Do invidual ao colectivo: a luta feminista mexicana pela lente do Colectivo Cine Mujer

Y Si Eres Mujer? (1976)

O título ecoa o questionamento que se impõe na curta-metragem de animação de Guadalupe Sánchez Sosa, integrante do colectivo de cineastas feminista Cine Mujer, fundado no México em 1975. Y Si Eres Mujer reitera, nos seus resolutos 7 minutos de duração, como a educação molda as expectativas individuais e exteriores sobre o que é ser mulher. A viagem desde o nascimento à vida adulta, em que o léxico da feminilidade e os rótulos de «menina», «mulher» e «senhora» abarcam fronteiras definidas e perspectivas reduzidas desde o momento do parto. 

Y Si Eres Mujer? (1976), de Guadalupe Sánchez Sosa © Direitos Reservados

Através da colagem, técnica mais que apropriada no retrato de uma vida que é, maioritariamente, uma manta de retalhos tingida pelos laivos do patriarcado e convenções sociais pré-estabelecidas pelos papéis de género vigentes, Guadalupe Sánchez Sosa traça, num registo experimental, a importância de se devolver (ou conceder) a autoridade do corpo à própria mulher. A mão de Guadalupe aparece guiando os passos expectáveis e ecoa-se na animação que se vai transmutando de inocente a cáustica, as dores de crescimento. A certa altura, a personagem confronta-se com o seu reflexo, rodeada por um espólio de batons e maquilhagem, reforçando a opressão exercida ao corpo pelo próprio corpo. Ao fundo, a canção indelével da chilena Isabel Carra é estampada no movimento, acompanhado a curta ao clímax num rasgo de cor sobre imagens que sublinham a variedade de esferas onde a objectificação da Mulher se reproduz. 

Vicios en la cocina, las papas silban (1978)

Da realizadora brasileira radicada no México, Beatriz Mira, surge Vicios en la cocina, las papas silban. As reivindicações de Y Si Eres Mujer? afunilam-se num retrato fechado a quatro paredes do dia de uma dona de casa. A névoa da rotina e do atordoamento quotidiano é racionalizado. Esta repetição é contida sobretudo na cozinha, espaço que se acumula, tornando-se demasiado pequeno para as actividades que lá se sobrepõem em simultâneo.

Vicios en la cocina, las papas silban (1978), de Beatriz Mira © Direitos Reservados

Num preto e branco que remete à nouvelle vague e num cinema doméstico comum a Vardas ou Akerman, Beatriz Mira transforma a casa num espaço de labuta. Valoriza-se o trabalho doméstico como trabalho — o plano contrapicado do frigorífico ou o close-up no liquidificador firmam-nos como totems inultrapassáveis do dia a dia. A voz off vem rematar o paradigma usual do documentário em que se narra os actos. Em Vicios en la cocina, a voz é da protagonista que reflete sobre a sua vida enquanto dona de casa, chefe de família inaudita — nos dois sentidos —, que reflete sobre o seu tédio e inseguranças. 

No final, um excerto do poema Lesbos de Sylvia Plath destoa do resto. O doméstico separa-se do domesticável, os papéis de mãe, esposa e mulher se fundem e confundem. Cede-se ao arregalar-se que surge como tarefa, uma ária à repetição:

«Now I am silent, hate

Up to my neck,

Thick, thick.

I do not speak.»

Yalaltecas (1984)

O primeiro documentário de Sonia Fritz, Yalaltecas, ruma ao alto das montanhas de Oaxaca. Das paredes cercadas de uma casa, chega-se ao seio de um colectivo de mulheres indígenas que, depois de anos de opressão, tomaram a Revolução pelas próprias mãos. O estilo documental clássico, com narração e intertítulos que separam cada uma das áreas de intervenção onde as mulheres Yalal intervieram permite o mergulho na condição feminina de um México mais profundo.

Yalaltecas (1984), de Sonia Fritz © Direitos Reservados

Filmada a 16mm, a ação da União de Mulheres Yalaltecas põe a mulher em primeiro plano em todos os sentidos – as entrevistas 1 – 1 com a líder da União, os planos em que se revelam o seu legado junto da escola técnica, da banda, das festas da aldeia, da puericultura. Sonia Fritz atribui um lugar especial a Yalaltecas na sua filmografia, considerando-o o filme que lhe fez despertar a necessidade de resgatar a histórias de mulheres e deixá-las contá-las em primeira mão.

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Vicios en la cocina, las papas silban (1978), de Beatriz Mira © Direitos Reservados]

Helena Solberg: É proibido proibir!

A Entrevista

Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a

seu rosto um ar de mulher.

“Amor”, Laços de Família

Clarice Lispector 

A Entrevista (1966), de Helena Solberg, afigura-se como o espelho no qual a realizadora questiona o seu ar de mulher. Em voice over, sete dezenas de outras mulheres, de rostos invisíveis, com a excepção de Helena e Glória Solberg, expressam as mesmas angústias, dúvidas e “incoerências”. Glória é a imagem da ficção, Helena e todas as outras mulheres, cujas vozes são o seu único meio de mostração, são a evidência documental. Situado entre o documentário e a ficção, num espaço intermédio onde a ambiguidade domina a linguagem cinematográfica, entre o Cinema Novo, já inaugurado, e o Cinema Marginal, ainda por vir, A Entrevista é considerado o primeiro filme do cinema brasileiro moderno de autoria feminina. 

Os planos aproximados iniciais aos mais variadíssimos objectos de cosmética seguidos por um movimento de câmara ascensional que revela uma Virgem Maria simbolizam a formação burguesa e católica das mulheres que ouvimos, pertencentes à classe média do Rio de Janeiro, da qual Helena Solberg fazia parte.  Divididas entre as instituições patriarcais e opressoras que, no geral, caracterizam as sociedades de então, e o questionamento dessas mesmas instituições, numa altura em despertavam um pouco por todo o mundo a luta feminista e o movimento pela libertação das mulheres, o seu discurso é atravessado por reflexões acerca do casamento, da educação, da sexualidade e do estatuto social e familiar da mulher. Ao contrário do uso tradicional do voice over no documentário, em A Entrevista a montagem sonora aproxima discursos, muitas vezes antinómicos, que manifestam diferentes posições sobre estas questões, como duas faces inescapáveis da mesma condição, da mesma classe social. Tanto nos perdemos na vontade de emancipação em afirmações como “Eu gostaria de ser ativa, de fazer coisas. Mas não vejo bem um caminho. Talvez uma confusão de ideias”, como em ideias balsâmicas provenientes da construção social imposta à mulher em preceitos como “a mulher só é realizada quando se casa” ou “[a mulher deve ser] socialmente perfeita (…) Ela precisa ser culta, ler muito. Encher a vida com aulas, conferências, mas não se dedicar a um trabalho”. 

