ser um bom filme. 

O que torna O Sol do Futuro mais singular é sua construção, que mescla cenas do filme que Giovanni está a realizar com o filme que estamos a ver. Os cortes secos de transição e o conteúdo entre as duas obras criam uma atmosfera cômica, que dialogam entre si e colocam em paralelo o que é mundo fictício e mundo real – no caso, “real”, visto que ainda estamos a ver uma ficção. Um dos destaques é o design de produção, especialmente nas cenas dos anos 50, responsável por nos fazer mergulhar não somente na obra criada por Giovanni, mas também no próprio filme de Moretti. 

O Sol do Futuro, de Nanni Moretti © Sacher Film

A obra de Moretti gera múltiplas sensações e nos leva a indagações sobre o futuro, o amor e o cinema. Estes últimos, tão essenciais para Giovanni, estão transformando-se e esvaindo-se de sua vida. Lidar com a passagem do tempo se mostra uma tarefa que pode ser difícil de encarar, e Moretti traz à superfície de nossos pensamentos a inevitabilidade dos acontecimentos da vida. Entretanto, a marcha final lembra-nos que há uma vida apesar de tudo e, principalmente, um futuro.  

O Sol do Futuro é um retrato da saudade do tempo que já se foi na vida de um realizador. É o amor pela sétima arte traduzida nela própria e Moretti consegue escavar nas nossas lembranças o que nos levou a amá-la. Ri de si mesma e nos faz rir também. Saímos do cinema com o coração aquecido, com a mente repleta de questionamentos sobre o futuro e nos perguntamos qual é o sol de cada um de nós. É, de longe, uma das melhores surpresas do cinema – feito para o cinema – neste ano. 

* O presente texto encontra-se escrito em português do Brasil.

Lílian Lopes

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