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Mãos no fogo: a corrupção da vida através do cinema

O filme que representa Portugal na 74ª edição da Berlinale, Mãos no fogo (Portugal, 2024), de Margarida Gil, propõe uma “tese do real”, enquanto trabalha o cinema analógico, a imortalização do ser através do cinema e a administração do terror através de elementos cinematográficos e narrativos. É produzido pela produtora Ar de Filmes, que tem projetos cinematográficos e de teatro.

O filme começa com uma citação do livro em que é baseado, The Turn of the Screw (1898), de Henry James. Originalmente uma história de terror, a história possui elementos sobrenaturais e a crença de possessão fantasmagórica das personagens. Em Mãos no fogo, estas características surgem em nuances, e a dimensão fantasmagórica advém do próprio cinema.

The Turn of the Screw tem sido alvo de várias adaptações audiovisuais, sendo uma das mais recentes a série de terror The Haunting of Bly Manor (2018) de Mike Flannagan. Com base na sinopse do livro, é notória a “liberdade” da adaptação literária de Margarida Gil. Mantém-se o ambiente de terror e o quadro das personagens: a percetora, Lourdes (Rita Durão), os dois sobrinhos, Manuelinho (Elgar do Rosário) e Flora (Sofia Vilariço), e o tio, Leonardo (Marcello Urgeghe). De resto, é a imaginação da realizadora que dá origem à história de Mãos no Fogo.

O filme começa com uma montagem da preparação do material de filmagem analógico, enquanto passam os créditos iniciais. É estabelecido, assim, um dos motes centrais do filme: o cinema analógico como mecanismo técnico, com infinitas possibilidades. A ação começa in media res: a protagonista, Maria do Mar (Carolina Campanela), estudante de cinema, entra na cozinha de um solar no Douro para filmar o processo da cozinheira da casa. Não temos acesso ao início da história, na medida em que não sabemos como Mar foi parar à casa, apanhando-a a meio do documentário que está a gravar. A informação é-nos dada aos poucos, cabendo ao espectador juntar as peças.

Ao longo do filme, somos introduzidos aos restantes habitantes da casa: Céu (Adelaida Teixeira), a cozinheira, Gracinha (Sara Santos), a vizinha que é aprendiz de culinária de Céu, e o seu pai, Manoel (Ricardo Aibéo), que aparenta ter traços abusivos e quer afastar a filha da casa que denomina como “Casa dos Horrores”. Maria do Mar procura realizar um documentário sobre vários solares do Douro e, enquanto entrevista as pessoas que habitam na casa, vai desvendando segredos que se esforçam por manter escondidos.

Mãos no fogo, de Margarida Gil © 2024 Ar de Filmes

O filme vai formando o seu ritmo até cerca de dois terços da sua duração, momento em que o clímax se verifica com a descoberta de que Leonardo fazia gravações íntimas, encenadas e invasivas das pessoas da casa, nas quais se passou a incluir Maria do Mar. O momento de tensão sugere uma resolução forte, mas que acaba por se perder por entre uma narrativa paralela de romance entre Maria do Mar e Lourenço, um rapaz da aldeia que aparece de repente e sem grande justificação narrativa. Parece quase uma intermissão do filme, uma pausa para respiração, em que o filme ameaça a permanência dos horrores do solar e a auto-preservação de Maria do Mar, que parece querer afastar-se da casa. No fim do filme, Maria do Mar acaba por ficar, tomando o lugar de Lourdes ao tornar-se a nova estrela dos filmes de Leonardo.

Margarida Gil não nos situa no tempo em Mãos no Fogo. A própria temporalidade da narrativa parece estar suspensa, com a respiração a ser dada pelo tempo de preparação do material fílmico. Ao início, a escolha do analógico parece ser isso mesmo, uma escolha, como retoma a um cinema menos artificial e mais hands-on, mas a presença de carros antigos e ausência de tecnologias modernas geram a questão: em que tempo decorre a ação do filme? Para além disso, mesmo em termos de temporalidade da ação, o espectador é obrigado a uma constante re-situação da narrativa: para além do início in media res, existem saltos temporais que não são imediatos e é atribuída ao espectador a função de preencher as lacunas que o filme deixa.

A narrativa parece estar pendente num limbo temporal, em que a ação principal ocorre de forma sequencial, mas há determinados elementos que parecem alheios aos elementos de tempo e espaço, como os filmes de Leonardo, que, a partir do momento que são captados, pertencem a uma temporalidade própria, que não tem início nem fim.

