Numéro Deux e a composição da matéria fílmica

Até que ponto é que um filme se afirma como filme?

Numéro Deux (1975) pode compreender um esforço de abstração maior do que o vulgar, já que não roça nenhum género delineado, mas sim se afirma como um exercício de experimentação de Jean-Luc Godard realizado em colaboração com Anne-Marie Miéville. Um filme, se é que o pode ser considerado, com o seu próprio estilo, que inventa a sua exclusiva maneira de existir.

Subsequente a Ici et Ailleurs (1974) e antecedente a Six Fois Deux (1976) ou a Comment Ça Va? (1976), esta obra pertence ao período do coletivo Dziga Vertov, um tempo de militância, que, no seu âmago, queria gerar confusão, perguntas, ação política, e, acima de tudo, a conquista de quem o visse de se poder afirmar como um indivíduo com uma posição crítica definida em relação ao mundo. Pretendiam, portanto, fazer os espectadores pensarem sobre si e em si próprios, bem como na natureza à sua volta e nos sistemas em que se incluem. Daí o seu intuito ser também questionar-se sobre a condição fílmica e cinematográfica, pensando até que ponto seria efetivamente considerado como uma peça de cinema e não uma sobreposição de várias textualidades.

A miscigenação de textos num movimento de libertação da própria condição de filme eleva a substância do signo fílmico a um limiar de grande originalidade. Isto pelo menos para os anos de 1975 e 1976, quando esta sinestesia de inscrições surge diante de espectadores que não esperavam uma projeção como esta se abrisse da maneira que se abriu.

Uma abertura não só ao estilo, mas também à(s) história(s) que nos vai contando, ao longo de uma textura heterogénea composta por fragmentos escritos, sons sobrepostos, imagens simultâneas em dois ecrãs e algumas personagens que constroem uma narrativa fracionada à medida que os 88 minutos perpassam. Fala-se de palavras que se inscrevem num fundo preto, mas igualmente se mostra o exercício que é fazer cinema, o trabalho que esta arte exerce e requer, evidenciando a qualidade do artista que tem de estar nos bastidores de tal produção cinematográfica. Mas pode uma projeção como esta, composta por uma hibridização de elementos e uma pluralidade de matérias, adquirir o estatuto de filme, ou não será apenas uma manifestação de um sincretismo pretensioso que se quer imiscuir com todos os que já conseguiram alcançar este estatuto?

Numéro Deux, de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville – © William Lubtchansky

Afirmando-se como filme ou não, coloca-nos questões de uma elevada pertinência, almejando o olhar crítico de quem vê. Apesar da sua estrutura formal causadora de desorientação ou confusão, maioritariamente devido ao trabalho de montagem, Numéro Deux apresenta-se, a nível de conteúdo, como um convite ao pensamento analítico sobre como o género e as suas construções inerentes influenciam e têm um papel preponderante nas dinâmicas de poder na nossa sociedade, usando o conceito de paisagem como metáfora para o sexo feminino e a noção de fábrica como símbolo do sexo masculino.

Explora, por isso, as relações entre homens e mulheres, sendo estruturado à volta de várias conversas entre uma família, onde a mãe, interpretada por Sandrine Battistella, e o pai, desempenhado por Pierre Oudrey, buscam discussões tanto superficiais e sem importância, como aprofundadas e acerca de assuntos relevantes, como a construção da identidade ou o sistema capitalista. Sendo também um experimento em parte erótico, este filme pensa a sexualidade como distração à existência metálica de latão que se constrói e edifica ao nosso redor, pelo que o entorpecimento e o amorfismo inalado pelos sexos é alavanca para a máquina da fábrica que se ocupará da criação de um de dois produtos finais: uma criança ou uma casualidade.

Inegavelmente, a variedade que Godard mais uma vez nos ostenta é de um exercício de criatividade tal que em vez de um ecrã, foram precisos dois, seguindo uma binariedade de lógicas que não se esgotam só neste aspeto. Aqui patentes – dois ecrãs, dois sexos – talvez serão necessários mais no futuro. Por via das dúvidas, este movimento de introdução de um elemento gerador de ambiguidade foi extremamente relevante para a construção de uma identidade de autor inigualável, que o põem num pedestal, evidenciando a originalidade da sua vasta obra. 

Catarina Gerardo

[Foto em destaque: Numéro Deux, de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville – © William Lubtchansky]

Tár: Entre o que se percebe e o que se concebe

É através de um ecrã que é dado o tom de Tár (2022), num live que rima simultaneamente com o enquadramento de uma situação e com a morosa iminência do que está para acontecer. Simultaneamente, Tár é Lydia (Cate Blanchet) e um espaço observacional, no qual mergulhamos, onde a genialidade, o poder e o fantasmático estabelecem entre si uma inextricável relação de conflito.

