Alexander Markov – Red Africa: “Aqui vemos a manipulação da propaganda”

Alexander Markov regressa ao IndieLisboa para apresentar Red Africa (hoje, dia 5, no Ideal, às 22h), um documento que parte do projecto anterior (Our Africa, Indie 2019), abordando a partir de um ângulo mais profundo a questão da propaganda soviética nos países africanos acabados de sair do colonialismo. Nesta co-produção entre a Rússia e Portugal (Kintop e RTP) parte-se igualmente do imenso arquivo de imagens captadas por documentaristas soviéticos durante várias décadas, desde os anos 60 até à queda da União Soviética. Aí se capta a utopia e aproximação geopolítica ao continente africano, incluindo as colónias portuguesas, sublinhadas pelo trabalho muito cuidado na edição sonora, permitindo uma reflexão analítica e uma leitura mais apurada sobre o seu próprio contexto de propaganda. Algo que nos permite perceber o que se esconde por detrás do verniz ideológico do glamour desta URSS e da máscara destinada a vender o paraíso socialista da época. O segredo desta leitura reside no apurado desenho de som não linear que combina som oficial de discursos, com material recriado, além de banda sonora captada na época. 

Inevitavelmente, um filme que nos remete para a actualidade de hoje vivida no conflito com a Ucrânia, onde o lado militarista vigoroso eclodiu depois de anos de soft power com diversos líderes europeus.

Falámos com o documentarista Alexander Markov (49 anos) durante a apresentação de Red Africa no recente festival de cinema documental Visions du Réel, ocorrido em Nyon, na Suíça.

Red Africa (Imagem: Kintop)

Gostei muito do seu filme. Especialmente, o meticuloso trabalho com o som e a forma como é montado. Pode descrever-nos esse processo? 

Comecei a trabalhar com o som na Rússia, com um ótimo diretor de som, o Sergey Moshkov, que trabalhou com o Alexander Sokurov em vários projectos (Moloch, Taurus, A Arca Russa, Pai e Filho…). Para mim, era muito importante retirar todo o som da propaganda soviética, muito aborrecido, que descrevia os países africanos a iniciarem um percurso no comunismo. A ideia do som foi sendo desenvolvida ainda em S. Petersburgo. 

A pós-produção de som já foi feita nos estúdios de Lisboa?

Sim, entretanto, vim para Lisboa fazer a pós-produção, com um dos maiores realizadores e misturadores de som, o Pedro Góis, de Lisboa. Gostei imenso de trabalhar com ele. Na verdade, na altura, ele não tinha percebido bem a razão para eu não aproveitar o som original. Mais tarde escreveu-me a dizer que compreendera tudo e apoiava a minha forma de criação. No fundo, percebeu essa dimensão essencial que não era afectada pelo som – quase como um filme mudo. 

Sim, completamente. Isso dá-nos uma outra visão do que realmente vemos. 

Certo. Era uma essência que deveria ser muito concreta. Por exemplo, o som das medalhas dos soldados na Tânzania ou os soldados congoleses quando se encontram com o Patrice Lumumba (1925-1961). Esse é um som militarista. Isso é apenas um exemplo da opção por este caminho. Nem todos sons deveriam ser gravados, mas numa forma dramática. Esse drama e o som deveriam trabalhar juntos. Essa era a ideia principal. 

Sim, totalmente diferente do som original e da mensagem de propaganda…

Por vezes colocava o áudio soviético, só para me lembrar desse ponto de vista. Qual era o ponto e vista dos realizadores na altura, dos estúdios, dos patrões comunistas. No fundo, o que eles pensavam de África, como eles vendiam o continente africano aos soviéticos, mas também aos próprios africanos. 

No fundo, uma forma de censura

Repare, trata-se de uma co-produção entre a URSS e os países africanos. Os profissionais de cinema estavam entre os dois tipos de censura. Do lado soviético e do lado africano. O que é compreensível.

Fale-me do trabalho realizado em Lisboa, no estúdio Kintop.

