Desdobramento de um Incidente: Entrevista com Bill Morrison

Bill Morrison, cineasta com obras já presentes em edições anteriores do Indie Lisboa, regressa este ano à Competição Internacional de Curtas com Incident. Morrison é conhecido pela sua abordagem arquivística ao documentário e ao trabalho de vídeo. Embora a sua filmografia se situe em várias épocas e explore vários temas, o cineasta é normalmente associado à utilização de gravações antigas e arquivadas em película. No entanto, este já trabalhou diversas vezes com material que não se restringe a arquivos cinematográficos, tendo até chegado a focar-se em captações contemporâneas. Incident insere-se firmemente nesta segunda vertente da sua obra.

O filme em causa, a partir de uma montagem criativa de vídeo de várias origens (câmaras de segurança, câmaras de polícia…), tenta esmiuçar todos os ângulos de um tiroteio que ocorreu em Chicago de forma a chegar a alguma conclusão. O caso trata-se de um barbeiro de meia idade em posse (legal) de uma arma, que, ao ser abordado sem razão por um grupo de polícias, acaba por ser injustamente morto. 

Incident coloca em causa questões sociais óbvias pelo seu tema, mas vai muito além disso. No seu decorrer, esta curta metragem torna-se numa exploração do conceito de vídeo em si e a sua pluralidade, o papel observacional da câmara e a materialidade do vídeo digital.

Incident, Bill Morrison ©

Entrevista a Bill Morrison no IndieLisboa

Vasco Muralha (VM) — So a lot of your previous work, before Incident, had a big focus on old archival film footage and I wanted to ask mainly how was this shift from that type of archival footage to a new type of archival footage?

Bastante do seu trabalho anterior a Incident focava-se em imagens de arquivo antigas. Como é que se deu esta transição para um novo meio de filme de arquivo?

Bill Morrison (BM) — That’s true, a lot of my footage has not only been archival footage but very old archival footage and so a lot of what has been the point of the earlier stuff is that it shows material degradation, which is, of course, a specific subsection of archival footage. So in this shift to using a contemporary archive, I didn’t feel like I was dealing with film, I didn’t feel like it needed to be edited in the way in which you would edit film. So I was more at liberty to use some vídeo devices, like the split-screens and the quad-screens and the wipes, this kind of thing that I wouldn’t normally use. In a way, the form reflected the type of media that I was working with. 

É verdade, muito do meu trabalho tem tratado de filmagens de arquivo muito antigas, cujo objectivo é mostrar a degradação material, que é uma subsecção das filmagens de arquivo. Na transição para um arquivo contemporâneo, não senti que estava a lidar com película, por isso não montei do mesmo modo que monto filmes. Por isso, tomei mais liberdade para usar dispositivos de vídeo, como os split-screens, os quad-screens ou os wipes, o tipo de coisas que normalmente não uso. De certo modo, a forma refletiu-se no tipo de media com que estava a trabalhar.

VM — There is of course a material difference between the old footage and the new footage, but how did you approach it, not in a material sense but in a more contextual sense? How did you feel like approaching footage that was very old with footage from our contemporary types?

Claro que há uma diferença material entre as filmagens antigas e as novas. De que modo abordou, não no sentido material, mas no contextual, estas diferenças?

BM — My choice of older footage always has been a reflection through the prism of contemporary times, usually they’re meant to show how little things have changed, the differences between our society now and hundred years ago. In this case, we’re seeing the systemic racism of the police force in the United States, which is something I have referenced in earlier work, for example Buried News from a few years ago, where I used race riots from a 100 years ago. I think eventually these two films will be shown together.

A minha escolha em filmagens antigas sempre se refletiu através de um prisma contemporâneo. Normalmente é suposto mostrar quão pouco as coisas mudaram, as diferenças entre a nossa sociedade agora e há 100 anos. Neste caso, estamos a ver o racismo sistémico da polícia dos Estados Unidos, que é algo que já referenciei em trabalhos anteriores, como, por exemplo, no Buried News, de há uns anos, onde usei motins raciais de há 100 anos atrás. Acho que eventualmente esses dois filmes serão exibidos juntos. 

VM — So do you think there was a certain difference in approaching this topic that is so inherently political, in a contemporary sense, with your already political work in another area? Or do you think it was a more natural shift?

Então, acha que há uma certa diferença ao abordar este tópico tão inerentemente político, num sentido contemporâneo, com o seu trabalho político de outros modos? Ou acha que a mudança foi mais natural?

BM — To me, it felt natural because when I was presented with this archive I saw the potential of the film there almost immediately and I’m always inspired by an archive to make a new film. I’m seldom picking through an archive to support a theory, usually it comes from the archive and my projects grow organically out of that. That was the case here too, the issue of gun control obviously is in a crisis situation right now in the United States, there’s probably a mass shooting that happened today that I don’t know about yet. It’s just preposterous. In some ways, in very explicit ways, this film underscored the hypocrisy of those who are allowed to carry guns and those who are allowed to carry guns but are deemed by the police that they shouldn’t be.

Para mim foi natural, porque, quando me apresentaram o arquivo, percebi imediatamente o potencial do filme e sou sempre inspirado pelo arquivo a fazer um novo filme. Raramente examino um arquivo para apoiar uma teoria, normalmente os projectos crescem organicamente do arquivo. Esse também foi o caso aqui, o controlo de armas está obviamente numa situação de crise nos Estados Unidos. Neste momento, há provavelmente um tiroteio em massa que aconteceu hoje e eu ainda não sei, é absurdo. De muitas maneiras, de formas muito explícitas, este filme sublinha a hipocrisia dos que são permitidos ter porte de arma e dos que são permitidos, mas a polícia considera que não deveriam. 

VM — There’s the big use of angles and split-screens as you’ve mentioned and we can piece apart a narrative from all these different views, angles and aspects. In your older work there’s a big focus on the decay of it being old footage, like in Decasia for example, and in the old archival footage having a material/ physical space, but there’s an interesting thing even if its connected to narrative, the zoom ins, split-screens and the lower quality of how it is filmed. There’s also an apparent plasticity of the limits of digital, the pixelisation. What do you think about that?

Neste filme utilizam-se várias câmeras, em diferentes ângulos, os split-screens como já mencionou. Neste sentido, podemos juntar uma narrativa a partir desses diferentes bocados. No seu trabalho anterior há um foco na deterioração de imagens de arquivo antigas, por exemplo o Decasia, em ter um material/espaço físico. Também se pode notar esta aparente plasticidade no caso dos limites do digital, da pixelisação, juntando aos zoom-ins, split-screens e a pior qualidade de como é filmado. Nota-se algo interessante ligado à narrativa. O que pensa sobre isso?

BM — I don’t think of it as a materiality but I do think of it as self-referential. A big part of this film is, of course, the law that I set up in the beginning as a contextualisation and now all of this footage is mandated to be released to the public. That wasn’t the case before, and so this is in ways a police force that is coming to grips with this new law. There’s a performative aspect of it, which they know they’re on camera and they know that anything they say can be used to incriminate themselves, or one of they’re colleagues. So there’s this dance that happens about evening knowledge and the truth of what they saw and how slippery the truth can be, even more when it’s recorded. And so there’s several different types of cameras that were used in this, there’s the establishing shot which is the POD, or Police Observation Device, then we cut to the closed circuit tv, the private security cameras which are the highest resolution that we have and from there we go in to the dashboard cam, and the body-worn cam and its not until we get to the body-worn cam that we have audio. This difference between these silent cameras that establish the scene and the context and we dip into the contemporaneous footage, which gives us the story, then as soon as those cameras are turned off, the ones with microphones, we’re back out in a scene were we have no context or no grasp of what’s happening. That also underlies how little we can possible know, its really dependent of what’s captured at the time and what’s released. Absurdly all of these cameras are manually triggered, which doesn’t serve anyone’s purpose, of course from the police officer it can’t be expected if things get really heated in the moment to say “ohh I have to turn my camera on”, they have other concerns going on. Us, as a public,  want to make sure of everything, before it gets heated, what were these circumstances, what was built up, so these cameras should be on all the time. 

Não penso nisso como uma materialidade, penso enquanto algo auto-referencial. Uma grande parte deste filme tem que ver com a lei que coloquei no início como contexto, de como agora aquelas imagens tem que ser libertas para o público, o que não era o caso antes. De certo modo, isto é uma força policial que se está a confrontar com esta nova lei. Há um aspecto performativo, eles sabem que estão a ser filmados e sabem que tudo o que dizem pode ser usado para os incriminar a eles, ou a um dos colegas. Há esta dança que acontece sobre equilibrar o conhecimento e a verdade do que viram, e de quão escorregadia pode ser essa verdade, ainda mais quando filmada. Há diferentes tipos de câmaras usadas: o plano geral (establishing-shot) que é o POD, ou Dispositivo Policial de Observação, depois cortamos para o circuito de TV fechada, câmaras de segurança privadas, que são as com maior resolução, daí vamos para a câmara do tablier e depois para as câmeras dos uniformes e só nessas é que temos audio. Então há esta diferença entre as câmaras silenciosas que estabelecem a cena e o contexto, e depois mergulhamos nas imagens contemporâneas, que nos dão a história. Assim que essas câmaras com microfone se desligam, voltamos (para o plano geral) para uma cena onde não temos contexto, onde não conseguimos perceber o que se está a passar. O que também sublinha o quão pouco podemos saber e que está muito dependente do que é filmado na altura e de quando são libertas as imagens. É absurdo, mas todas aquelas câmeras são ligadas manualmente, o que não serve o propósito de ninguém – é claro que não podemos esperar que um polícia, no calor do momento diga “ohhh tenho que ligar a minha câmara”, eles têm outras preocupações. Nós, enquanto público, queremos saber de tudo, antes de ter aquecido, quais foram as circunstâncias, qual foi o crescendo, por isso as câmaras deviam estar sempre ligadas.

