EUROPA é o vencedor da 15ª Festa do Cinema Italiano

Terminou no passado Domingo, dia 10, a 15ª edição da Festa do Cinema Italiano.

Num ano em que se volta a sentir uma tão desejada normalidade, a Festa pôde voltar às suas datas habituais, e, sobretudo, à sua casa, o Cinema São Jorge. Durante dez dias, a Festa trouxe à capital portuguesa festas esgotadas, concertos, e, acima de tudo, muito cinema italiano.

A edição deste ano foi marcada pelas celebrações do centenário de Pier Paolo Pasolini, que contaram com a presença de Ninetto Davoli. A retrospetiva continua até ao final do mês na Cinemateca Portuguesa, e à qual se pode ler um artigo dedicado neste blog. (https://cineblogifilnova.fcsh.unl.pt/?p=666).

Uma imagem com antigo

Descrição gerada automaticamente

Édipo Re, Franco Citti, Ninetto Davoli © Festa do Cinema Italiano

O grande vencedor do Prémio do Júri desta 15ª edição foi Europa de Haider Rashid. Premiado unanimemente por parte de um júri – composto por Pilar del Rio, Salvador Sobral e Leonor Teles – que justificou a sua decisão da seguinte forma: “ É um filme do nosso tempo. Nesta época de solidariedade branca, o filme relembra-nos que devemos olhar também para tudo o resto que se passa no mundo. A imersão do filme faz-nos acompanhar de forma intensa e próxima a jornada desta personagem. A tensão presente em todos os momentos deixa antever as emoções sentidas por Kamal. É um filme necessário, onde o ser humano luta pela liberdade e convivência”.

Ainda na secção da competição o júri atribuiu uma menção especial a Lovely Boy de Francesco Lettieri, considerando o filme “um retrato da atualidade, protagonizado por uma personagem magnética e apaixonante”. Entre o público, o filme favorito foi L’arminuta, de Giuseppe Bonito.

A destacar ainda a tão interessante secção Panorama que contou com diversas antestreias nacionais – em particular o vencedor do Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza, Das Profundezas (https://cineblogifilnova.fcsh.unl.pt/?p=742) – e com a presença de grandes personalidades do cinema italiano, como Michelangelo Frammartino e Marco Bellocchio (via Zoom).

No Cinema São Jorge, Giovanna Giuliani, Michelangelo Frammertino e Stefano Savio, na sessão de Das Profundezas

A mostra continua agora, e até ao início do próximo mês, em diversas cidades por todo o país: Beja, Aveiro, Caldas da Rainha, Almada e Lagos. A Festa do Cinema Italiano foi organizada pela Associação Il Sorpasso, com o apoio da Embaixada de Itália, do Instituto Italiano de Cultura de Lisboa, da Câmara Municipal de Lisboa e da EGEAC.

[Foto em destaque: Europa, Adam Ali © Festa do Cinema Italiano]

Das Profundezas: Rugas são como sulcos na terra

Empédocles lançou-se ao Etna, talvez precipitadamente, em procura da verdade nas entranhas da terra. É uma verdade diferente que Il buco – tão inteligentemente traduzido para português como Das Profundezas – nos pretende apresentar. É sobre uma natureza que é divina, mas não imortal. 

O mais recente filme de Michaelangelo Frammartino – vencedor do prémio especial do júri no Festival de Veneza – está inserido na secção Panorama, da Festa do Cinema Italiano. Este desenvolve-se em volta de dois acontecimentos paralelos: O primeiro é uma reencenação da expedição do Grupo Espeleológico de Piemonte, que em 1961 explorou e mapeou o até então desconhecido Abismo de Bifurto, no sul de Itália; e o segundo acompanha o leito de morte de um pastor idoso. Este pastor vigia há muitos anos as terras circundantes da gruta, ocupadas agora pelos espeleólogos. Cria-se aqui uma relação elíptica entre as duas partes. Esta inicia-se às portas do abismo e reencontra-se no final deste filme sem diálogos, onde o som e a imagem os substituem. A humanidade e a natureza revelam-se por si próprias.  