Sim, foi aí que fizemos mistura de som. O Pedro Góis deixou a sua opinião, já que a minha versão não estava ainda muito trabalhada. É a visão dele que está agora mais presente. De uma forma em que agora já não temos receio do silêncio. Nesse sentido, o silêncio é também a nossa arma. Como sucede, por exemplo, no funeral do Leonidas Brejnev (1906-1982), onde os diversos líderes comunistas de todo o mundo vão despedir-se dele. Porque também têm receio dos seus próprios regimes. É isso que se vê também no seu olhar. Por isso, decidimos fazê-lo sem silêncio. Por vezes, com uma música.

Por falar no Kintop, gosto imenso do trabalho da Susana Sousa Dias e da forma como ela usa as imagens de arquivo. Fale-me um pouco do trabalho que realizou com ela e com o Ansgar (Schaefer).

Eu também aprecio muito o trabalho da Susana. Conheci-a, a ela e ao Ansgar, em São Petersburgo, mas apenas nos conhecemos. Na altura descrevi a minha ideia para um projecto Our Africa. Ela gostou. Ela e o Ansgar acharam que faria sentido concorrer ao ICA com um projecto focado nas antigas colónias portuguesas. Decidimos o conteúdo em 2019, no qual esteve envolvida toda a equipa do Kintop. 

A cena inicial de Red Africa com os escravos parece ser a única que destoa do conjunto, pois parece mais ficcionada. Como foi criada?

Essa cena, com os escravos africanos, na ilha Gora, no Senegal, foi criada pelo realizador soviético Yuri Aldokhin. Nessa altura, tinha apenas 23 anos. Na verdade, toda a equipa era contra a inclusão desta cena. Já não me lembro porquê, mas a Susana disse que era muito boa e que deverei ficar. Pois indica a forma como os soviéticos imaginavam a escravatura. Devo acrescentar que o Yuri Aldokhin foi o único cameraman em 30 anos, de Moscovo, a criar um registo ficcional sobre a escravatura. Os outros mostram apenas lugares com as estátuas de colonizadores, usando voz off a explicar ao público russo o que era a escravatura. O plano com o homem sentado num lugar estranho é único e diz muito sobre as reflexões soviéticas sobre a escravatura nessa altura. Especialmente nos anos 1960. 

Como foi o trabalho de investigação com o arquivo? Em que momento entra a produção portuguesa?

Sobre o arquivo tenho de dizer que estou muito grato à diretora do African Film Festival NY, a Mahen Bonetti, minha amiga. Conheci-a em 2006, em Poughkeepsie (perto de Nova Iorque) e acabei por trabalhar também, como investigador, para esse festival. Ela conhecia material de russos filmado em países africanos. Ao longo de sete anos fizemos diversos programas especiais focados em diferentes países africanos. Pensei na ideia em 2011, mas não foi nada fácil encontrar financiamento. Agradeço à Kintop por ter mostrado interesse.

Fale-me do trabalho de arquivo em concreto. O que procurava e o que encontrou?

O arquivo fílmico é vasto, existe muito material de propaganda, mas é algo especial, pois não é realista, é material criado. Às vezes sinto que estou dentro de uma ficção. Eram comissões em que faziam uma espécie de publicidade, na minha opinião. Eles eram quase como turistas nos países africanos. Por vezes tinham cinco dias para filmar, outras duas semanas, às vezes dois meses. Esse era um objectivo da diplomacia russa. 

Algo em que a Rússia tem uma grande tradição. 

Sim, eles sabiam como criar todo aquele glamour nos anos 1960, mas também em 1970 e nos anos 1980. E sabiam também como adaptar cada filme às diferentes situações. Fosse amigável ou relações internacionais com países africanos. Esses filmes são um produto especial dos estúdios soviéticos que trabalham de forma muito estreia com a diplomacia. 

