Naquele Dia em Lisboa: Um músculo no braço de ferro contra o esquecimento

Em 1940, chegavam a Portugal milhares de refugiados europeus, maioritariamente judeus, com a esperança de fugir ao terror nazi que na época se alastrava pelo continente. O nosso país, no limite da Europa, representava um temporário porto seguro, uma paragem crucial no caminho do seu verdadeiro destino, na América. Mais de 50 anos depois, umas películas dessa mesma altura acumulavam pó num canto do ANIM, até Daniel Blaufuks pegar nelas para o seu mais recente filme, Naquele Dia em Lisboa, programado numa das sessões especiais do 20º IndieLisboa. 

As imagens, já tendo passado pelo processo de catalogação e registo, não foram, por isso, recuperadas pelo realizador, mas sim redescobertas. A sua origem é turva e pouco se sabe delas além do ano e o seu autor, o diretor de fotografia e vencedor de um Óscar, Eugen Schüfftan. Apesar desse galardão, é mais conhecido pela técnica de efeitos especiais que aperfeiçoou e popularizou em Metropolis (1927), de Fritz Lang, permitindo, com o uso de um espelho, inserir os atores em cenários minúsculos, criando, a partir desses elementos distintos, uma imagem coesa. É interessante, portanto, pensar nessa mesma pessoa a gravar as multidões numa Lisboa demasiado pequena e adversa para as comportar. Podia ser ilusão, mas é a incredulidade que a guerra traz. 

À vista disto, o filme torna-se desde logo importante pelo mero facto de tornar o arquivo acessível ao público. A gravidade que se veio a acumular com o cair dos anos torna-o num monumento histórico, elemento da nossa memória coletiva e, porventura, até individual. Assim, tratando a matéria-prima enquanto músculo essencial no braço de ferro contra o esquecimento, Daniel Blaufuks trabalha-a ainda mais.

Naquele Dia em Lisboa © Direitos Reservados

A voz de Bruno Ganz surge enquanto fio das imagens, numa narração que coloca o espectador português num lugar estranho ao seu. Ao passo da força visual, ouvimos descrições sobre os nossos costumes, as nossas paisagens e, mais importante, sobre uma realidade que não nos foi familiar. Da nossa posição isolada, seja esta geográfica, ideológica ou social, não fomos submetidos à necessidade de fugir à Guerra, nem a vivemos da mesma forma que o resto do continente. 

O mais interessante, contudo, encontra-se na velocidade das próprias imagens, manipuladas ao ponto de se arrastarem no tempo. Desacelerando, encontra-se a contemplação, a possibilidade de olhar para vários pontos distintos e pensá-los de formas diferentes. Parecem figuras assombradas, sobressaltadas pelo conhecimento que temos hoje, movendo-se, parecendo, fotograma por fotograma, num turbilhão inidentificável. Portugueses, refugiados, pontos no tempo.  O produto é tão melancólico e desconcertante como o piano que o acompanha, sublinhado também pela ocasional coloração das imagens, ora azul, cor-de-rosa ou até semi-realística, cujo impacto nos transporta a um ponto ainda mais longínquo da história das imagens em movimento. 

Esta manipulação (expressão totalmente desprovida de qualquer conotação negativa)  é uma predileção do artista, no âmbito de explorar os interstícios da imagem e do vídeo, levando-o por isso até a distanciar os seus filmes da própria ideia de cinema. Pelo menos a que assume muitos espectadores terem. Isto é, motivado, em grande parte, por uma narrativa. Por isso, agrada-lhe a categorização do “experimental”, não propriamente da sua perspetiva enquanto cineasta, mas sim numa possível experiência para o espectador, que se deixará levar pelo desafio à atenção, ao foco e à imaginação de uma realidade distante. Quem eram aquelas caras a passar naquele dia em Lisboa?

Margarida Nabais

Aftersun: O registo enquanto possível resposta para o tempo e a cadência da sua revelação

Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo.

Estas reflexões de José Saramago foram originalmente escritas para Lisboa. São “Palavras para uma cidade”, nascidas a partir de uma curiosidade sobre o berço lisboeta e um anseio profundo de poder testemunhar todas as suas mutações e não apenas aquelas que vieram depois de 1895. É um desejo universal, este de criar algum tipo de fisicalidade às nossas memórias. Por isso é que tiramos fotografias, gravamos os nossos vídeos caseiros e compramos porta-chaves da torre Eiffel quando vamos a Paris. São fontes externas, provas dos momentos que experienciamos e ferramentas que podemos manusear para olhar para trás e tentar afirmar, com alguma objetividade: “Eu fiz isto. Eu estive aqui. Neste instante, nós estávamos assim.”