Lydia Tár é uma maestrina brilhante, cujo nome entrou para a história, reconhecido amplamente como o de uma das maiores maestrinas vivas e a primeira mulher a dirigir a Filarmónica de Berlim. Numa das primeiras cenas, ficamos a par do seu notável e extenso currículo, através de uma entrevista conduzida por Adam Gopnik (cameo), a propósito do lançamento da sua biografia “Tár on Tár”. Na entrevista, que grosso modo decorre em mezzo piano, ouvem-se os pontos acutilantes para o curso da narrativa: o papel do maestro, do ponto de vista do controlo do tempo (a espontaneidade da musica é uma ilusão) e a leve discussão sobre a relação de Gustav Mahler (compositor no qual Lydia é especialista) com a sua mulher Alma, com enfoque na credibilidade desta como compositora aos olhos do marido (“só há lugar para um idiota”).

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Tár, Todd Field © Focus Features

A estética de Tár é assim estabelecida numa musicalidade simbólica desencadeada através do diálogo. Em Tár os símbolos são charneiras e vão sendo ativados num lento crescendo, contínuo e contíguo com o que não podemos garantir estar a ver nem a ouvir, isto é, com presença de fantasmas: da estetização do bélico, no próprio espaço de Berlim (para além do espaço físico, em referências históricas), na música clássica per se (já com a controversa nota de abertura sobre Mahler e Alma), na figura de poder do maestro (e na relação com os seus subordinados) e, requintadamente, na figura de uma mulher lésbica no papel de “deus” (de quem se gosta), acusada de abusos sexuais (mas não se pode).

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Tár, Todd Field © Focus Features

Todd Field orquestra provocadoramente esta rapsódia de conflitos quase como se se tratasse de uma epoché, em que a mise-en-scéne está em perfeita harmonia com uma frieza estética de símbolos, numa narrativa em que a ambiguidade é uma neblina envolvente. Lydia viaja sempre de jato, mas conduz um Porsche elétrico (uma incongruência que lhe podia servir de síntese). Representa uma descentralização da masculinidade preponderante no meio da música erudita, embora conserve imaculadas as suas propriedades tóxicas. Deus está presente (“ele vê tudo”) em Tár e em Lydia, oscilando entre o reconhecimento divino e o adestramento dos seus (fiéis) seguidores. Nas palavras de Luís Miguel Oliveira “é dos filmes mais me too que já se fizeram, mas a protagonista e abusadora é uma mulher, e uma mulher lésbica”. No próprio diálogo verifica-se esta dicotomia palpitante entre o que se percebe e o que se concebe, quando a certa altura há um equívoco fonético entre a palavra misoginia e misogamia.

Com efeito, os símbolos que compõem Tár, em três andamentos — contemplação, crise e queda — surgem-nos num cruzamento de atuais guerras culturais e de uma série de clichés dos retratos de poder, sedimentando uma imagem mais ou menos familiar de alguém que beneficia dos seus privilégios de maneiras eticamente dúbias. Projeta-se no mundo com um único propósito: a arte. Lydia Tár, fria, determinada, genial, maquiavélica e alvo de um escândalo, é uma personagem reescrita sobre um palimpsesto de figuras sobre as quais se mantém aceso o debate sobre a (não) separação entre a arte e a vida. 

Sebastião Casanova

[Foto em destaque: Tár, Todd Field © Focus Features]

The Whale: O Olhar Sobre Uma Sociedade Carente de Empatia

The Whale, do cineasta Darren Aronofsky, chegou aos cinemas portugueses e trouxe consigo um tópico urgente: o facto de vivermos num mundo carente de empatia. Na cerimónia dos Óscares arrecadou duas merecidas estatuetas, celebrando-se assim o regresso do ator Brendan Fraser, estrela “esquecida” pelo público.

Assim que o filme abre, somos introduzidos à sua personagem principal: Charlie, um professor de um curso online. Apesar de, inicialmente, apenas ouvirmos a sua voz (Charlie esconde-se atrás de uma câmara que mantém desligada), a intensidade dessa mesma voz prepara-nos para um filme que nos irá levar numa viagem emocional desconfortável. Passados uns minutos vemos aquilo que esperávamos ver desde o início: o enorme corpo de Charlie (antecipado já pelo cartaz e trailer do filme). Aquela figura “monstruosa” (o fato de gordura que lhe valeu o Óscar de melhor caracterização) existe não só para “assombrar” e deixar desconfortável o espectador, mas também para trazer para cima da mesa o tema da obesidade mórbida que, à primeira vista, parece ser o tema principal da nova longa-metragem do realizador de clássicos como Requiem for a Dream e Black Swan

É difícil para o espectador distanciar-se deste corpo e desta obesidade, tendo em conta a forma próxima como a câmara de Matthew Libatique (diretor de fotografia) enquadra a personagem principal – quase sempre em grande plano – e a forma como a montagem sonora dá destaque a certos ruídos que o ator faz enquanto come. Uma das principais críticas feitas ao filme é a de que aquele corpo grotesco apenas serve o propósito de espantar, ou até “entusiasmar” o espectador, de uma forma que pode ser interpretada como populista. Na sala de cinema, vemos que, enquanto Charlie “engole” asas de frango gordurosas, o espectador, que se delicia com um balde de pipocas cobertas de caramelo, ri, sendo pouco claro se se trata de um riso cómico ou nervoso. Considerações à parte, torna-se óbvio que Darren Aronofsky nos queria chocar com estas imagens, ao mesmo tempo que nos remete para a noção extremamente realista das mesmas.

