Nunca se viu nada assim. Pelo menos no Indie. Um filme que vence a Competição Internacional e também a Competição Nacional. Pois Mato Seco em Chamas, do brasileiro Adirley Queirós e da companheira portuguesa Joana Pimenta, cometeu a proeza de convencer os diferentes elementos do júri e arrebatar ambos os prémios. Venceu o principal prémio internacional, ou seja, o Grande Prémio de Longa Metragem Cidade de Lisboa, bem como o Prémio Allianz para Melhor Longa Metragem Portuguesa. O filme recebeu ainda um terceiro prémio, o do júri universitário.
O casal Adirley e Joana está de parabéns pela ousadia de trazerem à tela um cinema descomprometido com os centros de poder, justamente apostado numa dinâmica de pura e desafiante liberdade criativa. Em causa, a deriva empoderada de várias mulheres (só uma Gleide Firmino é profissional) que compõem um retrato de uma zona do Brasil, a Ceilêndia, nos arredores de Brasília (de onde é natural o próprio Adirley), com a mira apontada às políticas públicas de terra (e cultura) queimada do presidente Jair Bolsonaro.
Já antes se salientara a enorme pujança do cinema português na 19ª edição do IndieLisboa, mas longe de imaginar este resultado tão avassalador. Até porque há ainda que acrescentar alguns títulos. Desde logo, o prémio de melhor realização atribuído a Rita Azevedo Gomes, pelo seu trabalho em O Trio em Mi Bemol. E ainda a distinção de Ana Sofia Fonseca pelo musical Cesária Évora.
Já nas curtas metragens, a distinção para Domy + Ailucha, Cenas Kets!, um filme colaborativo de Ico Costa, além de Um Caroço de Abacate, de Ary Zara, ficou com o Prémio Novo Talento. No plano internacional, o prémio foi atribuído ex-aequo entre Mistida, de Falcão Nhaga, a curta que irá ser exibida em Cannes, e The Parent´s Room, de Diego Marcon, venceu o Prémio de Melhor Animação.
Foi ainda em língua portuguesa premiado o filme da brasileira Anita Rocha da Silveira, com Medusa.
Na secção Silvestre, o Melhor Filme foi para Cette Maison, de Miryam Charles, ex aequo com Nous, Étudiants!, de Rafiki Fariala. Por fim, no formato de curta metragem, foi distinguido o Constant, de Sasha Litvintseva e Beny Wagner.
O festival terminou igualmente em português com a exibição de A Viagem de Pedro, da brasileira Laís Bodanzky. A próxima edição do IndieLisboa realiza-se de 27 de abril a 7 de maio de 2023.
Os filmes premiados vão ser exibidos entre segunda e quarta-feira, no Cinema Ideal.
Paulo Portugal
Palmarés 19º IndieLisboa
Competição Internacional Grande Prémio de Longa-Metragem – Mato Seco em Chamas de Joana Pimenta e Adirley Queirós (Brasil/Portugal) Prémio Especial do Júri – Medusa de Anita Rocha da Silveira (Brasil) Grande Prémio de Curta-Metragem – Mistida de Falcão Nhaga (Portugal) e The Parent’s Room de Diego Marcon (Itália) Melhor Curta de Animação – The Parent’s Room Melhor Curta Documental – Urban Solutions de Arne Hector, Luciana Mazeto, Minze Tummescheit e Vinicius Lopes (Alemanha/Brasil) Melhor Curta de Ficção – Escasso de Gabriela Gaia Meirelles e Clara Anastácia (Brasil)
Competição Nacional Melhor Longa-Metragem – Mato Seco em Chamas Melhor Realização para Longa-Metragem Portuguesa – O Trio em Mi Bemol de Rita Azevedo Gomes Melhor Curta-Metragem – Domy+Ailucha: Cenas Kets! De Ico Costa Prémio Novo Talento – Um Caroço de Abacate de Ary Zara Prémio Novíssimos – Tindergraf de Júlia Barata
Prémios do Público Longa-Metragem – Cesária Évora de Ana Sofia Fonseca (Portugal) Curta-Metragem – Um Caroço de Abacate Indie Junior – Luce e o Rochedo de Britt Raes (Bélgica/França/Holanda) Prémio Silvestre de Melhor Longa-Metragem – Cette maison de Miryam Charles (Canadá) e Nous, étudiants! de Rafiki Fariala (República Centro-Africana/França) Prémio Silvestre de Melhor Curta-Metragem – Constant de Sasha Litvintseva e Beny Wagner (Alemanha/Reino Unido) Prémio IndieMusic – Love, Deutschmarks and Death de Cem Kaya (Alemanha) Prémio Amnistia Internacional – Urban Solutions Prémio Árvore da Vida – Viagem ao Sol de Ansgar Schäfer e Susana de Sousa Dias (Portugal) Prémio Escolas – By Flávio, de Pedro Cabeleira (Portugal/França) Prémio Universidades – Mato Seco em Chamas
Foi curioso perceber, ao longo da conversa com Susana de Sousa Dias e Ansgar Schaefer (realizada via zoom – ela nos Estados Unidos, ele em Lisboa), que a origem de Viagem ao Sol, o documentário incluído na Competição Nacional de longas-metragens do IndieLisboa, baseado em imagens de arquivo de crianças austríacas refugiadas depois da 2ª Guerra Mundial, tem precisamente 30 anos. Justamente na altura em que ambos se conheceram e iniciaram uma mútua colaboração na produtora Kintop. Uma investigação que esteve igualmente relacionada com o projecto de doutoramento de Ansgar, sobre a deslocação de refugiados judeus para Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. Isto já depois da tese de mestrado sobre crianças de origem alemã em Portugal durante o mesmo período.
Neste documentário co-assinado por ambos (a primeira vez que tal acontece) aborda-se o papel da memória das crianças austríacas acolhidas no nosso país pela Caritas Portuguesa no pós-guerra (1939-45), capaz de fornecer um estudo desse olhar, ao mesmo tempo que oferece uma visão sobre os padrões culturais e sociais vigentes durante o Estado Novo.
“Nessa altura disseram-me que havia muitas crianças”, precisa Ansgar no início da conversa. “Mas não fazia sentido, porque as crianças judaicas não foram da Alemanha para Portugal. Foram antes para a Inglaterra.” E a razão para esta realidade estava relacionada com a proibição de Salazar em deixar entrar judeus em Portugal. “Depois da guerra é que temos esta situação”, prossegue. “O início da investigação foi mesmo o meu trabalho sobre refugiados judeus que viviam na Alemanha da Segunda Guerra Mundial. Foram várias pessoas que me falaram disso.” Mais tarde, o projecto assumiria uma forma ligeiramente diferente, acabando mesmo por se chamar O Menino Austríaco. No entanto, seria interrompido e retomado depois em 2016.
Deixar vir a mim as criancinhas!
“É Interessante perceber que estas crianças austríacas fazem parte da memória colectiva de Portugal”, explica o produtor da Kintop. “Há inúmeras famílias que têm ou tiveram contacto com crianças austríacas. Existe em Bragança várias aldeias com crianças austríacas”. Ao todo, terão vindo para Portugal 5500 crianças austríacas eram 5500, sendo que apenas algumas centenas alemãs. “Mesmo assim, era muito para uma sociedade. Depois temos as imagens oficiais de crianças a descer do barco que se viam nos jornais de actualidade. Quem ia ao cinema conhecia aquelas imagens.” Fundamental para a pesquisa feita para este projecto foi o contacto do Sr. Ingo Koenig, da embaixada austríaca, que possuía uma base de dados com milhares de nomes de crianças austríacas da Cáritas. “Foi através destas indicações que conseguimos entrar em contacto com as pessoas e fazer as nossas entrevistas”, revela-nos Ansgar.
