Os créditos de A Traveler ‘s Needs (2024) são curtos, dado que o realizador coreano Hong Sang-Soo acumula funções de roteiro, produção, montagem, direção de imagem e trilha sonora. Apesar de suas passagens e premiações pelos principais festivais de cinema do mundo (nove de seus filmes foram exibidos na Berlinale), Soo se atém a um modelo de produção barato e de grande controlo criativo, que chega a render dois ou mais filmes por ano.
Com salas abarrotadas e ingressos disputados, o filme mais recente do realizador fez sua estreia na 74ª Edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim com um abraço caloroso do público, ainda que parte da crítica especializada já comece a questionar o limite entre estilo e repetição na sua obra. A predisposição do espectador médio em se deixar levar pelo filme aponta também um sinal dos tempos. Com o debate público consumido por cacofonia e intemperança, um cineasta que coloca a amizade no tema central de um longa-metragem já tende a ser olhado com mais generosidade.
A Traveler’s Needs acompanha um dia na vida de Iris (com Isabelle Huppert em estado de graça), uma francesa sem passado que vagueia pela Coreia do Sul ensinando a língua através de uma metodologia bastante particular. Alheia aos protocolos que regem a convivência naquela sociedade, Iris é uma figura feminina deixada na incongruência pelo realizador. Dona de uma sinceridade, simultaneamente, cortante e inocente (como a de uma miúda), a protagonista ocupa (por vezes de forma invasiva) o espaço dos outros personagens, desafiando-os, e por extensão ao público, a se afeiçoar a ela.
A despeito de seu extenso corpo de trabalho, a percepção do senso comum sobre a atriz Isabelle Huppert ainda é fortemente moldada por suas colaborações com o realizador austríaco Michael Haneke. Afastada dessa lente austera, ela se reafirma como um talento cômico que preenche, epicamente, a tela. A composição física da personagem, que vai desde a modulação da voz até sua inconfundível forma de andar, é demonstrativa de tal nível de meticulosidade que, justamente por isso, parece não ser fruto de esforço algum. Iris é, em essência, leve como uma pluma.
Com uma estrutura de produção análoga à do cinema universitário, Sang-Soo reitera seu desinteresse por pirotecnias técnicas. A maioria dos planos é filmada de forma estática, fixa e com iluminação natural. Salvo por uma ou outra experimentação, como o zoom-in na figura de um cachorro, a maneira como a câmera filma os diálogos é demonstrativa de seu domínio de linguagem. O ritmo frenético da interação entre Iris e o casal coreano na sala do apartamento deles quase não permite ao espectador recuperar o fôlego (no bom sentido), ainda que contemple pausas e silêncios.
Embora apresentada apenas no terceiro ato, o elo entre Iris e seu colega de casa (Yunhee Cho) constitui o coração do filme. Abordando de forma tangencial a crise de habitação que atravessa o globo, o diretor se mostra crente no vínculo afetivo de um trintão doce, porém mal crescido com uma imigrante de meia-idade sobre o qual ele nada sabe. Talvez um realizador menos em posse de seus próprios encantos, que incluem a escolha dos atores, fizesse dessa fricção um fator de estranhamento. Nas mãos de Sang-Soo, a dupla formada é quase irresistível. Como se, percebendo o atual estado das coisas, o realizador tivesse a constatação óbvia, mas pouco difundida que adultos também precisam de afago.
*O presente texto encontra-se escrito em português do Brasil.
Alexandre Bispo