Il Buco, Antonio Lanza ©Cairo International Film Festival

Todo o filme se constrói através de uma relação de dependência entre as duas partes que o compõem. A sua duração está subordinada à morte do pastor. Numa espécie de voyeurismo, acompanhamos o sofrimento deste ser. Está vivo, mas inacessível, em simbiose com a paisagem, e sobretudo com o seu interior. O fim aproxima-se à velocidade a que progride a expedição. O mapa da gruta –desenhado aos poucos – é como um guião do qual já se sabe o final, resta saber o caminho para lá chegar. 

Numa cena, ainda no início do filme, encontramos um espeleólogo que descansa calmamente numa igreja abandonada. Junto ao seu corpo, deitado, vemos uma imagem de Cristo na Cruz. Existe entre eles uma inegável semelhança. Jesus e um qualquer homem, deitados no chão lado a lado. Este filme é sobre uma divindade que é terrena, da qual tanto a gruta como o pastor fazem parte, e é também isso que os une. “Existe, de facto, um Deus, que é o próprio mundo”.1

Empédocles lançou-se ao Etna na crença que iria elevar-se a um ser imortal. A expedição faz-se pelo egoísmo e determinação dos homens. “A natureza divina sem a imortalidade é o que define a liberdade do homem criador”2. O pastor moribundo está lá para lembrar isso, tal como as sandálias de Bronze cuspidas pelo Etna.

[Foto em destaque: Il Buco, Abismo do Bifurto ©Festa do Cinema Italiano]

Notas de rodapé

Camus, Albert. O Homem Revoltado. Livros do Brasil, 2019.

2 Ibidem

Orgia e o que resta de nós

Neste mês de abril dedicado ao centenário do nascimento de Pier Paolo Pasolini, escritor, realizador e intelectual italiano, Lisboa incendeia-se de iniciativas para celebrar o trabalho desta incontornável, senão controversa, figura do século XX. Dentro das várias, surge o projeto de Nuno M. Cardoso, que se aventura na encenação de Orgia, peça de 1968 que não seria tão pouco menos oportuna em nome de qualquer outra ocasião.

“Sopravviviamo: ed è la confusione

di una vita rinata fuori dalla ragione.”

“Sobrevivemos: e é a confusão 

de uma vida renascida fora da razão.” 

– Pier Paolo Pasonili1

Como qualquer um, partimos do seu título, que, após a inicial surpresa, acaba por alcançar uma transcendentalidade muito além daquilo que a mera sugestão indica. Este não é, portanto, o teatro que esperamos, mas o que descobrimos e, talvez mais importante, aquele no qual nos descobrimos, por desde logo implicar o espectador, e qualquer um, na sua orgia de ideias. Mais do que um palco de ações, estamos perante um palco de questões. As mesmas que foram, antes e depois, permear a ouvre do seu autor e que, pela sua prepotência, também nos marcam a nós.

Se tentarmos delinear uma linha de acontecimentos clara e concisa para aquilo que a obra encena, rapidamente nos apercebemos que tal não é um simples esforço e que será, aliás, até diminutivo daquilo que a peça “realmente” é. Nada menos do que o delírio de um casal, brilhantemente interpretado por Albano Jerónimo e Beatriz Batarda, como uma espécie de requiem para ambos e, de forma mais significativa, para a sociedade. Nenhum dos dois tem nome, demarcando-se enquanto figuras anónimas, símbolos presos ao estatuto que procuram desafiar, contendo em si o problema da identidade pessoal, puxada no sentido de todas as forças e obsessões, sejam estas naturais, sociais, sexuais ou políticas. Onde fica o diferente?

Orgia, Albano Jerónimo, Beatriz Batarda © Raquel Balsa.