Por ser turno, Susana de Sousa Dias chama a atenção para o dado interessante de se constatar como “estas crianças austríacas fazem parte da memória colectiva de Portugal”. Sendo mesmo possível hoje em dia a sua localização. “Há inúmeras famílias que têm ou tiveram contato com crianças austríacas. Aldeias em Bragança, com crianças austríacas.”
Naturalmente, toda esta investigação apenas se torna possível com recurso a elementos de arquivo – um método de trabalho seguido ao longo da muito consistente filmografia da investigadora Susana de Sousa Dias – como Natureza Morta (2005), refletindo sobre a opacidade das imagens, ou 48 (2010), recorrendo a fotografias de presos durante a vigência do Estado Novo; ou ainda Luz Obscura (2017), indagando o sentimento de perda por parte de familiares do dirigente comunista Octavio Pato, ou até Fordlandia Malaise (2019), ao confrontar o espaço de memória e a actualidade da cidade industrial criada por Henry Ford na Amazónia em 1928.
Curioso neste filme é perceber com Ansgar quem tem as imagens e quem não as tem. Portanto, quem tem ou não direito à imagem. “Nem todas as crianças têm imagens. Desde logo, aquelas crianças que não tiveram experiências tão boas, como as que tiveram experiências maravilhosas. É sempre a mesma coisa, não é? Quem tem direito à imagem e quem não tem direito à imagem.“ Ao que Susana complementa: “a própria existência de imagem é a prova da forma como foram acolhidos, em que meios é que foram” e numa segunda fase, “a dificuldade em encontrar os materiais que as próprias famílias nos deram, imagens da época onde houvesse uma criança na imagem”. Razão pela qual esta abordagem se revelou completamente nova para ambos. “Porque nunca andámos à procura de crianças. A verdade é que as crianças não existem nas imagens de arquivo. Isso é que é muito interessante. Porque isso também só realizamos na própria investigação, na própria montagem à procura de imagens. As crianças normalmente estão na margem. Essa mudança de paradigma apenas ocorreu ao longo das últimas décadas. Como é que a comunidade olha para a criança?”
As imagens que nos olham
Ora é precisamente esse tratamento da imagem e o que ela nos mostra e releva que procuramos compreender com Susana de Sousa Dias. “O que é importante na imagem é tentar perceber o que é que ela tem lá dentro. E perceber o que ela mostra a superfície. Neste caso, grande parte do material do filme são imagens familiares. É muito interessante olhar para aquelas imagens e perceber o que é que elas mostram e o que elas escondem. E perceber também que é preciso ter em atenção que são fotografias muito codificadas. São imagens de família feitas de acordo com os modos de representação daquela época. E também são sempre tiradas pelo elemento masculino da família. Há uma série de coisas que acontecem naquela imagem, que é preciso perceber que está lá. Bem como a ideia de Portugal que aparece no fundo. Olhando para as imagens conseguimos detetar muito mais do que aparentemente estão a mostrar. “
Seguramente, imagens que nos olha e interpelam. “Sim, há sempre uma interpelação”, confirma a realizadora. “Até porque nestas imagens as pessoas olham para a câmara, portanto estão a olhar para nós. Mas aparece também esta ideia de contra campo. Há um olhar que nos é devolvido. O filme trabalha também esse aspecto. Depois há ainda a importância do som. O som foi muito trabalhado. E a questão do próprio testemunho. “ Ao fim e ao cabo elementos fulcrais sobre o reconhecimento da época.” Susana explica: “Por um lado, temos a questão do olhar da criança. Ou seja, são adultos que falam, mas de repente a criança irrompe no discurso. Nós tentámos seguir o filme por aquela perspetiva. O que é que esta criança viu?” E depois tudo aquilo que nos revela sobre Portugal: “São crianças que vêm, numa situação muito particular, com toda essa experiência de guerra. De repente observam um país que para elas é estranho e revela novas dimensões. Isso suscita toda uma série de questões.
Para o filme, Susana e Ansgar falaram com mais de 50 pessoas, embora tenham sido selecionadas apenas cerca de vinte. “Nós tentamos ir pelas pessoa e pela experiência individual que eles contam”, esclarece Sousa Dias. “Tentamos criar uma voz que pudesse, de certa forma, transmitir aquilo que foi a experiência numa imaginação mais coletiva. Este não é um filme de personagens. Estas pessoas vão contando as suas experiências e vão oferecendo um quadro. Foi esta experiência do que era Portugal da altura.” Por outro lado, a possibilidade de perceber as leituras que esta realidade poderá ter nos dias de hoje. Sobretudo num contexto tão semelhante, com uma guerra a decorrer actualmente na Europa que produziu já um tremendo fluxo de milhões de refugiados. “Exatamente, uma coisa que é muito importante para nós é como é que tudo isto ressoa nos dias hoje. Pois, lá está, temos as meninas loiras de olhos azuis, eram as primeiras a ser escolhidas. As morenas, as mais escuras, ficavam atrás. Claramente temos aí um padrão”, entende Susana.
Interessante é perceber como é que tudo isto chega ao nosso presente. Ou não chega. Até porque o relevo está precisamente na “importância de escavar os factos. E o que foi apagado da História, da memória. Porque há memórias fortes e memórias fracas. E as fracas são as mais interditas, são proibidas.” Até porque as (na altura) crianças não poderiam verbalizar esta experiência”. Por isso, tudo passa pela possibilidade de “dar voz às crianças, mas de forma a que elas – adultas hoje – possam avaliar uma memória infantil, mesmo que sobre uma memória distante”. No fundo, algo que “apela à memória infantil”, como esclarece Ansgar. Susana completa a ideia referindo que “não procurámos os adultos a reflectir sobre experiências do passado. O que tentamos foi perceber como é que essa criança emergia que era conforme nos dava as imagens e as vivências e a experiência. Isto normalmente são narrativas menores, mas aqui são as mais relevantes. Pode revelar-nos algo de novo. “
O poder do som
Uma nota ainda sobre o muito relevante trabalho do som levado a caso pelo estúdio Kintop, responsável também por outros filmes em diferentes secções do IndieLisboa, como Red Africa, de Alexander Markov, Rua dos Anjos, de Renata Ferraz e Maria Roxo. “Para nós, o som é sempre muito importante”, confirma Susana de Sousa Dias. “Basicamente temos aqui três níveis”, completa Ansgar Schaefer. “Temos a imagem, temos a fala e temos o som. Ou seja, nunca temos uma correspondência total das três coisas. Podemos ver que as pessoas dizem, mas ao mesmo tempo ouvir uma música, com violinos. No fundo, cada coisa tem uma via autonóma.” Precisamente o que foi feito com o documentário de imagens de arquivo de Red Africa, em que o som de propaganda soviético foi totalmente retirado e retrabalhado com sons puramente essenciais, conotando a imagem com outras capacidades de leitura suportadas pelo poder da imagem.
No caso de Viagem ao Sol, trata-se sobretudo de analisar uma memória que é parcelar, como reflecte Susana: “As imagens são mediadas por diferentes olhares. Quando são construídas mostram uma determinada realidade. Nós trabalhamos com esses níveis, não para reforçar alguma coisa, mas precisamente para quebrar esses laços e poder criar uma abertura, para que a coisa seja pensada para além daquilo que está a aparecer. Isso para nós é importante. A ideia é quebrar essas associações, essas redundâncias. Para tentar direcionar o espectador naquilo que está a ver. Não induzir uma leitura específica para cada coisa.”
Fundamental é neste plano o trabalho do som composto por Didio Pestana (músico, compositor e sound designer – com trabalho conjunto com o Gonçalo Tocha), desenvolvido com a intervenção de Susana e Ansgar. De resto, um trabalho semelhante ao realizado em Natureza Morta (2005). Ou seja, como explica Susana de Sousa Dias, “não é o compositor que vai fazer o som sobre as imagens, mas dá-nos o som que é montado com as imagens. Isso é muito importante neste processo. O som tem de estar ligado com as imagens e com o que está a ser dito.