A Entrevista, de Helena Solberg © Direitos Reservados

Enquanto o jogo de oposições discursivas se constrói e destrói, estabelece-se a diferença de significados entre a imagem e o som através do olhar que acompanha uma mulher (Glória Solberg) num ritual de preparação para o casamento. O dia começa pela praia, sem que ainda nos seja possível adivinhar o seu destino, com uma atenção erótica pelos corpos que a câmara filma, expostos em tensão pela montagem numa troca de olhares que, de fictícia, apenas é visível ao espectador. De regresso a casa, a troca do biquíni pelo vestido de noiva retoma a imagem da mulher como um ideal de pureza e de virgindade que Deus entrega ao homem. A introdução da ficção através da narrativa visual é interrompida pela única entrevista, em sentido literal, que vemos em todo o filme, entre Helena e Glória Solberg, em que esta, entretanto despida do véu, inscreve nas suas palavras e na sua postura a aceitação da ambiguidade de ser mulher, a resignação perante a injunção da ficção sobre o real.

Meio-Dia

Meio-dia, de Helena Solberg © Direitos Reservados

É proibido proibir

Caetano Veloso

O gesto final de A Entrevista, constituído por fotografias da “Marcha com Deus pela Liberdade”, movimento conservador apoiante da ditadura militar brasileira de 1964, rompe com o objecto do filme, transportando-o para o intervalo (ou será que era tempo regulamentar?) temporal e contexto social da ditadura. Aí surge Meio-Dia, a segunda curta-metragem da realizadora e o seu primeiro trabalho dito plenamente ficcional. Influenciado pelos filmes Zero de Conduta (1933), de Jean Vigo, e 400 Golpes (1959), de François Truffaut, o filme elege as crianças como agentes de revolta perante a escola como instituição veículo da ordem repressiva estabelecida naquele período. 

No muro da escola vê-se uma pixação (movimento de style writing transgressor, de genealogia autónoma em relação ao Graffiti, originário do Brasil e com maior peso em São Paulo) onde se lê “A ditadura é foda.”, um plano onde convergem os planos precedentes e procedentes, configurando-se como motivo principal dos mesmos. Primeiro, uma quase tentativa de suicídio por asfixia, sugerindo a impossibilidade de fugir e de ficar; depois, a troca da escola por um passeio que termina com um gesto radical, simultaneamente de saturação e libertação, os livros escolares atirados ao rio. Dentro da escola, o gesto é outro, o gesto é assumidamente político. Ao plano dos livros abertos a boiar no rio segue-se o plano dos livros abertos pousados nas carteiras da escola. De braço elevado e punho fechado, os primeiros planos dos rostos vigilantes e ameaçadores das crianças anunciam o início, durante a aula, de uma revolução e o fim da infância. Caberá aos alunos do recreio o desfecho dela, que se concretiza na morte violenta do professor, a qual representa, na micro dimensão da escola, o fim da mesma, numa alusão política ao Maio de 1968, e no espaço social macro, ou seja, no todo da sociedade, a procura pelo fim da ditadura. Livres pela sua acção radical e revolucionária, as crianças brincam alegremente no exterior ao som de “Ambiente de Festival”, música de Caetano Veloso censurada durante a ditadura, da qual ecoavam os primeiros instrumentos no início do filme, como prenúncio da revolução que viria. Da música, Do Maio de 1968 provém o emblemático verso da música e o seu lema – “É proibido proibir”. 

Tal como em A Entrevista, exemplo do lugar que as mulheres habitam entre o dentro e o fora da história social, Meio-Dia situa-se entre o espaço da expressão institucionalizada, que é a escola dentro de muros, e o espaço da expressão livre, que são as ruas para lá dos muros, o espaço indeterminado onde habitam as crianças. Comum aos dois filmes encontramos como mediação entre o pessoal e o político o diálogo e acção colectivos, dos quais depende por inteiro a luta democrática pela liberdade e a emancipação que asseguram a agência de um povo. O alcance de sentido dos dois filmes, que extravasa as suas dimensões ficcionais para um domínio social e político mais alargado, coloca o trabalho inicial de Helena Solberg na proa do cinema moderno brasileiro e em pé de igualdade com o cinema hegemónico europeu.

Cátia Rodrigues

[Foto em destaque: A Entrevista, de Helena Solberg © Direitos Reservados]

Eduardo Brito e o eterno mistério da paisagem

O imaginário de Eduardo Brito situa-se na incerteza plácida do tempo. Aqui, o ponteiro do relógio mantém-se imóvel e nem em sussurros se ouve o tique-taque dos segundos a passar. Desta forma, a duração que trabalha alonga-se tão rapidamente quanto, naturalmente, padece na conclusão do ecrã preto. Na ignorância absorta do espectadorhipnotizado, permanecemos ainda assim como estávamos, suspensos no mesmo ciclo temporal, como se eternamente presos na perfeição da meia-noite, perguntando ao céu se ainda é hoje, ou se já é amanhã. 

Penúmbria (2016)

Penúmbria (2016), o primeiro passo da sua filmografia, recruta para dentro de si essa mesma ambiguidade.  Onde estamos? Quando? São dúvidas que iremos inevitavelmente repetir no seu cinema. A primeira resposta é-nos dada quase imediatamente, embora coberta por um fino véu de nébula. Penúmbria, terra inóspita de tom distópico, declarada inabitável pelos próprios habitantes, que na verdade parece já ter lugar nos vários cantos estéreis do nosso país. Regiões isoladas, marcadas pela crença na impossibilidade e por terem os faróis virados diretamente para os melancólicos. Salienta-se a citação de uma das várias vozes desmembradas de Brito: “Praeter solitudinem nihil video. Para além da solidão, nada vejo.” E se no momento da sua evocação a expressão é associada a um local específico, podemos na verdade alargá-la às várias paisagens geográficas que a câmara do cineasta percorre. 

Declive (2018)

Em Declive (2018), centraliza-se outro desses sítios entregues ao tempo, neste caso mantendo-se inominado, aproximando-se mais a um sentimento do que a qualquer outro elemento concreto. Encarando as paisagens cinzentas, o mundo aparenta ser estático, esperando-nos porque nos transcende. Cada movimento é orgânico, sejam as ondas do mar ou a brisa do vento a atravessar a relva e nós passamos, como mais uma pedra no caminho, mais um grão de poeira. Aqui, os anos passam como uma reflexão tardia. É “alegria e falta juntas numa só”, descreve a narradora. Chega-se à realização que, talvez, se ficarmos imotos, a plenitude também se irá embrenhar em nós, de forma a finalmente chegarmos à conclusão de que os lugares de facto se transformam enquanto nos aguardam, fazendo-o à distância da rapidez a que tanto nos afeiçoamos contemporaneamente. 

