Masculin Feminin e a mundividência em aforismos

Pelo seu espírito insaciável e inconformado e o seu ímpeto para a criação de novas formas de ver e pensar o cinema, Godard tornou-se um nome imponente da história do cinema. A sua obra, fecunda no que toca à sua matéria e configuração, é preenchida pelos filmes mais contraditórios, complexos, sedutores e caóticos; raramente dando espaço para perceber a sua voz e as suas ideias pela boca das personagens diletantes, eróticas, selvagens e arrojadas.

Godard viveu fascinado pelas possibilidades que a invenção cinematográfica (do analógico ao digital) permitia a uma mente criadora, provocadora e observadora como a sua. O seu olhar foi um olhar sobre o mundo e a sua época. Na leviandade de algumas das suas histórias do período nouvelle vague, encontramos um íntimo olhar sobre um tempo e os seus costumes, onde podemos sentir o zeitgeist em que efervescia o processo que levaria ao movimento estudantil de 1968. 

Masculin Feminin, Jean-Luc Godard © Anatole Dauman

O que encontramos nos seus filmes é esse registo do ar dos tempos, que torna os filmes um arquivo histórico que parte do panorama social e político para a intemporalidade da intimidade das relações humanas. 

Ao longo do passado mês de janeiro, a Cinemateca Portuguesa organizou um ciclo de retrospectiva da sua obra. Oportunidade para rever em sala algumas das suas mais conhecidas e populares longas-metragens: À bout de soufflé (1960), Le Mepris (1963) ou Pierrot le fou (1965).

Aqui, vale a pena um olhar breve para um filme que ao longo de décadas fez as delícias de vários cinéfilos, que inspirou uns a irem estudar cinema e que se tornou o Godard favorito de outros. Masculin, Féminin (1966) estreou logo no ano a seguir a Pierrot le fou, e é o exemplo que aqui trazemos para entender as particularidades apontadas acima sobre o realizador francês. 

Pessoas encontram-se, falam, conhecem-se, apaixonam-se, transformam-se e seguem os seus caminhos. O intuito de Godard, segundo o próprio, seria encontrar um arquétipo específico de juventude. Dizia que “não encontrava sequer na história do cinema uma lista de filmes, ou dez filmes de tal ano, com jovens que representassem uma época”.

Masculin Feminin, Jean-Luc Godard © Anatole Dauman

Dessa vontade surgem estes protagonistas: Paul (Jean-Pierre Léaud) conhece Madeleine (Chantal Goya) num café, num encontro meramente fortuito, à semelhança de outros da vaga francesa. Neste caso é a oposição masculino x feminino ou, como a certa altura apelida, a oposição entre os “filhos de Marx e os filhos da coca-cola”, o díptico no qual o filme sustém o conteúdo da narrativa.  O filme conta com várias sequências cómicas pelo despropositado da situação e, ao bom jeito de Godard, é um filme de diálogos, conversas e aforismos, centrado na tensão existente entre a influência do socialismo na sociedade da altura e a popularidade do estilo de vida americano instalada na europa e aqui simbolizado pelo refrigerante da moda. Em plena Guerra Fria e sempre com a Guerra no Vietname como pano de fundo, a vida moderna parisiense, o quotidiano e a inquietação política são o foco dos pensamento de Paul que os vai anotando no pequeno caderno que transporta consigo.

Servindo de retrato possível da vida moderna ou retrato da vida moderna possível, o filme diverte-nos. Por ser composto por vários sketches (as cenas podiam ser vistas fora do contexto que continuavam a ter um interesse especial), o filme ganha um ritmo que o torna bastante apetecível, tornando-o reconhecido por cenas memoráveis como a da conversa de Paul e Madeleine sobre o que é para cada um o centro do mundo; ou a cena em que Paul invade a cabine do projecionista para se indignar com o formato errado em que o filme está a ser projectado.

O método aqui adotado usa certas formas do cinema verité, não havendo propriamente um guião. Os diálogos partem mesmo de entrevistas feitas aos atores e isso torna-se óbvio em algumas cenas que são um autêntico questionário às personagens. Esse dispositivo serve para chegar à visão sincera e direta dos atores que, de facto, experienciaram as transformações vividas nessa época. Paul e Madeleine guiam-nos por uma sociedade de confronto de classes, despertando-nos para a complexidade dos papéis sociais de cada um.