Red Africa, de Alexander Markov ©direitos reservados

Sim, era uma imagem típica de propaganda…

O problema é que os filmes se parecem muito uns com os outros. São muito semelhantes. Era um problema dramático, mas também para a montagem porque todas as imagens têm o mesmo estilo. Funcionou de uma forma formalista, mas estranho do ponto de vista dramático. Mesmo assim encontrei sequências muito boas com o Brejnev, sobretudo quando ele observa países africanos e o vemos nas ruas a mostrar o seu colonial mood – um mood de soft power. Depois os planos dos soviéticos a cortarem as árvores e a sua satisfação. Ensinam os africanos à sua maneira. Tudo isso parece muito colonial. Isso foi um presente para mim. É uma forma da propaganda se apresentar a si própria. Isso foi bom do ponto de vista dramático. 

Podemos dizer que foi essa mesma propaganda que esteve na origem do que se passa hoje com a invasão a Rússia na Ucrânia? 

É uma boa pergunta. Para mim, é claro que o império russo era já uma nação militarista. Completamente militarista. Tal como a União Soviética. A propaganda usa a expressão “Miru Mir” (em russo) que significa “a paz para o mundo”. Portanto, lutamos pela liberdade (risos), ou seja “lutamos” … pela liberdade. É o que diz a propaganda soviética. Agora sabemos que o regime do Putin investiu muito em armamento. 

Aparentemente, pouco ou nada mudou…

Neste ponto de vista, nada mudou. A Federação Russa consiste em várias federações pertencentes também ao império soviético, com o centro em Moscovo. Tal como o soft power que vemos em Red Africa. Claro que usam a mesma propaganda. Mas o que é mais importante são as ambições de império que vemos no solo africano. Não foi muito difícil. Venderam armas, treinaram os oficiais, ajudaram as guerrilhas. Algo que parece ser contra o poder colonial, embora tenha o seu lado militarista. Nesse cenário militar da URSS e da Federação Russa e do Império Russo nada mudou no princípio imperialista. Moscovo sabe viver, sabe como controlar as fraquezas deste território. O que percebemos é que este poder militarista foi preparado ao longo de vinte anos. Vemos agora o resultado, completamente agressivo. 

A ideia era mostrar todo esse processo até ao colapso da URSS, certo?

Sim, e a esperança da independência da Ucrânia, da Bielorrússia, da Lituânia, da Látvia, da Estónia… Esses países tiveram sorte e são independentes. Mas para a Ucrânia e a Bielorrússia é mais difícil devido à missão da nova Federação Russa, a Federação Russa do Putin. Podemos comparar estas ambição com a História deste território. Um paralelo que podemos criar com a história de Ivan, o Terrível ou outros czares, que foram também completamente militaristas. E encontrar as raízes para a propaganda no século XX, durante a 1ª GM, mas também a 2ª GM. É claro que estou apenas a pensar na União Soviética e na forma como colapsou. Este contraste entre o paraíso socialista africano e a queda a União Soviética. Aqui vemos a forma da manipulação da propaganda, a forma como gostam de ser vistos. Vemos o que criaram num filme soviético. A verdade mostra outro quadro da vida, outros quadros da vida.

Paulo Portugal

[Foto em destaque: Alexander Markov na Nazaré]

O Grande Herbário da Luz de Leandro Listorti

“Tu tiras duas imagens, e cada uma delas é neutra; mas de repente, ao lado    uma da outra, elas vibram à medida que um novo tipo de vida entra nelas. E não é realmente a vida da história ou dos personagens; é a vida do filme.”

Robert Bresson[1]

Cinema e plantas encontram na luz a sua condição necessária de existência. Sendo necessária, não é única. Inscrita no tempo, o conteúdo positivo da luz advém de um acto de luta e de resistência perante as ameaças de desaparecimento até à extinção. No fundo, requer a presença animada e/ou inanimada de um gesto que sintetize e dê sentido ao acontecimento da luz. A sobrevivência da arte cinematográfica e das inúmeras espécies de plantas joga-se aqui. Com este propósito, dois organismos, o da película e o das plantas, radicalmente dissemelhantes, são justapostos e daí nasce um terceiro organismo – Herbaria. A segunda longa-metragem do realizador argentino Leandro Listorti, que teve a sua estreia mundial na secção Burning Ligths da última edição do Festival de Cinema Visions du Réel, venceu o Prémio Especial do Júri pela Société des Hôteliers de la Côte.