Incident, Bill Morrison ©

VM — As you mentioned before in your work, you used footage of old race riots. That has always been a political approach, but how do you feel about the difference between going from this other footage you use, that has an artist or an aesthetic point in its inception, to this “incidental” one, with utilitarian purpose, where it was filmed for a specific/technical purpose?

Como já mencionou, no seu trabalho usou filmagens de antigos motins raciais. Sempre houve uma abordagem política, mas o que acha da diferença entre ir destas filmagens antigas que usou, que tinham um ponto de concepção artistico ou estético, para este, que é acidental ou utilitário, que foi filmado para um propósito técnico/específico? 

BM — In some cases the stuff that’s become artful, as you said, began as utilitarian footage as well, as actuality footage, or a sort of record of something that otherwise would seem. I don’t know if you’d call it artistic, it’s reportage. I guess it’s the treatment of it, as our perspective changes, there are incredible accidents that happen within Incident that I think are artful though I’m not trying to aestheticise a murder, but this seagull is an accident but it becomes the narrator, it brings us into this story and that was of course pretty circumstantial 

Em alguns casos, o que se torna artístico, como disseste, começa por ser utilitário. Filmagens de actualidades, uma espécie de registo de algo, não sei se lhe poderíamos chamar artístico, é reportagem. Talvez seja do tratamento que têm, enquanto as nossas perspectivas mudam, há inacreditáveis acidentes que acontecem em Incident, que julgo serem artísticos, embora não esteja a tentar estetizar um homicídio. A gaivota é um acidente, mas ela torna-se no narrador, traz-nos para dentro daquela história e isto foi bastante circunstancial, claro. 

Diogo Albarran (DA) – We already talked a little bit about the editing side and multiple cameras that you used to make this film. I was wondering, because a lot of your previous work, the old archive footage, the editing is more about mood, or the meaning with the evolving of those archival images, and here you’re telling a real story. How is this change of approach from working with such abstract material to much more concrete? 

Nós já falámos um pouco sobre a montagem, as múltiplas câmaras usadas para fazer este filme. Estava a pensar, muito do seu trabalho anterior, os tais antigos arquivos filmados, a montagem é mais sobre ambientes (mood) ou significados que evoluem com o seguimento das imagens de arquivo, enquanto, neste filme está a contar uma história real. Como é que a abordagem muda, de trabalhar com material tão abstracto para este muito mais concreto?

BM — I just want to clarify that much of my work has not been abstract for a long time now. Dawson City: Frozen Time, for its time was an incredible feat of journalism if I do say so myself. I know that my reputation started with Decasia and people often think of this sort of pure abstraction as a nom de plume, but I just want to draw people’s attention that I’ve been making what you’d call straight documentary films since the minor films, which is 2011, so that’s 12 years. I know that I’m always going to be considered this weird abstract guy. That said, I try to edit in a way which is consistent with the material that I’m using, so with all that stuff that was trapped on film I would use straight cuts, I don’t use dissolves a lot, if I do slow something down it’s in the denominator of 24 frames per second, so I’m either doubling a frame two times or tripling it and not mixing weird frame rates. I don’t use a lot of split-screens of zooms-in, I try to stay true to the integrity of the frame because this was pixels, lower resolution, it was vídeo. I felt like I could treat it in a different way, so that was a different approach. This is a story that took place a couple of miles from where I grew up, a couple of miles from where my mother and sister still live. It’s very much a part of my personal background, this neighborhood, that’s the most marked difference with earlier work, this is in some ways more autobiographical. 

Eu gostava de clarificar que há muito tempo que o meu trabalho já não é abstracto. Dawson City: Frozen Time para o seu tempo foi um incrível feito de jornalismo, se o posso dizer. Eu sei que a minha reputação começou com o Decasia e alguns pensam que essa espécie de pura abstração é um nom de plume, mas gostava de chamar à atenção que já faço documentários ditos normais (straight) desde 2011, portanto são 12 anos. Sei que vou ser sempre considerado como um weird abstract guy. Dito isso, eu tento montar de um modo consistente com o material que estou a usar, por isso para tudo o que foi captado em película usei cortes diretos, não uso muito dissolves. Se preciso de abrandar alguma coisa é no denominador de 24 frames por segundo, por isso ou duplico os frames, ou triplico, nunca misturo frame rates esquisitos. Não uso muitos split-screens ou  zooms-in, quero manter a integridade do frame. Neste caso eram pixels, baixa resolução, era vídeo, por isso senti que podia tratar o material de maneira diferente, foi uma abordagem diferente. Esta história aconteceu a poucas milhas de onde cresci, a umas milhas de onde a minha mãe e a irmã ainda vivem, isto é parte de meu contexto pessoal, aquele bairro. Essa é a maior diferença para o meu trabalho mais antigo, este é de alguns modos, mais autobiográfico. 

DA — I wanted to ask about your stance on documentary filmmaking and truth. In archive analogue films decay plays a major role. Do you see a crisis in documentary filmmaking and truth in this new age of sound manipulation, visual manipulation and a sort of new decay, perhaps in terms of morality or authority, how is that reflected in your movies?

Gostava de saber a sua posiçãosobre a relação entre documentário e verdade. Em filmes analógicos de arquivo, a deterioração tem um papel fundamental. Vê uma crise no documentário e na verdade, nesta nova era de manipulação de som e de imagem e desta nova espécie de deterioração (eventualmente em termos morais ou de autoridade), de que modo se refletem estas questões nos seus filmes?

BM — That’s a great question, I would add to that AI. This is the elephant in the room right now, it’s also when you talk about an AI Image it’s really against the archive. Any film shoot is an archival act, anytime you record anything, what we’re recording now, there’s a timecode, there’s a date-stamp, that makes it archival the moment it happens, it doesn’t need to sit in a box and rot to be archival. It’s immediately archival because it has those numbers and has a title and can be called back again. What AI is doing is stripping those numbers and taking little pieces and decontextualising, deauthorizing, and de-copywriting, through the atomisation of images. The potential, I don’t know if we can imagine it yet, but just what we’ve seen in five years, and the last five months are breathtaking, I guess if I see a change it’s there. When you talk about political actors or manipulation, it can become very difficult very soon to discern what is true and what it’s not, if it isn’t already. Moving forward we’re going to need to see those numbers, and see the timecode as part of any sort of evidence. If we don’t see them, there will be reason to doubt everything.

Ótima questão, eu gostava de acrescentar AI (Inteligência Artificial), o elefante na sala neste momento, quando se fala sobre imagens de AI, que são mesmo contra arquivo. Qualquer coisa filmada é um ato de arquivo, sempre se grava qualquer coisa, estamos a gravar agora, há um timecode, um date stamp, isso faz com que seja arquivo assim que acontece. Não precisa de apodrecer numa caixa para ser arquivo, é imediatamente arquivo porque tem aqueles números, aquele título e pode ser convocado. O que a Inteligência Artificial faz é tirar esse números e pegar em bocadinhos pequeninos e descontextualizar, desautorizar, retirar o copywrite através da atomização da imagem. O potencial não sei se o conseguimos imaginar ainda, mas os últimos 5 meses são de cortar a respiração. Se vir alguma mudança é aí. Quando se fala de actores políticos ou de manipulação, pode ser muito difícil discernir o que é verdade do que não é. Daqui em diante vamos precisar de ver os números, e ver o timecode como parte de qualquer tipo de prova. Se não os virmos, teremos razões para duvidar de tudo, se é que já não temos.

DA — Do you think that having this new movement and this new age beginning, archive movies, whether old ones or new ones, could in a way be a response and serve a counteraction by going to the past and bringing the past to the present or to the future and contextualizing it, could it be a weapon against this manipulation of images?

Acha que neste novo movimento, esta nova era que começa, os filmes de arquivo, quer os antigos ou os novos, podem responder, de certo modo servindo de contra-acção, nesse ir ao passado e trazê-lo para o presente e para o futuro, contextualizando-os? Poderá estar aí a arma contra a manipulação das imagens?

BM — We’ll have to see, obviously you can add a timecode to anything, I added a timecode to Incident, but it doesn’t make it real. We’re going to have to be very clever about how we communicate to each other to say “This actually happened” because we’re already in thin ice. In my country there’s an enormous amount of the population that wants to deny that a presidential election took place, this is an example of a leader of the free world, what does that say for the rest of the world, this could happen on a regular basis, but people just say “that’s not real”. I don’t know if looking back at archival footage will always save us from that, I think our task at hand is to concern what happened, it’s incumbent upon all of us, it’s kind of a scary time we’re entering.