Um dos mais divertidos e inspiradores filmes do mestre francês, Masculin Feminin vai de encontro às eternas inquietações sobre as paixões e o estado natural da juventude, tentando capturar a sua energia e fazendo reflectir nela os “grandes acontecimentos políticos sob o aspecto de factos comuns”. Jean-Luc Godard explorou a sua arte de forma a sair de todas as gavetas onde o quisessem encerrar. Precisou sempre de se libertar das amarras de fórmulas já vistas para uma contínua exploração do novo, sempre com a sensação que estava a começar. Neste filme, acima de tudo sente-se o espírito de uma época e sente-se o espírito de Godard.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Masculin Feminin, Jean-Luc Godard © Anatole Dauman]

Opening Night e a realidade que conseguimos moldar

“I seem to have lost the reality of the… reality”, confessa a certo ponto a incomparável Gena Rowland na pele de Myrtle Gordon em Opening Night (1977), de John Cassavetes. Mas quem diz o que constitui a realidade, numa existência construída às camadas? Bastidores, palco, audiência. À distância, parecem simples etapas no sistema de comunicação que é o teatro. Sob um olhar mais próximo, contudo, revelam-se autênticos campos de batalha, onde o que está em causa é algo muito para além das cortinas. É ruído identitário, que simultaneamente sussurra e grita, questionando o que está a ser representado. Quando se torna demasiado intenso para o suportar, o resultado é a erupção singular que caracteriza o décimo filme de John Cassavetes. 

Na posição temática central está o trabalho de ator, camaleão de profissão, cuja personificação aqui é a já referida Myrtle Gordon. Atriz famosa e respeitada, protagoniza a mais recente peça da sua carreira, The Second Woman, antecipando a sua grande estreia em Nova-Iorque. Contudo, quando testemunha o atropelamento e súbita morte de uma fã adolescente à saída de uma das suas atuações, o acontecimento impacta-a de tal modo que começa a duvidar da personagem envelhecida que interpreta, à medida que, assombrada por visões da defunta admiradora que acredita representar a sua juventude, é forçada a encarar a sua própria mortalidade, pessoal e profissional.

Gena Rowlands em OPENING NIGHT, de John Cassavetes – © Leopardo Filmes

Este problema insolucionável, é, no seu âmago, um que todos partilhamos, sem escolha, nem palavra a acrescentar. Tal como ela, colocamos os nossos véus de estilo fúnebre todas as noites, caminhando o mesmo percurso, em rumo ao mesmo destino. Gradualmente, as marcas da vida vincam-se no rosto e, na nossa imagem, somos enfrentados com a efemeridade da vida. Myrtle, contudo, não o quer fazer, afirmando com toda a certeza: “Age isn’t interesting. Age is depressing. Age is dull.” No fundo, procura uma maneira para que os anos que passou na Terra não sejam necessários para a existência e posição da personagem que assume na peça. Mas isso é impossível, pois a dramaturga, mulher umas décadas mais velha, não quer mais nada do que a submeter aos números e à sua narrativa.

Presa entre duas gerações distintas, entre a que a provoca com nostalgia e superioridade do valor jovem e a que quer escrever o seu futuro condescendentemente, Myrtle cai numa espiral de decadência, onde a máscara que usa sempre, tal como muitas em personagens cassavetianas, se começa a desintegrar. Procurando exorcizar os demónios e reencontrar os seus passos na transformação do guião, descobre na improvisação uma mão amiga. Quer encontrar algo com coração, esperança, algo que contradiga aquilo que os espelhos refletem e a fatalidade lhe dita pelo ex-amante e ator secundário Maurice, interpretado pelo realizador. “You’re not a woman to me anymore.” Portanto, muda as falas, os movimentos e tudo o que tem à sua disposição, provando que para ela um papel não é algo a ser apenas lido, mas sentido e vivido, criado também pela sua mão. 