Relativamente a outros aspetos técnicos, a banda sonora de Daniel Bernardes está presente em momentos-chave do filme; Margarida Gil não se serve da música para ambientar as cenas, mas sim para ditar o tom de determinados momentos que, contrariamente, seriam interpretados de forma diferente. “O silêncio é o bater do coração do mundo”, afirma uma das personagens. A sonoplastia em Mãos no fogo é trabalhada com o ritmo da narrativa e a respiração da técnica, dando origem a uma tensão elástica que se prolonga ao longo do filme. A casa filmada é quase uma personagem secundária, integrando a banda sonora com os sons que lhe são característicos e que preenchem os silêncios do filme.

Já a fotografia, creditada a Acácio de Almeida, é o ponto alto do filme. Desde enquadramentos trabalhados, em jogos de luz e sombra, até close-ups que se assemelham a retratos de pintura, a fotografia cativa o espectador desde início, mesmo quando a narrativa o parece fazer-se perder. Os planos estáticos da natureza ou dos animais surgem com uma grande carga emocional associada, quase numa imortalização dos mesmos antes de, inevitavelmente, serem destruídos pela mão humana. Esta dimensão de imortalização do objeto fílmico é outro dos elementos correntes ao longo do filme.

Em determinados momentos do filme, a imagem é interrompida por uma cena filmada em película, de uma situação algo encenada envolvendo as personagens da casa. As imagens parecem representar a verdadeira essência dessas personagens. Lourdes, altamente religiosa e púdica, está sexualizada enquanto fuma um cigarro. Manoelinho, descrito como um perigo para os seus colegas do externato, tem nas mãos um chicote. Maria do Mar está deitada no quarto, de tronco nu, alheia à gravação que lhe é feita. A inserção destas imagens, inicialmente desconcertante, é eventualmente explicada no terceiro ato do filme, onde parece ser sugerida uma possível resolução da narrativa.

Leonardo filma as personagens e, ao captar as suas imagens, captura também as suas almas, tendo-as ao seu controlo. Marcelo Urgeghe encarna uma personagem com um ar constantemente embriagado, de olhos semicerrados e uma postura indiferente à situação dos sobrinhos. Parece exercer um controlo sobrenatural sobre as várias pessoas da casa, sendo ele próprio a assombração que as possui. Serve-se da câmara como arma, aprisionando a essência encenada das personagens em cassetes. Esta é uma temática que remonta a medos primitivos associados às tecnologias de reprodução de que, ao ser fotografado, o ser humano perderia a alma.

O confronto da protagonista Maria do Mar com a verdade da “casa dos horrores” e com as gravações não-consentidas é um confronto com o uncanny. É a imortalização do ser na película, uma parte dele que deixa de lhe pertencer no momento em que é captado pela objetiva de uma câmara.

Mãos no fogo, de Margarida Gil © 2024 Ar de Filmes

Margarida Gil retoma ao cinema analógico, através da câmara de película, do gravador de bobines, do diário de produção e dos problemas a ele associados. Maria do Mar afirma querer um cinema genuíno, com pouca artificialidade: estuda a luz nos quartos onde quer filmar, sendo que possui também luz artificial que utiliza, no fim do filme, para gravar uma cena no escuro. A protagonista escreve no seu diário de produção, a dada altura, “Não falsificar. Não ceder. Busca da Verdade.” Este diário surge como uma janela aos pensamentos da personagem, e, mais complexamente, como uma reflexão sobre o ato de fazer cinema. É também nele que escreve: Reportagem → Descontrolo → Televisão. Maria do Mar compromete-se desde o início a fazer um documentário, apenas observando, sem intervir diretamente na ação. É por isso que, justifica, recorre a entrevistas gravadas em plano estático e não a panorâmicas, que, no seu olhar, seriam uma interferência direta na produção de sentido da cena.

“O cinema é a vida”, diz Maria do Mar. “A vida é o cinema”, responde Leonardo. Esta dupla maneira de olhar para o cinema está personificada nas ações das personagens e nas filmagens que ambos fazem. Maria do Mar procura “filmar a essência que a história não corrompeu e guardou”, enquanto Leonardo deturpa essa mesma essência e vai corrompendo as almas daquela casa.

O filme peca pela representação teatral dos atores, que, apesar de em tom com o ambiente encenado do filme, provocam uma saída e reentrada constantes da atenção da narrativa. Margarida Gil levanta temas importantes relativamente à essência do cinema e ao poder que lhe é inerente. Mãos no fogo é um filme estética e sonoramente poderoso, que funciona com a quebra da expectativa da narrativa esperada. Perde, em parte, pelo ritmo e, principalmente, pela ausência de uma conclusão sólida, mas encontra a sua justificação nas palavras da realizadora na entrevista que nos cedeu. De louvar o valor da produção e o enquadramento do filme na secção Encontros, onde encaixa perfeitamente.

Rita Pádua

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