Vamos ter que ver, claro que se pode por um timecode em tudo, eu pus um timecode no Incident, mas isso faz dele real (o timecode). Vamos ter que ser muito espertos na forma como comunicamos uns aos outros para dizer “isto aconteceu”, já estamos em terreno escorregadio. Nos Estados Unidos há uma grande parte da população que quer negar que uma eleição presidencial aconteceu, isto é um exemplo do líder do mundo livre, o que é que isso diz ao resto do mundo? Isto pode acontecer com regularidade, as pessoas simplesmente dizerem “isso não aconteceu”. Não sei se o arquivo nos vai salvar sempre disso, penso que a nossa tarefa agora é discernir o que acontece. É um período perigoso em que entramos.

DA — On that point of a certain objective reality and people denying what the world considers objective reality, I would like to go to your movie and try to get a sense of if you think it’s objective, if you think what’s there is there. Because I imagine, for example, seeing that the police officer got a very short sentence and got out fast, I could imagine those images being misconstrued and seeing a lot that happened we still don’t see enough to be able to bulletproof it and say this is exactly what happened (or how it happened).

Gostava de ir ao filme e tentar perceber se acha que ele é objectivo, se acha que o que lá está, lá está? Imagino as imagens a serem deturpadas (pela polícia), visto que o polícia teve uma sentença leve e saiu rapidamente da prisão. Será que tendo visto tanto, não vimos o suficiente para conseguirmos dizer com certeza “isto é exatamente o que aconteceu?”

BM — Just to play devil’s advocate, and devil, in this case, being the officer who shot the 37-year-old barber walking back from work on a Saturday night. Those are very rough streets and you can’t show weakness, with a different character this could’ve turned out differently. In defense of the police, they do have to make split-second decisions, in this case, they created the situation where they had to make that split-second decision, there was no reason this needed to escalate. I also think that footage shows the cop arriving with his hand on his gun, as do two other officers, and he’s ready to go, as soon as the victim goes between the car, he pursues him with the gun, and it’s only then that you see Augustus reach for his gun, in reaction to this cop, he knows he’s going to die anyway, what else can you do? I think it does show that. I do think he got off easy, Augustus didn’t have a family that was in support of him, it wasn’t a law case brought by an aggrieved family, he was a loner, and people didn’t know him that well, that weren’t a lot of people lobbying on his behalf. The police thought that the fact that he showed a gun and he might’ve been reaching for it was enough of a grey area that they could run for cover.  I think there’s no question in my mind that it objectively shows that they created that situation. 

Para ser advogado do diabo, sendo o diabo o agente da polícia que matou o barbeiro de 37 anos que voltava para casa do trabalho num sábado à noite, aquelas ruas são complicadas, não se pode mostrar fraqueza, com um personagem diferente isto podia ter sido diferente. Em defesa da polícia, eles têm que tomar decisões em segundos, neste caso, foram eles que criaram a situação em que precisaram de agir em segundos, não havia razão para escalar a situação. Também acho que as imagens mostram que o polícia aparece com a pistola na mão, tal como dois outros, ele está ready to go – assim que a vítima corre entre os carros, em reação aos polícias, ele persegue-o com a arma e só nesse momento é que se vê Augustus esticar-se para a arma, novamente em reação a este polícia. Ele (Augustus) sabe que vai morrer, que mais podia fazer? Eu acho que mostra isso. Também acho que a polícia se safou. O Augustus não tinha família para o apoiar, isto não foi uma acusação legal de uma família ressentida, ele era solitário e as pessoas não o conheciam muito bem, não havia gente a fazer lobbying por ele. A polícia pensou que o facto de ele mostrar uma arma e talvez estar a tentar alcançá-la seria área cinzenta suficiente para correr para abrigo. Não tenho dúvidas que o filme mostra objectivamente que eles é que criaram aquela situação.

DA — How did you come across this footage? 

Como é que encontrou estas filmagens?

BM — A friend of mine named Jamie Kalven, who’s a journalist in Chicago had actually filed a case against the Chicago Police Department to sue for the dashboard cam of the Laquan McDonald case, that happened in 2014. So it was really because of his efforts and another journalist that this law was passed, whereby the Chicago PD had to release the footage. With the Invisible Institute, they collaborated with Forensic Architecture from London and digitally recreated what had been enacted, reenacting those scenes using the existing footage and with that created 6 different vídeos that contextualize this incident in different ways. When Jamie wrote about it he referred to some of the footage in footnotes, which sent me to the archive, and by reviewing all of the footage that was in the archive that had been uploaded by the Chicago Police Department, I started to understand this as a story that could be told in a different way. It was really through Invisible Institute that I became aware of it. 

Um amigo meu chamado Jamie Kalven, um jornalista de Chicago, tinha aberto um caso contra o Departamento da Polícia de Chicago, processando-os pelas filmagens do tablier no caso Laquan McDonald, que aconteceu em 2014. Na verdade, foi por causa do esforço dele e de outro jornalista que esta lei foi aprovada, na qual a Polícia de Chicago tem que libertar as filmagens. Em conjunto com o Invisible Institute, colaborámos com a Forensic Architecture de Londres e recriou-se digitalmente o que tinha ocorrido, recriando as cenas usando as filmagens existentes. Com isso fez-se os 6 vídeos que contextualizam este incidente de maneiras diferentes. Quando o Jamie escreveu sobre o que aconteceu, referenciou algumas das filmagens em rodapé, o que me apontou para o arquivo e ao rever as filmagens que estavam no arquivo, carregadas para a internet pela Chigado PD, comecei a perceber que esta história podia ser contada de um modo diferente. Mas foi pelo Invisible Institute que conheci o caso. 

Diogo Albarran e Vasco Muralha

Susana Nobre: “Não tenho uma visão determinada, ideologicamente, mas terei tendência a fazer filmes com finais felizes.”

O tiquetaquear dos relógios relembram a passagem irrevogável do tempo, a memória daquilo que não volta mais, mas também a muito humana capacidade de reinventar a vida. Susana Nobre projeta essa capacidade através de Helena (Raquel Castro), autêntico espelho com quem esbate as fronteiras da realidade, da ficção e da memória pessoal e coletiva, não obstante Cidade Rabat (presente na secção Fórum da Berlinale) ser a sua primeira ficção apoiada num argumento escrito.

A autora dos recentes No Táxi de Jack (2021) e Tempo Comum (2018), títulos que também observam aqueles que tomam as rédeas do seu destino, propõe, desta vez, uma viagem conduzida pela interioridade de Helena, mulher que se vê forçada a lidar com as particularidades do luto da mãe. A realizadora filma com calma, ternura e generosidade, escapando, também na direção dos seus modelos, a qualquer sentimentalismo ou condescendência televisiva.

Como Susana Nobre, também Helena trabalha em cinema, cuidando de relações intercedidas por horários, dinheiro e outras ficções, motivando assim a observação sobre várias redes de relações de pessoas. Pelas aparições que se sucedem, não será descabido vermos Cidade Rabat também como uma carta de amor às pessoas e princípios da Terratreme, produtora de que Susana Nobre é uma das fundadoras.

A certa altura, quando Helena faz serviço comunitário no Clube Desportivo da Reboleira e Damaia, vários espelhos se refletem ao infinito – Helena, que víramos inicialmente a organizar figurantes para uma rodagem, aponta a câmara de filmar para a sua própria imagem, como que se redescobrindo protagonista, alguém que decide a vida que acontece a cada instante.

No rescaldo do visionamento de Cidade Rabat, seguiu-se uma entrevista a Susana Nobre conduzida pelos autores do Cineblog Kenia Pollheim, Flávio Gonçalves e Ricardo Fangueiro:

Ricardo Fangueiro: Cidade Rabat parece ser construído em torno da ideia de família e comunidade. Percebemos que é filmado com muitas pessoas que trabalham na produtora Terratreme, muitas caras conhecidas. Havia essa vontade de se focar na importância dos vários coletivos e comunidades onde nos inserimos?

Susana Nobre

Susana Nobre: Não, como intenção, penso que não. O filme tem alguns aspectos autobiográficos e em relação ao projeto, a escrita é focada em alguns aspectos da minha vida, que surgiu principalmente como ponto de partida, uma janela para a escrita do projeto. A sequência inicial da descrição do prédio existiu quase como uma espécie de filme autónomo que eu já queria ter feito, uma curta-metragem, uma memória descritiva do prédio da minha infância. Era exatamente capaz de me lembrar de cada pessoa que lá vivia, sabia descrever a casa delas, os nomes… Queria fazer esse exercício como filme.

Depois, também já tinha filmado algumas coisas no Clube Desportivo, mesmo ao lado do bairro da Reboleira, onde o Basil da Cunha costuma fazer os filmes dele, e onde eu também estive, efetivamente, a fazer trabalho comunitário. Eram coisas que eu já tinha até explorado com a câmara, tanto o prédio como a Reboleira. São coisas que eu depois acrescentei à história principal – da morte da mãe – e centravam na ideia do ritual da morte, da partida, a partir da minha experiência. [Juntei] estas coisas de uma maneira um pouco imprevisível, sem saber muito bem onde é que me iam levar em termos de narrativa e de correspondência entre as coisas. Acho que [a comunidade e o coletivo] estão lá, mas não através de intenções completamente dirigidas, nem controladas.