Neste sentido, não é de espantar o palco crepitante com o qual nos deparamos, que se afasta da cenografia tradicional de modo a se tornar numa verdadeira máquina interpretativa por si só. Na argila e nas cinzas da instalação de Ivana Sehic, os atores juntam-se numa coreografia ritualística de palavras e corpos, movendo-se a uma velocidade simultaneamente morosa e revigorante. Da interação com a matéria, na pele ficam as marcas vibrantes dos impulsos que nos movem. São deixadas pelo outro e pelo próprio, num contraste visual, paralelo ao discurso formal eloquentemente proferido. 

Orgia é feita de confrontos, das relações entre o Eros e do Thánatos, o individual e o coletivo, a liberdade e a (des)ordem. Aqui reside a apatia urgente, um último suspiro em nome da procura de algo que dê sentido a tudo, de soluções que nos salvem do magma circundante. Acompanhamos as personagens neste percurso sombrio, no sofrimento poético e trágico dos seus sacrifícios, no meio dos quais desaparecem pelo fumo atmosférico. A este ponto, não há caminho a seguir, mas uma luz quente a vir de algures. Por fim, deixam-nos sozinhos neste paraíso perdido, a questionar o que resta de nós.

[Foto em destaque: Orgia, Albano Jerónimo, Beatriz Batarda © Raquel Balsa]

Notas de rodapé

1Pasolini, Pier Paolo, et al. Roman Poems. City Lights Books, 2005

𝑨𝒎𝒆́𝒓𝒊𝒄𝒂 𝑳𝒂𝒕𝒊𝒏𝒂: 𝐔𝐦 𝐟𝐨𝐫𝐦𝐚𝐥𝐢𝐬𝐦𝐨 𝐚𝐫𝐦𝐚𝐝𝐢𝐥𝐡𝐚𝐝𝐨

𝐴𝑚𝑒́𝑟𝑖𝑐𝑎 𝐿𝑎𝑡𝑖𝑛𝑎, o mais recente filme dos irmãos D´Innocenzo – vencedores do Urso de Prata, em 2020, com 𝐵𝑎𝑑 𝑇𝑎𝑙𝑒𝑠 – faz parte da secção Panorama da 15ª Festa do Cinema Italiano, e é um daqueles filmes que nos permite afirmar com toda a certeza que carrega em si um enorme potencial, no entanto fica a meio caminho para algo maior. 

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Pier Paolo Pasolini – Uma desesperada vitalidade

Passarinhos e Passarões abre o programa Pasolini Revisitado na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Com a presença de Ninetto Davoli. 

A evocação centenária de Pier Paolo Pasolini na Festa do Cinema Italiano nunca poderia ser menos do que um evento à medida da grandeza de um dos cineastas que melhor soube cruzar a poesia nas suas imagens. E com uma proximidade inigualável – chamemos-lhe amor – às suas personagens. Algo que motivou o filósofo francês Georges Didi-Huberman a afirmar que Pasolini era o cineasta que melhor sabia mostrar os seus figurantes. Talvez para contrastar com aquele tal cinema made in Hollywood, mas calhado em ilustrar massas de gente cuja única função é servir e iluminar o astro. Serve esta pequena introdução para acentuar precisamente esse olhar sobre o outro, sobretudo o desafortunado, que constantemente alimenta o cinema de Pasolini. 

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A Festa do Cinema Italiano está de volta!

Arrancou na passada sexta-feira, dia 1 de abril, a 15ª edição da festa do cinema italiano. 

Se é inegável que o cinema encontra em Itália uma das suas grandes pátrias, podemos admitir a importância que a Festa do Cinema Italiano tem para a oferta cultural portuguesa. Ao longo dos últimos anos, ajudou a relançar um gosto não só pelo cinema, mas pela cultura italiana. Stefano Savio referiu, nas breves palavras com que nos recebeu na sessão de abertura, que na primeira sessão do festival, em 2008, estiveram presentes quarenta pessoas no Teatro do Bairro Alto, e muitas pizzas. Agora, na sua 15ª edição, a Festa enche grandes salas por várias localidades em todo o país. 

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