Desta forma, procuramos alcançar também algo exterior a nós, seja uma pessoa ou um lugar, na tentativa de lacrar algo antes que a mente possa trair a anamnese. É neste âmago que surge Aftersun, a primeira longa-metragem da realizadora escocesa Charlotte Wells, cuja protagonista, Sophie, recorda uma semana de férias passada na Turquia com o seu pai, Callum, nos finais dos anos 90. Na corrente de um ritmo delicado, viajamos turvamente entre passado e presente, posicionados na subjetividade de Sophie e no conhecimento implicado de que Callum não se encontra no mais recente plano temporal.

Aftersun (2022), de Charlotte Wells © Direitos Reservados

A âncora das suas memórias são, naturalmente, os vídeos caseiros que gravou naquele período, com a descontração e desenfadamento característicos de uma criança de 11 anos que descobre a sua primeira câmara e de um pai a querer encapsular a infância da filha. Com a idade, as imagens tornam-se vinhetas de um tempo irrecuperável, objetos de análise que preenchem as lacunas de um mistério. Sophie parece absorvê-las, questionando o que escondem por trás, na esperança de encontrar respostas. Assim, mesmo nos momentos de inocente felicidade e ternura genuína, permanece, engrenhada, a profunda melancolia do presente e a sensação de haver algo, permanentemente por definir, a borbulhar por debaixo da superfície.

Geralmente, esta é uma história associada ao género conhecido por coming-of-age, uma expressão propositadamente aberta. Podemos pensá-la como “chegar a uma idade”, podendo indicar uma maioridade ou simplesmente uma outra etapa do crescimento humano. No fundo, é um certo tipo de amadurecimento. Mas o que define exatamente esse processo e a quem o podemos associar?

No presente caso, Aftersun coloca ambos os seus protagonistas no precipício da mudança. Sophie, numa posição mais clara, prestes a fazer o salto da infância para a adolescência e Callum, aos 31, no limbo incerto entre jovem-adulto e, simplesmente, adulto. Ou melhor, a imagem que normalmente associamos a essa palavra armadilhada. Uma pessoa formada, que já não tem a necessidade de se questionar a si ou ao estado da sua vida porque, convencionalmente, já o teria alcançado. Seria um pai com a possibilidade de oferecer aulas de música à filha ou comprar um tapete sem ter de pensar duas vezes.

Aftersun (2022), de Charlotte Wells © Direitos Reservados

Assim o conhecemos e, mais tarde, Sophie, exatamente no mesmo lugar. Contudo, como ela é o nosso veículo, a nossa porta de entrada para o filme, chegamos, mas nunca estamos, de facto, perto de Calllum. A câmara observa-o sozinho sempre a um braço de distância, de costas ou através de vidros e espelhos. Como se, por cima dele, permanecesse um véu translúcido, impedindo o contacto. Tentamos percebê-lo da mesma forma que ela, na sua imagem mental que serve como interlúdio, entre as luzes fortes e intermitentes de uma discoteca escura, onde, entre o balanço dos corpos, é difícil alcançar alguém.

Por isso persistimos na ambiguidade, no contraste sentido entre a experiência coletiva e individual daquelas férias, na oposição entre a alegria conjunta e a depressão solitária que, com a vulnerabilidade de Paul Mescal e Frankie Corio, se desembaraça naturalmente. O que separa as duas personagens nesse tempo, e as aproxima mais tarde, é exatamente aquilo sobre o qual David Bowie e Freddy Mercury cantam na frontal needle drop escolhida para o clímax, a instantaneamente reconhecível “Under Pressure”. It’s the terror of knowing what the world is about.

