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19º IndieLisboa Críticas Festivais de Cinema Indielisboa

Um Nome para o Que Sou: as mulheres que fomos e as mulheres que queremos ser

Integrado na secção de Sessões Especiais da edição de 2022 do IndieLisboa, o documentário Um Nome para o Que Sou lê-nos um livro em forma de cinema: As Mulheres do Meu País, obra que Maria Lamas, mulher incontornável do feminismo português, escreveu, retratando intimamente as condições de vida das mulheres que procurava e encontrava à medida que percorria diversas regiões portuguesas, entre 1947 e 1949. Com realização de Marta Pessoa e argumento de Susana Moreira Marques, o filme folheia esse documento fundamental, cita algumas das descrições da vida rural da época, dá-nos tempo para olhar os retratos fotográficos que acompanham o texto (grande parte dos quais são da autoria da própria Lamas), permite-nos assimilar a dureza do quotidiano dessas mulheres, presas a uma rotina de trabalho árduo e a mentalidades que faziam delas submissas, que lhes negavam espaço e voz – “somos escravas do nosso corpo”, ouviu Maria Lamas dizer uma e outra e outra vez. 

Eram histórias impressionantes, as que cada uma dessas mulheres tinha para partilhar; histórias que continuam a impressionar pela naturalidade com que são contadas – situações atrozes tornadas comuns, inevitáveis. Impressionam ainda mais por não serem só histórias, produtos da invenção, mas vidas que se viveram exatamente assim, nessa brutalidade que o trabalho marcava nos corpos das mulheres, que os desgastava até à exaustão quando a exaustão não lhes era permitida e, portanto, elas continuavam a trabalhar e ainda a servir, a cuidar, a moldar-se a um sistema onde eram indispensáveis, mas nunca valorizadas. Vidas talvez difíceis de imaginar, realidades que parecem tão distantes porque em tão pouco se assemelham à nossa, contudo, esta era a vida das nossas bisavós e avós, mulheres que conhecemos, e que as criadoras de Um Nome para o Que Sou foram em busca de conhecer também. Algumas das mulheres com quem Maria Lamas falou ainda são vivas e contam na primeira pessoa a rotina que lhes foi impingida mais do que oferecida como opção. 

Um Nome para o Que Sou, de Marta Pessoa © Direitos Reservados

Este documentário é uma revisitação de pessoas, sítios e contextos que era necessário revisitar. A certa altura vemos alguém folhear as páginas de uma revista à qual Maria Lamas tinha concedido uma entrevista e cujo título era uma citação sua: “Todos somos o produto das épocas que passaram.” É importante, então, fazer ligações entre o presente e o passado, notar o que se repete de forma sistemática e geracional, honrar tradições que nos ensinem algo, mas romper com as que apenas trazem opressão e abuso. Um Nome para o Que Sou é exemplar na forma como conecta diferentes tempos e espaços, apresentando-nos a figura de Maria Lamas e o seu ativismo incansável e honesto, sempre em associação com reflexões acerca do que ainda resta fazer. Ao falar de feminismo, mesmo que não diga esta palavra, o filme parece ter noção de que já muito mudou e ter noção também de que ainda é necessário que muito mais mude.     

 A realizadora e a argumentista estudaram o amplo espólio da escritora – agendas, blocos de notas, cartas; a também jornalista e tradutora guardava tudo, como que honrando esse privilégio de saber escrever e ler, aprendizagem a que tantas mulheres do seu tempo não tiveram acesso. Às suas irmãs, é assim que se refere a elas, não foi permitido, muitas vezes de forma propositada, deixar memórias ou trocar correspondência. As Mulheres do Meu País é um documento único de registo de vidas que se teriam esquecido, e Um Nome para o Que Sou complementa-o, de certa forma, ao procurar especificamente por cada mulher, descobrir o seu nome e associá-lo à sua cara. É ação simbólica, é certo. Não remenda as suas vidas sofridas, mas não há maneira de o fazer – podemos, contudo, acompanhar o filme nesse ato de reconhecimento, de não permitir esquecer, e prolongar para a própria vida a atitude de não deixar ninguém para trás e de ressignificar as vezes que forem necessárias o que é ser mulher, contra narrativas redutoras que associam mulheridade a obrigação de estar à disposição.     

Um Nome para o Que Sou, de Marta Pessoa © Direitos Reservados

Com as suas reflexões incisivas, Marta Pessoa e Susana Moreira Marques parecem saber à partida que nem Maria Lamas, nem nenhuma daquelas mulheres, cabem num filme. Um Nome para o Que Sou cumpre o propósito de mostrar que todas elas são maiores que qualquer projeção – são corpos de carne e osso, vidas concretas, que importa dignificar.  

Vera Barquero

[Foto em destaque: Um Nome para o Que Sou, de Marta Pessoa © Direitos Reservados]

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