Porque designamos a película de organismo, uma vez que, paradoxalmente, é na qualidade de organismo que a planta se distingue do cinema? Porque ela para nós significa o que as plantas significam para Narcisa Hirsh[2], para quem “as flores são o que anunciam a presença do Homem”. Neste sentido, o filme torna-se o próprio gesto de preservação, o acto de resistência que coloca a unidade do diverso em movimento. 

A relação entre os dois organismos que dá corpo ao filme concretiza-se na justaposição entre imagens do cinema e imagens de plantas, a fazer lembrar a montagem dialéctica eisensteiniana. Planos dão lugar a organismos e o cinema abre-se para a vida e para a biodiversidade das plantas, “como um único organismo interligado”, diz-nos o realizador. Nova Iorque, Berlim e Buenos Aires, dão lugar a uma só geografia fílmica. Assim, Herbaria materializa a unidade do diverso[3].

Herbaria, de Leandro Listorti ©Visions du Réel

Esse gesto em movimento, que persiste em cada plano do filme, é o derradeiro elemento de aproximação entre o cinema e as plantas. A medida dessa aproximação, desse gesto? O tempo. Mas um tempo que não conhece a linearidade da sucessão e da sequência narrativa. Antes, um tempo tutelado pelo novelo de imagens, de movimentos e de ligações que se mostra numa relação tensional de dependência com o meio, ora dissonante, ora convergente, quase sempre incompreensível. Um tempo de pura exterioridade, como a das plantas, que, aquilo que são, são-no para a diversidade dos outros, sem abdicar de um si de que não têm consciência enquanto fronteira, como se pode definir a autenticidade de qualquer gesto em movimento. Um tempo, enfim, a que Herbaria dá vida. Mas como Herbaria traduz tudo isto? Respeitando o sentido artesanal que regia o modo de fazer cinema de Bresson, ao qual o filme de Leandro Listorti apela, quer no objeto de representação – a preservação da película –, quer no modo como representa – em 16mm, Super 8 e 35mm. A feitura do filme, ela própria plena desse sentido, não é senão um prolongamento do trabalho artesanal envolvido nesse gesto primeiro. Fragmentos de pessoas, de plantas, de movimentos, de luzes e de sombras, atraem-se de tal modo que herbários se confundem com arquivos cinematográficos, realizadores com botânicos e forma com conteúdo. 

Inconfundível é a relação que se cria e se nos mostra em Herbaria, a qual não tínhamos visto anteriormente. A sua singularidade não se prende com o evento inédito que ela constitui não só para a história dos dois organismos e para o olhar do espectador e do botânico, mas pelo cruzamento de duas taxinomias, as quais tão naturalmente se integram uma na outra. Estranho é dela não nos termos apercebido mais cedo. Diante dela, um verdadeiro vislumbre da beleza e delicadeza do filme inicia um novo movimento interior, o qual já não pertence ao filme. E de novo olhamos o mundo para nele ver à luz do filme o anúncio da presença do Homem.  

Cátia Rodrigues

[1] Bresson, R. (1983a). Entrevistado por B. Cardullo. The Poetry of Paucity, the Art of Elision: Robert Bresson in Conversation. In The films of Robert Bresson: A Casebook. B. Cardullo (Ed.). New York: Anthem Press

[2] Cineasta argentina de origem alemã

[3] Jacques Rancière, Imagens do mundo

[Foto em destaque: Herbaria, de Leandro Listorti ©Visions du Réel]

Visions du Réel – Portugueses sem prémios

Depois de Visions du RéelRed Africa Via Norte viram-se para o IndieLisboa, de 28 de Abril a 8 de Maio.