Ursula (2020)

Brito explora progressivamente esta dinâmica assincrónica entre os ritmos humanos e a cadência geográfica ao agarrar-se à noção de que o cinema, e as histórias, são apenas peças no tabuleiro de um jogo onírico com realidades vizinhas. Ursula (2020) atravessa diretamente tal ideia, ao centralizar diegeticamente o sonho do seu protagonista ausente. Eis que corpos se transfiguram em montanhas, em mimese física com o cenário em frente, que por sua vez muda sem pedir permissão a quem resguarda. Repetimos: Quando estamos? Onde? Uma voz responde com a possibilidade dos espaços “serem o mesmo lugar, antes ou depois de qualquer cataclismo ou decurso do tempo.” Afinal, a disparidade é sempre temporal e as eventualidades ilimitadas, se esquecermos a nossa própria finitude e abraçarmos a atmosfera que nos circunda.

Deste modo, ao considerar o horizonte natural, torna-se fácil associarmos à sua magnitude a lentidão de todos os processos morosos que constituem o dia, o mês, o ano. Na sua vídeo-instalação intitulada Curiosidades do Gabinete (2019), o realizador mostra-nos que o reverso da moeda também é possível e que as cidades têm os seus respectivos ciclos característicos. É a sinfonia de uma metrópole moderna, protagonizada pelo tráfego monótono de pessoas, veículos e a coreografia dos ruídos citadinos de mão dada aos gestos que se repetem. Como mote, lê-se de início “Cada história é sempre um remake”, uma adaptação de outra adaptação cuja origem já se perdeu. Repetições (in)conscientes, inseridas na valsa cosmopolita na qual participamos diariamente. 

Presenciamos, assim, a capacidade de filmar o nada a transcorrer e que talvez é mesmo aí que os momentos mais espectaculares podem existir, na banalidade da passagem temporal. Não é por acaso que toda esta formulação é capturada nos lugares habitados pela obra de Wiene, que de banal nada possui, Das Cabinet des Dr. Caligari (1920). À revisitação paralela dos seus locais de filmagem e projeção, aliada ao literal reescrever do seu argumento em câmara, junta-se, como de costume, uma voz fora-de-campo, desta vez evocada pelo próprio realizador, num cunho autoral completamente afastado de qualquer possessividade pela própria obra, mas sim como marco dessa partilha. Note-se que este lê uma narração-colagem, amálgama de diferentes excertos de livros, músicas e memórias pessoais vividas em Berlim, integradas comodamente num único texto, sem as origens das partes serem mais ou menos relevantes do que o esquema que habitam naquele momento. 

La Ermita (2022)

Na meta final, a diegese dos espaços é levada ainda mais longe em La Ermita (2022), a mais provocadora das obras aqui mencionadas, onde se repete em grande plano a crença no círculo fechado das narrativas. Interpelando diretamente o espectador, a palavra edificada enquanto espírito enquadra uma relação com esse local com o nome de La Ermita. Então, descobrimos que nunca lá fomos, mas já lá estivemos e que, além do mais, o visitámos pela primeira vez com a familiaridade usualmente reservada a uma casa de infância. Por isso, resignadamente, repetimos uma quinta e última vez a Eduardo Brito: Onde? Quando? 

De retorno, as imagens que nos apresenta assemelham-se a recortes mnemónicos, um álbum de altares erigidos em honra do futuro defunto da memória humana, efémera no fluxo do universo. Assim, constrói-se a ideia de um lugar sem morada, que transcende a sua própria fisicalidade. Talvez seja em La Ermita que todas as histórias vão parar. Essas, que perduram nos recantos da paisagem cujo fado será sempre misterioso, enquanto nós, “contornos de uma nuvem a evaporar”[1], somos confrontados com a nossa mortalidade. 

Margarida Nabais


[1] Expressão retirada do texto “Esta é a história”, de Eduardo Brito. http://www.eduardobrito.pt/esta_e_a_historia.html

[Foto em destaque: Curiosidades do Gabinete (2019)]

Rebentos: Mostra Internacional de Cinema Emergente – Sessão 7

TUDO QUE FICA NA SUPERFÍCIE MORRE (2022)

um filme de Carina Pierro Corso

TUDO QUE FICA NA SUPERFÍCIE MORRE (2022), de Carina Pierro Corso

Aprender a nadar e afogar-se. Ficar à tona, neste caso, significa justamente não morrer (ou, pelo menos, não correr tanto esse risco). A superfície como plano sobre o qual caminham os vivos e sob o qual se guardam os mortos. Daí a paradoxalidade do título deste pequeno filme de animação de Carina Pierro Corso, que se debruça sobre a dualidade das coisas, explorando a correlação que existe entre opostos – enfim, um filme que nos fala de como uma coisa pressupõe e precisa do seu contrário (e vice-versa): a vida pressupõe a morte, o dentro pressupõe o fora, a ordem pressupõe o caos, etc.

Neste filme, esta dualidade recai sobre os gestos mais banais da vida quotidiana, desde o lavar a louça ao fazer a cama, mas também sobre desafios e experiências das vidas de cada um, como aprender a nadar ou a sensação de dor. Talvez seja esta a chave para compreender a aparente paradoxalidade do título. É na repetição de determinados gestos – como coçar uma ferida, uma crosta –, mas também no que há de repetitivo neste “ciclo de vida e morte” inerente a tudo o que existe, que a superfície se torna o campo no qual tudo se dissolve, no qual tudo acaba, inevitavelmente, por morrer.

João Ayton

NINO (2021)

um filme de Alice Voisin

NINO (2021), de Alice Voisin

Nino é um filme que parece colocar a vida a falar sobre ela mesma, assim como fazem Richard Linklater ou Mia Hansen-Løve nos seus romances, sem grandes dispositivos ou distrações. Ainda assim, faz parte de um tipo de cinema que não deixa de prender e surpreender o espectador.

Três amigas (Andréa, Camille e Inès) alugam um apartamento em Marselha. O dono, Nino, não está presente, no entanto é ele que preenche as conversas e as fantasias destas mulheres, que de certa forma se sentem próximas dele através dos seus objetos espalhados pela casa. É ainda ele que dá nome ao filme. Andrèa é a personagem que estabelece maior contacto com esta personagem Nino, que acaba por não ser nada mais do que um conceito. A solidão de Andrèa, que carrega livros para todo lado como se estes fossem os seus melhores amigos, é colmatada perpetuando esta fantasia de estar próxima de alguém, ainda que esse alguém nunca chegue realmente a ter vida.

Há em Nino uma reflexão sobre o eu e sobre o saber estar com esse eu. As constantes trocas de ideias que as amigas têm sobre a vida são também sinónimo disso: de uma necessidade de autoconhecimento e de definição. O poema final é dirigido a Nino mas é também dirigido a elas, numa tentativa de se aproximarem delas mesmas e de tornarem as fantasias, dos livros que lêem, dos filmes que vêem e das músicas que ouvem, na sua própria realidade.

Inês Moreira

A NARRATION OF A FUNERAL (2022)

um filme de Amir Sedghinir

A NARRATION OF A FUNERAL (2022), de Amir Sedghinir

A história de um funeral não contém, aparentemente, nada de novo. No entanto, narrar um enterro implica dois gestos inversos: por um lado, trata-se de mostrar algo que já não existe, de dar presença a uma ausência (o morto); por outro, e inversamente, trata-se de dar presença àquilo que existe (ou fica) sob a forma de ausência (a dor, por exemplo). Mas eis que este ritual, tão antigo quanto a própria humanidade, é abalado por um recente acontecimento histórico que interrompe e bloqueia o seu funcionamento normal: a pandemia de Covid-19.