Kenia Pollheim: A Susana falou de um trabalho autónomo sobre as portas e histórias, e é assim que começa este filme. Achei interessante vermos as memórias da personagem principal com as portas e o rasgo dessa memória no papel da mãe. Pode falar-nos um pouco desse acto, do rasgo físico da memória? Parece-nos que as lembranças não têm o mesmo valor para a mãe e para a filha…

SN: Não sinto que os movimentos no filme estejam tão sublinhados, mas existe de facto esse movimento contraditório entre a mãe que quer apagar o rastro dela, e a Helena, que tenta resgatar alguma coisa da sua própria vida. Penso que a personagem projeta-se já na vida da mãe, num lugar que sabe que em breve ocupará. Não são conceitos que tenha trabalhado de uma maneira muito direta mas que existem, de facto, no filme.

Flávio Gonçalves: A personagem trabalha em cinema como produtora, cuida dos horários e vê-se uma ligação com os relógios que vão aparecendo no filme: o tempo, a morte… Quando aparece o trabalho comunitário no Clube Desportivo, há uma ligação da montagem do ponto de vista da realização com a personagem, até chegarmos ao momento em que a personagem se filma ao espelho. Acha que a Helena é uma personagem que se esquece de si própria, demasiado atenta em organizar a vida dos outros, mas que se vai esquecendo?

SN: Sim, penso que esta personagem, quando a encontramos, é uma pessoa que aparece sempre em reação às coisas, a resolver problemas numa certa cadeia produtiva do quotidiano. Penso que, quando aceita o trabalho comunitário, existe esse desejo de fazer qualquer coisa que está fora dessa cadeia [e acho que é isso] que a leva a aceitar, ainda de uma forma um pouco incerta, o trabalho comunitário, para ter esse espaço de atenção. Ela esteve naquele bairro a trabalhar como produtora, com relações muito mediadas pelo dinheiro, e o bairro aparecia como décor. Depois volta com um outro olhar sobre aquela comunidade. Isso também era uma coisa que eu queria ter destacado no filme.

Em relação aos relógios, isso sim foi uma coisa muito de argumento. A ideia de que, quando entramos em casa da mãe, estamos sempre a ouvir o relógio, o tempo, cada minuto é importante. Assim, quando chegamos ao fim do filme, o tempo parou, o relógio está tombado. Já são coisas que têm mesmo a ver com a estrutura do filme.

KN: Essa questão de que a vida continua… No Tempo Comum (2018), há o nascimento de uma criança e nós vemos os passos da reinserção dos novos pais na vida social, numa pequena casa em Lisboa, com os amigos e família… Não sei se é propositada ou não, mas há a contraposição do nascimento desse filme com a morte em Cidade Rabat, mas principalmente a ideia de que há muito mais para além do que nos acontece. A vida continua e as coisas vão-se desenvolvendo sem o nosso controlo e isso é enfrentado neste filme de uma maneira muito contida. Vemos a Helena muito tensa, mas sem muita preocupação com o que vai fazendo. As coisas parecem até um pouco [desajeitadas] quando finalmente explodem como na cena da dança ou nos momentos informais com a sua equipa de produção.

Cidade Rabat, de Susana Nobre © Paulo Menezes

SN: É a ideia desta mulher que esteve num ambiente de doença, de morte, que teve uma necessidade enorme de viver outras experiências, e é isso que a leva a ter uma série de impulsos que a põem numa espécie de euforia, de querer viver a alegria do mundo. Ela quer sair daquele universo mórbido. Quer, de certa maneira, acreditar na vida. A ideia de alguém que viu a morte de perto e que precisa de voltar a acreditar. Acho que ela tem essa euforia e, por um lado, acho que há uma ligeira evolução na sua vida e, quando chegamos ao final do filme, não é que tenha havido uma grande evolução, mas sabemos que ela talvez esteja já preparada para viver qualquer coisa de novo, mesmo que não saibamos o quê.

FG: Talvez através do cinema?

SN: Não sei… Ela faz cinema, mas podia fazer outra coisa… Podia escrever, por exemplo. É mais essa ideia de fazer qualquer coisa que tenha a ver com uma vida mais contemplativa.

KN: Isso nota-se já no trabalho com a comunidade no ato de filmar o Clube Desportivo em si.

FG: E há, no filme, uma visão do mundo acolhedora. Não há grande hostilidade entre as pessoas. Talvez esse acreditar na vida possa vir através dos outros, no dar atenção aos outros como já acontecia com a mãe? Os modelos que usou também fazem parte da vida da realizadora, está tudo muito unido, certo?

SN: Sim, há uma composição. É um filme de ficção, é tudo sempre ficcional, mas as coisas partem de experiências da vida que são, depois, muito elaboradas.

FG: E faz-lhe sentido isso de ser acolhedor? Quando se faz um filme, está a criar-se uma certa visão do mundo, um ideal. Neste filme só me lembro de um momento em que se sente uma falta de segurança, um mundo não tão ideal… Ou isto é simplesmente uma coincidência das pessoas que a rodeiam?

SN: Não tenho uma visão muito determinada, ideologicamente, no filme. Não estou a defender nada, estou a juntar as peças e ver o que comunicam entre si. Terei uma tendência, talvez, em fazer filmes com final feliz, apesar de atravessarem depois coisas muito duras. Mas isso talvez já venha da minha personalidade.

FG: Quando se olha ao espelho, há uma certa calma. O filme pode ser intranquilo, mas revela um modo de estar no mundo… Essa ideia de se esquecer de si mesma também estava presente no argumento, na ideia para a personagem?

SN: Sim, acho que há um apontamento auto-reflexivo, mas podem fazer vocês a psicanálise. [Risos]

RF: O filme marca o ritmo do quotidiano, como foi esse trabalho na montagem? A Susana esteve muito presente, foi importante para intensificar esse ritmo?

SN: Estive muito presente. Foi uma montagem bastante feliz. [Cidade Rabat] foi um filme de argumento, montámos a partir do argumento. Não houve um arranjo em termos de ritmo para dar nuances diferentes. Foi mais um trabalho de economia, retirar o que pudesse interromper o filme, foi mais essa a orientação.

KN: Quanto ao trabalho da Raquel Castro, a relação que se criou entre realizadora e atriz e a forma como ela encarna esta personagem, de uma pessoa que está numa espécie de pausa na vida, é bastante intensa. Há também uma contraposição com os outros filmes, sendo o primeiro com argumento escrito, era algo de que sentia falta?

SN: Foi muito interessante, eu não vi mais ninguém. Foi um casting único, foi o André Silva Santos, assistente de realização do filme, que me sugeriu a Raquel depois de ter visto um vídeo com ela e eu achei que sim. O André já conhecia o argumento e achou que a Raquel seria interessante. Encontrámo-nos, conversámos, e havia algumas coisas da sua história de vida que me deram alguma garantia que havia um background bom para se trabalhar a personagem. O facto de ter sido enfermeira, de ser mãe… A partir daí tive uma confiança de que conseguiríamos fazer o trabalho juntas e avançarmos. Fiquei bastante satisfeita, acho complicado lançar expectativas com atores naqueles castings enormes, que são importantes, mas foi bom não ter de entrar nesse domínio. Fui muito feliz porque fez mais sentido assim, e fortaleceu a confiança da Raquel no trabalho.

O processo da Raquel com a personagem foi bastante vivo, não houve uma receita imediata do argumento que se impôs desde o início para ser executada na rodagem. Estava sempre qualquer coisa a funcionar, ela ia fazendo as suas tentativas. Nós rodámos dois meses, e a partir do meio da rodagem ela estava já quase completamente autónoma.

FG: E já está a ser pensado um próximo filme…?

SN: Sim, já há uma ideia. Gostava muito de continuar do trabalho com a Raquel, ainda neste trilho da vida de uma mulher…

Flávio Gonçalves, Kenia Pollheim Nunes e Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Cidade Rabat, de Susana Nobre © Paulo Menezes]

CINEblog de regresso à Berlinale!

Foi com o objetivo de realizar um workshop de crítica de cinema para garantir a cobertura da 72.ª Berlinale que, com o apoio do IFILNOVA, nasceu o CINEblog. 

Este ano, regressamos às origens — um novo grupo de alunos de mestrado da FCSH foi selecionado para trazer as novidades da 73.ª edição de um dos mais conceituados festivais de cinema do mundo.

Sob orientação do Paulo Portugal e coordenação global do professor Paolo Stellino, serão o Flávio Gonçalves, a Kenia Pollheim Nunes, o Ricardo Fangueiro e o Vasco Muralha a assinar análises de filmes, notícias e entrevistas, estabelecendo  contacto com vários cineastas e trazendo o dia-a-dia da Berlinale ao Cineblog.

Acompanhem-nos no nosso site e redes sociais!