The Whale, de Darren Aronofsky– © A24, Protozoa Pictures 

Desta forma, pode inferir-se que o lado performático do corpo acaba por marcar um filme que é, por sua vez, uma adaptação da peça de teatro de Samuel D. Hunter e que, por isso, se vê, primeiramente, apoiado nos seus diálogos. O espetáculo do corpo – um espetáculo visual, que alguns parecem ver como fetichista – caminha de mãos dadas com a palavra, neste que é um filme que não faz por esconder o seu lado teatral. Esta realidade faz com que The Whale acabe por perder, dado respirar tanto a texto dramático. Ainda assim, esta afinidade com o teatro faz-nos pensar que talvez o diálogo expositivo e o cenário único – um apartamento desleixado mas, em suma, um pouco genérico – sejam as únicas duas formas capazes de dar resposta à história de vida de Charlie: uma vida que se passa num mesmo lugar e onde nada acontece e onde só nos resta falar sobre aquilo que já aconteceu.

Porém, The Whale é sobre questões muito mais gerais do que apenas a vida e a obesidade desta personagem. É um filme com várias camadas, que nos fala de orientação sexual, religião, literatura, relações familiares, parentalidade e sentimentos empáticos que nutrimos sobre “o outro” à nossa volta. Na última semana de vida de Charlie, este tenta uma reaproximação com a sua filha adolescente, interpretada pela atriz Sadie Sink, num papel que se mantém muito colado àquilo que faz na série pela qual ficou conhecida: Stranger Things. Ao longo do filme, para além desta interação com a sua filha, Charlie interage com os seus alunos através de uma câmara desligada; com um estafeta de pizzas através de uma porta que mantém fechada; com um pássaro que vem comer à sua janela; com a sua ex-mulher alcoólica; com um jovem que pertence à Igreja New Life e que tenta salvá-lo espiritualmente; e com a sua grande amiga e irmã do seu companheiro morto, Liz. Interpretada por Hong Chau, Liz é a grande companhia de Charlie e é também através dela que vivemos algumas das emoções mais fortes deste filme. 

The Whale, de Darren Aronofsky– © A24, Protozoa Pictures 

É no olhar de Brendan Fraser que vemos espelhada a necessidade de uma sociedade mais empática. Charlie é um homem que, independentemente da forma como a sua vida tenha corrido, continua a olhar para o mundo à sua volta com um olhar quase inocente, de alguém que vê beleza naquilo que está a presenciar. Há uma felicidade e empatia inerentes a esta personagem que dá ao filme uma pequena mensagem de esperança e que nos faz pensar se terá Darren Aronofsky amolecido ao longo dos tempos. No final de contas, estas personagens todas querem salvar e ser salvas, e é nas ligações entre elas que está a grande magia deste filme. Aronofsky eleva o filme na sua cena final, através de um contraste direto com a câmara desligada no início do mesmo. Finalmente, vemos um Charlie que deixou de se esconder atrás da câmara e atrás de objetos como o andarilho, que o parecia ajudar a movimentar-se pela casa, um Charlie que caminha para a sua filha e que por isso parece ser “absolvido”, numa espécie de libertação religiosa. O branco substitui o preto. A empatia substitui a falta dela.

Inês Moreira

[Foto em destaque: The Whale, de Darren Aronofsky– © A24, Protozoa Pictures ]

Agarra na Mão, atinge a Glória: cheap thrills do mundo espírita

Quem agarra na Mão da Glória, revestida de gesso, e disser “talk to me”, entra em comunicação com o mundo dos espíritos em purgatório. Se após o primeiro contacto disserem “I let you in”, são possuídos. Se deixarem passar 90 segundos sem quebrar a possessão, o espírito tem carte blanche para usar o seu corpo eternamente. Num pequeno subúrbio, algures na Austrália, um grupo de adolescentes começa a praticar estes rituais como um jogo de festa: não pelo efeito narcótico de algo como os Choking Games dos anos 2000, mas como um auto-posicionamento em perigo consciente. Claro que isto vem com a vantagem acrescida de serem enviados para um inconsciente estado performático que podem filmar (e partilhar). Jackass demoníaco que abona a favor do seu capital social.

A protagonista, Mia (Sophie Wilde), é uma adolescente que perdeu a mãe recentemente. O seu envolvimento no jogo começa como uma procura desesperada por aprovação, mas muito rapidamente se torna numa perversa terapia da sua psique danificada pela morte na família. Estes problemas levam-na a pôr a vida de amigos e familiares em risco.

Um dos pontos altos do filme é a sua captura de um momento específico da adolescência. A linha mais ténue que qualquer cineasta tem de conseguir dominar ao realizar um filme focado nesta faixa etária, é conseguir mostrar o lado constrangedor dos modos de agir e pensar específicos à adolescência, sem o espetador ficar desconfortável face ao filme em si (ao invés das personagens que o habitam).

