As pulsações ancestrais e contemporâneas de Légua

Há recantos em Portugal que parecem ter sido esquecidos pelo tempo. Aldeias e vilas que persistem, erguidas como monumentos de uma certa maneira de viver, já praticamente extinta, como Manuela Serra teria previsto no fatídico plano final do seu O Movimento das Coisas. Cerca de 40 anos depois, estes mesmos lugares tornaram-se millieux onde diferentes energias geracionais convivem. Aqui, a resistência ancestral dos mais velhos contrasta com a inquietude dos mais jovens, motivados pelo impulso de explorar o que há “lá fora” e o espaço que ainda têm para sonhar.

Légua, de Filipa Reis e João Miller Guerra, que teve estreia na mais recente Quinzena dos Realizadores, em Cannes, tem no seu núcleo este mesmo conflito, enraizado na aldeia homónima em Marco de Canaveses e as personagens que lá habitam. Em particular, Ana e a idosa Emília, carinhosamente apelidada de “Milinha”, caseiras de uma antiga moradia senhorial com o nome de Casa da Botica. Juntas, rotineiramente mudam os lençóis das camas (cada conjunto devidamente organizado e etiquetado), tratam das plantas do jardim, limpam o pó e pulem a prata dos talheres. Tudo para melhor receber os donos-fantasma que porventura nunca voltarão a pisar o chão que as duas mulheres tanto cuidam e que apenas chegará a ser palco de um Manuel Mozos em vestes irónicas de padre. Este, irmão da Senhora, tanto deixa as compras por pagar, como se esforça para retirar o “triste crocodilo” do seu novo polo, não hão de os compadres jesuítas julgar.

Não obstante, Milinha parece encarar o trabalho como a sua missão de vida. É, no sentido mais literal, a sua casa, embora durma num quarto mais modesto na cave, cujo acesso obstruído por degraus traduz-se numa batalha para o seu corpo frágil. Apesar de não considerar a moradia sua, é claramente lá que sente pertencer, regendo-se, no entanto, sempre perante a hierarquia da sua empregabilidade. Não desafia esta condição e lastima Ana, quando esta demonstra sinais de contestação perante o sistema segundo os quais regem os dias de trabalho. Será punida, se deixar o quadro torto? Sim, mas apenas por Milinha.

Na dinâmica entre ambas, e ainda Mónica, filha de Ana, que estuda engenharia no Porto, presenciamos uma linha contínua da relação geracional com o meio. A mais nova e a mais velha, representando opostos, e Ana, suspensa no limbo entre ir e ficar, o novo e o velho. Inicialmente, descobre-se que planeia emigrar com o marido para França, na esperança de melhores salários, que os ajudarão a acabar a construção de uma casa própria. Contudo, decide ficar, quando descobre que a colega está doente. Sabe que Milinha, dada a escolha, preferia ver a sua vida concluída na única casa que conhece, junto das várias caras familiares, emolduradas em fila nas prateleiras. Desta forma, o cuidado da casa converte-se no cuidado de Milinha e um testemunho dos ritmos da morte, encenada aqui por uma não-atriz, cujo sóbrio poder se manifesta na vulnerabilidade da sua entrega.

Légua, Filipa Reis e João Miller Guerra © Uma Pedra no Sapato

Perante este exercício, o tempo permanece aquilo que pontua o filme. Acompanhando as várias repetições que compõem os nossos dias, e os transformam em meses e anos, Filipa Reis e João Miller Guerra fazem questão de sublinhar continuamente a passagem das estações e o crescimento das plantas como forma de espelhar o ciclo vital. No centro destas flutuações intermináveis, a Casa da Botica perdura enquanto monstro estanque, microcosmo que aloja transições, aparentemente sob a condição que estas não o afetem. 

Em contrapartida, Ana parece curvar-se perante a mudança, adaptando-se às suas mais variadas facetas, como mais um passo no fluxo natural do mundo. É uma personagem que Légua rapidamente nos apresenta em consonância com a sensibilidade das coisas. Uma mulher aberta à sensualidade e às emoções que podem surgir, até no simples ato de pôr creme enquanto se canta “Amor de Água Fresca”. Entregando-se ao prazer dos pequenos momentos, reconhecemos nela a poética do ato de regar as plantas, de estender lençóis lavados, apanhar sol num dia ameno e mergulhar nas águas frias do norte de Portugal. Atendemos aos pormenores e às nuances de cada sentido – o toque, o olhar, o cheiro, o sabor -, despertados pela atenção da câmara e pela humilde magia da presença de Carla Maciel. 

Mas para além destes atos facilmente romantizados, desaceleramos com ela, numa entrega mais dura. Fala-se aqui de mudar a fralda de Milinha, de ajudá-la a tomar banho e tão carinhosamente servi-la caralhinhos de São Gonçalo, acompanhados de chá servido na mais fina loiça, que a colega de outro modo provavelmente nunca teria tocado. Vislumbramos o que parece vir a ser o último instante prazeroso, uma espécie de canto do cisne da sua devota servidão, agradecida em contrapartida pela visita de uma agente imobiliária. 

Dando um passo para trás, vemos como a relação de Milinha com a casa e os seus objetos em muito espelha o seu estado de saúde, que deteriora à medida que a mesma se insere gradualmente, e apenas por necessidade, nesses espaços e gestos proibidos aos serviçais. Quando a conhecemos, desempenha as suas tarefas com brio, retirando-se ao fim do dia para o seu quarto no andar de baixo. Contudo, à medida que se torna progressivamente mais debilitada, vemo-la, contrariada, mudar-se para um quarto de hóspedes e, mais tarde, para a própria sala de estar, onde a sua cama articulada ocupa proeminentemente o centro da divisão e ela dificilmente limpa os copos de cristal. 

Uma imagem com pessoa, vestuário, Cara humana, interior

Descrição gerada automaticamente
Légua, Filipa Reis e João Miller Guerra © Uma Pedra no Sapato

Paralelamente, virgulando a rotina sóbria das duas mulheres, surgem impulsos de um certo desejo experimentalista que evoca o tal confronto geracional no cerne da narrativa. São instantes estes que se revelam em quebras, sejam estas visuais ou musicais, por vezes sublimes e por outras disruptivas. Neste último caso, uma prática de certo modo inclinada à mais jovem Mónica, no que parece ser uma tentativa de porventura destacar a personagem, posicionada num patamar em desequilíbrio com as demais. Não deixa de ser, contudo, interessante testemunhar o choque entre a contenção inerente ao 4:3 em que Légua nos chega, os granulosos 16mm, e essa quebra temporal e  visual, que a certo ponto até ataca os sentidos que o próprio filme despertou.  

Serão estas as pulsações do coração complexo que é Portugal – um país que, tal como Ana, se encontra no limbo entre os gestos ancestrais e a ambição contemporânea que o percorre? Independentemente da resposta e da incerteza do futuro, enquanto espectadores observamos a tesoura de Átropos corroer o fio de Milinha, e o que ela representa, linha a linha.

Margarida Nabais

Síntese dos elementos e múltiplas formas de fazer ver – três filmes de Sandro Aguilar

Apesar do percurso discreto, Sandro Aguilar é um dos realizadores mais prolíficos do cinema português dos últimos anos, se contarmos o número de filmes que realizou nas últimas duas décadas e meia, desde a estreia de Estou Perto (1998). Para além do trabalho como realizador e montador, Aguilar é produtor e um dos fundadores da produtora O Som e a Fúria, responsável por vários trabalhos de Miguel Gomes, Salomé Lamas ou Manuel Mozos. Por isso mesmo, esta sessão na Cinemateca Portuguesa, onde foram exibidos Armour (2020), The Detection of Faint Companions (2021), e ainda O Teu Peso em Ouro (2022), não deveria passar despercebida ao público português. Três filmes que, pela diferença de métodos e formas, revelam o que há de variado no seu cinema, mas também aquilo que já faz parte da sua assinatura.

Aguilar tem-se proposto a implodir com várias formas pré-estabelecidas de construção narrativa no cinema, procurando constantemente as múltiplas linguagens que os filmes podem adoptar e todo o potencial artístico dos dispositivos fílmicos. Com um trabalho maioritariamente em formato curta-metragem, o realizador conta com 19 filmes, entre os quais apenas dois obedecem ao formato de longa-metragem. Esta matemática espelha a importância da experimentação na sua obra, pois o formato curto é, muitas vezes, o terreno mais seguro para arriscar. 

Se esse lado experimental fica vincado na concepção das suas ideias, tudo é pensado e calculado ao milímetro no seu habitat natural: a mesa de montagem (o realizador é formado em Montagem pela ESTC e montou vários filmes do cinema português nos últimos anos). É nesse processo que a intuição que leva para a rodagem é substituída por um profundo processo de interligação de imagens, sob uma lógica que visa deixar abertura à visão última do espectador, parte sempre activa no seu trabalho.

O primeiro dos três filmes desta sessão, Armour (2020), é composto de fragmentos (palavra significativa no seu cinema, pois muitas vezes se trata de desfragmentação narrativa, de tirar peças do puzzle), diferentes blocos filmados no contexto de uma residência artística em Rimouski, no leste de Quebec, no Canadá. Nesse processo, o realizador teve carta branca para criar o objecto que assim entendesse. 

