A anatomia de uma relação em Anatomie d’une Chute

Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, Anatomie d’une Chute teve a estreia portuguesa no Leffest – Lisboa Film Festival. A terceira longa-metragem de Justine Triet, escrita em conjunto com o seu parceiro Arthur Harari, aparenta ser um típico courtroom drama, contudo revela-se muito mais um drama contemporâneo sobre como julgamos os outros e as suas relações. Quando um homem é encontrado morto pelo seu filho perto de casa, a sua esposa é, imediatamente, apontada como a principal suspeita de ter cometido o suposto crime.

Anatomia, segundo a sua definição, é a “arte de dissecar as partes de corpos organizados para lhes estudar a estrutura”, e é isto que Triet faz, e bem, no seu filme. Anatomie d’une Chute não revela ser sobre o crime ou quem o cometeu, mas sobre o que poderá ter levado a esse crime e é isso que é dissecado em tribunal. A morte que ocorre no início do filme é um pretexto para podermos julgar e ver ser julgado o casamento do casal. A realizadora francesa coloca na “platina” do seu “microscópio” a relação destes de modo a dar-nos uma aula de anatomia sobre a mesma. Inspirado em filmes como Scenes From a Marriage, de Ingmar Bergman, ou o mais contemporâneo Marriage Story, de Noah Baumbach, o tribunal é uma ferramenta para a desconstrução desta relação e da forma como se relacionam homens e mulheres na nossa contemporaneidade.

Anatomie d’une Chute, de Justine Triet – © Direitos Reservados

Todavia, o filme prova ser tanto sobre o casamento das duas personagens como sobre a construção de narrativas, que provêm dos julgamentos que fazemos uns dos outros. O jogo aqui é criar a melhor narrativa em favor de uma verdade à qual não temos acesso (a realizadora fez questão que os próprios atores também não tivessem conhecimento desta verdade). Anatomie d’une Chute anda, então, em volta de camadas de ficção, à semelhança de Gone Girl, de David Fincher, filme que parece estar bastante presente na memória do espectador durante a visualização deste. 

Sandra (Sandra Hüller) e Samuel (Samuel Theis) são ambos escritores – esta é talvez a primeira camada da construção de narrativas, pois ambos constroem narrativas profissionalmente. Numa segunda camada, os dois advogados, sem terem acesso a toda a verdade, preenchem as lacunas desta com as suas próprias narrativas ficcionalizadas. E, ainda, numa terceira camada, as testemunhas, em especial o filho do casal, Daniel (Milo Machado Graner), também elas sem acesso à verdade, constroem a narrativa que para elas parece fazer mais sentido, tendo em conta os factos que reconhecem. A questão para a realizadora não é que o espectador tenha acesso à verdade, mas que reflita sobre a forma como a construção narrativa e as suposições que todas estas personagens trazem para cima da mesa influenciam também a sua própria narrativa e a narrativa que o filme conta. Também o espectador vai criando uma narrativa à medida que recebe os dados oferecidos pelo filme, construindo assim uma quarta camada de construção narrativa.

A ideia de que nunca temos realmente acesso à verdade está lá para nos provocar. No final de contas, apenas conseguimos compreender totalmente aquilo que é real para nós mesmos. A nossa realidade pode não ser a realidade do outro ou ser real para este, mas isso não faz dela menos real. Triet indaga que existem várias realidades e, contudo, todas elas igualmente verdadeiras. Sandra é alemã, no entanto no seu relacionamento a língua usada para comunicar é o inglês. Durante o julgamento, por sua vez, é obrigada a comunicar em francês, língua materna de Samuel. Esta troca de línguas parece contribuir também para a falha de comunicação e, involuntariamente, ajudar na criação destas narrativas ficcionalizadas. A deficiência de Daniel (que ficou parcialmente cego durante um acidente) colabora nisso mesmo, não compreendemos nada e também não vemos nada. O filme coloca em perspetiva a forma como casais comunicam ou falham em comunicar e como esta falha de comunicação pode levar a uma queda da relação. A queda, referida no título, parece ser referência ao declínio do casamento, muito mais do que a uma queda física. 

Anatomie d’une Chute, de Justine Triet – © Direitos Reservados

É o casamento que vai a julgamento e é neste julgamento que passamos a maior parte do filme. No que para uns parece ser alvo de crítica, o ritmo lento, a realidade é que esta demora é necessária. Primeiro, para nos mostrar como uma relação pode ser vítima de uma análise tão minuciosa por parte dos outros e, em segundo lugar, como preparação para a cena mais importante de todo o filme: o flashback da discussão do casal (único momento em que temos acesso à personagem de Samuel). Esta discussão, talvez uma das melhores sequências de cinema deste ano, é o clímax do filme. Parece ser o culminar de todas as questões centrais do filme: a análise da relação; a duplicidade da verdade e a falha de comunicação do casal. E é ainda nesta que podemos levantar algumas questões sobre a forma como as relações parecem estar a mudar na contemporaneidade.

Triet traz-nos uma relação contemporânea, não é a típica relação e nem sempre encaixa nos moldes e nas ideias pré-concebidas que a sociedade parece ter construído para as relações. Todas as pessoas são diferentes e, consequentemente, a forma como se relacionam é também ela diferente e única. O que para uns pode resultar, para outros pode não caber no seu conceito de relação, e a nossa sociedade continua, constantemente, a falhar em reconhecer esta singularidade das relações. Há coisas que são vistas como “normais” e coisas que são vistas como “anormais”. Neste sentido, a realizadora francesa parece querer abrir os olhos do espectador para este problema que, infelizmente, continua a ser atual. Por outro lado, quer também questionar as normas que a sociedade tem para o papel da mulher numa relação e, neste caso, num casamento. Será a mulher bem sucedida e poderosa, vista automaticamente de forma negativa pelo espectador? Porque parece haver tanta facilidade em apontar o dedo a Sandra por esta não estar tão envolvida na vida do filho como o seu pai? Porque vemos a sua bissexualidade como fator determinante na questão da traição? A realizadora coloca-se numa posição imparcial – quer trazer, sim, estas questões para cima da mesa, mas não quer que vejamos Sandra como uma vítima. A forma como a câmara a filma de forma poderosa e altiva exemplifica bem esta teoria.

Anatomie d’une Chute, de Justine Triet – © Direitos Reservados

O caso de Amanda Knox, recentemente resgatado por um documentário da Netflix, foi uma das inspirações de Justine Triet. É a forma como assumimos aquilo que uma pessoa deve ser ou como deve agir que nos leva a assumir a sua inocência ou a sua culpa. Esta ideia pode ainda servir de crítica ao mediatismo decorrente deste tipo de julgamentos, que acaba por influenciar a perceção da sociedade acerca da verdade. No caso de Anatomie d’une Chute, a referência ao mediatismo é ligeira, mas não é inexistente. Triet quer que o espectador perceba também de que forma este influencia as próprias testemunhas (principalmente o filho do casal, que dá por si a questionar as suas próprias memórias). O foco do filme, por isso mesmo, são as personagens, o que leva a grandiosas performances, principalmente da atriz principal, que defende a sua homónima com unhas e dentes. 

Anatomie d’une Chute é composto por um interlaçar de camadas. Quanto mais o analisamos, o que parecia ser uma narrativa simples, revela-se de uma complexidade exuberante. É, sem sombra de dúvida, uma das grandes obras-primas de 2023. 