Regresso a Forlândia
Entretanto, valerá a pena referir que Susana trabalha já em dois projectos diferentes. Um deles será um complemento a Fordlândia Malaise (2019). Voltou ao Brasil em 2021, à região da Amazónia e à vila Fordlândia, para fazer uma espécie de díptico, em que a segunda parte se vai Fordlandia Panaceia. “Isto para trabalhar uma série de questões que ficaram em aberto”, como nos confessa. “De repente surgiram uma série de uma série de novidades. Interessou-me aprofundar todas as questões envolvidas na criação daquela company town. E sobretudo, pensar o que lá estava antes e o que está atualmente.” O outro decorre em Angola e foi interrompido pela pandemia. “Tivemos agora em fevereiro e março em Angola. Supostamente já devia estar feito. É sobre a Fazenda Tentativa, uma fazenda criada no princípio do século vinte e fim do século dezanove. Foi considerada uma fazenda modelo. Durante a guerra colonial a tropa portuguesa foi sede de um batalhão. É uma história dramática ali. E outra vez, é uma história que se faz por camadas. Através daquela fazenda consegue-se abordar diferentes semanas temporais, históricas, com apagamentos históricos, apagamentos da História, a apagamento da memória também. E vir até a actualidade.”
Susana de Sousa Dias sintetiza desta forma ambos os projectos: “Tanto na Fordlandia como neste projecto, a questão tem a ver como como é que todas estas histórias, todos os estes apagamentos, como é que isso nos permite ainda poder escavar? Para trazer até o presente algo que foi sendo esquecido, foi apagado. E como é que isto pertence ao nosso futuro. É sempre uma questão também do presente . É sempre esta dimensão, ou seja, não é ir ao passado. É ver como é que tudo isto chega ao nosso presente. E como é que se reconstrói no nosso presente.” De certa forma, essa pesquisa do passado para representa o nosso presente poderá constituir o objectivo do cinema de memória de Susana de Sousa Dias e Ansgar Schaefer.
Alexander Markov regressa ao IndieLisboa para apresentar Red Africa (hoje, dia 5, no Ideal, às 22h), um documento que parte do projecto anterior (Our Africa, Indie 2019), abordando a partir de um ângulo mais profundo a questão da propaganda soviética nos países africanos acabados de sair do colonialismo. Nesta co-produção entre a Rússia e Portugal (Kintop e RTP) parte-se igualmente do imenso arquivo de imagens captadas por documentaristas soviéticos durante várias décadas, desde os anos 60 até à queda da União Soviética. Aí se capta a utopia e aproximação geopolítica ao continente africano, incluindo as colónias portuguesas, sublinhadas pelo trabalho muito cuidado na edição sonora, permitindo uma reflexão analítica e uma leitura mais apurada sobre o seu próprio contexto de propaganda. Algo que nos permite perceber o que se esconde por detrás do verniz ideológico do glamour desta URSS e da máscara destinada a vender o paraíso socialista da época. O segredo desta leitura reside no apurado desenho de som não linear que combina som oficial de discursos, com material recriado, além de banda sonora captada na época.
Inevitavelmente, um filme que nos remete para a actualidade de hoje vivida no conflito com a Ucrânia, onde o lado militarista vigoroso eclodiu depois de anos de soft power com diversos líderes europeus.
Falámos com o documentarista Alexander Markov (49 anos) durante a apresentação de Red Africa no recente festival de cinema documental Visions du Réel, ocorrido em Nyon, na Suíça.
Red Africa (Imagem: Kintop)
Gostei muito do seu filme. Especialmente, o meticuloso trabalho com o som e a forma como é montado. Pode descrever-nos esse processo?
Comecei a trabalhar com o som na Rússia, com um ótimo diretor de som, o Sergey Moshkov, que trabalhou com o Alexander Sokurov em vários projectos (Moloch, Taurus, A Arca Russa, Pai e Filho…). Para mim, era muito importante retirar todo o som da propaganda soviética, muito aborrecido, que descrevia os países africanos a iniciarem um percurso no comunismo. A ideia do som foi sendo desenvolvida ainda em S. Petersburgo.
A pós-produção de som já foi feita nos estúdios de Lisboa?
Sim, entretanto, vim para Lisboa fazer a pós-produção, com um dos maiores realizadores e misturadores de som, o Pedro Góis, de Lisboa. Gostei imenso de trabalhar com ele. Na verdade, na altura, ele não tinha percebido bem a razão para eu não aproveitar o som original. Mais tarde escreveu-me a dizer que compreendera tudo e apoiava a minha forma de criação. No fundo, percebeu essa dimensão essencial que não era afectada pelo som – quase como um filme mudo.
Sim, completamente. Isso dá-nos uma outra visão do que realmente vemos.
Certo. Era uma essência que deveria ser muito concreta. Por exemplo, o som das medalhas dos soldados na Tânzania ou os soldados congoleses quando se encontram com o Patrice Lumumba (1925-1961). Esse é um som militarista. Isso é apenas um exemplo da opção por este caminho. Nem todos sons deveriam ser gravados, mas numa forma dramática. Esse drama e o som deveriam trabalhar juntos. Essa era a ideia principal.
Sim, totalmente diferente do som original e da mensagem de propaganda…
Por vezes colocava o áudio soviético, só para me lembrar desse ponto de vista. Qual era o ponto e vista dos realizadores na altura, dos estúdios, dos patrões comunistas. No fundo, o que eles pensavam de África, como eles vendiam o continente africano aos soviéticos, mas também aos próprios africanos.
No fundo, uma forma de censura
Repare, trata-se de uma co-produção entre a URSS e os países africanos. Os profissionais de cinema estavam entre os dois tipos de censura. Do lado soviético e do lado africano. O que é compreensível.
Fale-me do trabalho realizado em Lisboa, no estúdio Kintop.
Sim, foi aí que fizemos mistura de som. O Pedro Góis deixou a sua opinião, já que a minha versão não estava ainda muito trabalhada. É a visão dele que está agora mais presente. De uma forma em que agora já não temos receio do silêncio. Nesse sentido, o silêncio é também a nossa arma. Como sucede, por exemplo, no funeral do Leonidas Brejnev (1906-1982), onde os diversos líderes comunistas de todo o mundo vão despedir-se dele. Porque também têm receio dos seus próprios regimes. É isso que se vê também no seu olhar. Por isso, decidimos fazê-lo sem silêncio. Por vezes, com uma música.
Por falar no Kintop, gosto imenso do trabalho da Susana Sousa Dias e da forma como ela usa as imagens de arquivo. Fale-me um pouco do trabalho que realizou com ela e com o Ansgar (Schaefer).
Eu também aprecio muito o trabalho da Susana. Conheci-a, a ela e ao Ansgar, em São Petersburgo, mas apenas nos conhecemos. Na altura descrevi a minha ideia para um projecto Our Africa. Ela gostou. Ela e o Ansgar acharam que faria sentido concorrer ao ICA com um projecto focado nas antigas colónias portuguesas. Decidimos o conteúdo em 2019, no qual esteve envolvida toda a equipa do Kintop.
A cena inicial de Red Africa com os escravos parece ser a única que destoa do conjunto, pois parece mais ficcionada. Como foi criada?
Essa cena, com os escravos africanos, na ilha Gora, no Senegal, foi criada pelo realizador soviético Yuri Aldokhin. Nessa altura, tinha apenas 23 anos. Na verdade, toda a equipa era contra a inclusão desta cena. Já não me lembro porquê, mas a Susana disse que era muito boa e que deverei ficar. Pois indica a forma como os soviéticos imaginavam a escravatura. Devo acrescentar que o Yuri Aldokhin foi o único cameraman em 30 anos, de Moscovo, a criar um registo ficcional sobre a escravatura. Os outros mostram apenas lugares com as estátuas de colonizadores, usando voz off a explicar ao público russo o que era a escravatura. O plano com o homem sentado num lugar estranho é único e diz muito sobre as reflexões soviéticas sobre a escravatura nessa altura. Especialmente nos anos 1960.