E nada mais apto para descrever toda a sensação nostálgica e agridoce do filme do que o título, Aftersun, o creme cuja aplicação minimiza os efeitos do escaldão, mas não cura, propriamente, a queimadura. Apenas o tempo tem essa capacidade. Não obstante, Sophie tenta de certa forma usar os vídeos que gravou com a outrora moderna handycam como a sua marca personalizada de aftersun, uma tentativa de refrescar as suas lembranças e, talvez, encontrar uma cura para a evanescência da memória. Mas de todas as imagens, talvez a mais marcante seja a de uma polaroid de 30 mil liras turcas. Segundo a segundo, as caras de Sophie e Callum vão surgindo no fundo branco. Ao testemunharmos o vazio a transformar-se num artefacto do passado, apercebemo-nos que a motivação de Charlotte Wells, nesta obra imensamente pessoal, é a própria tentativa de recriar essa mesma cadência de revelação, explorando os limites do seu alcance.

Margarida Nabais

[Foto em destaque: Aftersun (2022), de Charlotte Wells © Direitos Reservados]

Eduardo Brito e o eterno mistério da paisagem

O imaginário de Eduardo Brito situa-se na incerteza plácida do tempo. Aqui, o ponteiro do relógio mantém-se imóvel e nem em sussurros se ouve o tique-taque dos segundos a passar. Desta forma, a duração que trabalha alonga-se tão rapidamente quanto, naturalmente, padece na conclusão do ecrã preto. Na ignorância absorta do espectadorhipnotizado, permanecemos ainda assim como estávamos, suspensos no mesmo ciclo temporal, como se eternamente presos na perfeição da meia-noite, perguntando ao céu se ainda é hoje, ou se já é amanhã. 

Penúmbria (2016)

Penúmbria (2016), o primeiro passo da sua filmografia, recruta para dentro de si essa mesma ambiguidade.  Onde estamos? Quando? São dúvidas que iremos inevitavelmente repetir no seu cinema. A primeira resposta é-nos dada quase imediatamente, embora coberta por um fino véu de nébula. Penúmbria, terra inóspita de tom distópico, declarada inabitável pelos próprios habitantes, que na verdade parece já ter lugar nos vários cantos estéreis do nosso país. Regiões isoladas, marcadas pela crença na impossibilidade e por terem os faróis virados diretamente para os melancólicos. Salienta-se a citação de uma das várias vozes desmembradas de Brito: “Praeter solitudinem nihil video. Para além da solidão, nada vejo.” E se no momento da sua evocação a expressão é associada a um local específico, podemos na verdade alargá-la às várias paisagens geográficas que a câmara do cineasta percorre. 

Declive (2018)

Em Declive (2018), centraliza-se outro desses sítios entregues ao tempo, neste caso mantendo-se inominado, aproximando-se mais a um sentimento do que a qualquer outro elemento concreto. Encarando as paisagens cinzentas, o mundo aparenta ser estático, esperando-nos porque nos transcende. Cada movimento é orgânico, sejam as ondas do mar ou a brisa do vento a atravessar a relva e nós passamos, como mais uma pedra no caminho, mais um grão de poeira. Aqui, os anos passam como uma reflexão tardia. É “alegria e falta juntas numa só”, descreve a narradora. Chega-se à realização que, talvez, se ficarmos imotos, a plenitude também se irá embrenhar em nós, de forma a finalmente chegarmos à conclusão de que os lugares de facto se transformam enquanto nos aguardam, fazendo-o à distância da rapidez a que tanto nos afeiçoamos contemporaneamente. 

Ursula (2020)

Brito explora progressivamente esta dinâmica assincrónica entre os ritmos humanos e a cadência geográfica ao agarrar-se à noção de que o cinema, e as histórias, são apenas peças no tabuleiro de um jogo onírico com realidades vizinhas. Ursula (2020) atravessa diretamente tal ideia, ao centralizar diegeticamente o sonho do seu protagonista ausente. Eis que corpos se transfiguram em montanhas, em mimese física com o cenário em frente, que por sua vez muda sem pedir permissão a quem resguarda. Repetimos: Quando estamos? Onde? Uma voz responde com a possibilidade dos espaços “serem o mesmo lugar, antes ou depois de qualquer cataclismo ou decurso do tempo.” Afinal, a disparidade é sempre temporal e as eventualidades ilimitadas, se esquecermos a nossa própria finitude e abraçarmos a atmosfera que nos circunda.

Deste modo, ao considerar o horizonte natural, torna-se fácil associarmos à sua magnitude a lentidão de todos os processos morosos que constituem o dia, o mês, o ano. Na sua vídeo-instalação intitulada Curiosidades do Gabinete (2019), o realizador mostra-nos que o reverso da moeda também é possível e que as cidades têm os seus respectivos ciclos característicos. É a sinfonia de uma metrópole moderna, protagonizada pelo tráfego monótono de pessoas, veículos e a coreografia dos ruídos citadinos de mão dada aos gestos que se repetem. Como mote, lê-se de início “Cada história é sempre um remake”, uma adaptação de outra adaptação cuja origem já se perdeu. Repetições (in)conscientes, inseridas na valsa cosmopolita na qual participamos diariamente. 