Se, maioritariamente, as imagens servem para compor e fazer avançar uma narrativa, neste e noutros casos da sua obra, a narrativa está lá para servir as imagens, para as unir e criar um universo composto de gestos e ações que formam essas histórias quase invisíveis. Em Armour, é através das legendas e intertítulos que vão aparecendo sobre e entre os planos que percebemos onde estamos e quem seguimos: Hector, alcoolizado, inicia a sua marcha decadente pelos subúrbios da cidade canadiana. Pelas informações que nos vão sendo dadas, sabemos que o pai de Hector está gravemente doente, a sua namorada deixou-o por um homem mais velho, levando o seu filho consigo, e que Hector se refugia no álcool. O resto é preenchido pela nossa imaginação e várias são as leituras possíveis, dentro de limites pré-determinados e propostos pelo realizador.

Bastante experimental do ponto de vista narrativo, a cartografia da paisagem que Aguilar foi encontrando dá origem à história que é construída através das palavras e sons adicionados na montagem. E o resultado é cativante. Somos levados, ao longo dos trinta minutos de filme, pelo consciente e pelo inconsciente da personagem. Não é estranho identificar também aqui o que o realizador diz numa entrevista sobre Mariphasa (2017): “os filmes vêm de um lado completamente subterrâneo em mim, uma mistura de memórias, medos, inquietações, que tento traduzir em imagens e sons o melhor que consigo.” Tudo isso parece de extrema importância na hora de compor o seu universo ficcional.

É curioso que esse encontro com a paisagem e a realidade dê origem a filmes tão ficcionais como este, ao invés de representações documentais daquilo que encontra. Acerca disto, Aguilar assume: “Eu não quero ter uma relação com a realidade. Quero construir uma realidade que é a do próprio filme, que se relaciona com a nossa realidade, mas não a representa.” Isto cria uma ligação estimulante entre obra e espectador. Precisamente dessa ligação surge uma beleza enigmática. Os resultados obtidos são sempre distintos, mas adquirem um interesse particular na relação com esse mesmo espectador. A imaginação de quem recebe a obra (essencial na literatura, por exemplo, mas preferivelmente presente em todas as formas de arte) tem aqui um papel semelhante ao do leitor. São as imagens do espectador que completam os espaços em falta. É essencial a sua fantasia.

Armour, Sandro Aguilar © O Som e a Fúria

O que foi dito anteriormente serve igualmente a outros dos seus trabalhos. Se considerarmos Sandro Aguilar um realizador experimental, The Detections of Faint Companions (2021) é sem dúvida o seu filme mais experimental e abstrato. A começar pela sinopse que nos dá alguns elementos indecifráveis: “Lua Cheia. Dentro. Talvez não sozinho.” A obra é o culminar de um minimalismo que sempre procurou – na tradição de Stan Brackhage ou Nathaniel Dorsky – a partir de imagens de uma instalação visual criada para um espetáculo teatral inspirado em Ping, de Samuel Beckett. Contudo, se não nos surpreendemos por este “desvio” na sua obra, é curiosa a motivação que teve para a construção do filme, uma vez que este terá surgido do seu preconceito relativamente à utilização do vídeo no contexto teatral. Isto porque é importante para si não dissipar esse lado que o texto esconde através daquilo que a concretização da imagem pode comprometer. Por isso, aquilo que vemos dilui-se; aquilo que detectamos desmorona-se; aquilo que damos como certo, desaparece. Depois, é deixarmo-nos imergir no resultado hipnótico daquela conjugação entre imagem e som ao longo de 9 minutos. 

Pois justamente de hipnose se trata O Teu Peso em Ouro (2022). Naquele que é o seu mais recente trabalho, o cineasta procurou recuperar um método mais clássico de fazer cinema de ficção. Um certo tipo de cinema que o realizador “reaprendeu a gostar”. Os “monólogos dialogados”, o uso da música, o método clássico associado à escrita, o campo/contra-campo, dão aqui origem a uma história algo melancólica que parece retratar uma ressaca física e emocional depois de uma sessão de hipnose. No entanto, encontramos as personagens alienadas, a narrativa obscura e o desenlace hermético com que já nos tínhamos deparado em outros dos seus filmes.

Mais uma vez, todo o conteúdo do filme é associado à forma. Se pensarmos no processo da hipnose em que somos guiados por alguém que inspira imagens a serem criadas no nosso cérebro, o jogo que aqui se propõe é idêntico. Ao ver o filme somos convidados para esse transe. A voz da personagem de Oscar, interpretada por Marcello Urgeghe, é verdadeiramente capaz de nos enfeitiçar e é admirável a cena protagonizada por ele e João Pedro Bénard, em que este discorre sobre os acontecimentos do dia anterior e se deixa levar pelo encanto do clamor daquele. “Agora já não vês este quarto”, diz Oscar antes de apagar o isqueiro. Depois, o seu rosto na penumbra.

Há algo de profundamente atraente naquelas vozes, no jogo de luz e sombra ao cuidado da composição fotográfica de Rui Xavier, companheiro de longa data do realizador, que dá a O Teu Peso em Ouro, o cariz estético que evidencia o lado sobrecarregado das personagens. Essa sobrecarga também se sente na cena na qual Oscar se veste lentamente, com todo um cuidado e formalismo nos gestos pausados sob a luz solar reflectida no seu corpo e rosto. Tudo é orquestrado de forma a criar um dos objetos mais sedutores do seu cinema. 

O Teu Peso em Ouro, Sandro Aguilar © O Som e a Fúria

Assumidamente, há um ímpeto experimental cada vez que Sandro Aguilar se lança para um novo projecto. Isso também explicará um percurso mais obscuro e a aura de uma obra difícil e emaranhada. É também isso que é preciso repensar. O seu cinema joga com certos códigos para os quais, enquanto espectadores e críticos, devemos estar disponíveis de forma a alcançar todo o potencial estético-narrativo dos seus filmes. Como já dito anteriormente, interessa-lhe o espectador activo que se encontra no teatro e na literatura: “No teatro basta apontar na direcção do vazio e dizer que naquele instante passam cinquenta cavalos na estrada de terra batida para que o nosso imaginário preencha esse intervalo com a nossa forma particular de visualizar o que é invocado pela palavra”, escreve o realizador na folha de sala desta sessão. Foi também isso que procurou fazer em O Teu Peso em Ouro, deixando espaços vazios para nos questionarmos sobre se as personagens vêem realmente o que estão a ver.

Apesar de apontar sempre para caminhos diferentes, Aguilar vem aprimorando fórmulas que trabalham para lá das configurações clássicas e da evidência de determinados métodos. Esta sessão foi exemplo disso: três objectos particulares, não só no cinema em geral, como na própria obra do realizador que procura reinventar o cinema a cada filme. Aguardemos o próximo (em produção) e logo veremos por que aliciantes caminhos esta obra em construção nos levará.

Ricardo Fangueiro

Pátio do Carrasco: Mitos lusitanos e assombrações kafkianas

Através de um rigor formal e um modo clássico de fazer cinema, André Gil Mata propõe-se neste Pátio do Carrasco, a contar um episódio da história do último carrasco português, Luís Alves. A média-metragem, presente na competição nacional do Indielisboa, começa com um narrador que nos dá conta da figura deste homem, cuja vida foi trespassada por peripécias e vários crimes. Por esses delitos viria a ser condenado à morte ou, como alternativa, ser condenado à tarefa de carrasco do reino. A decisão era, aparentemente, simples: morrer ou matar.

A exposição inicial da vida do algoz Luís Alves não nos prepara para o que aí vem. Um filme com poucos diálogos e um tratamento de som importantíssimo para o seguimento do que nos é mostrado ou escondido. Através dos gestos e rotinas das quatro personagens, damos conta do mistério que se adensa. A inspiração kafkiana (o filme baseia-se no conto Um Fratricídio, de Franz Kafka) faz-se perceber na temática e na fotografia do filme, mas não estaremos a exagerar se também dissermos que faz lembrar algumas obras do cinema português, de Manoel de Oliveira a António de Macedo. André Gil Mata deixa-se mesmo influenciar pelos melhores e é hábil na conceção das suas ideias. Porém, o filme parece também nunca conseguir soltar-se do formalismo da sua composição notável, não se permitindo ser invadido por outras descobertas cinematográficas.

Filmado em estúdio e contado em vários capítulos, a obra estabelece um jogo de perspetivas sobre a noite de um crime. Por vezes expressionista na fotografia e em determinados gestos técnicos – os constantes travellings e zooms contribuem para a sensação de prenúncio sobre o mal que irá ocorrer -, o filme conserva uma herança teatral devido à prestação dos atores e da misé-en-scene. Assombrado, melancólico e com laivos de terror, este pátio é filmado de maneira exímia, com cenas longas e silenciosas, que dão ideia do tempo real daquela noite e aumentam a tensão antes do crime.

Pátio do Carrasco, André Gil Mata © Rua Escura, Agente A Noite, Primeira Idade

Também de janelas se faz este filme, onde o início de cada capítulo começa justamente com o enquadramento de uma, seguido de um travelling para o interior de casa. A janela é um elemento central na arquitetura deste espaço, que permite testemunhar o que ocorreu noutro lugar (à semelhança de Janela Indiscreta, 1954), fortalecendo a ideia da visão subjetiva de cada um, desta feita através da sua janela. 

Talvez este filme faça um percurso discreto por festivais. Público e programadores estarão interessados em filmes que pensem mais o presente e as dinâmicas atuais, fazendo com que filmes de grande inspiração literária e de construção tão precisa como este, não sejam o prato forte dos festivais neste momento. Contudo, é bom saber que também se encontra vitalidade nas formas mais clássicas de fazer cinema.