Como foi o trabalho de investigação com o arquivo? Em que momento entra a produção portuguesa?
Sobre o arquivo tenho de dizer que estou muito grato à diretora do African Film Festival NY, a Mahen Bonetti, minha amiga. Conheci-a em 2006, em Poughkeepsie (perto de Nova Iorque) e acabei por trabalhar também, como investigador, para esse festival. Ela conhecia material de russos filmado em países africanos. Ao longo de sete anos fizemos diversos programas especiais focados em diferentes países africanos. Pensei na ideia em 2011, mas não foi nada fácil encontrar financiamento. Agradeço à Kintop por ter mostrado interesse.
Fale-me do trabalho de arquivo em concreto. O que procurava e o que encontrou?
O arquivo fílmico é vasto, existe muito material de propaganda, mas é algo especial, pois não é realista, é material criado. Às vezes sinto que estou dentro de uma ficção. Eram comissões em que faziam uma espécie de publicidade, na minha opinião. Eles eram quase como turistas nos países africanos. Por vezes tinham cinco dias para filmar, outras duas semanas, às vezes dois meses. Esse era um objectivo da diplomacia russa.
Algo em que a Rússia tem uma grande tradição.
Sim, eles sabiam como criar todo aquele glamour nos anos 1960, mas também em 1970 e nos anos 1980. E sabiam também como adaptar cada filme às diferentes situações. Fosse amigável ou relações internacionais com países africanos. Esses filmes são um produto especial dos estúdios soviéticos que trabalham de forma muito estreia com a diplomacia.
O problema é que os filmes se parecem muito uns com os outros. São muito semelhantes. Era um problema dramático, mas também para a montagem porque todas as imagens têm o mesmo estilo. Funcionou de uma forma formalista, mas estranho do ponto de vista dramático. Mesmo assim encontrei sequências muito boas com o Brejnev, sobretudo quando ele observa países africanos e o vemos nas ruas a mostrar o seu colonial mood – um mood de soft power. Depois os planos dos soviéticos a cortarem as árvores e a sua satisfação. Ensinam os africanos à sua maneira. Tudo isso parece muito colonial. Isso foi um presente para mim. É uma forma da propaganda se apresentar a si própria. Isso foi bom do ponto de vista dramático.
Podemos dizer que foi essa mesma propaganda que esteve na origem do que se passa hoje com a invasão a Rússia na Ucrânia?
É uma boa pergunta. Para mim, é claro que o império russo era já uma nação militarista. Completamente militarista. Tal como a União Soviética. A propaganda usa a expressão “Miru Mir” (em russo) que significa “a paz para o mundo”. Portanto, lutamos pela liberdade (risos), ou seja “lutamos” … pela liberdade. É o que diz a propaganda soviética. Agora sabemos que o regime do Putin investiu muito em armamento.
Aparentemente, pouco ou nada mudou…
Neste ponto de vista, nada mudou. A Federação Russa consiste em várias federações pertencentes também ao império soviético, com o centro em Moscovo. Tal como o soft power que vemos em Red Africa. Claro que usam a mesma propaganda. Mas o que é mais importante são as ambições de império que vemos no solo africano. Não foi muito difícil. Venderam armas, treinaram os oficiais, ajudaram as guerrilhas. Algo que parece ser contra o poder colonial, embora tenha o seu lado militarista. Nesse cenário militar da URSS e da Federação Russa e do Império Russo nada mudou no princípio imperialista. Moscovo sabe viver, sabe como controlar as fraquezas deste território. O que percebemos é que este poder militarista foi preparado ao longo de vinte anos. Vemos agora o resultado, completamente agressivo.
A ideia era mostrar todo esse processo até ao colapso da URSS, certo?
Sim, e a esperança da independência da Ucrânia, da Bielorrússia, da Lituânia, da Látvia, da Estónia… Esses países tiveram sorte e são independentes. Mas para a Ucrânia e a Bielorrússia é mais difícil devido à missão da nova Federação Russa, a Federação Russa do Putin. Podemos comparar estas ambição com a História deste território. Um paralelo que podemos criar com a história de Ivan, o Terrívelou outros czares, que foram também completamente militaristas. E encontrar as raízes para a propaganda no século XX, durante a 1ª GM, mas também a 2ª GM. É claro que estou apenas a pensar na União Soviética e na forma como colapsou. Este contraste entre o paraíso socialista africano e a queda a União Soviética. Aqui vemos a forma da manipulação da propaganda, a forma como gostam de ser vistos. Vemos o que criaram num filme soviético. A verdade mostra outro quadro da vida, outros quadros da vida.
Mais um filme a ser apresentado na Competição Nacional do IndieLisboa. Paulo Carneiro abandona Trás-os-Montes, onde filmou Bostofrio, em 2019, para captar a opinião de emigrantes portugueses fãs do tuning, na Suíça, em Périphérique Nord. Apresenta também o projecto A Savana e a Montanha, na secção Lisbon Screenings (a decorrer online entre os dias 2 e 4).
Périphérique Nord é exibido 4 de maio, às 21H30 (Cinema São Jorge) e 7 de Maio, às 19H00 (Cinema São Jorge)
Torna-se claro desde o início de PériphériqueNord (é esse o título original escolhido, em francês, e não Via Norte, na tradução para português), que a paixão automobilística será o tema dominante. Sobretudo pelos carros transformados. Por “aquele bichinho” do tuning. Como uma extensão mecânica do proprietário. Esta paixão pela estética recebe a devida atenção e rigor do realizador, não só pela imagem, mas também pelo desenho de som (a cargo de Joana Niza Braga e Ricardo Leal no som directo). Já agora, porque não dizê-lo, pela música (do compositor uruguaio Diego Placeres). Um acerto global que se revela pela forma como cada cenário e plano é milimetricamente pensado, mesmo que o tom de improviso da conversa seja pouco perceptível.
A conversa com o Paulo decorreu via telefone após a apresentação do filme no festival Visions du Réel, em Nyon, na Suíça. E foi logo pela estranheza dessa paixão que começámos. Carneiro assume a influência: “O filme tenta defender o fetichismo do próprio carro. Cada um tem direito a gostar do que gosta”, justifica-se. No seu caso, tudo começou a partir do gosto que o pai sempre teve pelas ‘quatro rodas’. Sobretudo depois de ter migrado da aldeia para Lisboa e montado um negócio de hotelaria. “A forma dele desfrutar era ter um bom carro. Fazer viagens e ir confortável. Acho que essa influência pode vir um pouco daí. Como os emigrantes que chegavam à aldeia com bons carros, exibindo modelos que não havia em Portugal. Ou carro com mais cavalagem. Isso vem um pouco daí.” Aliás, o cineasta conserva ainda “fotografias dos anos 90, com o meu pai, a minha irmã e a minha mãe em frente ao carro. Acho que o carro pode ser considerado como símbolo de muita coisa. Havia essa valorização do veículo.” Aliás, no início de Via Norte é bem visível essa paixão pelo automóvel em diversas fotografias de época com famílias a posar ao lado dos carros.
Poder-se-ia dizer que esta aproximação ao universo motorizado é uma valente inversão ao ambiente bucólico de Bostofrio, o seu anterior filme de 2019, no qual Paulo Carneiro investiga as origens do avô que desconhece, já que o pai cresceu apenas com a mãe dele. Mas não. Percebe-se a proximidade do realizador, questionador, com as pessoas. Percebe-se também o rigor do plano. Percebe-se a ideia de mise-en-scène. Da representação que decorre como conversa improvisada.