Apesar da diversidade das propostas apresentadas pelas várias produções (e co-produções) nacionais, os filmes portugueses saíram de Nyon sem qualquer distinção. Uma pena, pois o naipe de filmes revela bastante fulgor cinematográfico. Desde logo, a visão muito particular de Red Africa, recriada pelo russo Alexander Markov, numa co-produção com a RTP e a produtora Kintop, de Susana Sousa Dias, sobre a influência da propaganda russa em diversos países africanos entre os anos 60 e 90, ou seja, entre o período de descolonização e a queda da URSS. Além das valiosas imagens de arquivo, destaca-se a intenção conferida à dimensão sonora que nos permite observar as imagens isentas da manipulação sonora original. Seguramente, um filme muito revelador que adquire dos dias de hoje uma pertinência inesperada e suplementar.

Red Africa, de Alexander Markov ©Visions du Réel

Igualmente ignorado foi Via Norte (ou Périphérique Nord) de Paulo Carneiro, dois anos depois da investigação familiar, em Bostofrio, adapta agora o mesmo registo de observação integrada sobre o valor e a extensão que um automóvel pode ter na vida social. Em particular, na comunidade emigrante na Suíça que retrata as suas paixões pelos carros modificados. 

Break Your Dick, de Pedro Rei ©Visions du Réel

Se estes dois são talvez os filmes mais marcantes, em breve em exibição no IndieLisboa, merece ainda atenção Break Your Dick, de Pedro Rei, produzida pelo KinoDoc, a acompanhar o caminho tortuoso da transsexual Aurora para mudança de sexo, exibido no mercado. Do Bairro, de Diogo Varela Silva, reflecte a visão peculiar de alguns bairros históricos de Lisboa, como a Mouraria e Alfama, e o efeito da pandemia que os tornou em verdadeiros bairros fantasmas. Já a dupla Pedro Neto e Ricardo Falcão, reflecte em Yoon a viagem de um senegalês, desde Portugal até à sua terra, reflectindo sobre as pessoas que deixou para trás e as que irá encontrar em Dakar.

Referência ainda às produções minoritárias: as curtas Boy from the Dreams, do butanês Suraj Bhattarai, apresentado em estreia mundial e os oito minutos da animação Ribs, da bósnia Farah Hasanbegovic, dois projectos oriundos do Doc Nomads. 

[Foto em destaque: Via Norte (ou Périphérique Nord) de Paulo Carneiro ©Visions du Réel]

Suíço L’Îlot vence o festival Visions du Réel

A Long Journey Home da chinesa Wenqian Zhang vence a secção Burning LightsPortugueses sem prémios em Nyon.

L’Îlot, a estreia do suíço Tizian Büchi, foi o filme vencedor do Grand Pirx do Visions du Réel. Uma produção local, de Lausanne, que vence o festival, algo que não acontecia há quase dez anos, celebrando de uma forma perfeitamente conseguida a visão misteriosa que funda a investigação do acto de ver, no limite entre a realidade e a ficção, escondida numa insólita dimensão espacial e geográfica. A partir de uma área ribeirinha de lazer da cidadã de Lausanne, agora vedada por motivos misteriosos, facilita-se um ponto de vista entre vários cidadãos de diferentes proveniências e culturas. Desde logo, um dos guardas, de origem angolana e um dos muitos emigrantes portugueses, proprietário de um café local, além de um outro guarda magrebino, entre diversos espanhóis, uma jovem guitarrista à procura de inspiração ou até uma criança que acredita existir ouro naquelas águas, como que a acentuar as diversas hipóteses de fantasia que acentuam o lado híbrido dessa realidade. 

A Long Journey Home, de Wenqian Zhang ©Visions du Réel

Também estreante, a chinesa Wenqian Zhang venceu na secção Burning Ligts com o filme A Long Journey Home, em que a sua câmara regista a coabitação familiar ao mesmo tempo que a sua vontade de emancipação choca com uma visão mais tradicional. A suíça-japonesa Julie Sando venceu na categoria de Competição Nacional e o prémio Zonta pela sua escola de cinema Fuku Nashi.