Inês Moreira

Os fantasmas da sociedade em Great Yarmouth: Provisional Figures

Em 2018, Marco Martins estreia a peça Great Yarmouth: Provisional Figures, baseada em relatos de imigrantes portugueses residentes na cidade costeira do nordeste de Inglaterra: Great Yarmouth. Esta cidade, um dia intitulada de “o melhor lugar do universo” por Charles Dickens no seu romance David Copperfield (1849), tornou-se uma cidade fantasma, uma espécie de Las Vegas pós-apocalíptica. As fábricas de transformação alimentar desta região, aproveitando-se  da crescente crise económica e da capacidade de alojamento dos hotéis e campos de caravanas semi abandonados, começam uma busca por trabalhadores desesperados. Estes trabalhadores tinham de estar dispostos a aceitar quaisquer tipo de condições, aquelas que os ingleses não queriam aceitar. Este fenómeno levou a que a comunidade portuguesa em Great Yarmouth crescesse até aos 7 mil habitantes desde 2009, ano em que os primeiros imigrantes começaram a instalar-se na cidade. 

Apesar do sucesso da peça, Marco Martins sentiu que a sua missão para com este lugar e estas pessoas ainda estava longe de terminar. Assim, começou a escrever o filme que estreou no início deste ano e que fez agora parte da seleção oficial da edição XXIX do festival Caminhos. O filme partilha o mesmo nome que a peça e conta com um elenco de luxo, com nomes sonantes como Beatriz Batarda, Romeu Runa, Nuno Lopes e Rita Cabaço, que, por sua vez, se juntam a vários não-atores. Tal como a peça homónima, o filme baseia-se nos relatos destes não-atores e de outros que acabaram por não marcar presença na peça mas que Marco Martins  documentou ao longo de anos de pesquisa. É uma representação crua das condições de trabalho e de vida deploráveis que marcam este lugar. 

Great Yarmouth: Provisional Figures, de Marco Martins – © Direitos Reservados

Percebemos que o dia-a-dia destas pessoas já não é um dia-a-dia normal, mas sim um dia-a-dia de sobrevivência, e sentimos na pele como sobreviver é uma tarefa miserável. A tal cidade fantasma abriga todos estes “fantasmas” da sociedade, as provisional figures de que fala o título, nome pelo qual ficaram conhecidos os trabalhadores imigrantes em situação indefinida ou provisória. Já nem os próprios passaportes lhes pertencem, e esta perda de identidade está muito bem refletida na visão de Marco Martins. O filme que bebe muito do cinema do realismo social britânico e de referências como Mike Leigh, Ken Loach, numa abordagem à la Nil By Mouth, do reconhecido ator britânico Gary Oldman, transporta-nos ainda para a um outro tipo de arte: a pintura. A sua fotografia, os cenários decadentes, a falta de luz e as cores térreas e escuras deste Great Yarmouth lembram-nos a pintura dos realistas e naturalistas do séc. XIX. Há uma representação muito naturalista do desconforto e da violência desta realidade. Raúl, personagem interpretado pelo excelente Romeu Runa, faz imitações de perús para entreter os britânicos, e é ele uma personagem ridicularizada e humilhada. Nele podemos ver o culminar da metáfora entre os animais, em toda a sua carnificina, e estes trabalhadores imigrantes. Aliás, a metáfora animal-homem está presente desde cedo no filme, que abre precisamente com o tema da migração das aves. 

Os Comedores de Batata, de Vincent Van Gogh (1885) – © Direitos Reservados

Todavia, é praticamente unânime na crítica que a performance de Beatriz Batarda seja o ponto forte desta mais recente obra do realizador lisboeta. Ela que representa a “mãe dos portugueses”, figura também inspirada em relatos reais. É ela que ajuda estas pessoas, mas, ao mesmo tempo, é ela que se aproveita delas, fazendo um jogo duplo com os britânicos, ela que percebe (ou tenta perceber) melhor a língua deles. O gesto e as expressões faciais de Batarda fazem o espectador imergir tão intensamente nestas duas horas de filme que se torna impossível fugir ao desconforto causado por este. Beatriz Batarda prova mais uma vez ser exímia naquilo que faz. Apenas com o olhar ela diz-nos praticamente tudo em planos como aqueles em que conduz pela cidade e apenas lhe vemos os olhos refletidos no espelho retrovisor do carro. É, de facto, um filme que provoca sensações e no qual os 5 sentidos do espectador estão apurados e é fácil para este identificar-se com o que estas personagens veem, ouvem e até mesmo cheiram. Uma das cenas que melhor exemplifica isto é um gesto que a personagem de Batarda repete muito ao longo de todo o filme: o de colocar pomada Vicks no nariz para não sentir o mau cheiro generalizado da cidade. É como nos diz a personagem de Rita Cabaço: “toda esta cidade cheira a sangue e merda”. 

Em suma, é de grandes performances que o filme se constrói em volta de um destino, em tempos turístico, que é a antítese de “casa” e que fica marcado por imagens perturbadoras, desconfortáveis e por ser o lugar onde os sonhos terminam. Great Yarmouth: Provisional Figures é um retrato de uma cidade na qual ninguém quer viver, mas da qual as personagens que conhecemos parecem não conseguir sair. Marco Martins tenta uma abordagem mais poética e teatral na sequência final, talvez ainda inspirado na sua peça, que fica um tanto aquém dos restantes minutos do filme. Ainda assim, a sua última longa-metragem não deixa de marcar esta nova geração de cineastas portugueses que parecem caminhar de mãos dadas com este sentido de denúncia social e com um cinema que se aproxima do cinema de intervenção.

Great Yarmouth: Provisional Figures, de Marco Martins – © Direitos Reservados

Inês Moreira

A Sindicalista e um retrato do machismo

Transformar em cinema uma história verídica é uma tarefa que requer uma atenção especial, mas que, quando feita de forma perspicaz, tem o poder de mostrar muito sobre o mundo em que vivemos. Jean-Paul Salomé aceita a missão de trazer para o cinema o que aconteceu com Maureen Kearney, a sindicalista que denunciou esquemas de corrupção em uma empresa francesa. 

Exibido na 24ª Festa do Cinema Francês, o filme é uma adaptação do livro “La Syndicaliste”, escrito por Caroline Michel-Aguirre, responsável por investigar os acontecimentos que se sucederam na vida de Kearney. Interpretada pela grandiosa Isabelle Huppert, A Sindicalista (La Syndicalist) inicia em 2012, quando Maureen descobriu as irregularidades de uma multinacional e buscou tornar público tais informações, desencadeando uma série de ocorrências que colocaram em risco sua vida.

Salomé transpõe para o ecrã as ameaças verbais sofridas por Kearney e, sem medo de chocar, mostra-nos explicitamente a violência física cometida contra ela. Algo fica preso em nossas gargantas. Esse sentimento cresce ainda mais ao lembrarmos da veracidade dos acontecimentos. Kearney é vista como mentirosa por não se lembrar de maneira clara de tudo o que sofreu. A acusação se vira contra ela em um processo conduzido por homens. Relembramos da problemática de vivermos em uma sociedade dominada por figuras masculinas. A segurança que deveria existir, na verdade, ameaça-nos ainda mais. É significativo que a única pessoa a ficar do seu lado – com exceção de sua família – seja uma mulher. Os acontecimentos vividos por Kearney lembram-nos: “somos nós por nós mesmas”.

Entretanto, o grande êxito do realizador em A Sindicalista é esse. Embora assuma como foco principal a violação e o período que se sucedeu, Salomé abandona outros conflitos relativos ao sindicalismo e aos trabalhadores e deixa um buraco no que tange esses assuntos. O filme acaba por se tornar um suspense, uma história que poderia acontecer a qualquer personagem e, em alguns momentos, perde-se um pouco da singularidade da história de Kearney. 