A equipa de Périphérique Nord, em Nyon
As viaturas são vistosas. Modelos vintage, como o Wolkswagen Polo G40, daquele que confessa possuir mais de uma dezena. “É só mais um”, refere com aparente desdém o dono daquele que repousa na garagem. “Quando compro outro é para me satisfazer outra vez.” Ou então quando o set muda para num serviço de lavagem rápida para apreciar um Golf GTi de alta cilindrada, pertencente a um outro emigrante entusiasta da marca Seat Ibiza, o qual confessa ter conhecido a namorada “através dos carros”. Ou até o mais vigoroso Ford Focus ST, 2.5 – 226 (HP) – 2007, mais um carrão apresentado com títulos iluminados que o enunciam e descrevem as suas características, como se estivéssemos dentro do popular videojogo Gran Turismo, muito dedicado ao tuning. Há até o casal do Lamborghini Huracán, de 610 cvs, que nunca se cansa de ser fotografado junto dele. No entanto, o automóvel mais icónico do filme acaba mesmo por ser o Toyota Celica 1.6 STi vermelho, com os faróis que levantam, o carro de estimação de Paulo Carneiro que serve de elo de ligação entre estes diferentes testemunhos de emigrantes. Um carro, segundo nos confessa Carneiro, que se tornou célebre com o sucesso alcançado pelo piloto finlandês Juha Kankkunen e o espanhol Carlos Sainz, depois de eles começarem a correr com esse modelo. “É um modelo com imensa personalidade”, declara com regozijo. “O carro para mim é quase como uma extensão. Interessa-me a força que a personalidade do carro pode passar. Porque és tu. O carro és tu, de certa maneira.”
É então essa natureza, referida pelo nosso interlocutor, que associamos ao seu próprio cinema, pela forma como capta a realidade que deseja filmar e mostrar. “Isto parte um bocado da ideia do que é que a escola te ensina quando fala do ‘cinema do real’. A ideia de acompanhar a vida de alguém. Eu sei que são pessoas reais a falar das suas vidas. Embora exista sempre um lado de ficção e de documentário. Mesmo assim tento trabalhar a imagem com o máximo rigor. É a ideia de existir uma dinâmica dentro do quadro sem a câmara se mexer. Isso é uma coisa que vem do… acho que não é preciso dizer… Oliveira (risos).”
Na verdade, essa referência essencial de cinema fora já expressa anteriormente. Algo que sublinha, a pensar no mestre Manoel de Oliveira: “Para ter movimento, não é preciso ter câmaras a abanar. E é divertido filmar assim. É um desafio, eu conheço o quadro e os limites. Não há marcações nem instruções e nenhum dos intervenientes. Eu vou-me mexendo no plano. É essa a ideia. Assumo que quero trabalhar a minha presença. Há uma tentativa de provar às pessoas que os planos fixos têm dinamismo.”
Depois do lado mais bucólico de Trás-os-Montes, em Bostofrio, e da mecânica e o design evidenciada em Périphérique Nord, Paulo Carneiro apresenta-nos outros projectos que tem em diferentes fases de desenvolvimento. Um deles chama-se A Savana e a Montanha e já está feito. Aliás, durante o IndieLisboa seriam exibidos excertos na secção Lisbon Screenings. Ainda que se trate de um dispositivo ligeiramente diferente. “É importante partir para outras coisas”, assume. Trata-se de um filme produzido em Trás-os-Montes e aborda o problema ecológico social em redor da exploração do lítio. O realizador revela que “está a ser muito difícil lutar” e que já lhe pediram para os ajudar, para dar a conhecer essa realidade. “Fiquei chocado quando vi o que aconteceu à montanha, perceber a devastação que fica, a percentagem de lítio que havia ali, como se poderia explorar. Fiquei chocado e percebi que faria sentido avançar.”
Um outro projecto passa por Chã das Caldeiras, na Ilha do Fogo, em Cabo Verde, e que deseja começar a filmar ainda este ano o quotidiano e os anseios de um grupo de jovens locais. Com a particularidade desta co-produção com o Uruguai já ter o financiamento de entidades como o Ibermedia, Eurimages, CNC e ICA. “Sinto muita afinidade com estas pessoas. Fui lá e voltei várias vezes”. Em grande parte, prende-se com a “vontade de romper o estereótipo daqueles que querem sair. Mas eles não querem sair da sua terra. Querem ficar na sua aldeia. Reconstrui-la. Eu revejo-me muito nisso. Na ideia de construir qualquer coisa. O interessante é procurar pessoas que saem do estereótipo e trabalhar essa temática.” Em termos do dispositivo cinematográfico, Paulo Carneiro reconhece que “andará à volta da mesma coisa, mas trará ideias novas. Há esse lado de me revisitar, mas para sublinhar a minha vontade de estar ali com eles. O bom de ter financiamento é ganhar tempo para filmar. Isso deixa-me mais confortável.” O que o faz exclamar com alívio: “É a primeira vez que faço um filme com dinheiro.”
Foi em Berlim (em fevereiro passado) que falámos com o jovem nascido em Viana do Castelo há 34 anos – a poucas horas de vencer o prémio da crítica internacional (FIPRESCI). Integra agora no IndieLisboa um dos nove filmes portugueses presentes na competição nacional. Foi ao rever Super Natural que sentimos também a abertura para o pensamento de Georges Didi-Huberman. É o corpo do cinema, em que vemos e somos vistos.
Super Natural passa no IndieLisboa, na sala da Culturgest, no dia 3 (terça-feira), às 21,45.
O cinema português está bem e recomenda-se. Veja-se o notável conjunto de nove filmes presentes na Competição Nacional do IndieLisboa (a maior de sempre). Depois das propostas aliciantes e originais, como as curtas Flores e Past Perfect, respectivamente de 2017 e 2019, Jorge Jácome entrega-se na sua primeira longa-metragem a propor novos limites ao cinema, ao mesmo tempo que as enquadra num humanismo pleno. Até porque se convoca a experiência do espectador na sala num momento quase terapêutico. Como se uma entidade representada pela tela de cinema nos olhasse. É neste encontro do olhar com a arte que sentimos a proximidade com a experiência do olhar defendida pelo historiador de arte Didi Huberman (em particular na obra O que nós vemos, o que nos olha – Porto: Dafne Editora, 2010 -1992).
Há um olhar em desassossego em Super Natural assim que entramos neste território paradoxal em que a imagem e o seu significado permanecem em aberto. Um pouco como defende Huberman ao sublinhar que as imagens que são desencadeadas durante a experiência entre sujeito e objecto passam a incorporar esse próprio objecto, permitindo inscrever novos significados. No fundo, aquilo que o autor designa por “tornar carne o nosso olhar”, permitindo que essa “visualidade absoluta” facilite uma apreensão “mais vasta”. Assim se presta este filme. Sobretudo na revisitação que fizemos já depois de Berlim. Algo que nos permitiu repensar o seu efeito e, sobretudo, a encarar os múltiplos significados propostos na escrita do argumento a cargo de André Teodósio e José Maria Vieira Mendes e pela edição da imagem de Jácome. O conjunto acabou por originar “um filme performativo” como defendeu o próprio argumentista na apresentação do filme na sala da Culturgest.
Preparados para a experiência?, poder-se-ia inquirir. Porque é, de facto, uma experiência totalmente sensorial que nos serve Super Natural. Depois de Flores filmado nos Açores, Super Natural mantém o mesmo tom púrpura das hortênsias na Madeira, a partir de um fruto que parece ganhar vida. Este apenas a sugerir uma das múltiplas dimensões que nos interpelam a diversos níveis. Desde logo, a partir de uma mensagem que não é de mera percepção natural, mas que se reflecte no nosso próprio interior. Porque não a sugerir uma proximidade ao filme Memoria de Apichatpong Weerasethakul e ao tal cinema que se passa mais numa dimensão interna e mental. Quase como um filme terapêutico, como um convite a ‘dar o salto’, a experimentar o transcendente.