Por mais diversos que sejam os rituais em honra dos mortos, o funeral funciona como ritual de passagem. Aí somos confrontados com a nossa própria finitude, central à condição humana. Ora, Narration of a Funeral, de Amir Sedghinir, não se limita apenas a contar a história de alguém que morreu e da tristeza que recai sobre os seus familiares, mas antes retrata os seus infelizes contornos. O morto não é mais alguém a quem nos dirigimos para dele nos despedirmos, mas um corpo que nos é vedado, ao qual não temos acesso devido às restrições da pandemia. No meio de máscaras e fatos médicos que não deixam de lembrar aqueles usados durante a Peste Negra, o morto torna-se inalcançável, um corpo reduzido à sua condição de defunto e, por isso, equivalente a qualquer outro.

João Ayton

SARIKAT (2021)

um filme de Ezra Cecio

SARIKAT (2021), de Ezra Cecio

Sarikat, de Ezra Cecio, não é apenas um documentário sobre um velho casal. É, acima de tudo, um filme sobre esses pequenos gestos, as conversas, os hábitos e costumes que preenchem a vida de cada um. Tal como no século XIX se dá uma grande viragem na representação artística, abandonando os grandes acontecimentos e personagens, que favorece não apenas a vida das classes mais baixas, mas principalmente aquilo de que ela é feita, poder-se-ia dizer que Ezra Cecio segue, hoje, nessa mesma direcção. Não se trata, contudo, de uma simples inversão representativa, mas antes de uma transformação formal.

À parte as consequências políticas do movimento realista de outrora, o interessante aqui reside nessa mudança de olhar, no foco da vida quotidiana e no que ela tem de mais ordinário. Ao invés de enaltecer a vida do casal, Sarikat mostra-nos não só o que ela tem de mais simples, mas também o que nela há de aborrecido: os dias monótonos de um casal e a alegria que ele aí encontra, ora relembrando o dia em que se conheceram ou o dia de casamento, ora tomando refeições em conjunto ou falando do que é o amor.

João Ayton

ANDRÔMEDA (2022)

um filme de Lucas Gesser

ANDRÔMEDA (2022), de Lucas Gesser

Andrômeda de Lucas Gesser é um filme que abraça a tristeza daqueles que perderam alguém. A palavra Andrômeda ocupa dois lugares importantes no filme, acabando por se fundir num só: é o nome de uma mesa de jogos na qual Júlia e Mariana costumavam jogar e é ainda o nome da galáxia mais próxima da Via Láctea. Andrômeda é o fantasma de Mariana e é ao mesmo tempo aquilo que permite preservar as memórias que Júlia tem dela. 

A solidão e a tristeza de Júlia levam-nos de regresso ao passado, atravessando a cidade ao som de uma música que relembra a ficção científica e os videojogos, à procura destas memórias de Mariana que apenas conhecemos através do nome. A noite domina o presente e o dia domina o passado, como mecanismo utilizado para separar os dois, noite que é mais uma vez ligada a uma tristeza que está inerente no presente e dia ligado a uma felicidade e claridade que pertence ao passado.

Todavia, no final do filme, com a ajuda da amiga de Júlia, percebemos que esta Andômeda/galáxia tem ainda um outro significado. O seu brilho, o que restou dela depois dela morrer, é uma metáfora para a forma como Júlia deve encarar as suas memórias, não de uma forma triste mas como um brilho que lhe resta e que ela pode conservar para o resto da vida. Os fantasmas do passado tomam a forma de estrelas.

Inês Moreira

Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.

CINENOVA 2022 – SESSÃO #8

Há um profeta nas Olaias, tenham cuidado! (2021)

de Lucas Camargo de Barros

Há um profeta nas Olaias, tenham cuidado! (2021), de Lucas Camargo de Barros © Direitos Reservados

Portugal, 1911. A implantação da República traz consigo a liberdade religiosa e a aceitação de diversidade de credos. Na mata, A Brasileira traz de volta os mortos — quando não consegue ressuscitar uma criança, apaixona-se por sua mãe e faz disso sua missão. Um filme mudo, salvo alguns murmúrios e lamentos que lhe oferecem uma aura assombrada enfatizada pelo azul monocromático, Há Um Profeta Nas Olaias, tenham cuidado! é um filme de amor e de mortos que junta tradicional e moderno num passado quimérico.

Kenia Pollheim Nunes

Os Tempos Conturbados (2021)

de Carlos Alberto Tavares Pedro

Os Tempos Conturbados (2021), de Carlos Alberto Tavares Pedro © Direitos Reservados

Censura, medo e uma nova realidade. Através das palavras de Filomena Lopes, regressamos organicamente a uma Angola recém-independente e a todo o seu poder monumental, capacidade destrutiva e esperança transformativa. Ritmicamente, um conjunto de fotografias agem enquanto testemunhos de um passado vivido, harmonizando o som da voz com a sua potência visual. Assim, Os Tempos Conturbados percorre esta experiência coletiva ao salientar uma das várias histórias pessoais que dela fizeram parte. Dando uma cara aos eventos e aos sentimentos, Carlos Pedro abre um baú geracional de desalento e frustrações, criando um ambiente para, como Filomena espera, os seus espectadores “saberem o que é que é Angola! Mas as histórias verdadeiras.”

Margarida Nabais

Isthmus, a Narrowing of Land (2022)

de Mara Chavez

Isthmus, a Narrowing of Land(2022), de Mara Chavez © Direitos Reservados

“Somos os frutos do vento – e fomos semeados, regados e cultivados pela sua mestria.”

Uma História Natural do Vento, Lyall Watson, p. 18

Em Isthmus, a Narrowing of Land, a câmara aparentemente móvel de Mara Chavez, obedece a um único princípio de movimento – o vento. Amorfo, invisível, o vento é a mais vital das presenças para as populações indígenas Zapotec e Ikoots, que habitam Isthmus, e sem ele não podem sobreviver. Sob a ameaça da exploração capitalista do seu território, que invade o horizonte da imagem com eólicas, alegadamente motivada pela procura de energias sustentáveis, a luta destes povos tem no mar e na terra, fontes essenciais da sua subsistência, os seus maiores aliados. A poética visual, aliada à experimentação sonora, deixa ecoar no filme, como num sussurro de um segredo que o vento anuncia, a sabedoria ancestral indígena sob o risco do seu desaparecimento junto com o desaparecimento da terra que dá solo ao seu povo.    