Ricardo Fangueiro

Ice Merchants: O abrigo da rotina

Ice Merchants, a curta-metragem de animação de João Gonzalez, fez história ao tornar-se o primeiro filme português a ser nomeado para um Óscar. O filme é um exercício estilístico que cria uma atmosfera sentimental e desenha uma história profunda sem qualquer diálogo ao longo dos seus 15 minutos de duração. 

Fruto de técnicas de animação tradicionais, Ice Merchants recorre apenas à imagem, de traços suaves e cores contrastantes, ao som e à banda sonora, composta pelo próprio realizador, para contar a história de um pai e filho que, todos os dias, saltam de paraquedas da sua casa encastrada num precipício, para vender gelo na aldeia situada aos pés da montanha. O primeiro plano do filme mostra o filho a oscilar tranquilamente num baloiço construído por baixo do alpendre da casa, planando sobre as luzes da aldeia distante. De imediato, João Gonzalez convida o espectador a mergulhar no encanto surreal do filme, assimilando a realidade destas duas personagens. 

Ice Merchants desenrola a rotina repetitiva do pai e filho de forma despreocupada, tão leve como o desenho que dá vida a todas as cenas. Apesar dos ângulos vertiginosos e dos sons ameaçadores que percorrem toda a casa, o filme expõe-se ao espectador com a mesma tranquilidade com a qual pai e filho saltam para o espaço vazio que os espera para além do seu alpendre. Uma e outra vez, os dois saltam juntos, rasgando o ar gélido e agreste entre a sua casa e a aldeia, perdendo os seus chapéus pelo caminho, até que o pai abre o paraquedas e aterram no chão com uma confiança muda. A sua passagem pela aldeia é metódica – o filho entrega o gelo e recolhe o dinheiro, o pai usa parte dos lucros para comprar novos chapéus. Ao fim do dia, já estão de regresso a casa.

Ice Merchants (2022), de João Gonzalez @ Direitos Reservados

No entanto, sobre tudo o que os dois fazem, paira um peso inexpressável, um vazio representado por uma caneca amarela que nem o pai nem o filho usam. Este espaço negativo assombra a história mais do que o mais alto precipício. Mesmo sem falarem, o luto das personagens é claro, e talvez por não ser expresso em palavras, essa emoção torna-se maior do que a própria falésia.

Apesar da altitude arrepiante, da dor e saudade que as personagens carregam, Ice Merchants permanece sempre uma história esperançosa, iluminada mesmo no espaço mais inóspito, um contraste realçado pelas cores quentes das personagens sobre os tons frios do ambiente que as rodeia. João Gonzalez consegue contar uma história única, visualmente algo surreal, transmitindo os sentimentos mais profundos através das ferramentas que distinguem o cinema como arte; a imagem viva e o som.


Margarida Rodrigues

[Foto em destaque: Ice Merchants (2022), de João Gonzalez @ Direitos Reservados]

Mal Viver: a secura das almas num hotel assombrado

O díptico ambicioso de João Canijo foi um dos objectos que mais curiosidade suscitou, à partida para a competição oficial da Berlinale. Mal Viver é, de facto, um filme imponente e violento, difícil de suportar, que nos faz mergulhar na sofreguidão intensíssima desta família. Quando voltamos à tona, falta-nos o ar.

É conhecido o interesse de Canijo pelo trabalho prolongado com os actores. O realizador tem um método muito característico de composição da história e construção das personagens junto das actrizes, que participam activamente no processo de escrita e preparação do filme. A profundidade desse método fá-las viver as cenas com uma energia feroz. 

Mal Viver, João Canijo © Midas Filme

O início de Mal Viver mostra-nos Piedade (Anabela Moreira) deitada junto à piscina com a sua cadela, Alma, ao colo. Na piscina e na companhia de Alma, Piedade encontra o conforto necessário para conseguir suportar o estado depressivo em que se encontra mergulhada. Contudo, o regresso inesperado da sua filha Salomé (Madalena Almeida) vem abalar definitivamente essa condição. Sara (Rita Blanco) é a matriarca da família que tenta gerir o hotel ao mesmo tempo que a tensão familiar. 

O realizador é hábil no jogo do campo, contra-campo e fora-de-campo – transformando a obra num ensaio sobre o acto de enquadrar, de escolher o que se mostra e o que não se mostra. Isso está, obviamente, presente na própria proposta de fazer dois filmes no mesmo intervalo espácio-temporal, mas acompanhando diferentes personagens. É como se, neste caso, houvesse mais do que um sítio em que a câmara pudesse estar, e isso dá origem aos dois pontos de vista – Mal Viver, que segue as donas do hotel; e Viver Mal, que nos mostra os hóspedes desse mesmo hotel.

Não há dúvida que Canijo domina a linguagem do cinema narrativo e que se tornou um mestre do seu cinema. Cada centímetro é trabalhado com minúcia e isso nota-se. Mal Viver é fabulosamente envolvente ao fazer-nos acompanhar de perto o drama familiar daquelas mulheres. Nos encontros e no fora-de-campo, vamos desvendando as histórias e as personagens de Viver Mal. O facto do filme ter sido rodado num hotel durante o período de confinamento possibilitou um controlo total que o torna fechado, claustrofóbico, e onde as personagens sufocam na angústia e no desespero. No entanto, esse controlo teatral também afasta o espectador de uma relação mais emocional com o filme. 

As constantes conversas cruzadas, que já fazem parte do cinema de João Canijo (algo que em Sangue do Meu Sangue resulta muito bem), criam em Mal Viver alguns momentos absurdos, principalmente nas cenas em que as responsáveis do hotel atendem os clientes à mesa, durante o jantar. Na altura de apresentar as suas sugestões do que têm no menu, as empregadas de mesa falam por cima das conversas dos clientes distraídos. Completamente ignoradas por eles, continuam a falar de forma irreflectida para o ar. Esse cruzamento de vozes é embaraçoso e nada acrescenta ao filme.

Mal Viver, João Canijo © Midas Filmes

Sôfrego e tocante, o filme deixa-nos exaustos pela experiência poderosa que nos provoca, mas o resultado não é totalmente convincente. O seu lado demasiado cerimonioso e presumido afasta-nos do lado humano das personagens, deixando-nos com a secura das suas almas perdidas pelo hotel.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Mal Viver, João Canijo © Midas Filmes]

Susana Nobre: “Não tenho uma visão determinada, ideologicamente, mas terei tendência a fazer filmes com finais felizes.”

O tiquetaquear dos relógios relembram a passagem irrevogável do tempo, a memória daquilo que não volta mais, mas também a muito humana capacidade de reinventar a vida. Susana Nobre projeta essa capacidade através de Helena (Raquel Castro), autêntico espelho com quem esbate as fronteiras da realidade, da ficção e da memória pessoal e coletiva, não obstante Cidade Rabat (presente na secção Fórum da Berlinale) ser a sua primeira ficção apoiada num argumento escrito.

A autora dos recentes No Táxi de Jack (2021) e Tempo Comum (2018), títulos que também observam aqueles que tomam as rédeas do seu destino, propõe, desta vez, uma viagem conduzida pela interioridade de Helena, mulher que se vê forçada a lidar com as particularidades do luto da mãe. A realizadora filma com calma, ternura e generosidade, escapando, também na direção dos seus modelos, a qualquer sentimentalismo ou condescendência televisiva.

Como Susana Nobre, também Helena trabalha em cinema, cuidando de relações intercedidas por horários, dinheiro e outras ficções, motivando assim a observação sobre várias redes de relações de pessoas. Pelas aparições que se sucedem, não será descabido vermos Cidade Rabat também como uma carta de amor às pessoas e princípios da Terratreme, produtora de que Susana Nobre é uma das fundadoras.

A certa altura, quando Helena faz serviço comunitário no Clube Desportivo da Reboleira e Damaia, vários espelhos se refletem ao infinito – Helena, que víramos inicialmente a organizar figurantes para uma rodagem, aponta a câmara de filmar para a sua própria imagem, como que se redescobrindo protagonista, alguém que decide a vida que acontece a cada instante.

No rescaldo do visionamento de Cidade Rabat, seguiu-se uma entrevista a Susana Nobre conduzida pelos autores do Cineblog Kenia Pollheim, Flávio Gonçalves e Ricardo Fangueiro:

Ricardo Fangueiro: Cidade Rabat parece ser construído em torno da ideia de família e comunidade. Percebemos que é filmado com muitas pessoas que trabalham na produtora Terratreme, muitas caras conhecidas. Havia essa vontade de se focar na importância dos vários coletivos e comunidades onde nos inserimos?

Susana Nobre

Susana Nobre: Não, como intenção, penso que não. O filme tem alguns aspectos autobiográficos e em relação ao projeto, a escrita é focada em alguns aspectos da minha vida, que surgiu principalmente como ponto de partida, uma janela para a escrita do projeto. A sequência inicial da descrição do prédio existiu quase como uma espécie de filme autónomo que eu já queria ter feito, uma curta-metragem, uma memória descritiva do prédio da minha infância. Era exatamente capaz de me lembrar de cada pessoa que lá vivia, sabia descrever a casa delas, os nomes… Queria fazer esse exercício como filme.