O filme é bastante gráfico, mas o mais impressionante é a forma como, acima de ser assustador e violento, é triste. Talk to Me atinge, de forma muito genuína, deprimente e comovente, algo que se sobrepõe aos momentos extremos de violência gráfica, montagem frenética e atitudes corrosivas. Assim sucede a atingir um pico de mal-estar emocional, não necessariamente igual ao do medo (mas que com este é constantemente conjugado), presente em filmes como Lake Mungo.Em último lugar, é importante realçar que o filme consegue levar-se a extremos, sem cair num pessimismo ou crueldade niilista, que, mais que ofensiva, é aborrecida. O espetador é mergulhado num mundo perturbador e violento (um grande foco na crueldade infantil que recentemente era vista como démodé, mas agora volta em momentos como a orgia de sangue da alma penada de Riley a ser torturada numa Sodoma similar ao terceiro ato de Society do Brian Yuzna). Mas mesmo assim, nos seus pontos mais agoniantes e aterradores, a sua base acaba sempre por ter as suas vigas fundacionais numa empatia forte e uma paixão grande pelos adolescentes em sarilhos.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Talk to Me, Danny & Michael Philippou © Matthew Thorne]

Mal Viver: a secura das almas num hotel assombrado

O díptico ambicioso de João Canijo foi um dos objectos que mais curiosidade suscitou, à partida para a competição oficial da Berlinale. Mal Viver é, de facto, um filme imponente e violento, difícil de suportar, que nos faz mergulhar na sofreguidão intensíssima desta família. Quando voltamos à tona, falta-nos o ar.

É conhecido o interesse de Canijo pelo trabalho prolongado com os actores. O realizador tem um método muito característico de composição da história e construção das personagens junto das actrizes, que participam activamente no processo de escrita e preparação do filme. A profundidade desse método fá-las viver as cenas com uma energia feroz. 

Mal Viver, João Canijo © Midas Filme

O início de Mal Viver mostra-nos Piedade (Anabela Moreira) deitada junto à piscina com a sua cadela, Alma, ao colo. Na piscina e na companhia de Alma, Piedade encontra o conforto necessário para conseguir suportar o estado depressivo em que se encontra mergulhada. Contudo, o regresso inesperado da sua filha Salomé (Madalena Almeida) vem abalar definitivamente essa condição. Sara (Rita Blanco) é a matriarca da família que tenta gerir o hotel ao mesmo tempo que a tensão familiar. 

O realizador é hábil no jogo do campo, contra-campo e fora-de-campo – transformando a obra num ensaio sobre o acto de enquadrar, de escolher o que se mostra e o que não se mostra. Isso está, obviamente, presente na própria proposta de fazer dois filmes no mesmo intervalo espácio-temporal, mas acompanhando diferentes personagens. É como se, neste caso, houvesse mais do que um sítio em que a câmara pudesse estar, e isso dá origem aos dois pontos de vista – Mal Viver, que segue as donas do hotel; e Viver Mal, que nos mostra os hóspedes desse mesmo hotel.

Não há dúvida que Canijo domina a linguagem do cinema narrativo e que se tornou um mestre do seu cinema. Cada centímetro é trabalhado com minúcia e isso nota-se. Mal Viver é fabulosamente envolvente ao fazer-nos acompanhar de perto o drama familiar daquelas mulheres. Nos encontros e no fora-de-campo, vamos desvendando as histórias e as personagens de Viver Mal. O facto do filme ter sido rodado num hotel durante o período de confinamento possibilitou um controlo total que o torna fechado, claustrofóbico, e onde as personagens sufocam na angústia e no desespero. No entanto, esse controlo teatral também afasta o espectador de uma relação mais emocional com o filme. 

As constantes conversas cruzadas, que já fazem parte do cinema de João Canijo (algo que em Sangue do Meu Sangue resulta muito bem), criam em Mal Viver alguns momentos absurdos, principalmente nas cenas em que as responsáveis do hotel atendem os clientes à mesa, durante o jantar. Na altura de apresentar as suas sugestões do que têm no menu, as empregadas de mesa falam por cima das conversas dos clientes distraídos. Completamente ignoradas por eles, continuam a falar de forma irreflectida para o ar. Esse cruzamento de vozes é embaraçoso e nada acrescenta ao filme.

Mal Viver, João Canijo © Midas Filmes

Sôfrego e tocante, o filme deixa-nos exaustos pela experiência poderosa que nos provoca, mas o resultado não é totalmente convincente. O seu lado demasiado cerimonioso e presumido afasta-nos do lado humano das personagens, deixando-nos com a secura das suas almas perdidas pelo hotel.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Mal Viver, João Canijo © Midas Filmes]

Hello Dankness: uma cultura estilhaçada

As luzes apagam-se e a sala de cinema é submetida ao anúncio de 2017 da Pepsi com a Kendall Jenner, apresentado na sua forma integral. Curta-metragem publicitária que causou controvérsia mundial pela sua atitude leve e superficial face a violência policial e manifestos do movimento Black Lives Matter: dentro deste mundo tudo é resolvido com uma super modelo bilionária a entregar uma lata de Pepsi a um polícia. 