Presenciamos, assim, a capacidade de filmar o nada a transcorrer e que talvez é mesmo aí que os momentos mais espectaculares podem existir, na banalidade da passagem temporal. Não é por acaso que toda esta formulação é capturada nos lugares habitados pela obra de Wiene, que de banal nada possui, Das Cabinet des Dr. Caligari (1920). À revisitação paralela dos seus locais de filmagem e projeção, aliada ao literal reescrever do seu argumento em câmara, junta-se, como de costume, uma voz fora-de-campo, desta vez evocada pelo próprio realizador, num cunho autoral completamente afastado de qualquer possessividade pela própria obra, mas sim como marco dessa partilha. Note-se que este lê uma narração-colagem, amálgama de diferentes excertos de livros, músicas e memórias pessoais vividas em Berlim, integradas comodamente num único texto, sem as origens das partes serem mais ou menos relevantes do que o esquema que habitam naquele momento. 

La Ermita (2022)

Na meta final, a diegese dos espaços é levada ainda mais longe em La Ermita (2022), a mais provocadora das obras aqui mencionadas, onde se repete em grande plano a crença no círculo fechado das narrativas. Interpelando diretamente o espectador, a palavra edificada enquanto espírito enquadra uma relação com esse local com o nome de La Ermita. Então, descobrimos que nunca lá fomos, mas já lá estivemos e que, além do mais, o visitámos pela primeira vez com a familiaridade usualmente reservada a uma casa de infância. Por isso, resignadamente, repetimos uma quinta e última vez a Eduardo Brito: Onde? Quando? 

De retorno, as imagens que nos apresenta assemelham-se a recortes mnemónicos, um álbum de altares erigidos em honra do futuro defunto da memória humana, efémera no fluxo do universo. Assim, constrói-se a ideia de um lugar sem morada, que transcende a sua própria fisicalidade. Talvez seja em La Ermita que todas as histórias vão parar. Essas, que perduram nos recantos da paisagem cujo fado será sempre misterioso, enquanto nós, “contornos de uma nuvem a evaporar”[1], somos confrontados com a nossa mortalidade. 

Margarida Nabais


[1] Expressão retirada do texto “Esta é a história”, de Eduardo Brito. http://www.eduardobrito.pt/esta_e_a_historia.html

[Foto em destaque: Curiosidades do Gabinete (2019)]

Opening Night e a realidade que conseguimos moldar

“I seem to have lost the reality of the… reality”, confessa a certo ponto a incomparável Gena Rowland na pele de Myrtle Gordon em Opening Night (1977), de John Cassavetes. Mas quem diz o que constitui a realidade, numa existência construída às camadas? Bastidores, palco, audiência. À distância, parecem simples etapas no sistema de comunicação que é o teatro. Sob um olhar mais próximo, contudo, revelam-se autênticos campos de batalha, onde o que está em causa é algo muito para além das cortinas. É ruído identitário, que simultaneamente sussurra e grita, questionando o que está a ser representado. Quando se torna demasiado intenso para o suportar, o resultado é a erupção singular que caracteriza o décimo filme de John Cassavetes. 

Na posição temática central está o trabalho de ator, camaleão de profissão, cuja personificação aqui é a já referida Myrtle Gordon. Atriz famosa e respeitada, protagoniza a mais recente peça da sua carreira, The Second Woman, antecipando a sua grande estreia em Nova-Iorque. Contudo, quando testemunha o atropelamento e súbita morte de uma fã adolescente à saída de uma das suas atuações, o acontecimento impacta-a de tal modo que começa a duvidar da personagem envelhecida que interpreta, à medida que, assombrada por visões da defunta admiradora que acredita representar a sua juventude, é forçada a encarar a sua própria mortalidade, pessoal e profissional.