Depois, também já tinha filmado algumas coisas no Clube Desportivo, mesmo ao lado do bairro da Reboleira, onde o Basil da Cunha costuma fazer os filmes dele, e onde eu também estive, efetivamente, a fazer trabalho comunitário. Eram coisas que eu já tinha até explorado com a câmara, tanto o prédio como a Reboleira. São coisas que eu depois acrescentei à história principal – da morte da mãe – e centravam na ideia do ritual da morte, da partida, a partir da minha experiência. [Juntei] estas coisas de uma maneira um pouco imprevisível, sem saber muito bem onde é que me iam levar em termos de narrativa e de correspondência entre as coisas. Acho que [a comunidade e o coletivo] estão lá, mas não através de intenções completamente dirigidas, nem controladas.

Kenia Pollheim: A Susana falou de um trabalho autónomo sobre as portas e histórias, e é assim que começa este filme. Achei interessante vermos as memórias da personagem principal com as portas e o rasgo dessa memória no papel da mãe. Pode falar-nos um pouco desse acto, do rasgo físico da memória? Parece-nos que as lembranças não têm o mesmo valor para a mãe e para a filha…

SN: Não sinto que os movimentos no filme estejam tão sublinhados, mas existe de facto esse movimento contraditório entre a mãe que quer apagar o rastro dela, e a Helena, que tenta resgatar alguma coisa da sua própria vida. Penso que a personagem projeta-se já na vida da mãe, num lugar que sabe que em breve ocupará. Não são conceitos que tenha trabalhado de uma maneira muito direta mas que existem, de facto, no filme.

Flávio Gonçalves: A personagem trabalha em cinema como produtora, cuida dos horários e vê-se uma ligação com os relógios que vão aparecendo no filme: o tempo, a morte… Quando aparece o trabalho comunitário no Clube Desportivo, há uma ligação da montagem do ponto de vista da realização com a personagem, até chegarmos ao momento em que a personagem se filma ao espelho. Acha que a Helena é uma personagem que se esquece de si própria, demasiado atenta em organizar a vida dos outros, mas que se vai esquecendo?

SN: Sim, penso que esta personagem, quando a encontramos, é uma pessoa que aparece sempre em reação às coisas, a resolver problemas numa certa cadeia produtiva do quotidiano. Penso que, quando aceita o trabalho comunitário, existe esse desejo de fazer qualquer coisa que está fora dessa cadeia [e acho que é isso] que a leva a aceitar, ainda de uma forma um pouco incerta, o trabalho comunitário, para ter esse espaço de atenção. Ela esteve naquele bairro a trabalhar como produtora, com relações muito mediadas pelo dinheiro, e o bairro aparecia como décor. Depois volta com um outro olhar sobre aquela comunidade. Isso também era uma coisa que eu queria ter destacado no filme.

Em relação aos relógios, isso sim foi uma coisa muito de argumento. A ideia de que, quando entramos em casa da mãe, estamos sempre a ouvir o relógio, o tempo, cada minuto é importante. Assim, quando chegamos ao fim do filme, o tempo parou, o relógio está tombado. Já são coisas que têm mesmo a ver com a estrutura do filme.

KN: Essa questão de que a vida continua… No Tempo Comum (2018), há o nascimento de uma criança e nós vemos os passos da reinserção dos novos pais na vida social, numa pequena casa em Lisboa, com os amigos e família… Não sei se é propositada ou não, mas há a contraposição do nascimento desse filme com a morte em Cidade Rabat, mas principalmente a ideia de que há muito mais para além do que nos acontece. A vida continua e as coisas vão-se desenvolvendo sem o nosso controlo e isso é enfrentado neste filme de uma maneira muito contida. Vemos a Helena muito tensa, mas sem muita preocupação com o que vai fazendo. As coisas parecem até um pouco [desajeitadas] quando finalmente explodem como na cena da dança ou nos momentos informais com a sua equipa de produção.

Cidade Rabat, de Susana Nobre © Paulo Menezes

SN: É a ideia desta mulher que esteve num ambiente de doença, de morte, que teve uma necessidade enorme de viver outras experiências, e é isso que a leva a ter uma série de impulsos que a põem numa espécie de euforia, de querer viver a alegria do mundo. Ela quer sair daquele universo mórbido. Quer, de certa maneira, acreditar na vida. A ideia de alguém que viu a morte de perto e que precisa de voltar a acreditar. Acho que ela tem essa euforia e, por um lado, acho que há uma ligeira evolução na sua vida e, quando chegamos ao final do filme, não é que tenha havido uma grande evolução, mas sabemos que ela talvez esteja já preparada para viver qualquer coisa de novo, mesmo que não saibamos o quê.

FG: Talvez através do cinema?

SN: Não sei… Ela faz cinema, mas podia fazer outra coisa… Podia escrever, por exemplo. É mais essa ideia de fazer qualquer coisa que tenha a ver com uma vida mais contemplativa.

KN: Isso nota-se já no trabalho com a comunidade no ato de filmar o Clube Desportivo em si.

FG: E há, no filme, uma visão do mundo acolhedora. Não há grande hostilidade entre as pessoas. Talvez esse acreditar na vida possa vir através dos outros, no dar atenção aos outros como já acontecia com a mãe? Os modelos que usou também fazem parte da vida da realizadora, está tudo muito unido, certo?

SN: Sim, há uma composição. É um filme de ficção, é tudo sempre ficcional, mas as coisas partem de experiências da vida que são, depois, muito elaboradas.

FG: E faz-lhe sentido isso de ser acolhedor? Quando se faz um filme, está a criar-se uma certa visão do mundo, um ideal. Neste filme só me lembro de um momento em que se sente uma falta de segurança, um mundo não tão ideal… Ou isto é simplesmente uma coincidência das pessoas que a rodeiam?

SN: Não tenho uma visão muito determinada, ideologicamente, no filme. Não estou a defender nada, estou a juntar as peças e ver o que comunicam entre si. Terei uma tendência, talvez, em fazer filmes com final feliz, apesar de atravessarem depois coisas muito duras. Mas isso talvez já venha da minha personalidade.

FG: Quando se olha ao espelho, há uma certa calma. O filme pode ser intranquilo, mas revela um modo de estar no mundo… Essa ideia de se esquecer de si mesma também estava presente no argumento, na ideia para a personagem?

SN: Sim, acho que há um apontamento auto-reflexivo, mas podem fazer vocês a psicanálise. [Risos]

RF: O filme marca o ritmo do quotidiano, como foi esse trabalho na montagem? A Susana esteve muito presente, foi importante para intensificar esse ritmo?

SN: Estive muito presente. Foi uma montagem bastante feliz. [Cidade Rabat] foi um filme de argumento, montámos a partir do argumento. Não houve um arranjo em termos de ritmo para dar nuances diferentes. Foi mais um trabalho de economia, retirar o que pudesse interromper o filme, foi mais essa a orientação.

KN: Quanto ao trabalho da Raquel Castro, a relação que se criou entre realizadora e atriz e a forma como ela encarna esta personagem, de uma pessoa que está numa espécie de pausa na vida, é bastante intensa. Há também uma contraposição com os outros filmes, sendo o primeiro com argumento escrito, era algo de que sentia falta?

SN: Foi muito interessante, eu não vi mais ninguém. Foi um casting único, foi o André Silva Santos, assistente de realização do filme, que me sugeriu a Raquel depois de ter visto um vídeo com ela e eu achei que sim. O André já conhecia o argumento e achou que a Raquel seria interessante. Encontrámo-nos, conversámos, e havia algumas coisas da sua história de vida que me deram alguma garantia que havia um background bom para se trabalhar a personagem. O facto de ter sido enfermeira, de ser mãe… A partir daí tive uma confiança de que conseguiríamos fazer o trabalho juntas e avançarmos. Fiquei bastante satisfeita, acho complicado lançar expectativas com atores naqueles castings enormes, que são importantes, mas foi bom não ter de entrar nesse domínio. Fui muito feliz porque fez mais sentido assim, e fortaleceu a confiança da Raquel no trabalho.

O processo da Raquel com a personagem foi bastante vivo, não houve uma receita imediata do argumento que se impôs desde o início para ser executada na rodagem. Estava sempre qualquer coisa a funcionar, ela ia fazendo as suas tentativas. Nós rodámos dois meses, e a partir do meio da rodagem ela estava já quase completamente autónoma.

FG: E já está a ser pensado um próximo filme…?

SN: Sim, já há uma ideia. Gostava muito de continuar do trabalho com a Raquel, ainda neste trilho da vida de uma mulher…

Flávio Gonçalves, Kenia Pollheim Nunes e Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Cidade Rabat, de Susana Nobre © Paulo Menezes]

Filme de João Canijo, Viver Mal, entre os destaques da secção Encounters na 73.ª Berlinale

O Festival Internacional de Cinema de Berlim, a acontecer entre 16 e 26 de fevereiro, já tem a sua programação disponível. Ano após ano, as nove secções do Festival espalham-se por mais de 20 espaços icónicos da capital Alemã, e o primeiro ano sem restrições pós-pandemia promete o regresso da Berlinale a todo o gás, incluindo a estreia de um díptico de João Canijo.

A programação inclui mais de 400 filmes ao longo de dez dias de Festival. Entre eles, 16 filmes fazem parte da secção competitiva Encounters, estabelecida em 2020 como contraponto da Competição Oficial. Dedicada a “novas visões cinematográficas, esta dá destaque a autores inovadores, cujos filmes se diferenciam na estética e estrutura.  Ficção e documentário partilham espaço nesta secção que pretende “ser um espelho dos diferentes modos de produção (…) e refletir a energia vibrante do século XXI”.