A Sindicalista, de Jean-Paul Salomé © Synapse

Além disso, Salomé tem alguma dificuldade em prender  nossa atenção. A escolha por um ritmo relativamente frenético no começo do filme e por situar o espectador, no tempo e espaço, por meio de informações escritas que surgem na tela confere uma certa sensação de filmes de super-herói. Tais escolhas são compreensíveis se considerarmos que nem todos conhecem a vida de Kearney, mas acabam por criar um efeito destoante. A atenção é fisgada somente na metade do filme, quando explode em nós o desejo por saber os autores do crime e a vontade de que a justiça seja feita – coisa que, como é mostrado nos créditos finais, nunca foi. Ademais, o grande destaque, para além da história, é atuação de Huppert, sua presença prende nossa atenção e carrega o filme quando ele parece perder as forças.A Sindicalista é uma história que precisa ser contada. Ilustra o perigo contido nos bastidores da política, a ausência de voz das mulheres, os riscos que existem ao vivermos em um mundo onde os cargos de poder são ocupados por homens. Apesar das objeções em relação às escolhas formais, o conteúdo se sobressai. É urgente, é necessário ser visto. Deixa-nos sem palavras ao final, mas com a mente repleta de reflexões.

Lílian Lopes

Baan e a procura por um lugar onde possamos pertencer

Depois da sua viagem pelo Festival de Locarno, Baan, nova longa-metragem da portuguesa Leonor Teles, chega a Portugal para fechar a 21ª edição do Doclisboa. Não é segredo nenhum que Leonor Teles é uma realizadora acarinhada pelo público português que a segue desde o Urso de Ouro, em Berlim, para a sua curta-metragem Balada de um Batráquio (2015). A sala completamente esgotada da Culturgest lembra-nos isto. 

O cinema de Leonor Teles é um cinema de lugares, ou pelo menos tem vindo a ganhar esse estatuto (todos nos lembramos da Vila Franca de Xira do seu documentário Terra Franca, em 2018). O espaço, físico ou emocional, real ou metafísico; as pessoas que nele habitam e as culturas que se formam da vivência dessas pessoas, em conjunto, formam o tema que a câmara de Teles quer filmar, ela que também é a diretora de fotografia dos seus filmes.

Baan, de Leonor Teles – © Direitos Reservados

Baan segue L (Carolina Miragaia), uma jovem de coração partido, que muda de emprego e de casa. Este estado de instabilidade característico de um período marcado por tantas mudanças gera na personagem uma profunda sensação de não pertença. É desta forma que iniciamos o filme: à procura de um lugar onde possamos pertencer (nós juntamente com a personagem).  Neste processo, L acaba por encontrar K, com quem partilha este sentimento transitório e esta procura de uma “casa” (Baan, título do filme, em tailandês significa casa).

 Leonor Teles oferece-nos, assim, um retrato geracional. É o retrato de uma juventude inquieta a entrar na vida adulta com todas as dificuldades que esta acarreta, e num tempo em que, com a crise que vivemos na habitação, tudo se tornou especialmente imprevisível. Para o espectador que se encontra na mesma situação das personagens e para o espectador que consegue empatizar com estas porque já passou pelo mesmo noutros tempos, este retrato encaixa que nem uma luva, e isso refletiu-se numa empatia geral gerada na sala. Em Baan, há uma importância dada às personagens, que são filmadas de perto, em close-up, mas há ainda uma importância dada à cidade/espaço que intercala os planos das personagens, não apenas para o filme “respirar” mas de modo a obtermos também a história deste espaço. Quando o espectador acompanha a personagem, fica com a sensação de que o espaço em que esta deambula poderia ser qualquer lugar no mundo (nunca vemos o suficiente para nos localizarmos). Todavia, o mesmo acontece ao contrário, quando olhamos o espaço, sentimos que esta visão poderia pertencer a qualquer pessoa, ou seja, é como se ambos fossem, à sua maneira, personagens principais deste filme ou como se o filme se pudesse dividir em dois.

Sendo a paixão de Teles a fotografia, deixa aqui bem claras as suas influências, fazendo quase uma homenagem ao cinema de Wong Kar Wai e ao trabalho do diretor de fotografia Christopher Doyle. As cores vibrantes, os néons, os jump-cuts, o uso do desfoque, a manipulação da velocidade do filme e o uso de película são tudo piscar de olhos ao realizador de Hong Kong. Vemos cenas que podiam ter saído diretamente de Fallen Angels (1995) ou de Chungking Express (1994). E não é só na forma que este filme se aproxima das obras do realizador, é quase como se as personagens pertencessem ao mesmo universo: o universo da nostalgia e da solidão, marcado pela narrativa não convencional. 

Este universo formal e estilístico juntamente com uma banda sonora forte, com ritmos do pop eletrónico e do eurodisco, veste as temáticas do filme de uma maneira jovial, aproximando-o ao cinema de outros realizadores contemporâneos. O filme quebra ainda barreiras na discussão ficção versus documentário: a sua narrativa apesar de ser ficcional emprega elementos da vida real, como o uso da equipa do filme como elenco do próprio filme, numa técnica à la Miguel Gomes; ou como o uso da música, elemento da vida real de Carolina Miragaia, na construção da sua personagem. Assim, o filme deixa o espectador com esta sensação de que talvez ainda existam mais barreiras a serem quebradas entre real e ficção que ele mesmo pode não estar a aperceber-se. Deste modo, parece ser lógico que o filme tenha passado nesta última edição do Doclisboa e que continuemos a contribuir para enriquecer esta discussão sobre as linhas ténues que contornam o género documental.

Baan, de Leonor Teles – © Direitos Reservados

Todos os aspetos aqui descritos, ajudam na criação daquele que talvez seja o ponto mais alto de todo o filme: a fusão mágica entre as cidades de Banguecoque e Lisboa. Ao longo do filme, Leonor Teles aborda dois tipos de lugares: o lugar físico e o lugar emocional. L quer pertencer a estes dois lugares: quer pertencer a um lugar de amor e quer pertencer a uma casa, esta segunda que tanto pode ser emocional como física, pois sem a estabilidade de um lugar físico, torna-se praticamente impossível acessar a um lugar emocional. O facto destes lugares estarem meio desvanecidos na cabeça da personagem, permite à realizadora trazer-nos um terceiro espaço para o ecrã: este mundo mágico onde Banguecoque também é Lisboa. Na verdade, Leonor Teles afirma numa entrevista que não importa muito se é tudo Lisboa ou não. É um espaço cinemático, portanto pode ser aquilo que ele quiser ser. É também interessante num filme que aborda a questão da descriminação racial de ocidentais para com orientais, percebermos no final que é tudo um só lugar, e que na verdade somos todos iguais, não é o lugar onde nascemos que nos define.

Este trocadilho dos espaços está, ainda, relacionado com a questão do coração partido. Quando alguém tem o coração partido nem sempre tem força para se levantar da cama, pode passar noites acordadas sem conseguir dormir, nem sempre tem energia para fazer refeições nas horas consideradas normais, são pessoas que estão a lutar contra algo pesado do foro emocional, são pessoas para as quais o tempo parece que parou, e estes dias, horas, lugares acabam por se misturar e serem percecionados de formas diferentes e com durações diferentes. Esta perceção emocional está muito bem representada em Baan, um filme que é simples, mas que da sua simplicidade podemos retirar ideias tão complexas e discussões intermináveis sobre o mundo e sobre as pessoas à nossa volta. 

Baan, de Leonor Teles – © Direitos Reservados

Inês Moreira

Man In Black — Dentro da memória, a nudez

A 21ª edição do DocLisboa abriu oficialmente com Man in Black (2023), o mais recente filme de Wang Bing — um habitué na programação e no palmarés do festival, desde a sua 1ª edição. Neste trabalho atipicamente curto (61 minutos), o realizador chinês filma o compositor e maestro Wang Xilin, ostracizado durante a Revolução Cultural, por ter lutado pela liberdade da sua voz artística, em suposta dissonância com o poder de Mao.