[Foto em destaque: © Internationale Filmfestspiele Berlin | Claudia Schramke]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #8

Há um profeta nas Olaias, tenham cuidado! (2021)

de Lucas Camargo de Barros

Há um profeta nas Olaias, tenham cuidado! (2021), de Lucas Camargo de Barros © Direitos Reservados

Portugal, 1911. A implantação da República traz consigo a liberdade religiosa e a aceitação de diversidade de credos. Na mata, A Brasileira traz de volta os mortos — quando não consegue ressuscitar uma criança, apaixona-se por sua mãe e faz disso sua missão. Um filme mudo, salvo alguns murmúrios e lamentos que lhe oferecem uma aura assombrada enfatizada pelo azul monocromático, Há Um Profeta Nas Olaias, tenham cuidado! é um filme de amor e de mortos que junta tradicional e moderno num passado quimérico.

Kenia Pollheim Nunes

Os Tempos Conturbados (2021)

de Carlos Alberto Tavares Pedro

Os Tempos Conturbados (2021), de Carlos Alberto Tavares Pedro © Direitos Reservados

Censura, medo e uma nova realidade. Através das palavras de Filomena Lopes, regressamos organicamente a uma Angola recém-independente e a todo o seu poder monumental, capacidade destrutiva e esperança transformativa. Ritmicamente, um conjunto de fotografias agem enquanto testemunhos de um passado vivido, harmonizando o som da voz com a sua potência visual. Assim, Os Tempos Conturbados percorre esta experiência coletiva ao salientar uma das várias histórias pessoais que dela fizeram parte. Dando uma cara aos eventos e aos sentimentos, Carlos Pedro abre um baú geracional de desalento e frustrações, criando um ambiente para, como Filomena espera, os seus espectadores “saberem o que é que é Angola! Mas as histórias verdadeiras.”

Margarida Nabais

Isthmus, a Narrowing of Land (2022)

de Mara Chavez

Isthmus, a Narrowing of Land(2022), de Mara Chavez © Direitos Reservados

“Somos os frutos do vento – e fomos semeados, regados e cultivados pela sua mestria.”

Uma História Natural do Vento, Lyall Watson, p. 18

Em Isthmus, a Narrowing of Land, a câmara aparentemente móvel de Mara Chavez, obedece a um único princípio de movimento – o vento. Amorfo, invisível, o vento é a mais vital das presenças para as populações indígenas Zapotec e Ikoots, que habitam Isthmus, e sem ele não podem sobreviver. Sob a ameaça da exploração capitalista do seu território, que invade o horizonte da imagem com eólicas, alegadamente motivada pela procura de energias sustentáveis, a luta destes povos tem no mar e na terra, fontes essenciais da sua subsistência, os seus maiores aliados. A poética visual, aliada à experimentação sonora, deixa ecoar no filme, como num sussurro de um segredo que o vento anuncia, a sabedoria ancestral indígena sob o risco do seu desaparecimento junto com o desaparecimento da terra que dá solo ao seu povo.    

Cátia Rodrigues

Love, Death and Everything in Between (2022)

de Soham Kundu

Love, Death and Everything in Between (2022), de Soham Kundu © Direitos Reservados

O luto é das mais dolorosas e marcantes experiências humanas, um movimento simultaneamente consciente e inconsciente do confronto com a finitude, sendo por isso, uma extensão, ou projecção, da nossa própria morte. Assim, a morte de um filho é sempre prematura, sendo esse luto, o mais inaceitável de todos. A partilha do luto não o facilita, porventura ainda o complica, pois nem todos lutamos do mesmo modo. Esta batalha, antes de ser partilhada, é individual — este é o movimento tripartido do filme, a confluência de três lutos distintos: a mãe, o pai e a namorada. Cada um, primeiro, de seu modo individualizado, atende às suas próprias feridas, sofre a sós, para apenas depois sofrer em conjunto. Nessa reunião da dor e da ausência, encontramos a renovada vontade da presença, por fim o gesto de paz e silêncio possíveis. 

Diogo Albarran

Lugar Nenhum (2021)

de Pedro Gonçalves Ribeiro

Lugar Nenhum (2021), de Pedro Gonçalves Ribeiro © Direitos Reservados

A voz silenciosa que paira sob a aura azul magnética de Nowhere conduz-nos num solilóquio partilhado, atingido por uma avalanche de perguntas que se instalam num deserto de respostas. Perante a colouer des notre rêves, aqui coletivizando o tal quadro de Miró, há um espaço infinito de introspecção, de liberdade para questionar a própria liberdade e a melancolia que esta inerentemente acarreta dentro do espaço queer. Cada passo dado em frente aparenta impulsionar um novo obstáculo, estendendo o caminho a percorrer num túnel solitário.  

Assim, meditando sobre o estado da identidade dos homens gay no novo milénio, Pedro Gonçalves Ribeiro desvenda com este filme-ensaio as contradições e ambiguidades que vêm com ela, a sua representação nos media, a prática do cruising e até uma simples música. É a evocação de um apelo extenuado, mas intimorato, pela aceitação e a manifestação da diferença. Tudo, evidentemente, ao som da eterna questão de Cher – Do you believe in life after love?

Margarida Nabais

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Lugar Nenhum (2021), de Pedro Gonçalves Ribeiro © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #7

Espelho Eu (2022)

de Beatriz Alves Ribeiro

Espelho Eu (2022), de Beatriz Alves Ribeiro © Direitos Reservados

A primeira curta-metragem de Beatriz Alves Ribeiro é uma fantástica estreia, que revela desde imediato um grande domínio imagético, rítmico e crítico. O filme confronta a noção de ser mulher nos anos 70 em Portugal, a partir dos livros Enciclopédia da Mulher, tecendo uma profunda crítica a uma imagem absurda e desajustada aos padrões de hoje. A crítica é, de certo modo, autossuficiente, no sentido em que a mera recontextualização dos livros para os dias de hoje é suficiente para perceber o absurdo dos padrões e expectativas que tornavam a mulher um ser dependente – da casa, dos filhos, do marido, da família, etc. A mulher era assim apresentada de um modo serviçal – compreendendo-se a mulher perfeita como uma fada do lar. Partindo do passado e ajustando-o ao presente, o filme questiona também essa mesma evolução, o que é ser mulher hoje e o que será amanhã. Será possível um futuro livre dos fantasmas do passado-presente?

Diogo Albarran

Punkada (2022)

de Gonçalo Barata Ferreira

Punkada (2022), de Gonçalo Barata Ferreira © Direitos Reservados

É no meio de um descampado com uns barracões, onde está estacionado um velho e podre autocarro, que Punkada decorre. Os décors, adereços e guarda-roupa remetem para outra década do século passado, procurando retratar o quotidiano decadente dos Biqueira d’aço, uma banda punk em autodestruição. 

Tentando fazer jus ao conteúdo da história, o filme tenta também ser punk na sua forma. Disperso em sequências desconexas, num fluxo de imagens onde salta à vista a película 16mm, Punkada serve-se de um bom domínio da técnica (recorde-se que o filme é uma produção da Universidade Lusófona) para enfatizar a energia da banda e guiar o espectador num delírio musical.

Ricardo Fangueiro

Night By Night (2021)

de Jules Mathôt

Night By Night(2021), de Jules Mathôt © Direitos Reservados

A noite é azul e a lua é amarela. Night By Night poderia ter sido inspirado no quadro “A Noite Estrelada” de Van Gogh, para onde a nossa mente divaga naqueles que são os planos de animação artesanal do filme: as ruas e os prédios noturnos. À la Janela Indiscreta de Hitchcock, o filme revisita o cinema noir e inspira-se em filmes americanos de culto.

Um detetive privado é contratado para investigar um pianista misterioso. O ver e ser visto são as questões essenciais deste filme, que destaca objetos que servem para espiar (ver ainda mais) como binóculos, e outros como um revólver, um rádio, um telefone, e uma máquina de escrever. Há uma preocupação do realizador em destacar os aspectos visuais do filme, quer os seus objetos, quer as suas cores. E são as próprias cores que fazem a ponte com a música jazz, se pensarmos nos quadros, com destaque para a cor azul e amarela, de Piet Mondrian. O jazz contribui para a estética do noir, e é parte essencial da personagem que o detetive espia.

Night By Night apoia-se e inspira-se em muitas referências fortes e reconhecíveis do espectador, o que o torna apetecível aos olhos deste.

Inês Moreira

In a kinda ordinary system (2021)

de Mikołaj Piszczan

In a kinda ordinary system (2021), de Mikołaj Piszczan © Direitos Reservados

Como seria nascer e morrer na Polónia, durante o regime comunista da 2ª metade do séc. XX? E como seria o intervalo entre o choro inaugural e o suspiro final?

Na tradição do cinema russo da década de 1920, In a kinda ordinary system é uma sinfonia, não da cidade, lembrando Dziga Vertov, mas da existência mais simples, desde o seu primeiro momento até ao seu inevitável desaparecimento, naquele que foi possivelmente o mais complexo dos regimes políticos e sociais. Realizado inteiramente a partir de imagens de arquivo, a montagem, herdeira e aprendiz do cinema de Sergei Eisenstein, deixa entrever pelos diferentes estádios da vida as contingências impostas pelas ideias de ordem, disciplina e obediência que regiam a relação entre o cidadão e a sociedade comunista polaca. Haveria à data outro modo de lhes escapares que não caminhar em linha recta em direcção à morte, na esperança de um recomeço, em liberdade, para e do comunismo? 