Entre primeiros filmes de novos realizadores – Adentro mío estoy bailando, de Leandro Koch, Paloma Schachmann; Kletka ishet ptitsu, de Malika Musaeva; Mummola, de Tia Kouvo; Orlando, ma biographie politique, de Paulo B. Preciado; Xue yun, de Wu Lang – e obras de autores já consagrados como o coreano Hong Sangsoo, bem como o americano Dustin Guy Defa ou a germano-curda Ayşe Polat, a secção abrange, ainda,  filmes advindos da Europa, das Américas e Ásia.

Mummola, de Tia Kouvo © Sami Kuokkanen / Aamu Filmcompany

Destaca-se, ainda nesta secção, o cinema português com uma dose dupla de João Canijo, a primeira desde que Alain Resnais levou o díptico Smoking/No Smoking ao Festival em 1994. Desta feita, o realizador português concorre ao Urso de Ouro com Mal Viver e traz à Encounters o seu contracampo, Viver Mal. O filme foca-se em três grupos de hóspedes do mesmo hotel de Mal Viver, arrastando as mulheres que o gerem para uma teia de conflitos protagonizados por grandes nomes do cinema português como Nuno Lopes e Filipa Areosa; Leonor Silveira, Rafael Morais e Lia Carvalho; Beatriz Batarda, Leonor Vasconcelos e Carolina Amaral.

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Viver Mal, de João Canijo © Midas Filmes]

Lobo e Cão, do mar e do “entre”

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão, estreou a 8 de dezembro, em solo português. À boleia da tempestade, a realizadora portuense foi apresentar à sala esgotada do Cinema Ideal o filme que recebeu o prémio principal da secção Giornate degli Autori, paralela ao Festival de Veneza. “Hipnotizante” e “importante” foram as palavras que o júri, presidido por Céline Sciamma, convocaram para o descrever.

Do latim insula veio a italiana isola – lugar de exílio, ermo, cortiço… ou ilha.  Ana e Luís são dois adolescentes que vivem num pedaço de terra cercado, por todos os lados, pelo Oceano Atlântico. As suas dinâmicas sociais e familiares são exploradas com vagar em São Miguel que se revela, em Lobo e Cão, uma ilha de tradições marcadas, de cultos inexoráveis e de um isolamento que faz questionar se o acto de querer será, também, pecado. 

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados

Lobo e Cão manifesta-se na desconstrução do binarismo e na (con)fusão de dicotomias num coming-of-age que, de facto, hipnotiza. Cláudia Varejão descreveu-o como um “filme-coral”, que nos parece acertado: na base do coral, Ana, a nossa personagem principal que carrega no seu âmago uma introspecção determinada que só a adolescência permite; nos “tentáculos”, cada um dos pedaços de vida que vamos, aos poucos, explorando. 

Assim, chegam-nos em mosaicos a lassidão de ser-se filha do meio, entre dois irmãos rapazes, e a relação ora maternal, ora vulnerável – algo tão simples como pedir ajuda para se abrir um cadeado pode ser um statement de remissão. A amizade com Luís abre portas para conhecermos um mundo subterrâneo de afeto e camaradagem entre a comunidade queer que Lobo e Cão resgata do apagamento a que é fadada, mostrando que, mesmo nestas isolas, a existência de um lugar seguro é alcançável. A chegada de Cléo, amiga emigrada no Canadá, que traz nas mechas de cabelo rosa o vendaval de uma juventude despudorada, desperta em Ana um querer tão forte que a desprende do embaraço.

Cláudia Varejão cede, num argumento que é mais forte em motif que trama, uma história preciosa de afirmação juvenil – em Ana, a dualidade contraditória entre querer e fazer, que lhe é desmontada pelo padre hippie que lidera as comunhões (“querer é fazer acontecer”); em Luís, a libertação em poder ser quem é e vestir o que quiser junto dos amigos e da mãe, e, ao mesmo tempo, a repressão da tradição em que continua a participar, mesmo sem caber nos seus moldes. Num dos momentos de maior tensão, Luís encontra-se na caminhada tradicional dos Romeiros, de que faz parte com o seu pai, cuja cara soturna e marcada é sinónimo de um trabalho árduo e viril, antónimo da sua.

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados

A cinematografia é exímia, os planos aproximados e enquadramentos invulgares contribuem para a sensação de claustrofobia que a ilha pode causar. O Oceano pontua a ação, sendo personagem presente em todos os momentos importantes – começa repressivo e acaba libertador; é ele que dá e ele que tira, é entreposto, ponto de crime e de fuga, manifestação omnisciente que observa. O trabalho de sonoplastia insigne também se destaca: reproduz o que escutamos no mergulho e emite, em vários pontos da trama, um pranto misterioso e medonho que só poderia vir do fundo do mar.

A técnica está lá também nas atuações dos não-atores que permeiam a película: há um minimalismo inerente nas atuações que se revelam autênticas. O trabalho da procura destes atores, que Varejão descreve como “extenuante”, certamente compensou, sobretudo com a escolha de Ana Cabral, cujo silêncio tímido conquista desde a primeira cena, segurando algumas das pontas que o ritmo vagaroso do filme acaba por deixar esvoaçar.

Este esvoaçar, no entanto, não é pejorativo. Lobo e Cão encontra a sua potência no não-dito: entre o selvagem e o domesticado, entre o feminino e masculino, entre a tradição e a modernidade… é no vazio entre cada um dos binómios que se encontra o espaço necessário para crescer e afirmar a identidade, para a experimentação. Se a adolescência é um limbo desajeitado onde o bem, o mal, o desejo e o indizível são peças do mosaico, é no “entre” que principiam todas as possibilidades. 

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados]

As ilhas em que habitamos – Lobo e Cão de Cláudia Varejão

Ao longo das nossas vidas, vestimos diferentes papéis sociais, criamos as nossas ficções e expressamo-nos com a liberdade e diversidade a que o nosso desejo nos impele. Cada um de nós, vive e sobrevive com os respectivos medos e vontades, muitas vezes limitadas pelos preconceitos instalados na conduta humana e nas relações com os outros. Todas estas questões são convocadas no mais recente filme de Cláudia Varejão.

Tudo começou em 2016, quando a realizadora foi convidada para uma residência artística nos Açores, mais propriamente na zona alta de Rabo de Peixe em São Miguel. A localidade açoriana, conhecida por ser uma das mais pobres da Europa, foi o lugar onde Varejão encontrou a imagem improvável que serviu de mote para o filme: ao descer à vila piscatória, enquanto observava os pescadores que ali trabalhavam, viu aproximar-se daqueles, um grupo de raparigas transsexuais. Virilidade e vulnerabilidade, o que entendemos por masculino e feminino, cruzavam-se perante o olhar da realizadora que viu nesse cenário o conflito a explorar no filme. Desse encontro com os jovens da ilha, nasceu o impulso para a realização de Lobo e Cão (2022), título que já aponta para essa dicotomia que o filme procura perceber e desconstruir.

Daqui se denota toda a carga social que o filme carrega e que também o ultrapassa. Deste projecto, nasceu uma associação de apoio aos jovens LGBT da ilha e às suas famílias. Com um conjunto de psicólogos foram desenvolvidos psicodramas que ajudaram estas pessoas a perceber melhor o lugar do outro e a pensar a multiplicidade de formas existentes em cada um, servindo também de base para a escrita do argumento. Após este trabalho, partindo das histórias pessoais daqueles jovens e ainda das próprias vivências e memórias da realizadora, esta começou a escrever a narrativa que nos havia de guiar por este período fugaz da vida destes jovens.

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados

Ana e Luís, protagonistas deste filme, poderiam ser o lobo e o cão, numa troca e mistura de papéis sociais e normas para o que é entendido ser uma pessoa do sexo feminino e do sexo masculino. Ana talvez não seja cão, mas antes o lobo que procura ser selvagem e Luís talvez não seja o lobo que querem que ele seja, mas talvez o cão que precisa de afecto e do abraço materno. E talvez tudo se troque, tudo se confunda e nenhum deles seja lobo nem cão.

No meio do oceano atlântico, o mar surge como horizonte metafórico de fuga e liberdade. Ana é a filha do meio de três irmãos e lida com a opressão que sente aos seus desejos e à sua liberdade. Lida com os códigos que lhe são impostos, diz não saber o que significa pecar, nem o que é o bem e o mal. Luís expressa-se da forma que o faz sentir mais livre e lida com as consequências da moral conservadora da sua família e amigos.

O filme de Cláudia Varejão é claro naquilo que pretende mostrar. Dois jovens são obrigados a viver segundo os padrões normativos da sociedade, sentindo-se oprimidos num código moral com que não se identificam. Infelizes e não conseguindo viver a sua identidade em pleno, procuram vivê-la da forma possível e o filme, criando a distância que nos permite o pensamento sobre as particularidades de cada género, torna-se uma viagem que possibilita ao espectador acompanhar essas descobertas. Notamos na vivacidade das cores da fotografia do filme, o desejo inerente e contido que “não cabe na ilha”, mas que Luís e Ana transportam consigo. 

Contudo, e apesar de algumas ideias visuais interessantes, sente-se falta de alguma subtileza e engenho para evitar que o filme se torne disperso na construção narrativa de algumas personagens (algo que se poderá dever a escolhas de montagem ou da própria rodagem), e que fizesse o filme transcender mais as suas temáticas. Ainda assim, Lobo e Cão é um retrato comovente e importante daquela comunidade e que nos põe a questionar as limitações que são impostas à nossa identidade.