Não é a primeira vez que Wang Bing realiza um “filme testemunhal” que se foca na história conturbada do país e nos efeitos perversos da utopia comunista chinesa, através do retrato de um só personagem. Lembremo-nos de Fengming: Memórias de uma Chinesa (2007), onde, à exceção de alguns planos de transição, estamos do princípio ao fim do filme confinados à imagem da Sra. Fengming que, sentada na sua sala de estar, nos narra a experiência da sua prisão num campo de trabalho durante a campanha “anti-direitista” chinesa (1957-1959). Na economia visível do filme, há espaço para que as palavras da mulher revelem uma torrente de outras imagens — invisíveis, mas maravilhosamente nítidas na sua fantasmagoria. É esta uma das grandes qualidades de Wang Bing: “caçar” personagens reais, cuja presença e discurso superam qualquer ficção imagética, de tão translúcida que é a sua aura, o seu ser.

O encontro do realizador com Wang Xilin é mais uma prova disso, ainda que desta vez Wang Bing se tenha afastado formalmente dos seus trabalhos anteriores. Não só pela redução expressiva da duração, como pela aproximação à encenação. Em Man in Black, o realizador suprime em certa medida — ou, melhor, na medida certa — a distância com que costuma filmar os seus personagens. Em várias entrevistas, Wang Bing tem chamado a este trabalho não um documentário, mas uma peça de vídeo arte. Parece que o realizador quer manter os seus restantes filmes — “verdadeiramente documentais”, pelo seu registo observacional e a sua monumentalidade duracional — num lugar imaculado. Mas, claro, não entendamos esta distinção como uma oposição estanque entre o documentário e a ficção, numa concepção binária simplista. É que mais do que um contentor limitado de convenções formais que permitem o verosímil, o documentário diz respeito a um campo aberto do cinema que possui um vínculo retórico e ético com a representação do real. Sendo que do cruzamento entre o mundo factual e a sua compreensão subjetiva podem resultar “realismos” muito estranhos — ou maravilhosamente estranhos, pela verdade íntima que carregam. Para não falar que num “filme testemunhal” como este, onde não se filma a realidade em curso, estamos sempre no domínio da imaginação e da narrativa. Continuamos próximos de uma ideia de documentário, porque ainda há algo que se documenta: o exercício da memória. Não se estranhe, então, que ao retratar as memórias de um músico, Wang Bing tenha ido além do relato oral e das imagem-documento que seguem pacientemente os personagens nos seus habitats naturais, encontrando numa quase-ficção brechtiana a possibilidade de iluminar com verdade a história de Wang Xilin.

Uma imagem com vestuário, Cara humana, microfone, pessoa

Descrição gerada automaticamente
Sessão de Abertura DocLisboa 2023 © Gonçalo Castelo Soares

Antes de entrar no filme, importa falar do que aconteceu antes, fora do ecrã. O músico de 86 anos — atualmente exilado na Alemanha — esteve presente na sessão. Wang Xilin subiu ao palco do Cinema São Jorge e, num longo e emocionado discurso, adiantou parte da sua narração no filme sobre as histórias do seu povo e da sua vida: relatos de perseguições, prisões e tortura contra os “direitistas”. A certa altura, as suas palavras são interrompidas pelo silêncio dos seus gestos. O músico afasta-se do micro, curva o tronco e lança os braços para trás, demonstrando como fora torturado num campo de trabalho. Quando esta performance ao vivo termina, Xilin abandona o palco e junta-se ao público na plateia lotada da Sala Manoel de Oliveira. A projeção do filme começa e dá-se um raccord curioso entre o espaço exterior ao ecrã e o espaço profílmico. No filme, o músico (res)surge a vaguear, precisamente, pelas cadeiras de uma sala de espetáculos, mas agora estamos no famoso teatro parisiense Bouffes du Nord, a plateia está vazia e Xilin está completamente nu. A sua deambulação pelos balcões e os corredores do teatro termina no centro do palco, onde (re)vemos num loop expressivo a coreografia que evoca os momentos em que fora torturado. Incessantemente, a câmara vai desenhando círculos em torno do seu corpo em movimento, ocupando-se de fixar as marcas da violência na sua pele, qual palimpsesto de violência e resistência. Recalcando o desenho circular do palco, a câmara também consegue transmitir o sufoco de um homem preso no trauma que ainda o cerca e, ao mesmo tempo, o ciclo da História que continua a impor o seu exílio. Durante os primeiros trinta minutos, o filme existe neste nível de abstração, sem uma única palavra. 

Eventualmente, as sinfonias de Xilin preenchem o espaço cénico. Este acrescento é um momento libertador para o espectador e, claro, a música foi a forma com que Xilin conseguiu ele próprio libertar-se da opressão do regime. Com as suas composições não quis produzir a possibilidade de um escape evasivo, mas de uma catarse política. Foi pela música que conseguiu cumprir a urgência em transmitir as imagens da violência que viveu e testemunhou. Quando Xilin abandona o palco e se senta na plateia, como um espectador de si mesmo, ocupa-se de nos traduzir por palavras o que ouvimos. Os pontos altos do seu discurso revelam a dimensão documental da sua música. Às tantas, o compositor explica como conseguiu «representar o metal das grades da prisão», ou com que «materiais» fixou um gesto de tortura. E continuamos a ouvir as suas sinfonias que, às vezes, abafam o seu discurso, completando as imagens invisíveis que já se estavam a formar no ecrã. Nestes momentos, certeiramente, a câmara vai-nos mostrando o pé suspenso e dançante do compositor que, de pernas cruzadas, parece estar sempre a conduzir uma orquestra enquanto fala. Apetece dizer: as suas palavras são música feita de notas que são imagens. Todo o filme se sustenta neste admirável jogo sinestésico.

Uma imagem com Cara humana, captura de ecrã, retrato, mandíbula

Descrição gerada automaticamente
Man in Black, Wang Bing © Direitos Reservados
Uma imagem com vestuário, pessoa, homem, edifício

Descrição gerada automaticamente
Man in Black, Wang Bing © Direitos Reservados

De regresso ao palco, Xilin continua o seu testemunho visceral tocando as suas composições  num piano de cauda, cantando a sua história e uivando a sua dor. Mas nesta performance que é um filme, há também “vazios” — não menos viscerais. O mais expressivo acontece quando o realizador decide filmar uma ida do músico à casa de banho. Acontecem outros, sempre que Xilin volta a deambular em silêncio entre as luzes (pontuais) e as sombras do teatro. Não restam dúvidas: o espaço deste objeto fílmico tem tanto de físico como mental. O teatro Bouffes du Nord é o lugar da memória de Wang Xilin, e a memória é um espaço feito de fragmentos e “vazios” — elementos que compõem o espaço de uma ruína que se tenta reanimar, ou reconstruir, no momento da lembrança. Já Cícero tinha entendido a memória como uma arquitetura real. Em Man in Black, Wang Bing dá-nos o privilégio de viajar para dentro da mente de Wang Xilin, de habitar a arquitetura da memória de um homem que nos recebe nu, vestido apenas de revolta e coragem.

João Garcia Neto

The Connection: Entre o sono e o melodrama

Num loft desmazelado em Nova Iorque, o realizador Jim Dunn (William Redfield), juntamente com o operador de câmara J.J. Burden (Roscoe Lee Brown) debate-se por filmar um “retrato autêntico” de um conjunto de heroinómanos, nove cool cats, que entre o sopro do sono e o frenesim do jazz que tocam, anseiam a chegada do dealer.

The Connection (1961), a primeira longa-metragem de Shirley Clarke, exibida na secção Riscos do DocLisboa, manifesta-se assim nesta paisagem de um stimmung Beatnik: no interior de uma espelunca, nove “gatos” proferem discursos lânguidos, como num spoken word sedado, que atravessa o espaço a partir de todos os flancos, em harmonia com a coreografia giratória da câmara. Entre o fumo dos cigarros, os suores, e o ruído exterior das veias da cidade, o bramir do saxofone, juntamente com o piano, a bateria e o baixo, produzem as únicas frases com nexo. 

The Connection, Shirley Clarke © Direitos Reservados.