Cátia Rodrigues

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Night By Night(2021), de Jules Mathôt © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #6 

Wings for Butterflies (2021)

de Tilly Wallace

Wings for Butterflies (2021), de Tilly Wallace © Direitos Reservados

Nesta curta-metragem, uma animação produzida a partir de pinturas sobre vidro mergulha-nos em campos etéreos. Numa floresta embebida de tinta violeta, o filme impressionista, quase-abstrato e com transições como que líquidas entre planos, faz parecer, por vezes, que aquele mundo retratado se trata de um devaneio pessoal. Na verdade, as suas árvores têm raízes muito firmes e reais — poderiam ser as Sequóias-vermelhas nas costas californianas, em perigo de extinção. Também a personagem humana poderia ser histórica — quem sabe não se chama Julia Butterfly Hill? Num movimento contrário, porém, o mérito de Wings for Butterflies é demonstrar que, mais do que uma fantasia que poderia ser real, o real é, também, na sua própria concretude, místico, inspirador e vivo

Laila Nuñez

Night Visit (2021)

de Mya Kaplan

Night Visit (2021), de Mya Kaplan © Direitos Reservados

A meio da noite, Ruthie é surpreendida em casa pelo guarda noturno que diz ter ouvido um barulho. Reconhecendo-o de vista e atraída por ele, aproveita o momento para o seduzir e os dois acabam por se envolver. Tudo se adensa quando, perante a confusão lá fora, ele resolve sair à pressa.

Numa busca angustiante pela verdade, a protagonista entra em conflito com aquilo que sente, procurando equilibrar o amor com a necessidade de confrontar o rapaz. 

Mya Kaplan mostra uma capacidade de construir uma forte tensão dramática, resultando numa obra fulgurante de cariz psicológico.

Ricardo Fangueiro

Mar de Azul (2022)

de Juan Carlos Ballesteros 

Mar de Azul (2022), de Juan Carlos Ballesteros © Direitos Reservados

“(…)

mas levamos anos

a esquecer alguém

que apenas nos olhou”

José Tolentino Mendonça, Calle Principe, 25

Prelúdio junto ao mar. Que pode um encontro contra a vastidão do tempo? Uma série de fotografias procura na palavra a cristalização do berço originário, os braços da mãe que se retêm na memória como o instante inteiro de felicidade. 

Em Mar de Azul, Juan Carlos Ballesteros escreve-nos para travar o avanço do tempo, fugidio por natureza como o é o breve encontro por entre pinturas e desenhos a que pétalas azuis roubaram a sua atenção, deixando-o escapar. Mas, não fossem elas, e no lugar daquele que nos olhou restaria apenas o recorte vazio da sua ausência, como se nunca ali estivesse estado. 

Cátia Rodrigues

Alaúde (2021)

de João Pedro Barbosa Magalhães

Alaúde (2021), de João Pedro Barbosa Magalhães © Direitos Reservados

A música é um dos grandes mistérios deste nosso planeta, uma vibração sonora que se sente, uma ligação ontológica que parte de uma necessidade inidentificável, de expressão quase abstracta. A música pode representar tudo e nada, representa para quem toca, mas também para quem ouve. É esta a simples, mas muito forte descoberta do pequeno protagonista António, que é apanhado de surpresa quando um rancho folclórico tradicional passa em frente a sua casa, tocando e dançando. Este pequeno momento é o catalisador de todo o filme, movendo a acção e plantando uma semente em António, que irá agir de um modo inesperado. A curiosidade e a necessidade de aprofundar este novo contacto levam-no a cometer um erro, o que não seria problemático se, embora a tenra idade, António não partilhasse já de tantas responsabilidades em casa. O seu pai, Victor, conta com o filho para o ajudar em todas as tarefas, ensinando-o a viver através da projeção da sua própria vida na do filho, uma educação através do contacto. É central também a este filme a noção de aldeia, comportando ela também uma ideia de tradição, muito viva nas aldeias, mas moribunda nas cidades. Com efeito, muito do charme do filme reside neste cenário de aldeia, de quem vive de forma isolado e precária, com poucos contactos, mas com grande noção de tradição e continuidade – António é, de certo modo, uma extensão do seu pai. Apesar de alguma rigidez educativa, no final vemos um grande vislumbre de compaixão e compreensão – não são precisas muitas palavras quando se tem música.

Diogo Albarran

Filme de Quarto (2021)

de Raffaella Rosset

Filme de Quarto (2021), de Raffaella Rosset © Direitos Reservados

“Quanto tempo desmorona um prédio?” pergunta-nos a mulher que habita um apartamento no centro de São Paulo, a 110 metros do chão, por baixo do João e por cima da Dona Magli. Este está quase vazio, apenas existe uma poltrona, diversos garrafões de água, tanto cheios como vazios, e um projetor que dá ver imagens do apartamento que pertencem a outros tempos e parecem deixar saudade. Entretanto o mesmo é invadido por uma inundação.

Tiago Leonardo

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Filme de Quarto (2021), de Raffaella Rosset © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #5  

Ready-made (2022)

de Corentin Courage

Ready-made (2022), de Corentin Courage © Direitos Reservados

Em março de 2021, o Ministério da Justiça francês anunciou a construção de uma prisão às portas da pequena cidade de Crisenoy, perto de Paris. Na altura, e até ao início deste ano, acendeu-se um grande debate em torno da legitimidade da decisão, firmemente repudiada pelos habitantes da comuna. As suas reivindicações eram mais do que justas — para que a nova penitenciária pudesse acolher 1000 lugares, 20 hectares de terras agrícolas teriam de ser ocupados; além disso, preocupavam-se com a própria segurança, serenidade e com a queda na especulação imobiliária da região. 

Ready-Made, de Corentin Courage, leva-nos a inquietações ainda mais estruturais: qual é a verdadeira utilidade de uma prisão? Porque a tomamos como uma instituição de existência óbvia, inquestionável? Com claras influências da teoria teatral de Brecht e do cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, a penitenciária é, aqui, levada ao seu extremo banal. Torna-se uma espécie de jogo da macaca. Denunciando a sua uniformização arquitetónica e sistêmica, a curta-metragem explora a prisão enquanto objet trouvé, incontestavelmente normalizado e excessivamente reproduzido.

Laila Nuñez

Mergen (2020)

de Raiymbek Alzhanov

Mergen (2020), de Raiymbek Alzhanov © Direitos Reservados

Mergen é filho do guerreiro Akbar e, ao deparar-se com uma Ásia dividida e devastada pelo conflito, vê-se na obrigação de substituir o seu pai ausente. Este é um filme que se vê envolto em camadas ritualísticas e espirituais, e que conta com cenários e figurinos que denotam este ambiente de magia antiga. A avó de Mergen é o pilar da família: é ela que dá força ao neto para conseguir enfrentar os soldados e é também ela que lhe permite ver aquilo que ele não conseguiria ver num estado normal. Sentimos uma sobrecarga emocional muito grande e um sentido de proteção que vem de todos os elementos desta família: a avó quer proteger o neto; o neto quer proteger a mãe; a mãe quer proteger os soldados feridos. Neste sentido, é interessante ver como as fortes figuras femininas inspiram este pequeno rapaz, e o fazem ser muito mais do que apenas “filho de guerreiro”. 

É, portanto, a ideia de coletivo e de sacrifício pelo coletivo que estão no centro desta curta-metragem do Cazaquistão, que se realça pela beleza da sua fotografia.

Inês Moreira

ELLE (2021)

de Alexandra Kurt

ELLE (2021), de Alexandra Kurt © Direitos Reservados

Elisabeth, ou Elle,  é uma mulher na casa dos 50 anos, com uma vida e um casamento estagnados que passa por uma enorme mudança quando é desafiada por Júlia, uma estudante de cinema, a ser protagonista do seu mais recente filme. Acompanhamos Elle, Julia, e colegas de quarto da mesma, num dia de verão cheio de alegria que se transforma numa jornada de redescoberta; como diz Júlia, “Ela não está perdida”. 

A saída da rotina e da estagnação do dia-a-dia faz com que Elle se torne não só a protagonista do filme de Julia mas da sua própria vida.

Tiago Leonardo

Transportation Procedures for Lovers (2021)

de Helena Estrela

Transportation Procedures for Lovers (2021), de Helena Estrela © Direitos Reservados

Onde fica o amor com a distância? No isolamento provocado pelo Covid-19. Como nos transportamos para junto dos nossos entes queridos quando a Fedex se recusa a transportar qualquer tipo de corpo? São essas as questões que este irónico exercício de correspondências efetuado durante a quarentena se propõe a responder.

Esta investigação sem grandes conclusões entende apenas que às vezes os corações podem colapsar como a economia.