Gena Rowlands em OPENING NIGHT, de John Cassavetes – © Leopardo Filmes

Este problema insolucionável, é, no seu âmago, um que todos partilhamos, sem escolha, nem palavra a acrescentar. Tal como ela, colocamos os nossos véus de estilo fúnebre todas as noites, caminhando o mesmo percurso, em rumo ao mesmo destino. Gradualmente, as marcas da vida vincam-se no rosto e, na nossa imagem, somos enfrentados com a efemeridade da vida. Myrtle, contudo, não o quer fazer, afirmando com toda a certeza: “Age isn’t interesting. Age is depressing. Age is dull.” No fundo, procura uma maneira para que os anos que passou na Terra não sejam necessários para a existência e posição da personagem que assume na peça. Mas isso é impossível, pois a dramaturga, mulher umas décadas mais velha, não quer mais nada do que a submeter aos números e à sua narrativa.

Presa entre duas gerações distintas, entre a que a provoca com nostalgia e superioridade do valor jovem e a que quer escrever o seu futuro condescendentemente, Myrtle cai numa espiral de decadência, onde a máscara que usa sempre, tal como muitas em personagens cassavetianas, se começa a desintegrar. Procurando exorcizar os demónios e reencontrar os seus passos na transformação do guião, descobre na improvisação uma mão amiga. Quer encontrar algo com coração, esperança, algo que contradiga aquilo que os espelhos refletem e a fatalidade lhe dita pelo ex-amante e ator secundário Maurice, interpretado pelo realizador. “You’re not a woman to me anymore.” Portanto, muda as falas, os movimentos e tudo o que tem à sua disposição, provando que para ela um papel não é algo a ser apenas lido, mas sentido e vivido, criado também pela sua mão. 

Afinal, quem detém a autoria das personagens, o seu cunho? É uma questão que Cassavetes parece explorar não só aqui, mas em toda a sua filmografia, no característico costume de partilhar o espaço à frente da câmara e no gosto assumido pela improvisação enquanto exercício. É gerado o hábito de fazer com que os seus atores respirem as figuras que representam, concedendo-lhes o espaço que o permite, fluindo com uma câmara deambulatória, que se aproxima nos momentos certos, nas expressões e nos detalhes. Coincidentemente, estes elementos nunca estiveram tão presentes quanto em Opening Night, que transpira este tal ar de ambiguidade. 

Uma imagem com pessoa, interior, em pé

Descrição gerada automaticamente
John Cassavetes e Gena Rowlands em OPENING NIGHT, de John Cassavetes – © Leopardo Filmes

No que toca a The Second Woman, contudo, essa qualidade é rejeitada e os esforços análogos da protagonista alienados tanto quanto possível. Há incompreensão e revolta, mas o mote do mundo do espetáculo nunca é esquecido. Deve continuar, acima de tudo. Mesmo quando, conscientemente, a própria obra teatral é desfragmentada, dificultando a distinção entre o que é do que é suposto ser. Renovando-se todas as noites, em cada atuação, alegra uns e desagrada outros, mas é sempre esplendorosa pela sua surpresa. É o agora e o controlável, a realidade que Myrtle consegue moldar e a sua oportunidade para responder às expectativas que o contar do relógio traz. No palco, com ela, o tempo pára e fuma um cigarro.

Margarida Nabais

[Foto em destaque: Ben Gazzara, John Cassavetes e Gena Rowlands em OPENING NIGHT, de John Cassavetes – © Leopardo Filmes]

La maman et la putain e as pessoas que fazem amor de olhos fechados

Em antecipação da estreia do seu restauro a 4K em Portugal, revisitamos La maman et la putain. Este que marca o primeiro e penúltimo passo de Jean Eustache no mundo das longas-metragens ficcionais, mas nunca impessoais, é, inegavelmente, o monólito incontornável da sua carreira, onde os amores e desamores de toda uma geração pavimentam as ruas pelas quais as personagens caminham. Alamedas parisienses, lotadas, sem destino à vista.

Em Alexandre, encontramos o arquétipo do flâneur contemporâneo, que trauteia de café em café, entre conhecidos, numa inquieta ociosidade. Não tem trabalho, mas planeia ler todas as tardes como se fosse um part-time. Não tem casa, mas vive no apartamento da sua parceira Marie. Está de coração partido, mas inicia um romance com a jovem enfermeira Veronika.  