No mise en abyme estabelecido a partir do primeiro momento do filme, é nos dito o que não é “verdadeiramente real”: uma montagem de found footage feita por J.J. Burden a partir da rodagem do filme de Jim Dunn. Neste abismo que se converte no filme dentro do filme, vai sendo construído um retrato dionisíaco — in vino veritas (pense-se no filme de Clarke, Portrait of Jason de 1967) — em torno da ética (ou da falta dela). The Connection mantém visível o palco da peça de teatro homónima de Jack Gleber, que lhe é referente, ao condensar toda a ação no mesmo espaço. Porém, é na dialética entre elementos intrínsecos à narrativa que essa relação é potenciada. Atente-se no jogo de luz e sombra, em que o primeiro é materializado num foco que o realizador aponta a cada personagem, provocando nelas um desconforto expressivo, e a segunda, metafórica de uma representação da contracultura, bem como da relação de vampirismo do realizador sobre os sujeitos filmados, procurando sugar-lhes a energia autêntica, para condensar em realismo no seu filme futuro. Este jogo também está presente na representação do fora de campo: o obsceno (fora de cena), que no espaço se materializa na casa de banho, um lugar entre o sagrado e o profano, onde o flash da heroína corresponde a uma purificação (novamente à luz), tornando-o numa espécie de confessionário. Este momento de iluminação estende-se também ao realizador que procura fazer um filme “honesto”, alheio à ideia mais pálida do ambiente em que se encontra. 

The Connection, Shirley Clarke © Direitos Reservados

Pense-se na obra da artista plástica Nan Goldin, através das suas palavras sobre a ética na masterclass que deu no Teatro Rivoli, em Setembro do ano passado, onde disse que (em tradução livre) “para fotografar prostitutas nas suas vidas, tem que se viver como prostituta pelo menos um dia”. Bem como, nas palavras de Pedro Costa no livro “Um Melro Dourado, um ramo de flores, uma colher de prata” a propósito do incontornável No Quarto de Vanda (2000): “Claro que entrei naquele quarto com um desejo de ficção, não desejava um documentário. Se fosse esse o caso, teria sido o fim do mundo e do filme. Fui lá para amar a Vanda, o bairro, para ver pela primeira vez (…)” .

Aludindo a uma fórmula brechtiana do elenco poder-se ia dizer que o filme tem apenas quatro personagens: o grupo de heroinómanos, o realizador Jim, o operador de câmara J.J. e o dueto Cowboy (Carl Lee) e Sister Salvation (Barbara Winchester). Os primeiros representam o realismo; o segundo a vaidade ingénua de extrair o néctar desse realismo para lhe chamar “verdade”; o terceiro, que acoplado à câmara representa o “verdadeiro real”; e os últimos representam o sagrado e profano que, neste contexto, se pode traduzir, usando as palavras de Jean-Louis Comolli, pelas condições da própria experiência.

Sebastião Casanova

Menu Plaisirs —  Les Troisgros: Abyme, place, scène

O mais recente filme de Frederick Wiseman, Menu Plaisirs – Les Troisgros (2023), que estreou em Portugal na secção Da Terra à Lua do DocLisboa, aproxima-nos da alta cozinha da família Troisgros, que mantém há cinquenta e cinco anos, o célebre legado das três estrelas Michelin. No quinquagésimo filme da cinematografia antológica de Wiseman, a sua não menos célebre abordagem à instituição enquanto organismo vivo, onde confluem relações de poder e tensões hierárquicas, é espoletada dentro do universo hoteleiro (particularmente da cozinha) que se ramifica num outro: o da família. Em Menu Plaisirs, o espectador é introduzido numa dinâmica cíclica, partindo da lógica operativa da cozinha, desde o garde manger1, à boca de quem se senta à mesa dos restaurantes Troisgros (Maison Troisgros, Le Bois sans feuilles, e La Colline). Assim, neste filme, podemos debruçar-nos sobre a lógica operativa de uma instituição fundada há mais de cem anos, de estrutura hierárquica paramilitar, que por mais que exista à volta de algo tão simples como a comida, é célebre pelo jogo de sombras que envolve e pelo que acontece no fora de campo, antes da degustação. Algo que se pode comparar ao cinema. 

A particularidade de Menu Plaisirs, é a observação de todo este empreendimento a partir de uma outra “instituição” – a família – enquanto alma do negócio, enquanto corpo comum, reunida numa lógica de criação conjunta, de legado, e que por isso convoca novamente a dimensão cíclica. Do pó ao pó, da terra à terra, sob um ponto de vista sustentável e ecológico, mas também geracional, de renovação, e de liberdade (que se adquire tanto no assumir da chefia como na passagem do legado). 

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Menu Plaisirs – Les Troisgros, Frederick Wiseman © Zipporah Films

O filme começa na praça de Roanne, onde os irmãos César e Leo, respetivamente chefs dos restaurantes Le Bois sans Feuilles e La Colline, escolhem contemplativamente alguns ingredientes, antes de se reunirem com o pai, Michel, numa das mesas redondas do restaurante. Discutem os pratos da temporada e os ingredientes a usar em função da época. Como é característico no seu cinema, Wiseman constrói o filme através de dois tipos de cenas: as sequências de instrução visual que, passo a passo, nos aproximam de toda uma paisagem operativa, desde a visualização mental e verbal do menu, à escolha da matéria prima, à sua entrada na cozinha pelo cais, às operações de pré-preparação na cozinha fria, à mise en place2, oferecendo-nos também, por outro lado, uma relação hierárquica retroativa, que nos leva à terra, à compreensão do solo e dos processos de agropecuária. Por outro lado, nas cenas protagonizadas pela conversa, entre um ou mais elementos, através das quais se pode aceder aos meandros das duas instituições. Numa delas, a certa altura, o produtor de vacas que trabalha com os Troisgros afirma: “Respeitando o solo, as plantas e os animais serão saudáveis. É este o ciclo virtuoso”. Esta frase, pode ser apropriada em função dos momentos verbais, que vão retratando esta dinâmica familiar: respeitando a base – a comunicação – o nosso trabalho e as nossas relações serão saudáveis. A conversa, a aprendizagem partilhada, a compreensão mútua, vai pontuando o filme, em paralelo com os momentos da ordem do fazer, de forma eclética, desde a discussão de sabores, às encomendas vinícolas dos clientes, à aprendizagem sobre a fortificação do pasto das vacas, ou até ao briefing da equipa sobre a ética de trabalho anti-bullying. Com efeito, a ética é sublinhada subtilmente durante as quatro breves horas do filme, ao dar-se nota de uma liderança silenciosa, praticamente ímpar no universo da alta cozinha, para não mencionar a imparidade dessa harmonia no que toca a dinâmicas familiares.

Escutamos o filetar de um pregado, o destacar das costeletas de um borrego, entre sons frios das cubas e das facas de inox, que se alargam a toda a sonoridade da cozinha, que se vai apresentando, assim, partida a partida. Paralelamente, na sala, os empregados de mesa posicionam os talheres e os copos imaculados em cima do pano branco com a precisão de um jogador profissional de snooker. Mais tarde, encontramos vários tipos clientes, alguns connaisseurs, uns autênticos, outros vaidosos que se precipitam avidamente para receber todos os sabores e cheiros, rotulando-os rapidamente, sem deixar de parte o telemóvel, esse objeto que hoje, frequentemente, contamina a experiência gastronómica. Outros vão à descoberta, tímida por vezes, por outras, incorporada na celebração.