Fire of Love, de Sara Dosa ©Visions du Réel

O prémio do público foi para o filme americano Fire of Love, de Sara Dosa, sobre um retrato efusivo do casal de vulcanólogos Katia e Maurice Krafft mortos em 1991. Ao passo que o prémio FIPRESCI, representando o júri da crítica internacional, distinguiu o peruano Steel Life, de Manuel Bauer, sublinhando a descrição da actualidade peruana, envolta numa “subtil crítica social das injustiças do sistema capitalista”. 

Steel Life, de Manuel Bauer ©Visions du Réel

Emilie Bujès, a directora artística do Visions du Réel, congratulou-se pela “variedade de géneros, gerações, pontos de vista e geografias que nos guiaram terem sido reconhecidas e premiadas pelo público e pelos membros do júri”. Isto num palmarés que inclui sete primeiras obras, “novas vozes que se equiparam aos trabalhos de realizadores experientes”, referiu no serão de sábado, dia 16 de Abril. 

De referir que a 53ª edição do festival apresentou 160 documentários provenientes de 68 países, sendo que dos 124 filmes apresentados na seleção oficial, 85 foram exibidos em estreia mundial. No que diz respeito à adesão do público, a edição deste ano terá sido muito semelhante à de 2019, a última celebrada presencialmente e não em versão online. 

[Foto em destaque: L’Îlot, de Tizian Büchi ©Visions du Réel]

Visões do Real revela diferentes jogos de poder

Em Dogwatch, o poder desnecessário impõe-se sem reação, ao passo que em Foragers, é a ilegitimidade do poder que se impõe diante uma bagatela. Por fim, na curta Quem de direito ausculta-se o ancestral poder pela posse da terra, mas à beira de ser alagado.

Na sua estreia em formato longo, o grego Gregori Rentis coloca a nu a (des)utilidade da força bélica quando confrontada com a ausência de conflito, na intrigante e inesperada calmaria poética captada em Dogwatch, a co-produção franco-helénica exibida em estreia mundial na secção competitiva do festival Visions du Réel, a decorrer em Nyon, na Suíça. Nesta cobertura online, vimos ainda Foragers Quem de Direito.

Dogwatch ©Visions du Réel

A bordo de uma nave de intervenção marítima, uma task force multinacional de soldados da fortuna entrega-se a tarefas menores num quotidiano de espera. Enquanto uma voz de sotaque israelita vai gritando ‘inimigo às nove horas’ ou ‘mudar de carregador’, os pupilos contentam-se em contemplar alvos imaginários ao mesmo tempo que apertam, com nervosismo, um gatilho sem pressão. Nos intervalos, a câmara procura diferentes coreografias, sejam os movimentos precisos da máquina elétrica que acerta o cabelo, os movimentos atléticos que insuflam os músculos para exibir os bíceps e peitorais depilados numa discoteca masculina em dia de folga ou até ainda os gestos indolentes que cozinham ovos estrelados.

Longe vai a ‘golden era’ em que eram frequentes as investidas de corsários, nessa zona de alto risco na costa da Somália, e motivaram até a ficção made in Hollywood, em 2013, com Tom Hanks no papel de Capitão Philips, de Paul Greengrass. Hoje o perigo parece surgir apenas de pequenas embarcações carregadas de explosivos com o único intuito de provocar o caos. Outros tempos, que motivam veteranos, como Victor, a meter os papéis para um desk job

É precisamente esse lado observacional, de completa modorra, que melhor acentua o lado absurdo da guerra. Algo que Rentis regista com rigor, sublinhando a dimensão observacional dos rituais de entrega e observação de um corpo de combate, embora resignado à espera do inimigo com falta de comparência, a fazer lembrar o cinema do canadiano Denis Coté, em particular, o Ta peau se lisse, de 2017. 