Uma imagem com pessoa, exterior, carro, rua

Descrição gerada automaticamente
La maman et la putain, Jean-Pierre Léaud, Françoise Lebrun © Les films du losange

Estas são as crianças de Marx e Coca-cola depois de passarem pela puberdade e descobrirem que ser crescido é, infelizmente, apenas mais complicado. O ano é 1973 e as chamas do Maio de 68 já se reduziram a cinzas, por entre as quais a fénix malformada da liberdade sexual nasce. É como um novo instrumento que as personagens ainda não sabem utilizar, mas que, mesmo assim, manuseiam livremente, ignorando o sinal de perigo. E de todos, Alexandre é, sem dúvida, o mais descuidado.  

Não fala senão em monólogos e parece viver uma perpétua atuação da sua pessoa, constantemente à procura daquilo que o fará parecer mais inteligente e inovador, cultivando em si um misto peculiar de espontaneidade pensada, como só Jean-Pierre Léaud o poderia transmitir. Palavra a palavra, vai lançando os dados no seu jogo de ego, a cada momento escolhendo qual das mulheres, Marie ou Veronika, o poderá complementar melhor, consoante as cartas que elas próprias atiram à mesa. Assim, ao longo de atos inócuos, cigarros e copos de uísque, as dinâmicas de poder entre os três flutuam, à medida que os seus complexos sentimentos também oscilam. 

Eustache, apelidado por Serge Daney no seu obituário como um “etnólogo da sua realidade”, oferece-nos aqui um retrato generoso e bíblico, exatamente dessa natureza, onde o tempo é esculpido por diálogos e não minutos, livre dos constrangimentos e exigências do convencional arco narrativo. Procura autenticidade num campo de inautenticidade e, nos rostos dos atores, algo a ser desvendado. Portanto, é na simplicidade que encontra a sua profundidade, nos planos maioritariamente fixos, que parecem estar pacientemente à espera do que se segue. No seu realismo, o filme tenta residir ao máximo no instante, no próprio local que habita e nada mais. Se ouvimos música, não é somente para mergulhar num certo ambiente, mas porque a algum dos seus residentes lhe apeteceu pôr o disco a tocar.

Uma imagem com pessoa, interior

Descrição gerada automaticamente
La maman et la putain, Jean-Pierre Léaud, Bernadette Lafond, Françoise Lebrun © Les films du losange

Neste sentido, as emoções têm espaço para respirar e se esticarem, apesar da sua resistência a serem reveladas. Habitam, por preferência, o subtexto da obra, por baixo da camada vápida que tenta servir de máscara. E embora as personagens se esforcem para demonstrar uma imagem clara daquilo que são e querem, a verdade é que residem mais na ambiguidade do que se apercebem, no conflito interior entre os diferentes papéis que ainda não libertaram. 

Afinal, o título é La maman et la putain, não La maman ou la putain, pelo que o confronto que inicialmente se parece situar entre duas identidades, no fim torna-se claro convergir numa só e ninguém o representa tão bem quanto Veronika. Não é mera coincidência que Françoise Lebrun, ex-amante do realizador, aqui na sua estreia enquanto atriz, seja o oposto dos queridinhos da nouvelle vague com quem contracena, o Alexandre de Jean-Pierre Léaud e a Marie de Bernadette Lafond. É ela a mais sensível dos três, a que mais se vulnerabiliza, uma vítima autoflagelada e desorientada, perante a confusão que tenta navegar. 

Acima de tudo, Eustache parece-nos querer mostrar o que acontece depois de uma revolução acabar sem estar completa, quando as desilusões e as ilusões fazem parte do dia-a-dia e fazer amor de olhos fechados se transforma em prática habitual, mais masturbatória do que conjugal. O filme não oferece soluções, nem castigos, estando menos interessado em lançar julgamentos morais do que a desfiar uma crise. Deixa-nos, no entanto, a incerteza sobre o estado do futuro. Quando o ecrã fica preto, é um ponto final ou uma vírgula? 

Margarida Nabais

[Foto em destaque: La maman et la putain, Jean-Pierre Léaud, Bernadette Lafond, Françoise Lebrun © Les films du losange]

Rua dos Anjos: O cinema como lugar de encontro

E se um filme fosse construído a partir do encontro entre duas pessoas? Rua dos Anjos procura ser a resposta a esta pergunta, ao centralizar tematicamente a partilha de histórias e ofícios entre as duas realizadoras, Renata Ferraz e Maria Roxo, nesta que é a primeira longa-metragem de ambas, selecionada para a Competição Nacional desta 19ª edição  IndieLisboa.