São sinais estáticos que nos interpelam com pequenas legendas: “estás aí?”, para mais adiante segredar “deixa-te relaxar na poltrona”, “estamos a influenciar-nos em conjunto”. Ou até “porque não fizemos isto mais cedo”. A liberdade cinematográfica é total, até mesmo para ‘brincar’ com as legendas. Mas até pode interpelar-nos: “não está a ver a ideia?” “queres que se faça um desenho?” Sim, somos visados, implicados, como diria Huberman.
A sugestão é clara, precisa Jácome: “Aquela voz estática (que não é humana) é como se pudesse ser a própria tela de cinema a tentar comunicar com o espetador. E as legendas que existem é para que os espectadores humanos na sala de cinema a consigam perceber e entender o que ela está a tentar comunicar.” A ideia resulta numa experiência nova.
O filme fez parte de uma residência na Madeira, em 2020, num projecto do Teatro Praga em colaboração com os intérpretes de uma companhia de dança madeirense. “A Dançando com a Diferença”, refere, “é uma companhia sediada no Funchal que integra pessoas com e sem deficiências. Eles já desenvolvem este trabalho há mais de quinze anos. É uma companhia profissional, com intérpretes profissionais de dança que estão constantemente a chamar outros criadores nacionais e internacionais para trabalharem com os membros da companhia.” São eles os protagonistas ‘super naturais’ desta experiência performativa que nos sugerem a ver um pouco além das aparências. Do visível.
Contudo, a versão final só surgiu após um longo processo de edição, em que texto e imagem comunicaram entre si acabando também por gerar novas cambiantes. “Apesar de eu estar sozinho a montar o projecto, ao mesmo tempo, o André Teodósio e o José Maria Vieira Mendes estavam também eles sozinhos a escrever, a reescrever, a reescrever a reescrita. E eu a montar. Ou seja, íamos trocando sucessivamente as diferentes linguagens. Foi um processo constante de reenquadramento e de reimaginar o que é que o projecto e o que é que o filme ia ser.”
Na verdade, é justamente o campo da performance que é aqui explorado, numa atitude de comunicação interior com o espectador, invocando todos os sentidos. É como se escuta a certa altura: “eu sou uma história que começa quando as outras acabam”.
Foi mesmo essa frase que motivou uma explicação de Jácome ao referir que “pode parecer que está a falar do próprio filme, por estar a querer contar uma nova narrativa, uma nova forma de se experienciar o filme, mas também pode estar a falar da sequência que está a dar, aquela que está a começar porque todas as outras acabaram. O filme está constantemente a querer ser uma nova coisa. Tem essa estrutura quase de showreel, de diferentes filmes, de diferentes perspetivas.” É isso que sucede quando a dimensão da performance se sobrepõe à narrativa estática (com as legendas) e nos liberta para diferentes ideias de cinema.
“Quando aparece essa frase é porque o filme também está a mudar. Se o filme começa de uma forma mais exuberante, onde a natureza tem este lado mais vibrante, mais explosivo, quando aparece essa frase, essa natureza começa a desaparecer e a construção humana – que também é parte da natureza, pois é super natural – começa a aparecer. Então existe um lado em que o humano transformou esta natureza virgem (neste caso da ilha da Madeira) e que a própria ilha passa a ser uma outra coisa. Como também o filme passa a ser uma outra coisa.”
É por aqui que terminamos. Com as ideias de cinema. Com a ideia do que se forma durante a sua exposição e a performance dos corpos. “A ideia do filme era confirmar que não existe uma melhor maneira do que outra de se fazer cinema. Ou seja, filmar em Super 8, filmar em 4K, filmar com uma Mini DV, filmar com o telemóvel, tudo é uma possibilidade para que uma ideia de cinema possa continuar a existir.” Do corpo do cinema e das suas múltiplas possibilidades, em que “cada câmara é também uma narrativa diferente. O filme está constantemente a falar de diferentes corpos. Por isso, quando estamos a ver o filme também estamos a pensar como é o próprio corpo da imagem que estamos a ver. E o filme faz isso. Diz-nos quando é em Super 8, diz-nos quando é no telemóvel, diz-nos quando é em 4K. Para perceber como é o próprio corpo da imagem que está a ser gravada.”
Com António Costa na audiência, quase directo da Assembleia após o debate do orçamento na generalidade, viveu-se no cinema S. Jorge um momento de total liberdade (será cinema libertino?), com a apresentação de Um Filme em Forma de Assim. Mas atenção, Botelho vai ainda apresentar no Indie O Jovem Cunhal.
Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.
(Alexandre O’Neill, in Meditação na Pastelaria)
Em noite de festa e liberdade, o filme de Botelho previu a presença do Primeiro Ministro na plateia e ainda lhe mandou um piropo, quando a certa altura se lê num grafito “Ele não merece – mas vota PS”. É um detalhe, mas não deixa de ser um gesto surrealista que combina bem com o estilo mordaz que inunda a deriva surreal de Alexandre O’Neill, aqui com adaptação de Maria Antónia Oliveira, neste regresso ao poeta depois de lhe pedir emprestado o título para o seu filme Um Adeus Português, de 1986.
Foi um filme feito em total liberdade, garantiu João Botelho antes do início, com o palco inundado com a sua equipa técnica. O tal ‘divertimento em tempo de pandemia’. Agradecemos, por isso, as condicionantes que juntaram a trupe de Botelho e do produtor Alexandre Oliveira num hangar (que já usaram outras vezes) onde Lisboa acontece pela virtude do cinema. Pois percebe-se que foi aí, com o condicionamento de meios, que o autor se concentrou na essência (das palavras de O’Neill) para deixar que o cinema acontecesse. Algo que permite um jogo de câmara sinuoso, deleitado em longuíssimos planos sequência que nos permitem (tentar) compreender o tremendo trabalho dos actores para esses números de uma meticulosa articulação de mise-en-scène que convida o teatro e o musical.
É nessa forma que nos escapa – vá, uma forma ‘assim’ – que destapa o ‘fazer’, o crescimento do cinema. O tal cadáver esquisito. O tal filme libertário (ou libertino) com uma forma assim, digamos… Coiso.
Tremendos os actores. Alguns com apenas uma sequência ou uma cena. Temos de dizer os seus nomes. Desde logo, Pedro Lacerda, como Alexandre, o poeta, mas também Inês Castel-Branco, Cláudio da Silva, Crista Alfaiate, Luís Lima Barreto, Rita Blanco, Dinarte Branco. E todos.
Cerimónia de Abertura do IndieLisboa
Antes fora a abertura. Sempre em Português. E como foi bom ver a sala do S. Jorge cheia e aplaudir. Muito. E foi tão bom ver e rever pessoas já sem máscara e perceber como tudo isto nos retira de um outro normal.
A Mafalda Melo e o Carlos Ramos, da direção do Indie (e não também o Miguel Valverde que estava de baixa com covid) saudaram este regresso às salas.
E logo com duas cópias digitais restauradas escolhidas para a abertura do festival: Albufeira, uma curta destinada a promover o Algarve, filmada nos anos 60 por António de Macedoe Zéfiro, um outro filme promocional – desta vez, uma docuficção patrocinada por Lisboa Capital da Cultura 1994, assinado por José Álvaro Morais. Além do facto de serem duas encomendas, aos dois filmes une-se a ideia do mar e do rio, bem como fazerem parte do programa FILMar, promovido pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, ao abrigo do seu plano de digitalização e disseminação do património fílmico nacional.
Esta escolha torna-se ainda mais acertada para a abertura do Indie, por permitir evocar até os corvos, os verdadeiros ícones do festival.
O seu nome é Jack e o carro negro é o seu local de trabalho. Juntos seguimos No Taxi do Jack, o documentário de Susana Nobre que ficciona histórias de desemprego tão comuns a milhares de portugueses.