Soda Jerk, o coletivo artístico constituído pelos irmãos Dan e Dominique Angeloro, fez uma sala inteira de críticos na Berlinale ver o Pepsi: Live for Now, numa qualidade gloriosa de 480p. Era impossível entender se a resposta era choque, ofensa, ou admiração, mas a única resposta que emanava era um coro de pequenas e descoordenadas explosões de risos pontuais que se tentavam esconder e abafar.

Hello Dankness, Soda Jerk © Soda Jerk

Hello Dankness é uma obra experimental constituída unicamente de centenas de clips pré-existentes, reutilizados e reapropriados com engenho de forma criar um retrato dos Estados Unidos pós-eleição presidencial de 2016. O filme não se limita a ser um clipshow, que reconstitui um ambiente ou sensação (como se especializam na Everything is Terrible, ou outros adjacentes artistas de vídeo), esta obra tem ambições narrativas. Começa por pegar em filmes focados em paranoia nos subúrbios (desde The Burbs de Joe Dante a Serial Mom, de John Waters) e a contrapô-los em montagem alternada e direta, de forma a criar um só universo onde todas estas personagens se encontram em convívio. 

O material usado não se segrega a um género. Começa como uma manipulação de montagem e imagem, de forma a criar um thriller de conspiração jocoso sobre o país dividido antes, durante e pós-eleição (remetendo constantemente ao conceito tão falado nessa época da “sinistra e ameaçadora silent majority”). Ao longo da sua progressão, entra num hyperdrive aceleracionista: filmes, séries de televisão, anúncios, vídeos virais e memes começam a partilhar o suporte com igualdade de importância (desde o aparecimento de Dasha Nekrasova, uma figura pública de nicho que simboliza perfeitamente esta época, a cortes de campo/contra-campo nos quais é insinuado que o Fantasma da Ópera esteve envolvido no russiagate).

As referências começam a desdobrar-se em caminhos cada vez mais rebuscados, extremos e numerosos. A manipulação do material eventualmente sai da montagem e incorpora técnicas cada vez mais bizarras de manipulação de som e da própria imagem dentro do plano. A velocidade é tão rápida e o conteúdo tão absurdo, que se torna impossível assimilar todos os seus momentos e referências.

Hello Dankness, Soda Jerk © Soda Jerk

O espetador, na sua cadeira, deixa-se levar por uma torrente interminável de referências, sendo obrigado a consumir milhões de estilhaços do vidro da realidade que se partiu. Ele é deixado, com níveis iguais de horror e humor, a tentar (com o auxílio da montagem dos cineastas) colar os pedaços numa só peça que talvez se aproxime de uma verdade pura, há tanto tempo já perdida.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Hello Dankness, Soda Jerk © Soda Jerk]

Tótem, a alquimia humana na corrida contra o tempo

De Lila Avilés, realizadora de La Camarista, filme que representou o México na corrida aos Óscares para Melhor Filme Internacional em 2020, chega-nos Tótem, drama familiar cujo burburinho o coloca no grupo de favoritos a receber Urso de Ouro na 73.ª Berlinale. 

Passado ao longo de um dia preenchido por preparativos de uma festa de aniversário, importante por, provavelmente, vir a ser a última do infermo Tonas (Mateo García Elizondo), Tótem toma como ponto de partida Sol (Naíma Sentíes), sua filha. Num ritual comum entre mãe e filha, em que a bem-sucedida travessia da ponte com a respiração presa equivale a um desejo realizado, é-nos apresentado o panorama: “pedi que o pai não morra“.

Sol é deixada em casa da família do pai, um casarão cheio de vida. Por todo o lado pairam plantas e animais das mais variadas espécies, desde caracóis a papagaios, mas também pinturas e fotografias, estabelecendo-a como uma casa repleta de história. Enquanto as tias Nuri (Monserrat Marañon) e Alejandra (Marisol Gasé) se apressam pela casa em limpezas e cozinhados, Sol ronda a casa em passinhos de lã, observando as diferentes dinâmicas enquanto não lhe é permitida a visita que tanto anseia ao quarto do pai. 

Tótem, de Lila Avilés Sol © Limerencia

Através de um trabalho de câmara intrinsecamente ligado às sensações, habitamos demoradamente nas expressões de Sol, por onde espreitamos o seu mundo interior. Com uma sensibilidade imensa, contraposta pela franqueza infantil da prima mais nova Esther, Sol vai-se soterrando pelos cantos mais íntimos da casa. “Quando é que o mundo vai acabar?” pergunta ao motor de busca do telemóvel do avô. Ainda nos restam milhões de anos, responde-lhe o software. A dúvida existencial é imensa, ainda mais através dos olhos de criança, mas a pergunta não é naïve. Contrapõe-se o fim do mundo ao fim do pai  – um tão longínquo, o outro tão iminente. 