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Menu Plaisirs – Les Troisgros, Frederick Wiseman © Zipporah Films

Menu Plaisirs evoca por diversas vezes um paralelismo com o cinema. A partir do método de “controlar a cozinha sem levantar a voz, só com o olhar” pode pensar-se na forma como Wiseman terá comunicado com o operador de câmara (James Bishop) e o engenheiro de som (Jean-Paul Mugel), e nesse sentido, pensar na relação entre quem se senta na cadeira do cinema de Wiseman, e em quem se senta à mesa da Maison Troisgros. Foquemo-nos no jogo de sombras da cozinha. Todos os momentos de degustação resultam de uma combinação entre um conhecimento extenso dos produtos e como reagem aos diferentes métodos de confeção. Numa das cenas que provocou sorrisos, o chef Michel precisa de relembrar um dos cozinheiros como drenar o sangue do cérebro dos cabritos antes de os cozer, rematando, que sempre que ele não souber alguma coisa deve recorrer a dois livros, a enciclopédia francesa Larousse e, ou, o Escoffier, a base de toda a cozinha, escrita por Auguste Escoffier. Ou seja, foi tudo escrito há muito tempo. Não existem invenções misteriosas, ou manobras ocultas, mas sim a combinação do conhecimento com um jogo de artifícios, sombras e luzes que, no restaurante, envolvem os pratos e o modo como chegam ao cliente. No cinema de Wiseman, exalta-se o sentido operativo da visão, a capacidade do espectador fazer ligações (independentemente da sua complexidade) e de construir, de certa forma, o seu filme. Essa capacidade obtém-se através do visionamento dos seus filmes, sem quaisquer concepções prévias de tempo, de sentido, e ironicamente, de hierarquia. Da mesma forma, no meio da alta cozinha, o paladar é uma ferramenta que se deve usar operativamente, tanto pelo “realizador” como pelo “espectador”. Qualquer pessoa que tenha trabalhado como cozinheiro sabe (ou devia saber) que as suas ferramentas principais são a colher e o palato, para que possa provar várias vezes tudo antes de ir para a mesa. Neste sentido, o gosto subjetivo é suprimido a favor da prova de sabor, instrumental. Também na mesa, quanto mais operativo for o palato do cliente, mais perto estará da experiência gastronómica.  

Nas cozinhas de Les Troigros, não se fazem refeições. Come-se, em “silêncio” como num gesto de antropofagia, dos corpos e dos processos que em conjunto criaram os vários momentos. Paralelamente, no cinema de Wiseman, os momentos são construídos a partir do que o espetador tem vindo a “comer” ao longo do filme, da atenção que dedica a pormenores, bem como a traços gerais dos planos, ou até à componente verbal, procurando ligações entre imagem e palavra. Todos esses “sabores” se compreendem de forma diferente. Por isso se devem ver e rever, dividir, se for o caso, ou interromper, se se estiver de estômago cheio. O seu visionamento será sempre afetado pela cumulação. O mesmo acontece na boca, onde fica o sabor dos rins com maracujá, dos frutos vermelhos e caviar, da baunilha com uvas e folha de ouro, e de outros prazeres, saboreados com a visão.

Sebastião Casanova

  1.  Secção de uma cozinha onde se procede, atualmente, a uma preparação prévia da matéria prima. ↩︎
  2.  Preparação dos ingredientes necessários para o serviço. ↩︎

DocLisboa: The Nothingness Club – Não Sou Nada (2023)

O DocLisboa tem como intuito a exploração de representações únicas da realidade. Quer seja por meio de um experimentalismo ou pelo desafio das conceções do passado, promove filmes que ofereçam novas maneiras de percecionar o mundo. The Nothingness Club – Não Sou Nada (2023) de Edgar Pêra é um deles, afigurando-se como um documentário mental sobre a entrada nos modos de pensamento de Pessoa.

Embrenhado no efeito nebuloso de uma mente patologicamente manchada, é oferecida ao espectador a oportunidade de inserção na realidade deturpada do mais enigmático poeta português: Fernando Pessoa. Baseada nos seus poemas, assiste-se à costura de uma narrativa própria, porque não se trata do real, mas sim de uma distorção onírica do mesmo.

Poder-se-ia afirmar que este filme era mais um ao lado dos demais que basearam as suas linhas orientadoras nos poemas deste grande escritor – e ainda bem que há tantos assim –, mas seria insensato declará-lo de facto, porque não se apresenta como um Filme do Desassossego (2010) ou um La gentilezza del tocco (1987). Pelo contrário, esta obra, escrita de forma perspicaz por Edgar Pêra e Luísa Costa Gomes, constitui-se, de forma anacrónica, como uma perspetiva refrescante (apesar de alucinante), com um ritmo fílmico muito particular, um Pessoa entre todos os outros.

O barulho gritante da sinfonia das máquinas de escrever, esta musicalidade intrínseca ao ato de escrever mestrada por ele próprio, constitui a personificação dos acessos de loucura febril de uma alma perturbada por esta multiplicidade de imaginários labirínticos. Uma agitação do sonoro de tal ordem, impele o espectador para um quarto coberto por espelhos quebrados, onde se instala um clima de terror psicológico, onde são refletidas imagens pertencentes à ordem do não-real.

The Nothingness Club – Não Sou Nada, de Edgar Pêra – © Direitos reservados

A fragmentação do “eu”, os dramas íntimos e a dimensão fantasiosa presentes nos poemas de Pessoa são de tal modo vinculados pela técnica. Quer seja pela câmara lenta e pela voz-off, que adensam o teor psicológico das personagens, quer seja pela banda sonora habilmente trabalhada por Artur Cyanetto e Jorge Prendas, quer seja pela sobreposição e justaposição de imagens, construída na montagem de Tomás Baltazar e Cláudio Vasques, nota-se, aqui, um cinema criador de dimensões imaginárias a partir de dimensões técnicas, usando a técnica para estabelecer esse imaginário estranho e labiríntico, através de um movimento de embriaguez alucinogénica. 

Sente-se o ambiente caótico, o contraste entre o espaço ficcional e o real (o escritório e o hospício), espaços que se contaminam, se devoram e se iluminam. Observa-se Lisboa numa distorção delirante através do cinema – e assumimos o papel de um dos muitos heterónimos, sentido o que ele sente, mas à nossa maneira singular e subjetiva. Constatam-se as fascinantes performances de Miguel Borges, atuando como Fernando Pessoa, um espectador de si mesmo que se procura a si e à sua essência; de Victoria Guerra como Ofélia, um elemento sedutor no meio dos cenários, um indício de cedência da racionalidade ao sentir inerente à condição humana; e de Albano Jerónimo, que é Álvaro de Campos, o corroer de várias personalidades que vão morrendo aos poucos com ele.

Aqui, vê-se o gesto e o grito. Aqui, experimenta-se o cinema, que tem o poder de elevar quem vê à condição de quem sente, num delírio estonteante, numa visão múltipla e deturpada do mundo, que só Pessoa poderia conceber.

Catarina Gerardo

The Murder of Mr. Devil: profecia de uma cultura progressiva no Leste 

Produzida sob o mote “No Happy Ever After”, a 6ª edição do BEAST IFF – festival dedicado ao cinema da Europa do Leste – é criadora de um diálogo entre o cinema e a situação política destes países. “Não há finais felizes?” é a pergunta que paira nas ruas do Porto durante os dias do festival. Há uma ideia romântica da dor como criadora de uma imensa potência artística que, até certa medida, o BEAST parece confirmar. Isto porque a programação dedicada à emergente cultura progressiva e às inúmeras narrativas de resistência deixa pouco espaço para contos de fadas e utopias. Os finais não são necessariamente felizes e não precisam de o ser. Afinal, há ainda um longo caminho a percorrer e é relevante explorar fórmulas alternativas aos finais felizes.  

Num festival onde a maior parte dos filmes exibidos são bastante recentes, The Murder of Mr. Devil (1970) rompe com este padrão, transportando-nos para os anos de ouro da produção cinematográfica checoslovaca. Este é o único filme dirigido individualmente por Ester Krumbachová, grande responsável pela estética da nova onda de cinema checo. Inserido neste movimento de vanguarda, o filme opera um jogo entre o real e o surreal; uma desconstrução sarcástica do comportamento masculino e dos cânones da comédia romântica.  