Tiago Leonardo

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Transportation Procedures for Lovers (2021), de Helena Estrela © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #4 

My thoughts are going to end me (2022)

de Weronika Nowacka

My thoughts are going to end me (2022), de Weronika Nowacka © Direitos Reservados © Direitos Reservados

Qual analogia melhor daria conta de nos fazer compreender o interior do nosso cérebro, esse espaço onde se alojou, historicamente, o intelecto e o ato de pensar? Weronika Nowacka tenta algumas das mais habituais: gavetas, uma malha de redes, um computador, um jogo de tabuleiro, um labirinto, uma prisão. A figura da clausura implica, porém, a possibilidade do seu contrário — a fuga para a liberdade. Não é este o caso. Em My thoughts are going to end me, a realizadora polaca descreve este tão conhecido conflito entre nós e os nossos pensamentos, como se se tratasse de agências distintas, autónomas, num jogo de poder onde a mente é sempre a vencedora. A tentação irrefreável de escapar à sua velocidade e manipulação é sempre frustrada. Haverá solução? Será pela via racional? Poderia a imaginação de uma nova paisagem mental — em vez de gavetas num depósito empoeirado, grãos de areia macios numa praia quente, por exemplo — transformar, também, a forma como lidamos e reconciliamo-nos com a nossa consciência repudiada?

Laila Nuñez

Anok (2022)

de Laura Duarte Pires

Anok (2022), de Laura Duarte Pires © Direitos Reservados

Confrontando-nos com uma técnica e narrativa bastante simples — sobre a qual não deixamos de nos perguntar se motivada por uma identificação individual com a personagem —, Laura Pires nos guarda, não obstante, um final surpreendente e provocador. Desafiando este que é ainda um dos grandes tabus de género, alegadamente pouco discutido mesmo dentro das militâncias feministas, a realizadora transmuta a conhecida máxima de Espinosa para lançar ao público o questionamento: o que pode o corpo envelhecido

Laila Nuñez

A Wish Beyond Death (2022)

de Anna Maria Leventi

A Wish Beyond Death (2022), de Anna Maria Leventi © Direitos Reservados

Um humilde carteiro que fez do ofício o seu próprio nome — “the Postman” — é interrogado sobre a sua vida. A princípio, o seu quotidiano parece pacífico, ordinário e repetitivo. Todos os dias, leva as suas cartas a cada porta das Colinas do Deserto; todos os dias, através da sua janela, observa, também, a Mulher Areia a dançar pelo povoado. O desaparecimento repentino desta figura feminina e mitológica que habita as suas lembranças traz-lhe o vazio da saudade e o terror de uma morte, talvez, mais violenta do que se imaginava. Valendo-se de diversas técnicas visuais, combinadas a um trabalho de voz e composição sonora, a realizadora grega Anna Maria Leventi arrisca a criação de uma narrativa a partir do desenvolvimento de um único personagem, que pode provar-se capaz de muito mais do que apenas entregar cartas. 

Laila Nuñez

A Maior Gaiola do Mundo (2022)

de Marta Ribeiro e Catarina Colaço

A Maior Gaiola do Mundo (2022), de Marta Ribeiro e Catarina Colaço © Direitos Reservados

Confinado numa gaiola, um pássaro espreita por entre grades a dor do mundo que aflige a dança e o ciclo da vida, toda a solidão, a nostalgia e a saudade que atravessam gerações. Após um debate tentador com a sua própria sombra, o pássaro conquista, finalmente, a liberdade dos céus — apenas para aperceber-se cativo numa gaiola ainda maior, do tamanho do mundo.

Laila Nuñez

Olive and Otis (2022)

de James Leong Holston

Olive and Otis (2022), de James Leong Holston © Direitos Reservados

Um filme de terror em estilo de animação CalArts, Olive and Otis entrega, em cores contrastantes e movimentos adstritos, uma história de descamação. Inspira-se em clássicos de terror como Carrie e no body horror de Cronenberg para narrar o processo labiríntico do descascar de uma pele antiga e a instalação numa nova. A dismorfia corporal e a transição de género são aqui exploradas de maneira sufocante, com uma banda sonora que faz lembrar as notas de Angelo Badalamenti, contribuindo para o mergulho na angústia de Otis que, em flashes, encara o seu duplo e o palimpsesto de um “eu” de outrora.

Kenia Pollheim Nunes

Alien Human (2021) 

de Wen Pang

Alien Human (2021) , de Wen Pang © Direitos Reservados

Na mente dos outros, todos somos extraterrestres, e este filme é uma tentativa de chegar à mente dos “outros”. Partindo de uma tira de banda desenhada (Wang Yuewei) composta por quatro histórias diferentes (“Pearl”, “Goldfish”, “Sea” and “Hole”), esta animação propõe-se a entrar na mente de um extraterrestre. A dada a altura, o narrador questiona se a espécie humana é a única capaz de causar dor psicológica entre os seus, realçando a visão que se pretende aqui procurar sobre a nossa espécie, aos olhos de um extraterrestre. Num tom sereno e poético, o filme lembra um pouco a série The Midnight Gospel na tentativa de aliar uma visão filosófica a imagens surreais, desta feita, através de poemas. 

Ricardo Fangueiro

Wonderfully Made (2022)

de Joseph Hoh

Wonderfully Made (2022), de Joseph Hoh © Direitos Reservados

Numa caverna como a de Platão, onde as sombras pintam as paredes criando uma galáxia infinita, lança-se o mote a Wonderfully Made. A animação em 2D, pela mão de Joseph Hoh, esculpe o pequeno Nino, as incríveis constelações, e a paisagem estonteante que este passa a conhecer, mas só a partir do momento em que esconde a sua maior insegurança. Esta jornada de Nino pelas maravilhas do Universo é uma ode à criação e à aceitação, mostrando quão mais bonito é o mundo quando a capacidade de abraçar as “imperfeições” supera os muros que se erguem à volta de inseguranças.

Kenia Pollheim Nunes

Dear Yeda (2022)

de Renata Pereira

Dear Yeda (2022), de Renata Pereira © Direitos Reservados

Dear Yeda, por Renata “Renny” Pereira, é prova da intimidade que partilham o cinema e os processos de rememoração. Em apenas dois minutos, e a partir de pequenos amuletos que conjuram as lembranças passadas – uma xícara, um azulejo, a letra cursiva, o cheiro amanteigado, uma pequena escultura de um veado em madeira –, o filme se desenrola como uma epifania lírica e sinestésica: uma memória, ela mesma. Entre arquivo e desenho, entre o familiar e o universal, costura-se um passado contaminado pelo presente e pelo futuro. É assim que, nesta espécie de filme-carta-testamento, o gesto de Renny é, em última instância, o de animar a memória perdida e devolvê-la à sua avó.

Laila Nuñez

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Dear Yeda (2022), de Renata Pereira © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #3 

to you(th) (2022)

de Mira Merheb

to you(th) (2022), de Mira Merheb © Direitos Reservados

“Se recebesses um bilhete de avião para qualquer outro país e o voo estivesse marcado para amanhã, fazias as malas e partias imediatamente para o aeroporto?” É esta pergunta proferida pela realizadora ao seu parceiro que abre to you(th) e desencadeia um diálogo aberto e honesto sobre o presente e o futuro. Para qualquer outra pessoa, seria uma proposta simples. Para eles, pode significar a promessa de um amanhã. Alain e Mira, libaneses, refletem sobre o medo e a instabilidade que regem os seus dias, questionando-se como será possível dizer adeus às pessoas e aos lugares que lhes são caros ao mesmo tempo que acolhem uma nova realidade, que certamente também será dura. A curta-metragem forma-se, assim, como uma despedida cautelosa às caras e aos cenários que a cineasta terá de eventualmente deixar para trás, de mão dada àquele que espera levar com ela. São memórias enlaçadas belissimamente, compostas de momentos de tom agridoce, sobre os quais a incerteza paira. 

Margarida Nabais

Mesa Posta (2022)

de Beatriz de Sousa

Mesa Posta (2022), de Beatriz de Sousa © Direitos Reservados

Um “documentário” que faz uso de um dispositivo diferente: uma narração que se acompanha de elementos visuais que ajudam na absorção da mesma. A narradora é uma contadora de histórias e nós somos os seus ouvintes. Contudo, o filme poderia ser outras coisas: uma performance, na qual poderíamos ter esta “contadora de histórias” ao vivo, ou podíamos, até mesmo, vê-la em loop numa instalação de um museu. É, para além da história que conta, um questionamento sobre a arte e as formas de fazer arte.

Mesa Posta conta-nos, através de gestos mundanos e simples, uma história de extrema violência entre dois elementos de um casal. Uma história de desamor, de preconceito e de machismo. Uma reflexão sobre o passado, o presente e o futuro, sobre religião e opressão, onde a mesa serve de base a isto tudo, como numa verdadeira casa de família. O visual segue o oral, e o oral apoia-se no visual. E cenas como uma violação são visualmente descritas como um esmagar de uma manga. 