Ricardo Fangueiro

Entrevista a Cláudia Varejão

9 de Dezembro, Lisboa

© Direitos Reservados

O filme tem um peso social muito grande, pelas temáticas de que se aproxima e pelo trabalho feito junto da comunidade da ilha de São Miguel, em particular dos jovens queer/LGBT e das suas famílias. Como é que se articula essa vontade em ajudar aquelas pessoas com a criação de um objecto artístico como é um filme?

O filme parte de uma curiosidade. Neste caso de uma curiosidade observacional. Eu venho mais do documentário, trabalho com pessoas e aquele território interessou-me muito, porque é um território, diria, muito português. Portanto, com heranças judaico cristãs muito presentes no quotidiano e na sociedade, mas ao mesmo tempo um território onde o momento histórico e a vida contemporânea também está presente. As novas gerações trazem isso: uma liberdade de expressão, de expressão de género que aqui é muito importante. Esta questão: o que é o género? O feminino e o masculino e todos os outros géneros que cada vez nós nos permitimos mais a explorar, a validar, a integrar na sociedade… todos estes elementos estavam presentes na ilha, logo desde início. 

Portanto interessou-me muito este território isolado no mar, que tinha todos estes elementos que todos conhecemos. Só que ali era possível circunscrever a um espaço geográfico e depois de eu ver aquela cena na doca piscatória dos pescadores a falarem com miúdas transsexuais e todo esse universo polarizado, levantou-me muita curiosidade. Eu acho que a curiosidade é o motor da criação, de querer conhecer, de querer saber mais, ir à procura de respostas, e quanto mais respostas temos mais perguntas temos, não tem fim… Eu não utilizaria a palavra “ajudar”, mas “participar” na construção de melhores vidas para a comunidade. A partir do momento em que eu queria trabalhar com eles, com pessoas de lá e não levar actores, percebi que não podia não me envolver na vida real destas pessoas e a vida destes jovens é ainda uma vida cheia de sofrimento, cheia de medo… Ser adolescente é isso, mas ser adolescente queer ainda mais. É redobrado o receio de ser diferente, o receio de não pertencer, de exclusão. Quando eu fui percebendo que isto era muito latente e que causava muito sofrimento na população, foi aí que me comecei a envolver num lado mais activista. Tentei ajudar a criar este primeiro centro de apoio a pessoas LGBT e às famílias, mas este lado de trabalhar socialmente com as pessoas não foi o ponto de partida. Foi uma necessidade que apareceu durante o processo e que eu integrei. 

Agora sem dúvida que o cinema e a arte em geral têm uma participação activa na vida das pessoas. Claro que os filmes podem ajudar, desde logo a que as pessoas se sintam representadas, validadas, entendidas, e isso pode empoderar a vida das pessoas, pode dar chão, pode dar afecto. Isto acontece com um filme como pode acontecer com uma fotografia numa exposição, com a música que nós ouvimos e que tem uma letra que parece que foi feita para nós. Isso é o lado que não tem valor. A arte não tem valor nesse sentido. É um valor enorme, um valor humano, de vida, que transcende o valor financeiro, a urgência financeira, o financiamento para a cultura, enfim…

A arte pode ser vista como um espelho da realidade e parece-me que o cinema ajuda a criar a distância necessária para perceber coisas que nem sempre são fáceis de perceber para quem sempre viveu com certas narrativas instaladas. Acreditas que o cinema/os filmes/a arte têm essa capacidade de nos ajudar a ver melhor a realidade?

O cinema é um exercício fabuloso que nos permite uma certa distância, como ponto de partida. Nós estamos distantes do ecrã, distantes do filme e portanto vemos de fora. Mas depois há um espelhamento da vida e somos convocados para dentro. Estes dois movimentos opostos têm uma força enorme, uma força de reflexão, de pensamento e de sentir. Nós sentimos muito quando vemos, quando vemos em silêncio e quando vemos de fora. E depois há momentos de clarividência neste processo de observação. E isto é também aquilo que eu vivo quando estou a fazer, eu estou a olhar para algo, de alguma forma estou de fora, mas estou implicada nessa realidade. Tenho um olhar de relação com a realidade. Eu tenho esta experiência ao fazer que depois também acaba por se sentir nos filmes. Eu não imagino a vida sem estas ferramentas dos filmes, dos livros, da música, porque são momentos de encontro, quase como ir à igreja. São momentos de encontros espirituais, filosóficos, psicológicos em que nós nos permitimos sentir e estar em contacto com o nosso mundo interior, porque a vida é absurda. A vida é absurda. Nós estamos sempre em movimento e a cumprir papéis sociais e a cumprir tarefas, vidas académicas e vidas profissionais. E isto é para quê? Para sobreviver, para fazer parte. E a arte permite-nos reflectir um bocadinho neste absurdo da vida e o cinema, eu sou suspeita, diria que é a forma mais rica de criação, porque a vida é muito real dentro dos filmes. E isso é incrível, é uma ferramenta, é uma arma e uma arma política também, porque é uma arma de transformação. O nosso olhar enquanto vê um filme transforma-se, reencontra-se, conecta-se e depois trazemos isto tudo cá para fora, para a vida. Nós saímos tocados dos filmes, uns mais, outros menos. Mas mesmo aqueles nos quais nós não nos encontramos, validam aquilo que nós não queremos. Portanto é sempre um lugar de encontro e construção da nossa própria identidade.

Trabalhas junto da comunidade com não-actores ou actores não profissionais. Poderias ter feito este filme com actores profissionais? Até que ponto é realmente necessário essa proximidade das pessoas filmadas ao papel que representam?

Era possível, mas não era eu certamente. Tudo é possível no cinema, não existem impossíveis. Existem infinitas formas para o ofício, para se fazer…

Esta pergunta tem uma ramificação, que é perceber que cuidados é preciso ter para que o método não seja demasiado invasivo da intimidade destas pessoas? Pelo que contavas na sessão de ontem eles próprios já se confundiam com a personagem que interpretavam.

Acho que é preciso um cuidado extra, porque não existe a proteção nem o treino que os actores têm. Os actores têm treino para entrar numa personagem e saber sair dela. Isto é um trabalho impressionante. Um actor não profissional não tem estas defesas, por isso eu acho que redobra o cuidado não só do realizador, mas de toda a equipa, de proteção, de ajudar as pessoas a entrar e a sair, de ajudá-las a ir para casa depois. O que levas para casa é a experiência que tiveste, mas não levas a personagem. É preciso outra atenção e nesse sentido eu tive muita ajuda. Eu tive ajuda de psicólogos, ajuda de uma equipa que é muito experiente. Quase todas as pessoas que me estavam a acompanhar já tinham feito muitos filmes, portanto havia muita atenção a isso. Falamos todos sobre isso, de como era importante estar atento às pessoas e protege-las da dinâmica do cinema. Às vezes no plateau somos muito agressivos, brutos, temos uma série de coisas adquiridas que as pessoas não entendem. Tem que haver outra atenção e outro cuidado.

Apesar de tudo, o filme parece-me bastante positivo, luminoso, colorido…

Sim, porque isso estava lá na ilha. Estava nestas pessoas.

 …mas gostava de falar de duas cenas em particular que me parecem ser as mais violentas do filme: a cena da romaria em que o pai ataca Luís e o insulta e a cena em que a gente da ilha parece tentar converter Luís através de todo aquele ritual divino.

Quão difícil é representar a homofobia e como é feito esse trabalho com não actores? E de que forma é que isso ajuda a exorcizar preconceitos? 

É uma pergunta muito interessante, porque eu também tinha muito essa dúvida. Como é que eu vou fazer estas cenas sem ser a trabalhar com pessoas que são realmente homofóbicas? É o movimento oposto. É trabalhar com as pessoas que têm o olhar de integração da diversidade, mas com a consciência de que existe a agressão, que existe o fechamento, o conservadorismo, existe a violência. Foi a partir de um lugar bom, de pessoas boas para representar aquilo que nós não desejamos, mas que sabemos que existe e que já vimos ou sentimos. E estas pessoas, estes adultos trouxeram isso. Este pai do Luís tem isso. O pai do Luís é um homem bom. 

…Acho que também se nota isso na sua interpretação. A dificuldade que ele tem a exercer aquela violência…

Sim, ele faz aquilo como as próprias pessoas fóbicas. Elas fazem por embrutecimento da vida e parece que vemos uma humanidade lá dentro. No gesto da violência – isto é um paradoxo – vemos uma inversão da humanidade. Portanto, ela está lá. Não dá para representar uma coisa sem representar o seu oposto. Este foi o processo de trabalhar com estas pessoas. Essa luz está sempre lá, mas as pessoas estão revoltadas pelo medo, pelo medo da não pertença.

Já tiveste reações mais negativas ao filme por parte de pessoas mais preconceituosas ou homofóbicas?

            Não. Agora saímos desta sessão com escolas e, nas partes de mais intimidade entre as miúdas, sente-se o comentário, o riso nervoso, um silêncio envergonhado… Que não deixam de ser preconceitos, um lugar de pré-conceito da nossa educação, ainda de estranheza daquilo que sai da norma, deste lado mais hétero normativo da sociedade e sinto esse desconforto nos olhares, mas não de uma forma agressiva e espero não vivê-la.

Vês a própria ilha como algo simbólico da condição em que se encontram estes jovens? Essa vontade de sair da ilha e alcançar outra liberdade longe daquela bolha.