Imprevisível e erótico, The Murder of Mr. Devil desenvolve-se exclusivamente no interior do apartamento de uma mulher solitária que convida o Diabo (Bohouš Čert) para sua casa. À semelhança de Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman, também este filme nos convida para a esfera privada da mulher. Aqui, atividades ordinárias recebem uma relevância que é inusitada no cinema. Entre móveis e talheres antigos, plantas tropicais, tons alaranjados e acinzentados, assistimos a requintados banquetes e às inúteis tentativas desta mulher conquistar um homem guloso e indelicado.  

The Murder of Mr. Devil, Ester Krumbachová © Direitos reservados

Jeanne Dielman, Chantal Akerman © Direitos reservados

No BEAST, este filme surge integrado num programa chamado “The Raisin Prophecy”, constituído por The Murder of Mr. Devil e In Search of Ester, um documentário de Věra Chytilová que procura compreender quem foi Ester Krumbachová. Este programa é uma tentativa de recuperação de uma personalidade outrora esquecida. Ester Krumbachová (1923-1996), um nome central da vida artística em Praga, nos anos 60, foi colocada numa lista negra com a alteração do clima político da Checoslováquia na década de 1970. Os seus filmes foram banidos e só nos anos 90 se iniciou uma redescoberta do seu trabalho. Torna-se pertinente incluí-la na programação do festival quando a entendemos como uma encarnação desta tensão política. Ainda assim, a sua relevância vai além deste vínculo biográfico. Vejamos o título do programa:  

“The Raisin Phophecy”, passível de ser traduzido para ‘A Profecia da Passa’, remete para a predição de um futuro de inspiração divina. Numa primeira análise, a profecia corresponde à própria narrativa do filme. Há uma cartomante que prevê um misterioso saco de passas nas suas cartas. No final do filme, como uma profecia que se cumpre, o Diabo, homem glutão, é capturado num saco e ironicamente transformado em passas. A par disto, parece haver também uma associação à mulher. Como uma predestinação incontornável, esta sente-se atraída pelo Diabo, o fruto proibido. The Murder of Mr. Devil é, neste sentido, uma profecia herética; uma evocação alegórica e crítica do pecado bíblico original. 

Mas será a narrativa o único aspeto a considerar quando referimos ‘profecia’? Certamente que não. Reconhecido como o primeiro filme feminista checo, The Murder of Mr. Devil prende em si uma fascinante atualidade. Profundamente político, audaz e experimental, este filme descreve a vontade de romper com as diretrizes do realismo socialista. É o cinema da expressão individual e da emancipação daqueles que desejavam reconhecer-se nos ecrãs. E, por isso, refletir sobre este conceito implica pensá-lo enquanto precursor de uma cultura progressiva na Europa do Leste. Ester Krumbachová veio semear raízes daquilo que décadas mais tarde voltaria a ganhar um novo impulso. Retomar este filme, na 6ª edição do BEAST IFF, é encontrar-lhe um final diferente: não necessariamente feliz, mas certamente um pouco mais livre.

Maria Mendes

Entrevista com Rimantas Oičenka sobre a sua viagem memorial Reisas/The Trip

Reisas, Rimantas Oičenka © Direitos reservados

Lituânia soviética, década de 1970.  Laimis Janutėnas, pescador agora reformado, gravou durante esses anos as suas viagens intercontinentais a bordo do barco de pesca industrial onde trabalhava. Aos 80 anos, dizia que as imagens em 8mm só tinham sido vistas pela sua companheira Marytė Janutėnienė. Foi então que Laimis chegou ao contacto com o realizador Rimantas Oičenka, pedindo a este que fizesse algo com as suas imagens e que as partilhasse com o mundo.

O resultado é este Reisas (The Trip), uma viagem no navio pesqueiro e uma viagem nas memórias de uma história de amor. Sem sentimentalismos desproporcionados e acertando na dose de nostalgia, a curta parte desse arquivo para nos dar um olhar sobre a Lituânia daquela época, reflectindo sobre a tensão existente com os ideais soviéticos instalados no país.

Delicado na execução, pertence àquele género de documentários empenhado em contar ao detalhe, de forma precisa e eficaz, a história daqueles que retrata. Os primeiros planos mostram-nos esse encontro com Laimis e Marytė nos dias de hoje, na sua sala de estar, onde vão remexendo em correspondências e fotografias que trocavam na altura em que Laimis embarcava durante largos meses. Rimantas apropria-se das imagens de Laimis para as remontar numa lógica narrativa que pretende encenar os momentos vividos pelo casal. As imagens filmadas por si são relativamente poucas e servem para enquadrar e contextualizar aquilo que, no presente, significam as imagens de arquivo. Por exemplo, o plano que abre o filme é uma escultura de um elefante que, percebemos mais à frente, foi algo que Laimis adquiriu numa expedição por África.

De um ponto de vista de ecologia das imagens, o que Rimantas faz é perceber o potencial cinematográfico daquelas filmagens amadoras, reorganizando-as, para formar este “voltar ao passado”, sensação essa que é reforçada pela decisão de sonorizar, através da técnica de foley, as imagens mudas. A decisão de colocar esses sons, é onde reside a força e o interesse particular deste Reisas. Essa escolha está profundamente ligada a uma tentativa de recuperação da memória, representando uma viagem no tempo, em que a nostalgia é substituída por um uso pragmático do arquivo. Assim, o que vemos já não são imagens fetichizadas do passado, tornando-se, pelo contrário, um meio de transporte para o presente que há nelas. Esse é o grande feito de Oičenka. A viagem do título é a viagem no mar, na sua história, mas sobretudo a viagem no tempo.

Um dos últimos planos do filme é uma longa contemplação do rosto de Marytė, onde se podem ler as marcas desse tempo, mas também onde se reconhece a felicidade apaziguadora que as memórias da sua história de amor lhe trazem. Laimis aproxima-se e serve-lhe mais chá. Ela olha-o de relance. E a viagem de ambos continua. 

The Trip foi o filme escolhido pelo júri do Beast International Film Festival para o prémio East Doc, que distingue o melhor documentário em competição no festival.

Ricardo Fangueiro

Entrevista com Rimantas Oičenka, conduzida por Maria Mendes

*For english version, see below.

Antes de mais, parabéns pelo prémio de melhor documentário no BEAST IFF. Sei que “The Trip” é a tua primeira curta-metragem, feita de imagens de arquivo produzidas em 1975. Portanto, a minha primeira questão seria: Como te cruzaste com essas imagens?

Eu recolhi este arquivo de um homem que, de alguma forma, me encontrou e me contactou há uns 6 anos. Temos alguns amigos em comum. Então, ele era um pescador que costumava fazer algumas gravações, com a sua câmara de 8mm, enquanto pescava. Ele guardou todo esse arquivo na sua casa e quando me encontrou, disse-me: “Eu filmei muito, mas nunca ninguém viu este material, à excepção da minha mulher. Tenho 80 anos, por isso assumo que vou morrer em breve e quero que as pessoas vejam o que eu filmei”. Ele só me perguntou “consegues fazer alguma coisa com isto?” E tudo começou aí.

Depois, eu vi todo esse material, e foi muito interessante para mim. O problema é que quase tudo era sobre a indústria da pesca e a pesca não me interessa. Na verdade, eu sou contra a indústria da pesca, por isso tive que encontrar algo pessoal nesse material. Não soube imediatamente o que fazer, mas eu sabia que queria fazer.

Ainda que a pesca não seja algo que te interesse, “The Trip” é um documentário sobre a indústria da pesca na Lituânia soviética. Eu quero saber como é que tu achas que isto é importante e como o filme representa a Lituânia de um ponto de vista mais histórico ou político.