Cátia Rodrigues

Love, Death and Everything in Between (2022)

de Soham Kundu

Love, Death and Everything in Between (2022), de Soham Kundu © Direitos Reservados

O luto é das mais dolorosas e marcantes experiências humanas, um movimento simultaneamente consciente e inconsciente do confronto com a finitude, sendo por isso, uma extensão, ou projecção, da nossa própria morte. Assim, a morte de um filho é sempre prematura, sendo esse luto, o mais inaceitável de todos. A partilha do luto não o facilita, porventura ainda o complica, pois nem todos lutamos do mesmo modo. Esta batalha, antes de ser partilhada, é individual — este é o movimento tripartido do filme, a confluência de três lutos distintos: a mãe, o pai e a namorada. Cada um, primeiro, de seu modo individualizado, atende às suas próprias feridas, sofre a sós, para apenas depois sofrer em conjunto. Nessa reunião da dor e da ausência, encontramos a renovada vontade da presença, por fim o gesto de paz e silêncio possíveis. 

Diogo Albarran

Lugar Nenhum (2021)

de Pedro Gonçalves Ribeiro

Lugar Nenhum (2021), de Pedro Gonçalves Ribeiro © Direitos Reservados

A voz silenciosa que paira sob a aura azul magnética de Nowhere conduz-nos num solilóquio partilhado, atingido por uma avalanche de perguntas que se instalam num deserto de respostas. Perante a colouer des notre rêves, aqui coletivizando o tal quadro de Miró, há um espaço infinito de introspecção, de liberdade para questionar a própria liberdade e a melancolia que esta inerentemente acarreta dentro do espaço queer. Cada passo dado em frente aparenta impulsionar um novo obstáculo, estendendo o caminho a percorrer num túnel solitário.  

Assim, meditando sobre o estado da identidade dos homens gay no novo milénio, Pedro Gonçalves Ribeiro desvenda com este filme-ensaio as contradições e ambiguidades que vêm com ela, a sua representação nos media, a prática do cruising e até uma simples música. É a evocação de um apelo extenuado, mas intimorato, pela aceitação e a manifestação da diferença. Tudo, evidentemente, ao som da eterna questão de Cher – Do you believe in life after love?

Margarida Nabais

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Lugar Nenhum (2021), de Pedro Gonçalves Ribeiro © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #7

Espelho Eu (2022)

de Beatriz Alves Ribeiro

Espelho Eu (2022), de Beatriz Alves Ribeiro © Direitos Reservados

A primeira curta-metragem de Beatriz Alves Ribeiro é uma fantástica estreia, que revela desde imediato um grande domínio imagético, rítmico e crítico. O filme confronta a noção de ser mulher nos anos 70 em Portugal, a partir dos livros Enciclopédia da Mulher, tecendo uma profunda crítica a uma imagem absurda e desajustada aos padrões de hoje. A crítica é, de certo modo, autossuficiente, no sentido em que a mera recontextualização dos livros para os dias de hoje é suficiente para perceber o absurdo dos padrões e expectativas que tornavam a mulher um ser dependente – da casa, dos filhos, do marido, da família, etc. A mulher era assim apresentada de um modo serviçal – compreendendo-se a mulher perfeita como uma fada do lar. Partindo do passado e ajustando-o ao presente, o filme questiona também essa mesma evolução, o que é ser mulher hoje e o que será amanhã. Será possível um futuro livre dos fantasmas do passado-presente?

Diogo Albarran

Punkada (2022)

de Gonçalo Barata Ferreira

Punkada (2022), de Gonçalo Barata Ferreira © Direitos Reservados

É no meio de um descampado com uns barracões, onde está estacionado um velho e podre autocarro, que Punkada decorre. Os décors, adereços e guarda-roupa remetem para outra década do século passado, procurando retratar o quotidiano decadente dos Biqueira d’aço, uma banda punk em autodestruição. 

Tentando fazer jus ao conteúdo da história, o filme tenta também ser punk na sua forma. Disperso em sequências desconexas, num fluxo de imagens onde salta à vista a película 16mm, Punkada serve-se de um bom domínio da técnica (recorde-se que o filme é uma produção da Universidade Lusófona) para enfatizar a energia da banda e guiar o espectador num delírio musical.

Ricardo Fangueiro

Night By Night (2021)

de Jules Mathôt

Night By Night(2021), de Jules Mathôt © Direitos Reservados

A noite é azul e a lua é amarela. Night By Night poderia ter sido inspirado no quadro “A Noite Estrelada” de Van Gogh, para onde a nossa mente divaga naqueles que são os planos de animação artesanal do filme: as ruas e os prédios noturnos. À la Janela Indiscreta de Hitchcock, o filme revisita o cinema noir e inspira-se em filmes americanos de culto.

Um detetive privado é contratado para investigar um pianista misterioso. O ver e ser visto são as questões essenciais deste filme, que destaca objetos que servem para espiar (ver ainda mais) como binóculos, e outros como um revólver, um rádio, um telefone, e uma máquina de escrever. Há uma preocupação do realizador em destacar os aspectos visuais do filme, quer os seus objetos, quer as suas cores. E são as próprias cores que fazem a ponte com a música jazz, se pensarmos nos quadros, com destaque para a cor azul e amarela, de Piet Mondrian. O jazz contribui para a estética do noir, e é parte essencial da personagem que o detetive espia.

Night By Night apoia-se e inspira-se em muitas referências fortes e reconhecíveis do espectador, o que o torna apetecível aos olhos deste.

Inês Moreira

In a kinda ordinary system (2021)

de Mikołaj Piszczan

In a kinda ordinary system (2021), de Mikołaj Piszczan © Direitos Reservados

Como seria nascer e morrer na Polónia, durante o regime comunista da 2ª metade do séc. XX? E como seria o intervalo entre o choro inaugural e o suspiro final?

Na tradição do cinema russo da década de 1920, In a kinda ordinary system é uma sinfonia, não da cidade, lembrando Dziga Vertov, mas da existência mais simples, desde o seu primeiro momento até ao seu inevitável desaparecimento, naquele que foi possivelmente o mais complexo dos regimes políticos e sociais. Realizado inteiramente a partir de imagens de arquivo, a montagem, herdeira e aprendiz do cinema de Sergei Eisenstein, deixa entrever pelos diferentes estádios da vida as contingências impostas pelas ideias de ordem, disciplina e obediência que regiam a relação entre o cidadão e a sociedade comunista polaca. Haveria à data outro modo de lhes escapares que não caminhar em linha recta em direcção à morte, na esperança de um recomeço, em liberdade, para e do comunismo? 