Claro. Acho que a ilha é uma metáfora para as ilhas em que todos vivemos, não só as pessoas queer. Nós todos nos sentimos em ilhas. Agora nesta sessão perguntou-se a certa altura “quem é que aqui se sente numa ilha?” e os braços levantados eram da maioria das pessoas na sala. Nós todos, de alguma forma, nos sentimos sós. Talvez seja esta a condição do ser humano. Nascemos e morremos sozinhos. E há um enorme sentido de solidão nesta ideia de ilha. Nós somos a ilha. E eu acho que o filme é muito aberto nesse sentido. Não é um filme queer. É muito mais sobre a condição humana de sermos todos tão diversos e termos tanto receio de não conseguir pertencer no dia-a-dia, à sociedade, a este teatro todo que é construído. Isto é um grande teatro. Os papéis sociais, as profissões, os papéis familiares… Isto é uma grande encenação e nós fomos educados logo de início.

Estamos sempre em ficção…

Estamos e já que é para estar em ficção, então que sejamos mais livres na ficção. Acho que é isso que o filme convoca. Já que é para ser um teatro a vida toda, então vamos experimentar vários papéis. E o ser humano permite-se pouco a experimentar diferentes máscaras e isso é que acho que provoca grande sofrimento na vida. Somos educados a ser uma coisa e a escolher ser uma coisa. E nós somos muitas coisas diferentes ao longo da vida. Estamos sempre a mudar, mas estamos sempre com medo de experimentar ser diferentes do que éramos ontem, como se isto fosse incoerente… e não é, porque nós somos uma multiplicidade de coisas. E por isso é que é muito interessante trabalhar com não-actores, porque as pessoas são muito mais autênticas. Como não têm este jogo profissional, descobrem dentro delas várias vozes e isto é um processo infinito de encontro com os mundos interiores.

Como é que vês a questão da identidade de cada um e a diversidade de que somos feitos? Porquê que achas que ainda existe a necessidade da dicotomia masculino/feminino?

Acho que é um perigo para a sociedade sairmos de um jogo que está tão profundamente instalado. Isto destrói todas as nossas convicções. Isto dá muito medo, sobretudo ao poder. Se de repente passamos todos a ser queer, ser gays, trans, diversos… isto questiona todo este sistema. O poder vem de cima, não vem de dentro. Isto é a grande luta social. Acho que é daí que vem o preconceito e acho que vem bastante da religião, porque é uma narrativa muito vincada: o homem, a mulher, a procriação. Isto questiona tudo, tudo aquilo que nos foi ensinado. Questiona esta ideia de família mais fechada, do pai, da mãe e dos filhos… questiona muita coisa, não só a própria identidade, como a própria ideia de desejo e orientação sexual. Levanta tantas perguntas, põe tanto em causa que é um perigo. É um perigo e depois permitimo-nos muito pouco. Acho que temos todos muito medo do que acontece se não correspondermos ao esperado. O que me vai acontecer? Será que vou ter lugar na sociedade? Será que vou ter trabalho? Será que vou saber quem sou? Vou-me perder? E depois como é que me volto a encontrar? Isto levanta muitos medos.

Como no texto da Clarice Lispector que leste…

“Se eu fosse eu?” Se a gente pensar seriamente sobre isto, percebe que nós não sabemos e que nunca nos permitimos. Ficamos assustados com o que temos andado a fazer, mas eu acho que é um bom exercício fazermos mais vezes esta pergunta: se eu fosse eu o que diria nesta situação? Se eu fosse realmente eu, o que eu sinto, o que respondia? A maior parte das vezes ficamos pelo pensamento, mas se experimentássemos ser, que rico que seria…

De um ponto de vista formal, tens vontade de manter este método de fazer cinema no futuro ou vais procurar experimentar novas formas de construir narrativas, novas formas de mostrar aquilo que pretendes? Tens vontade de continuar a trabalhar perto de comunidades/grupos de pessoas?

            Eu acho que já estava a trabalhar bastante neste sentido de trabalhar a realidade, mas com ideias formais que construo com as pessoas. Sem dúvida, o meu grande prazer são as pessoas. Eu sinto-me uma amadora. O tempo passa e eu tenho cada vez menos certezas. Tenho muitas dúvidas e gosto muito de experimentar e sinto-me mais segura a experimentar com as pessoas do que com actores, porque estes trazem-me sempre tantas seguranças e convicções que eu fico assustada, sinto-me diminuída. Gosto muito da liberdade deste lugar de experimentação a partir do real.

Entrevista a Cláudia Varejão conduzida por Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados]

Alma Viva: Entrevista com Cristèle Alves Meira

Por altura da estreia de Alma Viva, o mais recente trabalho de Cristèle Alves Meira, tivemos a oportunidade de falar um pouco com a realizadora. Alma Viva é um regresso às origens da realizadora, filha de emigrantes portugueses em França, e mostra-nos, num registo assombroso e místico, a relação espiritual entre Salomé e a sua avó, no momento em que esta se aproxima da morte.

A herança mística que é transmitida de avó para neta é o motor da acção, aquilo que põe Salomé em movimento e que a faz entrar em conflito com o seu universo íntimo e familiar. Alma Viva toca no tema da emigração, dos rituais tradicionais, das tensões entre a população da aldeia, e faz-nos olhar para uma realidade ficcionada, para uma terra que nos parece próxima e familiar (o filme foi filmado numa aldeia em Trás-os-montes, terra da mãe da realizadora), mas que é fruto de sonhos, memórias e matéria do inconsciente. 

No equilíbrio entre o realismo da mise-en-scène e o lado fantástico e ascético que envolve a história, reside parte do encanto deste filme que faz encarnar na pequena Salomé, não só a alma da avó, como uma energia sobrenatural que nos mostra o lado mais enigmático da paisagem transmontana.

Alma Viva é um olhar fresco sobre o interior do país, sobretudo, porque não tem ambições antropológicas e serve-se de um imaginário criado pela autora para atingir camadas mais profundas da realidade.

Alma Viva, Cristèle Alves Meira © Midas Filmes

Entrevista com Cristèle Alves Meira

Cristèle Alves Meira

De onde surge o impulso para fazer este filme? Calculo que tenha um lado autobiográfico e que tenha origem num desejo de voltar a olhar para estas pessoas e estes lugares, para onde voltava todos os verões com a sua família.

É engraçado, porque muitas vezes dizem que é autobiográfico, mas o filme é uma ficção pura. Há um lado autobiográfico por conhecer aqueles décors, estar envolvida de forma mais íntima com as pessoas que aparecem na imagem e com as histórias que vou contar, mas o filme é uma ficção pura. É um filme de género quase fantástico, mas o que dá aquele ar autobiográfico é a minha opção de tornar as coisas muito realistas na forma de filmar, na forma de falar… e para mim é muito interessante, porque o público agarra no filme como se este fosse antropológico, mas na verdade essa aldeia não existe e essas pessoas não existem. Isso tudo é ficção do cinema e cada quadro, cada rosto foi exposto a uma sublimação de luz, de enquadramento e de pensamento de encenação. Aquela aldeia não existe, aqueles céus estrelados não existem, a câmara não consegue filmar aqueles céus estrelados, aqueles sons… Quando filmamos não havia nenhum insecto, não havia nenhum animal e tivemos que criar aquele ambiente sonoro, que tem que ver também com a minha vontade de criar um ambiente um pouco mágico, sobrenatural, com a presença de animais particulares que podem criar essa tensão dramática.

Quando falava em lado autobiográfico referia-me mais a essa vontade de replicar certas memórias, aspectos e vivências.

Sim, tem uma parte autobiográfica, mas é limitado pensar que é só isso, porque demorei muito tempo a encontrar a história. Sabia que queria contar a história de uma avó e de uma neta, mas a neta durante muito tempo era uma adolescente. Salomé, a protagonista, voltou a ser criança no final da escrita do argumento e depois também demorei bastante tempo a perceber qual era o equilíbrio entre as crises familiares. Queria contar as crises dessa família, a forma como vivem o luto, o momento das partilhas e essas famílias divididas entre aqueles que partiram e regressam com um poder económico muito grande e aqueles que ficaram e que sentem um complexo de inferioridade. Queria contar a família, mas não sabia no argumento o que era mais importante. Quando soube que o mais importante era a relação entre uma avó e uma neta e uma transmissão mística de um saber esotérico, aí é que comecei mesmo a tocar no assunto do filme. Mas não foi fácil, porque estava confrontada com dois tabus, o da morte e o da bruxaria, e no início ficava a tremer perante a palavra “bruxa”. Será que podia falar sobre isso?  Pesquisei muito, de forma quase antropológica. Fui ler livros sobre bruxaria em Portugal e também fui ler coisas em França, porque há uma parte em França onde há muita bruxaria. Houve um rapaz muito importante que se chama Jorge Dias, um jovem imigrante, estudante de mestrado na universidade em Lyon que fez a tese sobre a avó dele que é bruxa. Esse foi um encontro muito importante para mim, porque ele inscreveu na tese a relação que ele tinha com a avó quando regressava no verão e a via ter capacidades de médium. Foi quando li a tese dele que pensei que também poderia assumir esse tipo de temática. Havia uma vontade de falar da relação dos vivos com os mortos e da transmissão entre uma avó e uma neta. Mas, depois, para chegar lá foi um processo bastante grande de escrita da narrativa.

Esse lado espiritual descobriste com o filme? Ou já tinhas essas memórias associadas àquele local?