Em 1975, a Lituânia fazia ainda parte da União Soviética. Nós éramos ocupados pelos soviéticos, e eu acho que isso foi uma das razões pelas quais eu decidi fazer este filme. Agora que vivemos num país independente outra vez, eu queria falar de como era a situação política e de que como as pessoas costumavam viver durante esses tempos. Isto é muito importante para mim.

Reisas, Rimantas Oičenka © Direitos reservados

Então,  “The Trip” foi um esforço de aproximação a algo relacionado com o passado do teu país. Este filme está relacionado contigo de outra maneira?

Na verdade, sim. Quando eu comecei a falar cada vez mais com o homem que filmou isto, eu também conheci a sua mulher. Primeiro, ela não queria contactar comigo. Pensava que eu só estava curioso sobre as viagens pesqueiras do seu marido. Mas eventualmente, eu também estabeleci uma conexão com ela, e fiquei muito impressionado com a relação deles enquanto casal. Eles estavam casados há mais de 50 anos.

Eu casei-me na mesma altura em que eu recebi este arquivo e descobri uma série de relações entre a minha vida e a vida deles em 1975. Estávamos a viver coisas parecidas. Eu e a minha mulher tínhamos casado recentemente, estávamos à procura de um novo apartamento, e a minha filha tinha acabado de nascer na altura. Descobri que, através da história deles, eu podia falar sobre aspectos pessoais da minha vida.

Para além disso, outra parte importante deste filme são as cartas. Eu perguntei, ao Laimis e à sua mulher, se eu podia ver as cartas que eles escreveram um ao outro quando o Laimis ia nas suas viagens pesqueiras. Eles guardaram todas as cartas e, eventualmente, deram-mas. Foi aí que eu encontrei todos os detalhes sobre eles: como se conheceram, a sua relação… E é engraçado, porque na altura eu estava a viajar pela Lituânia a organizar sessões de cinema ao ar livre e a minha mulher estava sozinha em casa com a nossa filha. Foi outra semelhança que encontrei entre nós e este velho casal.

Penso que a forma como sonorizas as imagens de arquivo é muito curiosa, porque nos transporta para aquele tempo. Como é que foi a construção da voz-off que narra o filme?

As cartas foram lidas por mim e pela minha mulher. Foi durante o tempo do Covid, quando não podíamos encontrar-nos com mais ninguém. A minha ideia original era encontrar alguns actores e actrizes para lerem essas cartas. Mas primeiro, queria ter alguns rascunhos, algo para começar a trabalhar. Para isto, gravei com o meu telemóvel e pedi à minha mulher para fazer o mesmo. Mais tarde, quando eu estava a tentar encontrar actores eu percebi que tinha ficado muito ligado à gravação provisória e decidi mantê-la dessa forma.

Reisas, Rimantas Oičenka © Direitos reservados

E como foi o processo de montagem e seleção das imagens para o filme?

Não havia muito material. Eram cerca de 5 horas de filmagens. Quase tudo era muito bom, então foi difícil escolher. Ao mesmo tempo, eu já sabia o que queria e escolhi as imagens que representavam melhor os sentimentos que eu queria enfatizar.

Isto é bastante claro na cena da partida, quando os pescadores dizem adeus, mas também na cena final, onde eles estão a voltar após cinco meses naquela viagem.

Por falar em viagem, acho que esta é a minha última questão: De onde vem o título deste filme? É porque descreve uma viagem – através da memória, a vida de um pescador, mas também o passado da Lituânia? O que pensas disto?

Primeiro, eu decidi que o título inglês seria “The Trip”, mas eu acho que foi um erro. Devia tê-lo chamado “A Trip”. Talvez tenha acontecido por causa do meu inglês pobre, mas eu acho que há uma grande diferença entre “the” e “a trip”. Além disso, a minha ideia principal para este título era que ele tivesse diferentes significados. A viagem podia ser esta viagem pesqueira em particular, mas também o casamento e conexão entre duas pessoas. Para mim, 50 anos juntos e continuarem bons amigos, é uma bela viagem.

Entrevista conduzida por Maria Mendes


Interview with Rimantas Oičenka, conducted by Maria Mendes

First of all, congratulations on winning the best documentary in BEAST IFF. I know that “The Trip” is your very first professional short movie and that it is made out of archive footage from 1975. So, my first question would be: How did you come across this footage? 

First of all, I got this archival footage from one man who somehow found me and called me like 6 years ago. I have a few common friends with him. So, he used to be a fisherman and used to record some videos with his 8mm camera while he was fishing. He kept all of this footage at his house and when he found me said: “I was filming a lot but no one has seen this material except my wife. I am 80 years old, so I assume I’m probably going to die soon and I want people to see what I recorded.” He just asked me “Can you do something with this?”. This was the beginning. 

Then, I watched all that material, and it was really interesting for me. The problem was that almost everything was about fishing and fishing is absolutely not my thing. I’m actually against the fishing industry and so, I had to find something personal in this material. I didn’t know immediately what to do with this but I knew I wanted to. 

Even though fishing is not your thing, “The Trip” is still a documentary on the fishing industry in Soviet Lithuania. I want to know how you think this is important and how this film represents Lithuania more historically or politically. 

Back in 1975, Lithuania was still part of the Soviet Union. We were occupied by the Soviets, and I think this was one of the reasons why I decided to do this film. Now that we live in an independent country again, I wanted to talk about how the political situation was, and how ordinary people used to live during those times. This is very important to me. 

So, “The trip” was an effort to get closer to something related to the past of your country. Is this film related to you in any other way? 

Actually, yes. When I started to talk more and more with the man who filmed this, I also met his wife. At first, she didn’t want to get in contact with me. She thought that I was only curious about her husband’s fishing trips. But eventually, I also established a connection with her, and I was very impressed by their relationship as a couple. They were married for more than 50 years.  

I got married at the same time I received this archive and I found a lot of relation between my life and their life back in 1975. We were living very similar lives. Me and my wife were recently married, looking for a new apartment, and my daughter was a newborn at the time. I found that through their story I could speak about personal aspects of my life. 

Also, an important part of my film is the letters. I asked them, Laimis and his wife, if I could see the letters they were writing each other when Laimis went on the fishing trips. They kept all of the letters and eventually gave them to me. That’s where I found all the details about them, how they met, their relationship… And it is funny that at the time I was traveling around Lithuania organizing open-air cinema screenings and my wife was also at home alone with my daughter. This was just another similarity that I found between us and this old couple. 

I think that the way you chose to sound the archive images is very curious because it takes us back to their time. How did this idea come about and why is it important for the film? 

The letters were read by me and my wife. It was Covid times when we couldn´t meet with any other people. My original idea was to find some actors and actresses to read those letters. But first, I wanted to have some drafts, something to start working with. For this, I just recorded it with my phone and asked my wife to do the same. Later, while I was still trying to find some actors I understood that I had become very close to the draft and I simply decided to keep it this way. 

And how was the process of montage and selection of the images for the film? 

There wasn’t a lot of material. It was about five hours of footage. Almost everything was really good so it was kind of difficult to choose. At the same time, I already knew what I wanted so I chose the images that represented better the feelings I wanted to emphasize. This is very clear in the departure scene, where the fishermen are saying goodbye but also in the final scene, where they are coming back after five months of that trip. 

Speaking of trip, I think that my last question is: Where does the title of this film come from? Is it because it describes a trip – through memorý, the life of a fisherman but also the past of Lithuania? What do you think about this? 

First of all, I decided that the English title would be “The Trip” but I think it was kind of a mistake. I should call it “A Trip”. Maybe it happened because of my poor English but there is quite a big difference between ‘the’ and ‘a’ trip. Besides this, my main idea for this title was that it could have different meanings. The trip could be this particular fishing trip but also the marriage and connection between two people. For me, 50 years together and still really good friends is a wonderful trip.