Cátia Rodrigues

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Night By Night(2021), de Jules Mathôt © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #6 

Wings for Butterflies (2021)

de Tilly Wallace

Wings for Butterflies (2021), de Tilly Wallace © Direitos Reservados

Nesta curta-metragem, uma animação produzida a partir de pinturas sobre vidro mergulha-nos em campos etéreos. Numa floresta embebida de tinta violeta, o filme impressionista, quase-abstrato e com transições como que líquidas entre planos, faz parecer, por vezes, que aquele mundo retratado se trata de um devaneio pessoal. Na verdade, as suas árvores têm raízes muito firmes e reais — poderiam ser as Sequóias-vermelhas nas costas californianas, em perigo de extinção. Também a personagem humana poderia ser histórica — quem sabe não se chama Julia Butterfly Hill? Num movimento contrário, porém, o mérito de Wings for Butterflies é demonstrar que, mais do que uma fantasia que poderia ser real, o real é, também, na sua própria concretude, místico, inspirador e vivo

Laila Nuñez

Night Visit (2021)

de Mya Kaplan

Night Visit (2021), de Mya Kaplan © Direitos Reservados

A meio da noite, Ruthie é surpreendida em casa pelo guarda noturno que diz ter ouvido um barulho. Reconhecendo-o de vista e atraída por ele, aproveita o momento para o seduzir e os dois acabam por se envolver. Tudo se adensa quando, perante a confusão lá fora, ele resolve sair à pressa.

Numa busca angustiante pela verdade, a protagonista entra em conflito com aquilo que sente, procurando equilibrar o amor com a necessidade de confrontar o rapaz. 

Mya Kaplan mostra uma capacidade de construir uma forte tensão dramática, resultando numa obra fulgurante de cariz psicológico.

Ricardo Fangueiro

Mar de Azul (2022)

de Juan Carlos Ballesteros 

Mar de Azul (2022), de Juan Carlos Ballesteros © Direitos Reservados

“(…)

mas levamos anos

a esquecer alguém

que apenas nos olhou”

José Tolentino Mendonça, Calle Principe, 25

Prelúdio junto ao mar. Que pode um encontro contra a vastidão do tempo? Uma série de fotografias procura na palavra a cristalização do berço originário, os braços da mãe que se retêm na memória como o instante inteiro de felicidade. 

Em Mar de Azul, Juan Carlos Ballesteros escreve-nos para travar o avanço do tempo, fugidio por natureza como o é o breve encontro por entre pinturas e desenhos a que pétalas azuis roubaram a sua atenção, deixando-o escapar. Mas, não fossem elas, e no lugar daquele que nos olhou restaria apenas o recorte vazio da sua ausência, como se nunca ali estivesse estado. 

Cátia Rodrigues

Alaúde (2021)

de João Pedro Barbosa Magalhães

Alaúde (2021), de João Pedro Barbosa Magalhães © Direitos Reservados

A música é um dos grandes mistérios deste nosso planeta, uma vibração sonora que se sente, uma ligação ontológica que parte de uma necessidade inidentificável, de expressão quase abstracta. A música pode representar tudo e nada, representa para quem toca, mas também para quem ouve. É esta a simples, mas muito forte descoberta do pequeno protagonista António, que é apanhado de surpresa quando um rancho folclórico tradicional passa em frente a sua casa, tocando e dançando. Este pequeno momento é o catalisador de todo o filme, movendo a acção e plantando uma semente em António, que irá agir de um modo inesperado. A curiosidade e a necessidade de aprofundar este novo contacto levam-no a cometer um erro, o que não seria problemático se, embora a tenra idade, António não partilhasse já de tantas responsabilidades em casa. O seu pai, Victor, conta com o filho para o ajudar em todas as tarefas, ensinando-o a viver através da projeção da sua própria vida na do filho, uma educação através do contacto. É central também a este filme a noção de aldeia, comportando ela também uma ideia de tradição, muito viva nas aldeias, mas moribunda nas cidades. Com efeito, muito do charme do filme reside neste cenário de aldeia, de quem vive de forma isolado e precária, com poucos contactos, mas com grande noção de tradição e continuidade – António é, de certo modo, uma extensão do seu pai. Apesar de alguma rigidez educativa, no final vemos um grande vislumbre de compaixão e compreensão – não são precisas muitas palavras quando se tem música.

Diogo Albarran

Filme de Quarto (2021)

de Raffaella Rosset

Filme de Quarto (2021), de Raffaella Rosset © Direitos Reservados

“Quanto tempo desmorona um prédio?” pergunta-nos a mulher que habita um apartamento no centro de São Paulo, a 110 metros do chão, por baixo do João e por cima da Dona Magli. Este está quase vazio, apenas existe uma poltrona, diversos garrafões de água, tanto cheios como vazios, e um projetor que dá ver imagens do apartamento que pertencem a outros tempos e parecem deixar saudade. Entretanto o mesmo é invadido por uma inundação.

Tiago Leonardo

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Filme de Quarto (2021), de Raffaella Rosset © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #5  

Ready-made (2022)

de Corentin Courage

Ready-made (2022), de Corentin Courage © Direitos Reservados

Em março de 2021, o Ministério da Justiça francês anunciou a construção de uma prisão às portas da pequena cidade de Crisenoy, perto de Paris. Na altura, e até ao início deste ano, acendeu-se um grande debate em torno da legitimidade da decisão, firmemente repudiada pelos habitantes da comuna. As suas reivindicações eram mais do que justas — para que a nova penitenciária pudesse acolher 1000 lugares, 20 hectares de terras agrícolas teriam de ser ocupados; além disso, preocupavam-se com a própria segurança, serenidade e com a queda na especulação imobiliária da região. 

Ready-Made, de Corentin Courage, leva-nos a inquietações ainda mais estruturais: qual é a verdadeira utilidade de uma prisão? Porque a tomamos como uma instituição de existência óbvia, inquestionável? Com claras influências da teoria teatral de Brecht e do cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, a penitenciária é, aqui, levada ao seu extremo banal. Torna-se uma espécie de jogo da macaca. Denunciando a sua uniformização arquitetónica e sistêmica, a curta-metragem explora a prisão enquanto objet trouvé, incontestavelmente normalizado e excessivamente reproduzido.

Laila Nuñez

Mergen (2020)

de Raiymbek Alzhanov

Mergen (2020), de Raiymbek Alzhanov © Direitos Reservados

Mergen é filho do guerreiro Akbar e, ao deparar-se com uma Ásia dividida e devastada pelo conflito, vê-se na obrigação de substituir o seu pai ausente. Este é um filme que se vê envolto em camadas ritualísticas e espirituais, e que conta com cenários e figurinos que denotam este ambiente de magia antiga. A avó de Mergen é o pilar da família: é ela que dá força ao neto para conseguir enfrentar os soldados e é também ela que lhe permite ver aquilo que ele não conseguiria ver num estado normal. Sentimos uma sobrecarga emocional muito grande e um sentido de proteção que vem de todos os elementos desta família: a avó quer proteger o neto; o neto quer proteger a mãe; a mãe quer proteger os soldados feridos. Neste sentido, é interessante ver como as fortes figuras femininas inspiram este pequeno rapaz, e o fazem ser muito mais do que apenas “filho de guerreiro”. 

É, portanto, a ideia de coletivo e de sacrifício pelo coletivo que estão no centro desta curta-metragem do Cazaquistão, que se realça pela beleza da sua fotografia.