Foi tão cedo quanto em 2014 nasceu o embrião criativo da obra, filho de um interesse pessoal de Renata Ferraz pelo universo pouco conhecido do trabalho sexual, particularmente no que toca à sua dimensão performativa. Afinal, “a prostituta é a melhor atriz do mundo”, diz Maria Roxo a certo ponto. E ninguém o saberia melhor do que a própria, que passou mais de duas décadas a desempenhar uma variedade de papéis. 

É a partir deste ponto de contacto, entre duas vivências aparentemente distantes, mas de facto muito próximas, que o filme se desenvolve. Na troca bidirecional de técnicas profissionais, Renata oferece a sua experiência no cinema e Maria a sua experiência no trabalho sexual. No estúdio escuro onde a ação (maioritariamente) se passa, o encontro  entre as duas mulheres é materializado nesse espaço, terreno neutro onde as ideias fervilham, mas também a realidade do exterior. 

Rua dos Anjos, Renata Ferraz, Maria Roxo © KINTOP

Neste sentido, Rua dos Anjos é muito consciente da sua existência inserida numa espécie de refúgio atemporal, palco de convergência empática, mas também  de exposição constante. Assim, o objeto artístico autorreferencial sobre o ato de cocriar torna-se igualmente, por vontade própria, sobre Maria Roxo, que sempre soube que a sua vida daria um filme. Nesta dimensão (auto)biográfica, evidencia-se uma saliente veia política no destaque inevitável sobre quanto o retrato pessoal de um indivíduo, e principalmente o de uma mulher, é marcado pelas circunstâncias que o rodeiam e a classe social onde se insere. 

Nas interações entre as duas, isto nunca é esquecido, mas se a lembrança de diferentes experiências é constante, também a empatia o é e, acima de tudo, o respeito mútuo. Num filme que trabalha tanto a partilha de controlo sobre a criação, é da mesma forma aberto quanto à dinâmica de poder que o posicionamento à frente da câmara implica. Ou seja, da violência que se aflige ao pressionar o botão de gravar, revelando-a estética e conceptualmente, ao incluir sequências que paradoxalmente podem ser chamadas de behind the scenes

Rua dos Anjos, Maria Roxo © KINTOP

Neste contexto, a vida de Maria não é apenas exposta e moldada a partir da visão de um realizador, neste caso Renata, mas também pelas suas próprias mãos e limites. Talvez por isso, numa procura de equilíbrio, peça uma espécie de quid pro quo à sua compatriota, em forma de entrevista. Deste modo, tanto uma quanto outra estão implicadas no filme. Não num método mutuamente exploratório, contudo, mas sim em prol da construção de uma ponte entre as duas e, acima de tudo, à ordem de uma agência sob a própria história.   

Este é um caso particular, no entanto, uma vez que Maria Roxo infelizmente faleceu antes de poder completar a obra ou até mesmo iniciar o seu processo de montagem. Há, então, uma dimensão homenageante que transcende a sua ideia de criação partilhada, sendo que, apesar de não existir o filme que poderia ter sido, sobrevive em força, no seu lugar, Rua dos Anjos. E talvez o melhor que podemos fazer em sua honra é resistir à imaginação de qualquer outra obra senão a que temos, porque, como Maria dizia, “A imaginação vai só até onde a gente quer. Nunca vai até à realidade.”

Margarida Nabais

[Foto me destaque: Rua dos Anjos, Renata Ferraz, Maria Roxo © KINTOP]

Orgia e o que resta de nós

Neste mês de abril dedicado ao centenário do nascimento de Pier Paolo Pasolini, escritor, realizador e intelectual italiano, Lisboa incendeia-se de iniciativas para celebrar o trabalho desta incontornável, senão controversa, figura do século XX. Dentro das várias, surge o projeto de Nuno M. Cardoso, que se aventura na encenação de Orgia, peça de 1968 que não seria tão pouco menos oportuna em nome de qualquer outra ocasião.

“Sopravviviamo: ed è la confusione

di una vita rinata fuori dalla ragione.”

“Sobrevivemos: e é a confusão 

de uma vida renascida fora da razão.” 