Já nasci numa família onde o oculto estava presente… era normal curar-se com plantas… e desde criança sempre ouvi os adultos falar sobre histórias muito estranhas de bruxas, maldades, mau olhado … e isso lembro-me que me fascinava e ao mesmo tempo aterrorizava-me. E acho que o filme está a tentar transmitir essa contradição que esse tipo de história pode criar em nós. Fascínio e terror. O que acho bastante singular é que o demónio nessa história é uma pessoa que amamos. Porque muitas vezes nos filmes de terror há muitas histórias de pessoas que são possuídas pelo demónio, que são temáticas clássicas do género fantástico, mas aqui a particularidade é que se trata da avó amada, a querida avó. Isso é que cria ali uma confusão entre amor e sofrimento, luz e obscuridade, e também a forma realista de tratar do assunto, porque, muitas vezes, nos filmes americanos ou nos teenage movies são temáticas que vemos sempre. Só que neste filme estamos num lado muito realista e muito envolvido numa comunidade. Se analisarmos bem, os rituais no filme foram completamente inventados, porque reparei também nas minhas pesquisas que cada praticante ou bruxo/a, ou curador, médium, (eles têm vários nomes), cada um tem a sua própria prática e vão buscar símbolos a várias culturas. Não há nenhum livro que diga que a magia vai ser assim e vai ser assim que vamos proceder, cada um vai ali fazer a sua receita e eu pensei a mesma coisa. Qual seria a receita do nosso filme? Então fui buscar São Jorge, fui buscar os cigarros, que é uma prática mais do xamanismo. Em Portugal nunca vi bruxos nenhuns usar cigarros, mas é uma mistura de rituais para criar uma realidade que é uma realidade de ficção para esse filme.

Acaba por ser um universo construído a partir das tuas vivências e referências. Contudo, de que forma é que a realidade que encontraste invadiu a narrativa inicial?

O que mais transforma a escrita é a encarnação dos actores. Quando comecei mesmo a escolher os actores, a personagem transforma-se num corpo, numa voz, numa pessoa concreta que vai entrar naquele papel. Isso transforma a escrita e cada vez que acontece vou também buscar muito da realidade do actor que escolhi, para pôr nas cenas e na personagem. Por exemplo, a personagem da avó era, no argumento, uma avó muito mais austera, menos excêntrica e colorida, e a Ester Catalão foi um encontro incrível, porque ela tem essa liberdade, sensualidade, essa luz que transformou o papel da avó. E isso aconteceu com várias personagens, como com a protagonista, a Lua Michel. Quando escrevi, a personagem tinha onze anos e quando filmei ela só tinha oito. Então isso transformou a personagem. Por exemplo, o facto de conhecer o Duarte Pina de O Invisível Herói (2019), a outra curta que fiz com ele, e de saber que ele tinha capacidades de cantar, pensei: “vou pôr um grupo de músicos no meu argumento”. Então, foi o facto de conhecer esse actor e as suas capacidades instrumentais que fez nascer esse lado na personagem.

A única coisa que tento é guardar uma espontaneidade, por isso não ensaio muito com os actores, e os actores não profissionais não vão ler o texto, ter o argumento na mão, para não estarem ali a fingir. Passo muito tempo a falar com eles a explicar qual vai ser a história, a situação, mais ou menos o que eles têm de dizer… e depois eles dizem com as palavras deles, mas quase sempre é parecido com o que eu escrevi, porque escrevi a pensar neles. A metodologia é observar e conhecer muito bem as pessoas com quem vou trabalhar. Por exemplo a Marta Quina, a personagem da Gracinda, eu já sabia como ela falava, porque já a conheço. Dizia-lhe: “Oh marta, a marta vai subir as escadas, mas está muito zangada, porque os cães estiveram a dar cabo dos tomates” e já sabia que ela tinha aquela capacidade, porque na vida real ela tem essa energia. Era só dizer acção. E é bastante realista, porque sei que ela é assim. Depois com a Ester Catalão já era outra metodologia. Trabalhamos com um auricular porque muitas vezes ela esquecia-se de coisas… na verdade cada pessoa tem uma metodologia diferente.

Alma Viva, Cristèle Alves Meira © Midas Filmes

Ao ver a Lua Michel no filme, parece ter sido um casting certeiro. No entanto, ela sempre esteve ali ao teu lado. Foi uma escolha óbvia?

Cometi o erro de a ter filmado noutros filmes, mas cortei-a sempre na montagem. Ela entrou no Sol Branco (2015) como um bebé, depois entrou no Campo de Víboras (2016) tinha três anos e no Invisível Herói tinha 5 ou 6. E a cada vez foi cortada na montagem. Quando chegou aos seis anos ela disse: “Mamã, estás sempre a cortar-me” (risos). Foi outra amiga minha que a revelou num filme, porque ela estava à procura de uma criança para o filme dela e disse-lhe: “Se calhar vou-te mandar a Lua em casting, porque sempre a cortei na montagem e desta vez é um papel principal, por isso se gostares dela, já vai ter um papel onde não está cortada”. Depois desse filme, ela foi muito felicitada em festivais, ganhou prémios com essa curta e aí apercebi-me que tinha uma actriz ao meu lado e pensei porque não seria ela. Decidi então que o papel ficasse mais jovem, mas ela tem uma maturidade que nem percebemos bem a idade dela.

O filme conta com poucos actores profissionais e foca-se mais no trabalho feito com a população da aldeia. Como é que foi feita essa articulação no trabalho das personagens?

Os actores profissionais são muito importantes, mesmo que minoritários. Temos a Ana Padrão, a Jacqueline Corado, Catherine Salée, Valdemar Santos, Pedro Lacerda e o Nuno Gil.  A Ana Padrão é originária de uma aldeia ali perto e aceitou rememorar e lidar de novo com as suas origens. Isso foi muito importante, porque ela foi buscar lembranças das tias, da avó e ajudou-me a enriquecer os diálogos com palavras mesmo locais. Durante os ensaios, dias antes, ela ficou a dormir na casa da avó, porque é numa aldeia perto e perguntava: “Como é que dirias aquela palavra? Quando chove, como é que dirias?”. Fez esse trabalho para voltar a essa forma de falar e todo um trabalho do corpo, da fisicalidade, porque o seu papel é mesmo de uma pessoa de aldeia, que trabalha a terra e encarna uma masculinidade que foi buscar e que não tem nada que ver com os papéis que a Ana faz normalmente. Fico muito emocionada com a generosidade com que ela se envolveu neste projecto. É uma enorme actriz. Já tínhamos tido uma experiência juntas, fizemos o Campo de Víboras juntas, que já era um papel similar nas mesmas aldeias e isso ajudou a desenvolver a confiança. Mas nesse filme ela trabalhava uma parte mais feminina, enquanto neste ressalta um lado mais masculino.

Apesar de assombroso e fantasmagórico, o filme conserva um lado cómico. Era importante para ti realçar esse aspecto?

Sim, muito importante. A comédia, o lado mais cómico, quase burlesco, estava presente desde as primeiras linhas, porque é a forma que tenho de mostrar o carinho que tenho por estas situações extremas do ser humano, crises, guerras entre vizinhos… aquilo é tão excessivo que dá para rir e o cinema permite essa mise-en-scène, esse tom mais cómico. E não foi fácil no momento do financiamento do filme, porque apontavam esse aspecto aparentemente incoerente de, numa mesma cena, tão dramática, chegar aquele momento em que se torna tragicomédia. O desafio era enorme. Diziam que não era possível criar lágrimas e ao mesmo tempo mostrar aquela situação quase absurda. Mas sabia que na vida isso acontece. E a comédia permite uma certa crítica simpática sobre o lado materialista da emigração. Então aproveitei essa tonalidade mais cómica para dizer: “Bom, não acham que às vezes é um bocado absurdo quererem exibir as vossas riquezas?” (risos), como nas cenas em que trazem prendas, porque é um sinal de sucesso da vida lá fora. É uma forma de os infantilizar e apontar coisas mais subtis da realidade da vida dos emigrantes.

A tua formação foi toda feita em França?

Nunca vivi em Portugal. A minha formação foi para actriz. Antes de fazer cinema fiz teatro durante dez anos e depois tirei o mestrado em teatro. Nunca fiz escola de cinema, mas para escrever o Alma Viva tive um ano na escola La Fémis, para escrever o argumento. Sozinha teria sido impossível. Agora também escrevo para outras pessoas…

Pergunto isto, porque reparei no ritmo particular do filme. Estava à espera de mais densidade e mistério em algumas cenas. Como o filme tem um lado fantasmagórico, estava à espera de sentir outra densidade no tempo, na atmosfera, no som das cenas… Qual é a tua relação com o cinema português?

Na verdade, para este filme não tenho referências portuguesas. Claro que vejo cinema português, mas não foi a ele que fui buscar as referências para fazer o Alma Viva. Tem mais que ver com o cinema italiano, neo-realismo, Ettore Scola, cinema espanhol, Carlos Saura… o Cria Cuervos (1976) foi o filme que mais me acompanhou. E nos filmes mais contemporâneos foi a Alice Rohrwacher ou o La Cienaga (2001) da Lucrecia Martel, muito pela forma de filmar um grupo, uma família num lugar fechado e a Lucrecia é uma rainha, um génio da encenação. Na duração dos planos, sinto, fazendo aqui uma confissão, que às vezes cortei um pouco cedo. Às vezes são 3 ou 4 segundos que acho que devia ter a mais… mas é assim, estou a aprender. Ao mesmo tempo, aquela brutalidade com cortes mais abruptos tem que ver também com a energia das personagens. Eu gosto de mudar de ritmo.  Enquanto espectadora, também sinto que, em alguns planos que se demoram mais,  muitas vezes são os realizadores a olharem para si próprios. 

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Alma Viva, Cristèle Alves Meira © Midas Filmes]