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Alcarrás, o desenraizamento de uma família – Urso de Ouro na Berlinale

Nós, enquanto seres humanos, sempre tivemos uma relação muito forte com a terra. É onde a vida começa e onde a vida acaba, dá-nos sustento e um lugar para descansar no fim. Existia antes de nós e irá, esperemos, continuar a existir depois de nós. O seu cuidado e cultivo estão presos na tradição, representando um dos ofícios mais antigos do mundo. Neste século, com as progressivas inovações técnicas e o domínio das terras pelos mesmos grandes compradores, como é que estes costumes humildes se vão conseguir manter de pé?

Alcarrás, da cineasta espanhola Carla Simón, coloca esta mesma pergunta através da história dos membros da família Solé, produtores há várias décadas de pêssegos na pequena aldeia da Catalunha cujo nome dá o título ao filme.

Conhecemo-los no preciso dia em que descobrem que aquele verão poderá ser o seu último a trabalhar o terreno. Isto porque sempre acreditaram que a palavra dada serviria para transferir a propriedade, mesmo em substituição de um contrato escrito. Agora correm o risco de despejo a favor dos planos do dono oficial, que pretende instalar painéis solares no espaço ocupado pelas suas árvores. Esta ameaça causa uma quebra nos Solés, que tentam encontrar a sua posição futura perante o medo da perda iminente da sua identidade comum.

Carla Simón posiciona-se uma vez mais no seio da própria identidade, apesar de forma menos direta do que no caso da sua estreia autobiográfica Summer 1993, vencedor do Grande Prémio da secção Generation Kplus, do 67º Berlinale. Ainda assim, é indiscutível que filma o campo com a gentileza reservada apenas para aqueles que com ele estão familiarizados, já que também ela tem as suas raízes nos pessegueiros de Alcarrás. Há, por isso, uma maior compreensão não só sobre aquilo que está em jogo, mas também sobre as condições extenuantes às quais os pequenos agricultores são submetidos. Somos relembrados que aquele não é apenas um pedaço de terra, mas um modo de viver.

Em honra deste lema, a realizadora estende a sua honestidade e queda para o realismo a todos os cantos e recantos do filme. Aliás, os atores nem são atores no sentido clássico e profissional do termo, mas habitantes de Alcarrás (precisamente um pouco como sucede no filme Drii Winter, do suíço Michael Koch) que emprestam as suas experiências ao cinema, para nos maravilhar com interpretações incrivelmente sinceras e pessoais, parciais no melhor sentido da palavra. Entre todos, a narrativa é habilmente dividida, de modo a criar um retrato abrangente, mas dedicado, da grande família. A partir de diálogos cruzados, energias opostas e o caos daí nascido, Carla Simón pinta o seu quadro com ternura e estabilidade, pondo a câmara à mercê das personagens. A imagem resultante é a árvore genealógica dos Solés, retratada de forma circular, para que todas as gerações estejam em contacto direto, influenciando-se mutuamente.

À vista disso, é na nostalgia e nos pequenos gestos de amor que a obra se move. Quem não se lembra da azáfama que é correr pela casa a brincar com os primos, enquanto as súplicas da mãe pela tranquilidade geral não passam da categoria de barulho de fundo? E as histórias repetidas da avó que, sabe-se lá como, tem acesso privilegiado às informações de vida de todos os vizinhos e parentes distantes, bem como uma coleção privada de histórias populares, que serve aos mais novos com uma dose de moralidade? Para além disto, há, maioritariamente, uma nostalgia pelo ofício cujos costumes tradicionais se estão a perder, mas para o qual, apesar do sentimento, a cineasta não oferece esperança, já que as vendas são difíceis e o mercado justo é, infelizmente, uma esperança utópica.

Alcarrás deixa-nos, assim, uma ode ao trabalho árduo da terra e às ligações familiares a partir dele construídas. É a extensa despedida amena de um último verão, relatada com o tipo de sensibilidade que nos permite sentir as temperaturas quentes, sem nunca embelezar excessivamente o cenário. Com isto, Carla Simón não recusa a mudança ecológica, mas homenageia aqueles que por ela são influenciados, em detrimento de outras produções maiores e mais lucrativas. Questiona para onde irão estas pessoas e estes costumes a partir daqui, demonstrando que nada é mais comovente do que a honestidade.

Margarida Nabais

[Foto em destaque: Joel Rovira, Ainet Jounou, Isaac Rovira, Alcarrás © LluisTudela]