– Pier Paolo Pasonili1

Como qualquer um, partimos do seu título, que, após a inicial surpresa, acaba por alcançar uma transcendentalidade muito além daquilo que a mera sugestão indica. Este não é, portanto, o teatro que esperamos, mas o que descobrimos e, talvez mais importante, aquele no qual nos descobrimos, por desde logo implicar o espectador, e qualquer um, na sua orgia de ideias. Mais do que um palco de ações, estamos perante um palco de questões. As mesmas que foram, antes e depois, permear a ouvre do seu autor e que, pela sua prepotência, também nos marcam a nós.

Se tentarmos delinear uma linha de acontecimentos clara e concisa para aquilo que a obra encena, rapidamente nos apercebemos que tal não é um simples esforço e que será, aliás, até diminutivo daquilo que a peça “realmente” é. Nada menos do que o delírio de um casal, brilhantemente interpretado por Albano Jerónimo e Beatriz Batarda, como uma espécie de requiem para ambos e, de forma mais significativa, para a sociedade. Nenhum dos dois tem nome, demarcando-se enquanto figuras anónimas, símbolos presos ao estatuto que procuram desafiar, contendo em si o problema da identidade pessoal, puxada no sentido de todas as forças e obsessões, sejam estas naturais, sociais, sexuais ou políticas. Onde fica o diferente?

Orgia, Albano Jerónimo, Beatriz Batarda © Raquel Balsa.

Neste sentido, não é de espantar o palco crepitante com o qual nos deparamos, que se afasta da cenografia tradicional de modo a se tornar numa verdadeira máquina interpretativa por si só. Na argila e nas cinzas da instalação de Ivana Sehic, os atores juntam-se numa coreografia ritualística de palavras e corpos, movendo-se a uma velocidade simultaneamente morosa e revigorante. Da interação com a matéria, na pele ficam as marcas vibrantes dos impulsos que nos movem. São deixadas pelo outro e pelo próprio, num contraste visual, paralelo ao discurso formal eloquentemente proferido. 

Orgia é feita de confrontos, das relações entre o Eros e do Thánatos, o individual e o coletivo, a liberdade e a (des)ordem. Aqui reside a apatia urgente, um último suspiro em nome da procura de algo que dê sentido a tudo, de soluções que nos salvem do magma circundante. Acompanhamos as personagens neste percurso sombrio, no sofrimento poético e trágico dos seus sacrifícios, no meio dos quais desaparecem pelo fumo atmosférico. A este ponto, não há caminho a seguir, mas uma luz quente a vir de algures. Por fim, deixam-nos sozinhos neste paraíso perdido, a questionar o que resta de nós.

[Foto em destaque: Orgia, Albano Jerónimo, Beatriz Batarda © Raquel Balsa]

Notas de rodapé

1Pasolini, Pier Paolo, et al. Roman Poems. City Lights Books, 2005

Berlinale 2022 – A nossa experiência e os nossos 5 melhores filmes (V)

Nesta edição atípica da Berlinale, a minha primeira, apercebi-me que, para o festival, certas experiências não estão, nem podem estar, na mesa de negociação. A comunhão, a dimensão partilhável do cinema, é uma delas. Afinal, não é um dos maiores prazeres da vida ouvir uma sala inteira rir? E, que tal, sentir o silêncio profundo dos que estão à nossa volta, também a navegar as ondas de um filme?

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Alcarrás, o desenraizamento de uma família – Urso de Ouro na Berlinale

Nós, enquanto seres humanos, sempre tivemos uma relação muito forte com a terra. É onde a vida começa e onde a vida acaba, dá-nos sustento e um lugar para descansar no fim. Existia antes de nós e irá, esperemos, continuar a existir depois de nós. O seu cuidado e cultivo estão presos na tradição, representando um dos ofícios mais antigos do mundo. Neste século, com as progressivas inovações técnicas e o domínio das terras pelos mesmos grandes compradores, como é que estes costumes humildes se vão conseguir manter de pé?

Alcarrás, da cineasta espanhola Carla Simón, coloca esta mesma pergunta através da história dos membros da família Solé, produtores há várias décadas de pêssegos na pequena aldeia da Catalunha cujo nome dá o título ao filme.

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Três Tigres Tristes, um universo surrealmente próximo do nosso

Em São Paulo, num futuro distópico sinistramente semelhante ao nosso, um vírus indeterminado infeta a população, atacando a capacidade mnemónica do cérebro. Para controlar a pandemia, é anunciada uma “Fase Dourada”, cujas condições ainda estão por definir. No meio da confusão quotidiana, três jovens queer navegam as dificuldades do mundo em que vivem, além das suas próprias identidades.

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