Afinal, quem detém a autoria das personagens, o seu cunho? É uma questão que Cassavetes parece explorar não só aqui, mas em toda a sua filmografia, no característico costume de partilhar o espaço à frente da câmara e no gosto assumido pela improvisação enquanto exercício. É gerado o hábito de fazer com que os seus atores respirem as figuras que representam, concedendo-lhes o espaço que o permite, fluindo com uma câmara deambulatória, que se aproxima nos momentos certos, nas expressões e nos detalhes. Coincidentemente, estes elementos nunca estiveram tão presentes quanto em Opening Night, que transpira este tal ar de ambiguidade. 

Uma imagem com pessoa, interior, em pé

Descrição gerada automaticamente
John Cassavetes e Gena Rowlands em OPENING NIGHT, de John Cassavetes – © Leopardo Filmes

No que toca a The Second Woman, contudo, essa qualidade é rejeitada e os esforços análogos da protagonista alienados tanto quanto possível. Há incompreensão e revolta, mas o mote do mundo do espetáculo nunca é esquecido. Deve continuar, acima de tudo. Mesmo quando, conscientemente, a própria obra teatral é desfragmentada, dificultando a distinção entre o que é do que é suposto ser. Renovando-se todas as noites, em cada atuação, alegra uns e desagrada outros, mas é sempre esplendorosa pela sua surpresa. É o agora e o controlável, a realidade que Myrtle consegue moldar e a sua oportunidade para responder às expectativas que o contar do relógio traz. No palco, com ela, o tempo pára e fuma um cigarro.

Margarida Nabais

[Foto em destaque: Ben Gazzara, John Cassavetes e Gena Rowlands em OPENING NIGHT, de John Cassavetes – © Leopardo Filmes]

Le Rayon Vert: a amizade entre a superstição e a ansiedade

Le Rayon Vert (1986) começa apresentando-nos Delphine numa situação que a deixa transtornada e que serve de mote para o percurso que o filme seguirá: a amiga com quem ia de férias cancela os planos. Tal mudança inesperada deixa Delphine em lágrimas pois não suporta viajar e estar sozinha, porém também não lhe agrada o convívio que férias em grupo exigem, e tampouco lhe resta tempo para arranjar outra companhia que possa ir consigo no lugar da amiga. Esta problemática pode parecer trivial, e a sua reação, de quase desespero, é algo exagerada e dramática. A empatia com esta personagem pode não ser imediata. Delphine pode dar-nos a primeira impressão de ser um pouco infantil na maneira como encara as peripécias da sua vida, contudo se não desistirmos de a acompanhar durante a hora e meia que o filme dura, talvez entendamos melhor os seus motivos, e talvez até reconheçamos algo de nós nessa sua procura incessante por algo que ela própria não sabe muito bem o que é nem que forma tomará. A temática do filme é essa – os dilemas interiores desta personagem enquanto procura companhia e local para as férias de verão e o desencanto geral com o que vai encontrando, ou melhor, a sua falta de sentimento de pertença onde quer que esteja. Este leva-a a saltitar por vários sítios e a contactar com diversas pessoas, sempre em busca desse algo que a preencha e cuja falta sente com pesar.

Le Rayon Vert, de Éric Rohmer © Direitos Reservados

Sendo este um filme de Éric Rohmer, não escapa à característica habitual de encadear momentos e conversas do quotidiano, situações triviais que podem por vezes roçar o aborrecimento, mas que agilmente tecem a narrativa de forma envolvente, fazendo-nos prestar atenção à psicologia das personagens, àquilo em que acreditam, a visão do mundo que têm e, sobretudo, a forma como se relacionam, como falam entre si e criam vínculos, o que procuram um nos outros e o que os deixa inseguros. É difícil não nos relacionarmos com quem vemos no ecrã, mesmo que não nos identifiquemos com as suas lógicas, conseguimos perceber a sua humanidade. As personagens de Rohmer são honestas e realmente parecem verbalizar os seus pensamentos mais íntimos. Le Rayon Vert possui ainda a particularidade de ser um filme improvisado em que para cada cena se filmou apenas um take, e no qual Marie Rivière, atriz principal, teve liberdade para desenvolver os diálogos a partir das linhas gerais indicadas pelo realizador, tal como relatou em entrevista à plataforma de streaming Mubi. O facto de não ter existido um guião a ser seguido permitiu a absorção de aspetos da realidade pela ficção do filme: os diferentes locais que Delphine atravessa têm alguma conexão com a equipa, eram sítios por eles regularmente visitados; as famílias das personagens eram de facto as famílias das atrizes; e um certo sentimento de solidão liga Marie Rivière a Delphine, de acordo com o que revelou na entrevista mencionada. 