Chega agora às salas de cinema o documentário ficcionado e assinado por Susana Nobre que se mostrou ao mundo no festival de Berlim, há já mais de um ano. Portanto, ainda em plena pandemia. No Táxi do Jack foi apresentado na secção Fórum dedicada aos projectos de natureza mais avant garde. E foi também nessa altura – na edição do festival apenas realizada online – que falamos com a autora (via Skype) sobre este projecto muito pessoal. De recordar que O Taxi do Jack foi ainda o vencedor da melhor longa metragem nacional do IndieLisboa do ano passado.
Sim, No Táxi do Jack as coisas tratam-se pelos seus nomes. Sim, é um filme sobre os problemas do trabalho, o desemprego ou a chamada ‘uberização’ do trabalho, que acaba por ser a outra face do mesmo problema.
Bem vistas as coisas, este filme de Susana Nobre até se poderia chamar Eu, Joaquim Calçada, pois existem paralelismos evidentes entre o Joaquim Calçada, de 63 anos, protagonista de O Taxi de Jack, de Vila Franca de Xira, e Daniel Blake, de 59, o operário de Newcastle que conhecemos do filme de Ken Loach, Eu, Daniel Blake, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 2016.
Tal como no filme britânico, também aqui o português tem de fazer a ‘corrida dos carimbos’ para receber o seu subsídio de desemprego. No entanto, as semelhanças acabam um pouco por aqui. Não só pela gestação do projecto português ser bastante anterior, mas sobretudo pela diferença do gesto de cinema.
Para concretizar No Taxi do Jack, Susana Nobre investiu vários anos da sua vida a ouvir em primeira mão as histórias de muitas centenas de desempregados. Precisamente entre 2007 e 2011, durante o tempo que esteve empregada como Profissional de Reconhecimento e Validação no Programa de Novas Oportunidades, que viria a originar diferentes documentários: Vida Activa, em 2013, presente no Doclisboa, por sua vez dando origem a um vasto arquivo, e, em 2016, Provas, Exorcismos, a concurso em Cannes na Quinzena dos Realizadores.
Este seria um programa lançado para fazer face ao baixo índice de escolaridade dos portugueses – “’um milhão de inscritos’ era o bastião do Partido Socialista que governava na altura”, lê-se nas notas de produção do filme. Foi no contexto de desemprego que Susana conheceu Joaquim Calçada, “há mais de dez anos”, como nos confirmou. Aliás esse momento é devidamente documentado no plano inicial do filme, no qual Susana prepara a sua câmara para encenar o momento. Ou quando desliza a câmara para mostrar em estúdio o plano que simulava Jack a conduzir na noite de Nova Iorque. É tudo muito claro, trata-se de uma encenação. Quase se poderia dizer o mesmo de Jack, com os seus anéis, a calça à boca de sino e, sobretudo, uma cabeleira negra e pastosa a emular um candidato a lookalike de Elvis Presley.
A associação nem é forçada, já que Calçada chegou à América no início dos anos 70, “com 300 dólares no bolso”. E foi aí que durante muitos anos ao volante de um táxi e limusinas viu muitas quedas da bolsa de Nova Iorque. A crise de 2008, já em Portugal, depois de muitos anos a trabalhar na O.G.M.A., não era novidade para ele. Até porque se sabia que ele não iria voltar mais à vida activa laboral, pois desejava reformar-se. Teve então de cumprir aquela ‘corrida dos carimbos’ do centro de emprego para poder receber o subsídio de desemprego. “Conheci-o nessa situação porque ali havia a obrigatoriedade para quem tivesse no subsídio de desemprego e menos do 9º ano de escolaridade tinha de estar inscrito no Centro de Novas Oportunidades.
Imagem Skype fevereiro 2021
Este documentário ficcionado abre mesmo com Susana a emular o momento em que preparou a câmara para escutar Joaquim Calçada, 63 anos, taxista desempregado. “É um filme que parte muito da minha relação com o Joaquim, das conversas que tivemos ao longos dos anos”, explicou a realizadora e produtora da Terratreme. “Passou muito por ouvir as histórias dele e as imagens que ia projectando um certo imaginário. Desde os seus tempos de miúdo até à sua experiência de ir para a América, quase ao desconhecido. É também um pouco a história de todos os portugueses na América.”
No fundo, a ideia era “fazer um filme que ligasse a zona de Vila Franca de Xira, que caracteriza o ambiente em que ele nasceu, na zona rural ao pé do rio”. Por sinal uma zona que já tinha descoberto em Provas, Exorcismos. Até porque é uma região em que se consegue traçar um paralelismo próximo da zona laboral americana. “A ideia era manter esse contexto do território com a América e tornar isto tudo numa espécie de atlas, guiado pela sua própria história de vida que vai sendo narrada. Esse trabalho pôs-me num lugar de escuta e inquisição das histórias destas pessoas, a ajudá-las a escrever a história da sua vida. O Jack acaba por ser um pouco o que fica das fantasmagorias dessas pessoas todas, portanto não só da vida dele.”
Interessante mesmo é verificar como Nobre se preocupa com o seu cinema, em mostrar o gesto de o fazer. Algo que se prende com a vasta experiência da realizadora nos destinos de produção de Terratreme em terras de Alhandra e Vila Franca de Xira, um pouco como sucedeu no excelente e premiado A Fábrica de Nada (2017), de Pedro Pinho.
“Eu sabia que queria ter o táxi, uma espécie de táxi fantasmagórico com ele lá dentro. Esse foi um ponto de partida essencialmente para a memória.” De resto, foi um filme “preparado com ele”, pois “o Joaquim esteve sempre muito envolvido. Houve muitas coisas que foi ele que escreveu. Improvisava. E sabia quando as coisas corriam bem ou não.” Acaba quase por mostrar um certo estatuto discreto de estrela de cinema à americana, tendo até direito a uma cena ‘à filme’. “Ele teve quase uma postura de actor”, confirma-nos a realizadora.
Na altura, Susana Nobre procurava um espaço de alívio sanitário que lhe permitisse avançar para a fase decisiva de Cidade Rabat, o seu próximo filme. “O argumento está escrito e bastante avançado”, garantiu-nos, na altura. “Neste caso, é o movimento contrário, tenho de encontrar a pessoa certa para o filme. Na segunda parte deste ano (o ano é 2021) espero já estar disponível para mergulhar no projecto.”
Depois de Visions du Réel, Red Africa e Via Norte viram-se para o IndieLisboa, de 28 de Abril a 8 de Maio.
Apesar da diversidade das propostas apresentadas pelas várias produções (e co-produções) nacionais, os filmes portugueses saíram de Nyon sem qualquer distinção. Uma pena, pois o naipe de filmes revela bastante fulgor cinematográfico. Desde logo, a visão muito particular de Red Africa, recriada pelo russo Alexander Markov, numa co-produção com a RTP e a produtora Kintop, de Susana Sousa Dias, sobre a influência da propaganda russa em diversos países africanos entre os anos 60 e 90, ou seja, entre o período de descolonização e a queda da URSS. Além das valiosas imagens de arquivo, destaca-se a intenção conferida à dimensão sonora que nos permite observar as imagens isentas da manipulação sonora original. Seguramente, um filme muito revelador que adquire dos dias de hoje uma pertinência inesperada e suplementar.
Igualmente ignorado foi Via Norte (ou Périphérique Nord) de Paulo Carneiro, dois anos depois da investigação familiar, em Bostofrio, adapta agora o mesmo registo de observação integrada sobre o valor e a extensão que um automóvel pode ter na vida social. Em particular, na comunidade emigrante na Suíça que retrata as suas paixões pelos carros modificados.
Se estes dois são talvez os filmes mais marcantes, em breve em exibição no IndieLisboa, merece ainda atenção Break Your Dick, de Pedro Rei, produzida pelo KinoDoc, a acompanhar o caminho tortuoso da transsexual Aurora para mudança de sexo, exibido no mercado. Do Bairro, de Diogo Varela Silva, reflecte a visão peculiar de alguns bairros históricos de Lisboa, como a Mouraria e Alfama, e o efeito da pandemia que os tornou em verdadeiros bairros fantasmas. Já a dupla Pedro Neto e Ricardo Falcão, reflecte em Yoon a viagem de um senegalês, desde Portugal até à sua terra, reflectindo sobre as pessoas que deixou para trás e as que irá encontrar em Dakar.