Inês Moreira

ELLE (2021)

de Alexandra Kurt

ELLE (2021), de Alexandra Kurt © Direitos Reservados

Elisabeth, ou Elle,  é uma mulher na casa dos 50 anos, com uma vida e um casamento estagnados que passa por uma enorme mudança quando é desafiada por Júlia, uma estudante de cinema, a ser protagonista do seu mais recente filme. Acompanhamos Elle, Julia, e colegas de quarto da mesma, num dia de verão cheio de alegria que se transforma numa jornada de redescoberta; como diz Júlia, “Ela não está perdida”. 

A saída da rotina e da estagnação do dia-a-dia faz com que Elle se torne não só a protagonista do filme de Julia mas da sua própria vida.

Tiago Leonardo

Transportation Procedures for Lovers (2021)

de Helena Estrela

Transportation Procedures for Lovers (2021), de Helena Estrela © Direitos Reservados

Onde fica o amor com a distância? No isolamento provocado pelo Covid-19. Como nos transportamos para junto dos nossos entes queridos quando a Fedex se recusa a transportar qualquer tipo de corpo? São essas as questões que este irónico exercício de correspondências efetuado durante a quarentena se propõe a responder.

Esta investigação sem grandes conclusões entende apenas que às vezes os corações podem colapsar como a economia.

Tiago Leonardo

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Transportation Procedures for Lovers (2021), de Helena Estrela © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #4 

My thoughts are going to end me (2022)

de Weronika Nowacka

My thoughts are going to end me (2022), de Weronika Nowacka © Direitos Reservados © Direitos Reservados

Qual analogia melhor daria conta de nos fazer compreender o interior do nosso cérebro, esse espaço onde se alojou, historicamente, o intelecto e o ato de pensar? Weronika Nowacka tenta algumas das mais habituais: gavetas, uma malha de redes, um computador, um jogo de tabuleiro, um labirinto, uma prisão. A figura da clausura implica, porém, a possibilidade do seu contrário — a fuga para a liberdade. Não é este o caso. Em My thoughts are going to end me, a realizadora polaca descreve este tão conhecido conflito entre nós e os nossos pensamentos, como se se tratasse de agências distintas, autónomas, num jogo de poder onde a mente é sempre a vencedora. A tentação irrefreável de escapar à sua velocidade e manipulação é sempre frustrada. Haverá solução? Será pela via racional? Poderia a imaginação de uma nova paisagem mental — em vez de gavetas num depósito empoeirado, grãos de areia macios numa praia quente, por exemplo — transformar, também, a forma como lidamos e reconciliamo-nos com a nossa consciência repudiada?

Laila Nuñez

Anok (2022)

de Laura Duarte Pires

Anok (2022), de Laura Duarte Pires © Direitos Reservados

Confrontando-nos com uma técnica e narrativa bastante simples — sobre a qual não deixamos de nos perguntar se motivada por uma identificação individual com a personagem —, Laura Pires nos guarda, não obstante, um final surpreendente e provocador. Desafiando este que é ainda um dos grandes tabus de género, alegadamente pouco discutido mesmo dentro das militâncias feministas, a realizadora transmuta a conhecida máxima de Espinosa para lançar ao público o questionamento: o que pode o corpo envelhecido

Laila Nuñez

A Wish Beyond Death (2022)

de Anna Maria Leventi

A Wish Beyond Death (2022), de Anna Maria Leventi © Direitos Reservados

Um humilde carteiro que fez do ofício o seu próprio nome — “the Postman” — é interrogado sobre a sua vida. A princípio, o seu quotidiano parece pacífico, ordinário e repetitivo. Todos os dias, leva as suas cartas a cada porta das Colinas do Deserto; todos os dias, através da sua janela, observa, também, a Mulher Areia a dançar pelo povoado. O desaparecimento repentino desta figura feminina e mitológica que habita as suas lembranças traz-lhe o vazio da saudade e o terror de uma morte, talvez, mais violenta do que se imaginava. Valendo-se de diversas técnicas visuais, combinadas a um trabalho de voz e composição sonora, a realizadora grega Anna Maria Leventi arrisca a criação de uma narrativa a partir do desenvolvimento de um único personagem, que pode provar-se capaz de muito mais do que apenas entregar cartas. 

Laila Nuñez

A Maior Gaiola do Mundo (2022)

de Marta Ribeiro e Catarina Colaço

A Maior Gaiola do Mundo (2022), de Marta Ribeiro e Catarina Colaço © Direitos Reservados

Confinado numa gaiola, um pássaro espreita por entre grades a dor do mundo que aflige a dança e o ciclo da vida, toda a solidão, a nostalgia e a saudade que atravessam gerações. Após um debate tentador com a sua própria sombra, o pássaro conquista, finalmente, a liberdade dos céus — apenas para aperceber-se cativo numa gaiola ainda maior, do tamanho do mundo.

Laila Nuñez

Olive and Otis (2022)

de James Leong Holston

Olive and Otis (2022), de James Leong Holston © Direitos Reservados

Um filme de terror em estilo de animação CalArts, Olive and Otis entrega, em cores contrastantes e movimentos adstritos, uma história de descamação. Inspira-se em clássicos de terror como Carrie e no body horror de Cronenberg para narrar o processo labiríntico do descascar de uma pele antiga e a instalação numa nova. A dismorfia corporal e a transição de género são aqui exploradas de maneira sufocante, com uma banda sonora que faz lembrar as notas de Angelo Badalamenti, contribuindo para o mergulho na angústia de Otis que, em flashes, encara o seu duplo e o palimpsesto de um “eu” de outrora.

Kenia Pollheim Nunes

Alien Human (2021) 

de Wen Pang

Alien Human (2021) , de Wen Pang © Direitos Reservados

Na mente dos outros, todos somos extraterrestres, e este filme é uma tentativa de chegar à mente dos “outros”. Partindo de uma tira de banda desenhada (Wang Yuewei) composta por quatro histórias diferentes (“Pearl”, “Goldfish”, “Sea” and “Hole”), esta animação propõe-se a entrar na mente de um extraterrestre. A dada a altura, o narrador questiona se a espécie humana é a única capaz de causar dor psicológica entre os seus, realçando a visão que se pretende aqui procurar sobre a nossa espécie, aos olhos de um extraterrestre. Num tom sereno e poético, o filme lembra um pouco a série The Midnight Gospel na tentativa de aliar uma visão filosófica a imagens surreais, desta feita, através de poemas. 

Ricardo Fangueiro

Wonderfully Made (2022)

de Joseph Hoh

Wonderfully Made (2022), de Joseph Hoh © Direitos Reservados

Numa caverna como a de Platão, onde as sombras pintam as paredes criando uma galáxia infinita, lança-se o mote a Wonderfully Made. A animação em 2D, pela mão de Joseph Hoh, esculpe o pequeno Nino, as incríveis constelações, e a paisagem estonteante que este passa a conhecer, mas só a partir do momento em que esconde a sua maior insegurança. Esta jornada de Nino pelas maravilhas do Universo é uma ode à criação e à aceitação, mostrando quão mais bonito é o mundo quando a capacidade de abraçar as “imperfeições” supera os muros que se erguem à volta de inseguranças.