Mesmo com as conversas focadas em Tonas, é no grupo de mulheres que lideram a casa que o filme se debruça. A relação quezilenta entre as irmãs Nuri e Alejandra, que acompanham de perto a obliteração causada pelo cancro do irmão, é simultaneamente carregada de tensão e de carinho constrangido. A relação entre mães e filhos é desenvolvida com delicadeza, num retrato provável da afeição que obriga ao walking on eggshells em volta de temas complicados que, todavia, Sol observa com atenção redobrada.

A cinematografia é quente e abafada, espelhando a casa. Envolta na penumbra da memória, a câmara acompanha a fugidia Sol. A exigência de arejar é sublinhada pelo formato 4:3, que delimita a família numerosa em planos apertados e frenéticos e enfatiza a doença de Tonas numa aproximação aterradora à vulnerabilidade da sua pele nua. Lentamente, o foco é deslocado entre os membros da família, instalando-se enquanto voyeur, um papel que Sol frequentemente encarna no meio do alvoroço.

As curandices e remédios caseiros estão, desde o princípio, cravados em Tótem. Num discorrer que privilegia a espiritualidade acima da religião, Ale contrata uma espírita para livrar a casa de más vibrações. Depois de queimar sálvia e eructar, pronuncia a casa livre de espíritos e extorque três mil pesos à crédula, que de tudo faz para estender o curto tempo do irmão – exceto pagar à enfermeira que o acompanha, a quem deve há duas semanas. Noutro momento, a família junta-se (tirando o pai cético e carrancudo) em círculo, de “corpo aberto” numa terapia quântica, na tentativa de alinhar os chacras para que Tonas consiga participar na festa. Com um suspiro de alívio, constatamos que a superstição resulta. 

Nuri (Montserrat Marañon) e Esther (Saori Gurza) em Tótem, de Lila Avilés Sol © Limerencia

O filme culmina numa comunhão fraternal, onde família e amigos de longa data discursam num tom que aproxima a despedida da celebração. O que Lila Avilés descreve como “atores como seres alquímicos” é elevado. Há uma autenticidade tão simbólica nos corpos e palavras dos modelos que torna impossível não criar uma profunda empatia. Ainda assim, Tótem vence ao não se deixar levar num sentimentalismo banal.

O filme de Lila Avilés é preenchido por símbolos, pelos tótems que o designam. Os animais povoam os cenários: Sol tem um conhecimento enciclopédico sobre eles, homenageado no emocionante quadro – uma espécie de Arca de Noé, onde os favoritos da filha puderam embarcar – que Tonas pinta e lhe oferece. Um pássaro negro, confundível com um corvo, ronda os telhados da casa, como que à espera da morte. 

Há, todavia, tanto que remete à esperança. O gafanhoto que, no Feng Shui, é o emblema da imortalidade, sobe pelo dedo de Tonas. O presente do pai, um bonsai tratado por ele há oito anos, rima com paciência e boaventura. No final, entrelaçam-se no microcosmos de fraternidade tão marcado nesta família que, apesar de todas as contrariedades, faz de tudo para esticar o tempo.

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Sol (Naíma Sentíes) em Tótem, de Lila Avilés © Limerencia]

Resistência é reinventar a vida

No dia em que Steven Spielberg apareceu na passadeira vermelha da Berlinale Palast, para receber o Urso honorário e apresentar ao público do festival Os Fabelman (o clássico autobiográfico que conhecemos no natal passado em Portugal), dois outros gigantes (mas do cinema moderno) deram o ar da sua graça neste festival de cinema. Não poderiam ser mais diferentes e, contudo, tão semelhantes no modo como radicalmente se comprometem com a sua ética e mundividência: são eles Philippe Garrel e James Benning.

Garrel surgiu hoje de manhã na conferência de imprensa acompanhado pelas duas filhas, Esther e Lena, mas sentimos falta de mais alguém, aquele que se chama Louis, justamente. Em Le Grand Chariot, os três descendentes do autor de La Cicatrice Intérieure (1972) compõem o espelho de uma outra família que trabalha para a companhia de teatro de marionetas do patriarca (interpretado por Aurélien Recoing). Tudo vai bem enquanto os vivos fazem companhia uns aos outros, mas a morte aparece e, com ela, a coragem para sonhar com outros destinos para uma vida artística que, até então, teria sido tomada como garantida.

Ao lado de Tótem (Lila Avilés), este é um dos melhores filmes da competição oficial. Visão serena e sedutora sobre as transformações nas vidas destes amigos, a delicadeza de Garrel deve à sua recusa em aceitar que triângulos ou quadrados de amor tenham de ser necessariamente bizarros ou instigadores de telenovela ou tragédia. Há quem fique irremediavelmente sozinho porque, possuído pelo egoísmo ou por um demónio artístico, estragou o amor… Mas, para lá das separações e despedidas, de todos os afetos e vontade de amar, a grande força de cada personagem advém das suas inspiradoras independência e vontade de compreender o outro. Em Le Grand Chariot, a verdadeira resistência é saber como reinventar a vida.