Referência ainda às produções minoritárias: as curtas Boy from the Dreams, do butanês Suraj Bhattarai, apresentado em estreia mundial e os oito minutos da animação Ribs, da bósnia Farah Hasanbegovic, dois projectos oriundos do Doc Nomads.
A Long Journey Home da chinesa Wenqian Zhang vence a secção Burning Lights. Portugueses sem prémios em Nyon.
L’Îlot, a estreia do suíço Tizian Büchi, foi o filme vencedor do Grand Pirx do Visions du Réel. Uma produção local, de Lausanne, que vence o festival, algo que não acontecia há quase dez anos, celebrando de uma forma perfeitamente conseguida a visão misteriosa que funda a investigação do acto de ver, no limite entre a realidade e a ficção, escondida numa insólita dimensão espacial e geográfica. A partir de uma área ribeirinha de lazer da cidadã de Lausanne, agora vedada por motivos misteriosos, facilita-se um ponto de vista entre vários cidadãos de diferentes proveniências e culturas. Desde logo, um dos guardas, de origem angolana e um dos muitos emigrantes portugueses, proprietário de um café local, além de um outro guarda magrebino, entre diversos espanhóis, uma jovem guitarrista à procura de inspiração ou até uma criança que acredita existir ouro naquelas águas, como que a acentuar as diversas hipóteses de fantasia que acentuam o lado híbrido dessa realidade.
Também estreante, a chinesa Wenqian Zhang venceu na secção Burning Ligts com o filme A Long Journey Home, em que a sua câmara regista a coabitação familiar ao mesmo tempo que a sua vontade de emancipação choca com uma visão mais tradicional. A suíça-japonesa Julie Sando venceu na categoria de Competição Nacional e o prémio Zonta pela sua escola de cinema Fuku Nashi.
O prémio do público foi para o filme americano Fire of Love, de Sara Dosa, sobre um retrato efusivo do casal de vulcanólogos Katia e Maurice Krafft mortos em 1991. Ao passo que o prémio FIPRESCI, representando o júri da crítica internacional, distinguiu o peruano Steel Life, de Manuel Bauer, sublinhando a descrição da actualidade peruana, envolta numa “subtil crítica social das injustiças do sistema capitalista”.
Emilie Bujès, a directora artística do Visions du Réel, congratulou-se pela “variedade de géneros, gerações, pontos de vista e geografias que nos guiaram terem sido reconhecidas e premiadas pelo público e pelos membros do júri”. Isto num palmarés que inclui sete primeiras obras, “novas vozes que se equiparam aos trabalhos de realizadores experientes”, referiu no serão de sábado, dia 16 de Abril.
De referir que a 53ª edição do festival apresentou 160 documentários provenientes de 68 países, sendo que dos 124 filmes apresentados na seleção oficial, 85 foram exibidos em estreia mundial. No que diz respeito à adesão do público, a edição deste ano terá sido muito semelhante à de 2019, a última celebrada presencialmente e não em versão online.
Em Dogwatch, o poder desnecessário impõe-se sem reação, ao passo que em Foragers, é a ilegitimidade do poder que se impõe diante uma bagatela. Por fim, na curta Quem de direito ausculta-se o ancestral poder pela posse da terra, mas à beira de ser alagado.
Na sua estreia em formato longo, o grego Gregori Rentis coloca a nu a (des)utilidade da força bélica quando confrontada com a ausência de conflito, na intrigante e inesperada calmaria poética captada em Dogwatch, a co-produção franco-helénica exibida em estreia mundial na secção competitiva do festival Visions du Réel, a decorrer em Nyon, na Suíça. Nesta cobertura online, vimos ainda Foragers e Quem de Direito.
A bordo de uma nave de intervenção marítima, uma task force multinacional de soldados da fortuna entrega-se a tarefas menores num quotidiano de espera. Enquanto uma voz de sotaque israelita vai gritando ‘inimigo às nove horas’ ou ‘mudar de carregador’, os pupilos contentam-se em contemplar alvos imaginários ao mesmo tempo que apertam, com nervosismo, um gatilho sem pressão. Nos intervalos, a câmara procura diferentes coreografias, sejam os movimentos precisos da máquina elétrica que acerta o cabelo, os movimentos atléticos que insuflam os músculos para exibir os bíceps e peitorais depilados numa discoteca masculina em dia de folga ou até ainda os gestos indolentes que cozinham ovos estrelados.
Longe vai a ‘golden era’ em que eram frequentes as investidas de corsários, nessa zona de alto risco na costa da Somália, e motivaram até a ficção made in Hollywood, em 2013, com Tom Hanks no papel de Capitão Philips, de Paul Greengrass. Hoje o perigo parece surgir apenas de pequenas embarcações carregadas de explosivos com o único intuito de provocar o caos. Outros tempos, que motivam veteranos, como Victor, a meter os papéis para um desk job.
É precisamente esse lado observacional, de completa modorra, que melhor acentua o lado absurdo da guerra. Algo que Rentis regista com rigor, sublinhando a dimensão observacional dos rituais de entrega e observação de um corpo de combate, embora resignado à espera do inimigo com falta de comparência, a fazer lembrar o cinema do canadiano Denis Coté, em particular, o Ta peau se lisse, de 2017.
Cercados
Embora sem qualquer desejo de simular uma ponte temática, sente-se em Foragers (no original Al-Yad Al-Khadra), da artista palestina Jumana Manna, a viver em Berlim, uma sensação inversa a esse projecto, ou seja, a proibição imposta pelas autoridades israelitas da apanha ancestral de determinadas ervas silvestres pelos palestinos, chamadas Za’tar e Akoub. Afinal trata-se apenas de plantas medicinais que abundam nos territórios ocupados e nos Montes Golan, constituindo parte integrante da dieta local e ancestral da comunidade árabe. No fundo, vitais pelos seus poderes medicinais, anti-inflamatório e bactericida e outras propriedades farmacêuticas. Quase um orgulho nacional, como nos é relatado no filme.
A partir do momento em que uma autoridade israelita determinou a proibição da apanha de akoub, em 2005, gerou-se uma enorme procura da população palestina, pela oferta de um reduzido número de empresas israelitas que asseguram, em kibutzes, a sua produção. Algo que se torna muito dispendioso aos agricultores árabes, pela impossibilidade de garantir um seguro para as culturas.
Na sequência da demarcação e vedação desse território, criando assim um comércio exclusivo, gera uma colecta ilegal por parte de muitos árabes que recusam essa imposição. Só que a recolha ilegal faz desta erva um equivalente ao tráfico de marijuana e gera contraordenações pesadas.
A certa altura, um velho argumenta “não vou justificar a vossa lei” à instrutora israelita que invoca o preceito criado pelo seu povo, argumentando que o proíbe de “colher alimento”. É precisamente diante desse direito de resistência, melhor, de indignação, com que ficamos.
Por fim, vimos ainda, na secção Film Market, a curta brasileira Quem de direito, a invocar a permanente luta pela posse da terra. Um registo que colhe interesse, sobretudo pela forma como a cineasta Ana Galiza recria histórias, passadas, mas também presentes.
A partir de registos fotográficos, que nos recorda a obra da portuguesa Susana Sousa Dias, evocam-se a História desse conflito na bacia do vale Guapiaçu, a 100 kms do Rio de Janeiro. E dos conflitos gerados desde o início dos anos 60 e prolongados ao longo de toda a ditadura militar, justamente no município com mais presos e mortos durante esses anos de chumbo. No meio desta questão, está ainda a polémica construção de uma barragem que não parece ter em conta o impacto nas populações que ficariam totalmente submersas.