De facto, Delphine parece sentir-se sozinha, mesmo que rodeada de pessoas que lhe querem bem e cuidam dela. A sua solidão é sobretudo interior e é alimentada por uma angústia que parece já fazer parte de si, um sentimento de desconsolo em relação a si mesma, uma crença de que não é funcional, como afirma em lágrimas já quase no final do filme. Há algo que parece bloqueá-la a partir de dentro e que a impede de se relacionar mais intimamente com os outros como tanto deseja. Numa outra conversa, e pressionada por uma amiga que questiona a sua inércia, confirma precisamente que tem muito para expressar, mas que simplesmente não o faz. Delphine parece encarnar o sentimento de ansiedade, esse conflito entre uma vida interior que aspira a conexão com urgência e a dificuldade em materializar, com palavras e ações, tal necessidade no mundo exterior. Desde o início do filme que, repetidamente, a ouvimos falar da sua vontade de conhecer alguém para de seguida assistirmos à sua recusa quando alguma circunstância parece permiti-lo. Apesar de Delphine se mostrar insegura, ao mesmo tempo confia profundamente na sua intuição e espera de forma desassossegada por alguém que a faça sentir o que procura, acreditando que quando encontrar tal pessoa, simplesmente saberá. 

Le Rayon Vert, de Éric Rohmer © Direitos Reservados

A sua sensibilidade para atribuir significados e interpretar o seu redor certamente a ajuda nessa tarefa – Le Rayon Vert fala-nos também de superstições e repetição de situações e objetos que não se explicam facilmente de forma racional. Delphine encontra diversas vezes cartas no chão, isoladas dos baralhos, e não sabe o que tal padrão significa, mas suspeita que signifique algo, atribuindo-lhe uma importância que começa a fazer parte da sua experiência pessoal de deambular pelas ruas. São pequenas coincidências que só ela nota, são conexões íntimas entre si e o mundo. Noutra situação, escuta um grupo de amigos que conversam sobre o livro de Júlio Verne do mesmo nome que o filme. É dessa forma que aprende sobre o fenómeno físico que é possível observar em dias luminosos e em locais com a linha de horizonte bem definida: o último raio de sol antes de este se pôr é verde. Assistir a tal fenómeno é raro, pois este é muito breve e necessita de condições atmosféricas precisas. A explicação científica para que tal aconteça é comentada no filme, porém sobrepõe-se, para Delphine, o seu significado místico. De acordo com o romance de Júlio Verne, o raio verde confere a quem o presencia a capacidade de entender com clareza quer os seus sentimentos quer os dos outros. Delphine é cativada por esta descoberta e procura a possibilidade de ver o raio verde, entendendo-o como uma confirmação do seu estado emocional íntimo, e até sentindo a necessidade de o ver para se entender melhor a si mesma.  

Em Le Rayon Vert parece estar sempre a ocorrer um jogo entre o interior e o exterior. Delphine procura constantemente fazer a conexão entre a sua pessoa e o que tem à sua volta, pensando em si como parte integrante do ambiente ao invés de como sujeito isolado e desapegado – como quando afirma que as alfaces são suas amigas. Para Delphine, viver deve sempre ser o ato de estar inteira e presente, não tendo receio de recusar todas as pessoas e situações que não a façam sentir assim. Mesmo que tal atitude prolongue a sua busca por segurança e amor, Delphine só quer o que é genuíno e sincero.  

Vera Barquero

[Foto em destaque: Le Rayon Vert, de Éric Rohmer © Direitos Reservados]