Inês Moreira

Wetsuit (2022)

de João Salgado

Wetsuit (2022), de João Salgado © Direitos Reservados

Wetsuit é um filme capaz, que não só apresenta uma grande capacidade técnica, mas também um grande, ainda que por vezes desagradável, domínio narrativo. A adolescência passa naturalmente por cometer erros, por hesitações e inconsequências, o que acaba por vezes a saber a pouco quando filtrada por uma estética que lhe é tão oposta. A rudeza, infantilidade e, até violência, é-nos ainda assim transmitida, ainda que de outros modos, principalmente através de alguns mecanismos narrativos – que se revelam em momentos como o do “pastel-de-rata”, ou do grupo de rapazes a urinar para cima do fato do rapaz, ou, no final  do filme, com o rapaz a  desaparecer em direção ao mar de prancha na mão. O filme estabelece que algo de mau está ou vai acontecer, no entanto, isso não é suficiente, o incómodo não reside na insinuação, reside no confronto. Com efeito, é nestes três momentos de acção-reação que o filme se foca – três histórias, três rapazes, três fases diferentes da adolescência, três respostas ao confronto. A identidade fílmica gira em torno dessa adolescência surfista, do wetsuit (embora isso sirva mais como cenário/ambiente do que como motor da história, ainda que também o seja, quer isto dizer que o filme funcionaria noutro contexto). O mar joga, obviamente, um grande papel na curta, não só como lugar paisagístico, mas sobretudo como lugar afetivo – uma permanência e uma imanência. Um caos organizado que medeia sempre um antes e um depois, que primeiro separa para depois voltar a juntar.

Diogo Albarran

Ciervo (2020)

de Pilar Garcia-Fernandezsesma

Ciervo (2020), de Pilar Garcia-Fernandezsesma © Direitos Reservados

Ciervo revela-se como uma obra sensível e profundamente tocante. A animação de Pilar Garcia-Fernandezsesma segue a metamorfose de uma rapariga num universo familiar que oscila entre a sensibilidade do lado materno e a hostilidade da figura paterna. Sem recorrer a nenhum diálogo, mas simplesmente retratando o quotidiano de uma família através dos seus gestos e acções, contando com um desenho de som vital para a envolvência do filme, percebemos, numa ligação alegórica entre a criança e os cervos, o ambiente que a rodeia e molda a sua sensibilidade. 

Ricardo Fangueiro

Dogs do not eat grass (2022)

de Júlia Bagossy

Dogs do not eat grass (2022), de Júlia Bagossy © Direitos Reservados

Uma sessão de terapia com “O Beijo” de Gustav Klimt como pano de fundo parece-nos à partida sugestivo. Torna-se ainda mais quando, a meio, o psicoterapeuta enumera uma série de “lésbicas famosas”, uma estratégia no mínimo caricata no que se revela uma senda para a autoaceitação. Quando o barulho do pedal da bicicleta é sinónimo de mágoa e pede-se a Deus coragem para enfrentar um olhar fulminante, estamos perante ao que parece tratar-se de uma história de (des)amor, em que Berci, o cão, revela-se um fiel escudeiro. 

Kenia Pollheim Nunes

No Fim do Mundo (2021)

de Abraham Escobedo-Salas 

No Fim do Mundo (2021), de Abraham Escobedo-Salas © Direitos Reservados

É entre ruína e escombros que Cecílio traça a sua rota diária, em biscates como vender carcaças de eletrodomésticos abandonados. “A droga é o meu trabalho”, diz a certa altura do documentário, e é aí que percebemos que de nada vale o flyer sobre “ultrapassar os vícios” estrategicamente posicionado no pequeno “altar” onde Cecílio prepara o próximo consumo. O olhar penetrante do homem que mira o Largo de São Domingos em Lisboa e corre para apanhar o comboio é acompanhado de chamadas frustradas que caem, do outro lado, chegam apenas ao Voicemail.

Vencedor do 1.º lugar no Prémio de Melhor Curta-Metragem de Documentário nos Sophia Estudante, No Fim do Mundo pinta uma paisagem de entulho e deserção de uma periferia relegada ao esquecimento que poderia pertencer a um filme de Pedro Costa. Nela, narra-se sem floreados a vida de um homem que não vê nostalgia nas fotografias de um tempo passado, mantendo-se fiel à rotina de um vício.

Kenia Pollheim Nunes

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Mesa Posta (2022), de Beatriz de Sousa © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #2 

Fiquei na Praia (2022)

de Francisca Alarcão

Fiquei na Praia (2022), de Francisca Alarcão © Direitos Reservados

Apresentado como um filme dos alunos da licenciatura em cinema da ESTC, Fiquei na Praia, realizado por Francisca Alarcão, prima pela beleza minimal das suas imagens e narrativa, que acompanha Laura no esforço emocional que lhe causa a mudança para o seu primeiro apartamento. Nesse período de mudança, é invadida por fragmentos de memórias da praia onde costumava passar férias com os seus pais.

Fazendo uso de planos fixos e numa mesma cadência do princípio ao fim, o filme demonstra com delicadeza o processo de despedida da infância e a procura por um novo lugar de emancipação.

Ricardo Fangueiro

Boys (2021)

de Raghuvir Khare

Boys (2021), de Raghuvir Khare © Direitos Reservados

Uma inocência de Nouvelle Vague com a solidão bucólica de Tarkovsky: Boys, de Raghuvir Khare, capta a profundeza leve de duas crianças, dois amigos, a trilharem os caminhos das suas próprias curiosidades sexuais. Ao desvendar a confusão que partilham Tomas e Arno, por tantos reconhecida com grande tabu e perturbação, a curta-metragem apela por um olhar sensível àquela que é uma experiência tão basilar — o surgimento ainda sem nome e sem conceito do desejo, do medo, da euforia, da rejeição. É como se o realizador indiano nos recordasse de uma memória universal, um rito de passagem histórico (ou pré-histórico?), o nosso sentido perdido do erótico enquanto brincar. Assim, é num espaço rural e pacato, livre de quaisquer estímulos midiáticos que pudessem supostamente “justificar” tal movimento, que os mistérios e as contradições do sensual, do sensacional, se vão percorrendo e revelando numa descoberta mútua.

Laila Nuñez

Tormento (2022)

de Arturo Mombiedro

Tormento (2022), de Arturo Mombiedro © Direitos Reservados

Tormento é um filme sobre perda e memória, um diálogo entre presente e passado, mediado/personificado através da figura paternal. Assombrados por uma mãe vegetativa, e um pai que, no seu luto, se refugia num passado alegre e vivo, o conflito surge na interação entre o luto antecipatório dos filhos, que discutem estas presenças ausentes. Este conflito encontra no seu auge uma grande questão central, o que fazer face ao estado vegetativo da mãe — poupá-la de uma vida indigna, suspensa artificialmente, ou honrando a sua memória, cuidando dela até ao fim, porventura não pelo seu bem, mas pelo bem dos próprios. O jogo entre interior e exterior no filme, figurado através dos olhos vagos do pai, apresenta um contrapeso feliz, que torna a situação ainda mais infeliz. No auge da discussão, o pai sai de casa, cambaleia entre tempos, sofrendo simultaneamente o antes, o agora e o depois. No fim, sobra a dor, o tormento de uma decisão impossivelmente satisfatória.

Diogo Albarran

Lugares de Ausência (2021)

de Melanie Pereira

Lugares de Ausência (2021), de Melanie Pereira © Direitos Reservados

Tudo está coberto de lençóis dados a ver através de planos fechados que aos poucos se vão abrindo como as janelas desta casa. As mãos que abrem janelas, são as mesmas que esticam sons e constroem filmes. Estas partem à descoberta de outras mãos; mãos cobertas de cimento ou com luvas amarelas das limpezas, em busca de pontos de convergência.

Esses pontos encontram-se na 3, rue do Quartier e 4, rue de la Fontaine, onde nasceu uma família de 4, entre duas ruas, dois países e duas casas; na casa velha forrada a madeira escura; e na casa grande debaixo do sol e com cheiro a eucalipto. 

Tiago Leonardo

In Between Glass and Walls (2022)

de Razan Hassan

In Between Glass and Walls (2022), de Razan Hassan © Direitos Reservados

Anne Gehring é uma atriz que se vê incapaz de aceitar o seu filho com Síndrome de Down. Na luta por ultrapassar esta incapacidade encontra-se com Sara van Ketel, uma mulher de 32 anos também ela com Síndrome de Down. As duas preparam uma peça de teatro que fala sobre tudo isto, e este é o mote para In Between Glass and Walls.

É uma história tocante que coloca uma mãe em conflito com a sua capacidade de maternidade e de se encarar como mãe daquela criança. Essa luta é refletida nos grandes espelhos que compõem as imagens do filme, e que se revelam elementos essenciais à narrativa. As duas “personagens principais” questionam-se muito sobre esta capacidade de se conseguirem ver, e o espelho parece ser o indicativo visual disso: é ele que reflete de que forma e o quanto elas se vêem.

  • “Quando alguém olha para ti, o que é que achas que vêem primeiro?” (Anne)
  • “Que tenho Síndrome de Down.” (Sara)

O preconceito em relação ao Síndrome de Down está tão vinculado que até mesmo as próprias pessoas que apresentam o síndrome se revêem nele, deixando de se conseguir definir ou ver para além dele. 

É nesta necessidade de ver para além do problema que estas duas mulheres se encontram e partilham este filme.

Inês Moreira

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: In Between Glass and Walls (2022), de Razan Hassan © Direitos Reservados]