Cercados 

Embora sem qualquer desejo de simular uma ponte temática, sente-se em Foragers (no original Al-Yad Al-Khadra)da artista palestina Jumana Manna, a viver em Berlim, uma sensação inversa a esse projecto, ou seja, a proibição imposta pelas autoridades israelitas da apanha ancestral de determinadas ervas silvestres pelos palestinos, chamadas Za’tar e Akoub. Afinal trata-se apenas de plantas medicinais que abundam nos territórios ocupados e nos Montes Golan, constituindo parte integrante da dieta local e ancestral da comunidade árabe. No fundo, vitais pelos seus poderes medicinais, anti-inflamatório e bactericida e outras propriedades farmacêuticas. Quase um orgulho nacional, como nos é relatado no filme.

A partir do momento em que uma autoridade israelita determinou a proibição da apanha de akoub, em 2005, gerou-se uma enorme procura da população palestina, pela oferta de um reduzido número de empresas israelitas que asseguram, em kibutzes, a sua produção. Algo que se torna muito dispendioso aos agricultores árabes, pela impossibilidade de garantir um seguro para as culturas. 

Na sequência da demarcação e vedação desse território, criando assim um comércio exclusivo, gera uma colecta ilegal por parte de muitos árabes que recusam essa imposição. Só que a recolha ilegal faz desta erva um equivalente ao tráfico de marijuana e gera contraordenações pesadas. 

A certa altura, um velho argumenta “não vou justificar a vossa lei” à instrutora israelita que invoca o preceito criado pelo seu povo, argumentando que  o proíbe de “colher alimento”. É precisamente diante desse direito de resistência, melhor, de indignação, com que ficamos.

Quem de direito ©Visions du Réel

Por fim, vimos ainda, na secção Film Market, a curta brasileira Quem de direito, a invocar a permanente luta pela posse da terra. Um registo que colhe interesse, sobretudo pela forma como a cineasta Ana Galiza recria histórias, passadas, mas também presentes. 

A partir de registos fotográficos, que nos recorda a obra da portuguesa Susana Sousa Dias, evocam-se a História desse conflito na bacia do vale Guapiaçu, a 100 kms do Rio de Janeiro. E dos conflitos gerados desde o início dos anos 60 e prolongados ao longo de toda a ditadura militar, justamente no município com mais presos e mortos durante esses anos de chumbo. No meio desta questão, está ainda a polémica construção de uma barragem que não parece ter em conta o impacto nas populações que ficariam totalmente submersas.

[Foto em destaque: Foragers ©Visions du Réel]

Éclaireuses – Os dias mais claros da escola 

A crise de refugiados que se vive atualmente na Europa é uma declinação menos silenciosa que a que se vive há décadas em grande parte das regiões do mundo. Sendo o silêncio a marca da distância e da abstração, a proximidade geográfica da crise e seus efeitos traz à presença e expõe a fragilidade da interpretação dos fundamentos sociais e humanistas que estão no cerne da civilização ocidental, da qual a União Europeia se destaca como a tentativa pós-moderna de realização política. O que mais surpreende, embora – cinicamente – não muito, tem que ver com uma outra variação da relação com a proximidade. A par da proximidade de tipo espacial, tornou-se novamente evidente que esses fundamentos servem um propósito político-temporal, reservados a preservar uma demarcação histórica daqueles que produzem reconhecimento na sua alteridade, como a diferença na resposta às crises humanitárias resultantes da invasão da Ucrânia e da Primavera Árabe tão bem ilustram. O Outro, cuja diferença não pode ser encerrada nos limites do Mesmo, continua alvo de rejeição, discriminação, estigmatização, … enfim, continua um estrangeiro na sua nova terra. 

 São muitos e importantes os filmes que se têm debruçado sobre este problema social e político. Eles mostram desde a guerra e seus efeitos locais até ao ciclo de desespero que marca os movimentos precários de fuga e processamento em condições desumanas até à legalização por países de destino, tudo aturadamente mastigado por uma máquina burocrática hostil, despersonalizada e despersonalizante. 