Allensworth, James Benning © cortesia do artista

Na secção Fórum, onde já encontrámos Susana Nobre (Cidade Rabat), James Benning olha – demoradamente (não falamos de um Spielberg) – para aquilo que do passado se presentifica. Em Allensworth, o cineasta e artista visual filmou, durante os 12 meses do ano passado, 12 planos fixos, atravessando as estações, o tempo e as memórias da primeira cidade californiana governada por afroamericanos.
Com uma energia fotográfica, James Benning percorre, metodicamente e com distância, a cidade fantasma, dando-no-la a conhecer a partir dos seus pitorescos edifícios, elementos naturais, sons e cores. O artista permite-se ser lírico quando ouvimos Nina Simone (Blackbird), Huddie Ledbetter (In the Pines) ou uma jovem rapariga que nos lê a poesia de Lucille Clifton. Mas, em Allensworth, vinga um sombrio silêncio.

Flávio Gonçalves

[Foto em destaque: Le Grand Chariot, Philippe Garrel © Rectangle Productions]

As Naturezas Mortas-Vivas de Mammalia

No Q&A pós-projeção, Sebastian Mihăilescu, realizador de Mammalia, discutiu em detalhe o longo e conturbado caminho desde a conceção da ideia original do filme, até à obra final que estreou na Berlinale. Embora seja um filme contemplativo, que assumidamente faz sentir a sua jocosa meditação contemplativa, a sua esquizofrenia conceptual não se consegue esconder.

O filme foca-se na vida de um homem recentemente despedido do seu emprego, que, perante a entrada da sua namorada numa seita pagã feminina, entra em crise face à sua masculinidade.

Mammalia, Sebastian Mihăilescu © microFILM

Mihăilescu mencionou no Q&A a forma como o seu caminho até ao cinema passou primeiro por ser um “pintor falhado”. O talento pinturesco transborda em todos os planos, sendo a sua maior qualidade. Não se trata apenas da fotografia a 16mm, que mistura um ambiente frio com a entrada de amarelos quentes e decadentes, o enquadramento em si é onde a obra brilha mais. Quase todos os planos são longos e estáticos, sendo enquadrados em volta de conceitos individuais que se fazem sentir através da sua duração. 

A estagnação estática da imagem não é o destino final, havendo sempre algo sinistro que começa a invadir o ecrã. Algo vivo, mas em putrefação, imagens paradas que parecem estar cheias de ovas de moscardo, prontas para nascerem e espalharem o seu zumbido monótono e ameaçador pela realidade apresentada. Um filme constituído, não por naturezas mortas, mas por naturezas mortas-vivas: planos mortos à beira de uma ressurreição demoníaca.

O cineasta menciona Buster Keaton como uma das maiores influências, algo visível na maneira como a segunda força que corrói estas imagens, além dos miasmas que o fora-de-campo emana, é o homem. Não necessariamente o protagonista, mas a figura do Homem como género, que deambula pela morbidez do filme sempre a tropeçar estapafurdiamente nas gavinhas do suposto caos feminino ao qual a namorada foi convertida.

Pior que Yorgos Lanthimos, realizador de algumas obras fascinantes, mesmo que acabe por cair muitas vezes num fetichismo auto-satisfeito de um estilo ascético vazio, são os seus imitadores. Desde o sucesso breakthrough d’ A Lagosta, festivais de cinema começaram a acolher uma praga específica de Lanthimos low-cost, que pegam na sua equivalência entre a escrita e atuação deadpan, com subversividade, humor e inteligência, sem conseguir emular o lado único que o torna interessante (ou desenvolver a sua própria visão única). Ao misturar a crise humana e o religioso sinistro com o humor juvenil recorrente, o filme poucas vezes chega a sair do registo de Lanthimos e a aproximar-se de Peter Strickland (um dos realizadores que melhor trabalha o humor e atuação deadpan nos últimos tempos, ao contrapô-los com humor excêntrico, fetichismo kitsch e um amor genuíno ao invés de cinismo).

Mammalia, Sebastian Mihăilescu © microFILM

O maior problema do filme acaba por residir no seu argumento. Mammalia, segundo o que foi dito pelo realizador após o fim do filme, nasceu deste se encontrar numa crise psicológica análoga à do protagonista durante o início do seu desenvolvimento. Ao amadurecer (desenvolvimento que coincidiu com uma troca de um argumento estrito por uma abordagem mais improvisada), mesmo que o problema já não preocupasse tanto o realizador, o tema tratado no filme não foi mudado. Isto leva a um apuramento muito trabalhado, não só do lado técnico, mas também da linguagem do realizador, que, sem perspetiva alguma, é por ser posto em serviço de nada. Não é que o rei vá nu (o rei vai com roupas lindas e extravagantes), ele acaba é por ser uma pessoa muito desinteressante…

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Mammalia, Sebastian Mihăilescu © microFILM]

The Shadowless Tower: A sabedoria da bondade no reflexo das incertezas

Are you a bad guy or are you a good guy?, pergunta a pequena Smiley ao pai, atordoada por um sonho onde este lhe levantava a mão. Não demoramos a constatar que não é mau: entre um amor profundo nutrido pela filha e o aspecto quase infantil que se-lhe toma quando colocado ao lado da irmã mais velha, Gu Wengtong (Xin Baiqing) revela-se simpático e inócuo, mesmo que ausente enquanto pai.