Kenia Pollheim Nunes

Dear Yeda (2022)

de Renata Pereira

Dear Yeda (2022), de Renata Pereira © Direitos Reservados

Dear Yeda, por Renata “Renny” Pereira, é prova da intimidade que partilham o cinema e os processos de rememoração. Em apenas dois minutos, e a partir de pequenos amuletos que conjuram as lembranças passadas – uma xícara, um azulejo, a letra cursiva, o cheiro amanteigado, uma pequena escultura de um veado em madeira –, o filme se desenrola como uma epifania lírica e sinestésica: uma memória, ela mesma. Entre arquivo e desenho, entre o familiar e o universal, costura-se um passado contaminado pelo presente e pelo futuro. É assim que, nesta espécie de filme-carta-testamento, o gesto de Renny é, em última instância, o de animar a memória perdida e devolvê-la à sua avó.

Laila Nuñez

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Dear Yeda (2022), de Renata Pereira © Direitos Reservados]

Rebentos: Mostra Internacional de Cinema Emergente – Sessão 6

SENTIDO Y RAZÓN (2021)

um filme de Martín Pizarro Veglia

Poster de Sentido y Rázon, de Martín Pizarro Veglia © Direitos Reservados

Toda a gente conhece aquela célebre frase (mal) atribuída a Emma Goldman, figura central do movimento anarquista americano: “Se eu não puder dançar, esta não é a minha revolução”. Não que alguém o tenha dito por ela – ela simplesmente disse outra coisa. O que ela de facto disse foi que a felicidade teria de ocupar um lugar central no movimento, que a alegria não é apenas consequência da revolução, mas sua parte integrante.

Martín Pizarro Veglia parece aqui dar “sentido e razão” não apenas à posição de Emma Goldman através dos dois dançarinos que ocupam as ruas durante os protestos de 2019, no Chile, mas também à própria prática dos dançarinos. Não se trata, portanto, de dançar por dançar, mas de se apropriar do espaço público, dando-lhe um novo uso que tente escapar à dicotomia público-privado, central à construção do Estado moderno. O mesmo poderá ser dito do fotógrafo que documenta os protestos, as cargas policiais, os feridos, as barricadas. Mais do que uma ode à arte ou à sua dimensão política (“se esta não for política, não passa de decoração”, diz o fotógrafo), Sentido e Razão mostra como as capacidades e saberes de cada um podem ganhar um novo uso nestes momentos que suspendem a temporalidade de um mundo que já há muito perdeu qualquer sentido e razão.

João Ayton

KING MAX (2021)

um filme de Adèle Vincenti-Crasson

Poster de King Max, de Adèle Vincenti-Crasson © Direitos Reservados

King Max é um coming-of-age com temas que são cada vez mais comuns no cinema: o universo queer e as consequências e aventuras pessoais que este universo acarreta.

O espelho, representado no primeiro plano do filme, é um elemento chave na construção da curta-metragem: é ele a representação do desejo de mudança, que se revela crucial para a personagem principal. O corpo e o olhar o corpo, através do espelho, mostram esta vontade que se revela quase como uma necessidade de mudança. Mais tarde, percebemos que este desejo se transforma numa outra coisa. 

Dentro de casa, a personagem principal sente-se refém, aprisionada e infiel a si mesma. A corrida que precede a cena familiar mostra isso mesmo, uma vontade de libertação, que talvez seja possível na festa à qual acaba por ir parar. Nessa festa, a personagem recebe uma makeover e, mais uma vez, com a ajuda do espelho e da performance de uma Drag King, esta compreende que a vontade de mudança, antes tão indispensável, se transforma mais numa necessidade de aceitação, dela sobre si própria. É naquela festa, que a nossa personagem compreende que não é preciso forçar a mudança mas simplesmente pode ser aquilo que quiser ser, quando quiser ser. Ouvimos “we don’t have any gender” e sentimos esta libertação acontecer. A personagem, que antes tínhamos visto fragilizada no espelho, torna-se naquilo que dá título ao filme: King Max.

Inês Moreira

BEYOND (2021)

um filme de Julius Lagoutte

Poster de Beyond, de Julius Lagoutte © Direitos Reservados

Cidade. Gruas. Uma mulher. Somos apresentados a esta personagem feminina, que sabemos ter acabado de perder o seu irmão num acidente de trabalho, e que nos vai guiar ao longo do filme. Beyond compõe-se quer de planos em que vemos esta personagem, quer de planos em que vemos e ouvimos o que ela vê e ouve. É um filme desprovido de diálogo, cor e de personagens, onde tudo se passa interiormente nesta personagem única que o acompanha do início ao fim. Este dispositivo parece bastar para nos transmitir a mensagem pretendida: uma viagem de aceitação a uma nova fase da vida, agora sem o seu irmão.

Uma reflexão curta sobre a solidão, a perda e aquilo que fica para lá disso. Os espaços, antes habitados pelo irmão, são agora aquilo que restou dele e são abraçados dessa forma pela nossa personagem principal. As expressões faciais desta são o que constrói a narrativa, num filme que fala através das emoções e dos silêncios. E, apesar de à primeira vista parecer de difícil empatia, o espectador acaba por se ver envolvido no filme através desta personagem feminina que o encara de frente numa quebra da quarta parede. 

Inês Moreira

O QUE QUEDA DE NÓS (2021)

um filme de Miguel Goméz Abad

“Em tempos de auge, a conjectura de que a existência do Homem é uma quantidade constante e invariável pode entristecer ou irritar; em tempos que declinam (como este), é a promessa de que nenhum opróbrio, nenhuma calamidade nem nenhum ditador poderá empobrecer-nos” 

Jorge Luis Borges, El Tiempo Circular
Poster de O Que Queda de Nós, de Miguel Goméz Abad © Direitos Reservados

Ao contrário do imaginário e das mais típicas representações do que seria o fim do mundo – as guerras nucleares, as catástrofes “naturais”, etc. –, Miguel Goméz Abad apresenta-nos em O que Queda de Nós um fim dos tempos bucólico, envolto por montanhas, ao som da chuva, na companhia de duas mulheres. Os seus contornos são-nos vedados, o “inimigo” não tem rosto. Mas é na aparente oposição entre a calmaria de uma vida nas montanhas e o seu entorno incógnito que jaz a virtude do filme: o apocalipse não contará com os seus cavaleiros, não será um acontecimento catártico, mas antes lento, moroso, banal e normal – porque normalizado. O fim do mundo é o que já aqui está, e o desmoronar de toda e qualquer experiência, a pobreza de toda e qualquer relação com pessoas, coisas e lugares, que cada vez mais se apresenta como inevitabilidade histórica e como único caminho possível, é apenas um dos seus sintomas. A catástrofe da nossa liquidação reside precisamente aí, em liquidarmo-nos uns aos outros no mais profundo desespero pela sobrevivência.

O que resta de nós, então? O filme não o pergunta, afirma-o. Mas será isso o que nos resta?

João Ayton

Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.