Juliette Pirlet e Marie Pierrard em Éclaireuses ©Éclaireuses]

No último ano, dois filmes acrescentaram a estas representações uma nova dimensão, que o cinema, até então, tinha ignorado ou esquecido – a educação, nomeadamente a das crianças refugiadas. Falamos do belíssimo documentário O Professor Bachmann e a sua turma, da realizadora alemã Maria Speth, e do mais recente Éclaireuses, de Lydie Wisshaupt-Claudel, filme em estreia na Competição Internacional do festival de cinema Visions du Réel, a decorrer até ao dia 17 de Abril. Comum aos dois filmes, uma questão: Como podem as instituições escolares constituir-se como um espaço de integração, segurança e aprendizagem para estas crianças, e não de opressão e discriminação, como parece ser o caso? 

La Petite École, a escola ‘pequena’ que Marie e Juliette abriram no coração de Bruxelas, depois de abandonarem o ensino clássico, apresenta-se como um “laboratório de investigação”, nas palavras das mesmas, pretendendo ser uma possível resposta a essa pergunta. Criada para acolher crianças, entre os 6 e os 15 anos, que nunca estiveram na escola, grande parte das quais oriundas de famílias exiladas, sobretudo da Síria, esta escola é um lugar de transição para as escolas do sistema público.  Com métodos pouco ou nada convencionais, preferencialmente de carácter imersivo, aqui encontra-se um espaço de aprendizagem que visa apoiar individualmente cada criança, integrando-as numa comunidade “escolar” que privilegia a confiança e segurança, dois elementos essenciais e indispensáveis à luz das experiências traumáticas por que passaram.

Éclaireuses ©Éclaireuses

Documentário de estilo observacional, tal como o filme de Maria Speth, a lembrar o cinema de Frederick Wiseman, também ele, como se sabe, centrado em instituições sociais, Éclaireuses é um filme tão luminoso quanto o é o projecto do qual trata. Nele, mostra-se e descobre-se a possibilidade de confrontarmos e de interrogarmos a distância que se interpõe entre nós enquanto sociedade e estas crianças e a desatenção face ao perpetuar da discriminação e segregação, do qual as nossas instituições sociais também são responsáveis. O gesto inaugural de questionamento – qual o sentido da educação e qual o papel que a escola, na forma institucional e tradicional, nela desempenha – do qual nasce La Petite École, ecoa em cada momento de reflexão pedagógica entre as duas professoras e entre elas e os grupos de investigação e outros responsáveis e docentes, que no filme se intercalam com imagens dos dias passados na ‘pequena’ escola. Entre o modo e o estilo observacional com que são filmados esses dias e o método de ensino que neles é adoptado e praticado, dá-se um verdadeiro encontro. A organização do tempo e do dia não apenas reúne as diferentes cadências de cada uma das crianças, como também rege a presença da câmara no espaço, dando corpo a uma unidade rítmica entre diferentes estruturas temporais. Ao invés de ser imposto pelo fazer do filme e pela presença da câmara, o ritmo que aproxima escola e filme inscreve-se lentamente no intervalo espácio-temporal em que ambos se fundem. A verdade é que, inicialmente, Lydie Wisshaupt-Claudel fora proibida de entrar e filmar a escola, tendo sido necessários vários encontros, debates e ensaios entre ela e as professoras sobre as possibilidades e formas de filmar para fazer nascer a vontade de realizar o filme. Não reconhecemos neste processo também o processo que deu origem e dá sentido à La Petite École – debater, reflectir, pôr em prática? 

Considerada uma “falsa” escola, desvalorizada naquilo que é capaz e que representa para as crianças que acolhe, não será La Petite École, a par do método de ensino holístico e em nada semelhante ao método vigente do Professor Bachmann, o início de um futuro na educação? Da angústia para qual somos inevitavelmente atirados ao ver Éclaireuses, com ele nasce também a esperança de que se torne presente esse tão luminoso futuro e a vontade de fazer parte dele, de tornar o projecto de Marie e Juliette o projecto de todos nós. 

[Foto em destaque: Juliette Pirlet em Éclaireuses ©Éclaireuses]