The Shadowless Tower (Bai Ta Zhi Guang), do realizador chinês Zhang Lu, conquista desde o primeiro instante. Firmando-se o tom entre a discussão de sonhos e rituais apressados, vincam-se de imediato as personalidades que tomarão conta do ecrã nas próximas duas horas e meia. No papel de irmã mais velha cáustica, o timing cómico da atriz Li Qinqin brilha, e Wang Hongwei sobressai enquanto seu marido sidekick. Juntos, têm a guarda da sobrinha Smiley, a única personagem ainda incorrupta pelos calos do viver. 

Gu Wengtong, crítico gastronómico, enfrenta uma crise de meia idade. Acompanhamos uma refeição em que o dono de uma tasca típica estabelece a fronteira a partir da qual se pode ser considerado “velho”: gostar-se da comida tradicional que serve no restaurante. Gu, afavelmente abatido, delicia-se com o prato que lhe é servido. Por outro lado, Ouyang Wenhui, fotógrafa excêntrica que acompanha Gu pelos restaurantes sobre os quais escreve, não é apreciadora. Seguindo o lugar-comum que se prevê em obras que retratam esta fase da vida de um homem, o atrito entre os dois é imediato.

The Shadowless Tower, de Zhang Lu © Lu Films

A falta de jogo de cintura de Gu e o atrevimento de Wenhui inscrevem os diálogos num pingue-pongue onde cada tacada de Gu equivale a uma bola fora. Wenhui remata sempre com impulso, fazendo com que o homem tropece entre as palavras, cunhando aquela que virá a ser a sua frase chavão, repetida vezes sem conta daí em diante: “That’s not what I meant”.

Na dualidade entre mulher mordaz e menina que vê tudo com olhos puros de quem observa tudo pela primeira vez, Wenhui balança-se na corda bamba, a um deslize de cair no bordão de manic pixie dream girl. Há, por sorte, um embaraço que se estabelece entre as duas personagens, tornando a relação entre elas menos fantasiosa, circunscrita na esfera de uma vida muito mais caracterizada pela complacência do que por lascívia.

A presença de espelhos abunda, tanto na fotografia como no argumento – Gu é frequentemente confrontado com a sua própria imagem, e passamos a conhecê-lo ao mesmo tempo que ele se descobre a si próprio. Num processo inorgânico, a descoberta interna é explorada na mimese. Não é infrequente ver Gu a imitar, literalmente, os gestos e palavras dos que o rodeiam. Verifica-se a tentativa de parecer adequado ou inato, ou de tirar algum significado dos dramas subtis que se cruzam na sua vida, como a ausência do seu próprio pai, expulso de casa por um mal-entendido há quarenta anos.

Momentos que poderiam facilmente deixar-se imbuir de uma sentimentalidade bacoca são preteridos por aproximações tímidas e desastradas, mediadas por elipses. Os gestos de carinho são contidos, e a oferta para se limpar os óculos torna-se tão afetuosa como um afago. O reencontro com o pai, numa espécie de interrogatório policial, é uma das cenas mais espirituosas do filme; de seguida, o filho convida o pai a dançar ao som do DVD que transmite imagens de uma dança de salão. Balançam num abraço desastrado e não assumido, o nó na garganta do espectador confuso entre o riso e a lágrima. Neste sentido, há sabedoria inerente à cinematografia de Zhang Lu, que entende de intimidade e sabe perfeitamente quando esta deve ser respeitada. Nos momentos mais emocionais, afasta-se a câmara num panorama para a esquerda, atribuindo ao não-visto um significado intacto.

The Shadowless Tower, de Zhang Lu © Lu Films

As referências intraduzíveis não abalam a história, traçando-se um perfil rico da cultura chinesa através de constantes referências a poetas, atrizes e canções. Zhang Lu pinta uma Pequim melancólica onde, no meio de todas as interações, resiste o templo budista White Pagoda, cuja arquitetura singular torna difícil observar a sua sombra. Reza a lenda que esta só pode ser vista no Tibet, a casa espiritual do templo, e esta dualidade ultrapassa o mito, podendo imputar-se a Gu. Preso entre Pequim e a cidade do pai, onde deixa a sua sombra; dividido igualmente entre o passado e o futuro, o justo e o injusto, o amor e a tolice. 

The Shadowless Tower surge como um belo retrato das teias que ligam o ensemble de personagens a Gu em diferentes formas de amor, emoldurando o reflexo e renovando a crença na bondade. No final, o plano rima com a prosa de Lu Xun, um dos poetas que o filme benevolamente nos dá a conhecer: “I let out a yawn, light a cigarette, and blow out a puff of smoke. Facing the lamp, I silently pay tribute to these exquisite emerald heroes.”

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: The Shadowless Tower, de Zhang Lu © Lu Films]