Sexualidade em Les Îles e Hideous, de Yann Gonzalez: uma crítica comparativa

Les Îles, de Yann Gonzalez, é uma reinterpretação erótica de La Ronde, de Arthur Schnitzler. A estrutura desta peça de teatro consiste no conhecimento de um vasto elenco de personagens através dos encontros sexuais em que cada uma se envolve: a+b, b depois encontra c, c encontra d, etc… No fim da peça, a última personagem vai de encontro à primeira, completando o movimento circular do título. Na curta metragem de Gonzalez, o erotismo é elevado ao máximo e a narrativa ao mínimo. Enquanto na peça original a estrutura e temática é orientada principalmente a um comentário social (personagens de diversos estratos sociais que se encontram devido ao desejo sexual), no filme em causa a estrutura é utilizada para abstrata e eroticamente explorar sexualidade e fantasia de forma livre.

Na primeira cena, um casal heterossexual faz sexo até ser interrompido por um “monstro” – homem de latex vermelho (caracterização assumidamente artificial) que estes prontamente aceitam. Há uma beleza profunda no reconhecimento e paixão por esta artificialidade por parte do cineasta, como pode ser visto na imagem em baixo: O orifício da boca não mexe, apenas se vê a língua a aparecer por detrás da máscara rígida. 

Enquanto a peça original é um ácido comentário social, esta curta metragem quase que nega intelectualização fora do seu formalismo, deixando as personagens moverem-se livremente (quase) sem traços narrativos, mesmo que no fim o círculo se complete. A obra parece uma filtração de fantasias e desejo sexual através de fetiches cinematográficos, que, embora não sexuais, parecem igualmente matéria do subconsciente. Gonzalez doma os desejos ctónicos através do seu consciente trabalhar da forma cinematográfica. Esta rejeição de narrativa ou de explicação dos símbolos (ou sequer de tentar atribuir ou explicar qualquer significação óbvia a estes) aproxima o filme a uma tactilidade do desejo, não podendo funcionar de outra forma.

Les Îles, Yann Gonzalez © ECCE Films

Na curta de 2022 do mesmo realizador, Hideous, parece que todos os méritos de Les Îles são invertidos. Em primeiro lugar, é importante mencionar que a obra é de certa forma um “visual álbum”, ilustrando e criando um acompanhamento visual e sonoro para três músicas em sucessão de um álbum de Oliver Sim. No entanto, o filme não se limita a ser um produto publicitário: cria uma narrativa a partir das três músicas e é muito explicitamente “Um Filme de Yann Gonzalez”, a sua tentativa de fazer uma curta-metragem musical. É apresentado como tal e mesmo em festivais foi mostrado como uma obra como qualquer outra do realizador (mesmo que colaborativa). Desta forma, não deve então ser julgado por parâmetros especiais.

Que fique claro: para transmitir a imaterialidade fugaz do desejo, um filme não tem de ser não-narrativo ou abstrato. No entanto, parece que Gonzalez tem dificuldade em conjugar os dois aspetos. O seu capricho pela forma cria uma sucessão fluída de imagens ao ser aplicada ao sub/inconsciente, quando existe uma tentativa de o estruturar, grande parte da sua força é perdida. A primeira obra mencionada vai além da negação de narrativa, há uma negação de mensagem: pura fantasia sensorial. Ao conjugar letras musicais muito explícitas com uma narrativa muito direta e gritante através das imagens e sons que escolhe, há uma obviedade no gesto que causa aversão.

As referências queer usadas são todas maravilhosas, mas para que serve uma boa variedade de referências se não são tratadas com qualquer profundidade ou interesse único? Para mostrar o quão interessante o cineasta é pessoalmente? Em Les Îles a verbalização do subterrâneo é feita pelo movimento fluído de pessoas e identidades, com poucas palavras, apenas o toque. A euforia é transcendental e não verbal. Ao conscientemente filtrar esta euforia não material através de referências, em junção com o quão literais as letras são, o filme pouco tem valor para quem não é já fã ferrenho das músicas.

Les Îles, Yann Gonzalez © ECCE Films

Em último lugar, é importante discutir a polarização da sexualidade nos dois filmes. Enquanto no primeiro esta é definida pelo ato sexual e as poucas referências (exemplo: monstro latex) aparecem como partes de um universo erótico, aqui a sexualidade é transmitida quase só pelas suas referências culturais. Claro que homossexualidade tem uma cultura que ultrapassa o sexo e até o sexual (como David M. Halperin explora extensivamente no seu livro How To Be Gay), mas se a sexualidade é reduzida apenas à cultura estética que a partir dela é construída (principalmente num filme que pretende tratar a experiência universal da homossexualidade), a expressão da mesma acaba por ser pobre. 

A melhor cena do filme é o massacre do monstro, pois aproxima-se de uma certa abstração, mas mesmo assim esta é interessante pelas cativantes tendências estéticas do realizador, que existindo só por si em vácuo têm pouco interesse. Só há um grande (e curtíssimo) momento sexual marcante, uma alusão a fisting, mas devido à sua abstração e ao filme em que se insere, parece pouco mais que uma provocação fraca.

Hideous é dolorosamente óbvio, e isso é o pior que se pode dizer de um filme que está a tentar ser tão único.

Vasco Muralha

Karen e Alice: Como o Cinema aproxima/distância a marioneta da Uncanny Valley

Quando estamos num museu de figuras de cera, não é apenas a célebre e infame câmara dos horrores tão discutida que incita em nós sentimentos negativos. Pelos longos corredores nunca nos sentimos seguros com os olhares daquelas figuras miméticas em cima de nós: nem humanas, nem objetos. Várias razões verificam-no (sentimo-nos observados, temos medo que ganhem vida, etc…), mas independente destas, é uma verdade universal. Esta história não acaba com as figuras de cera, isto é observável com qualquer objeto ou coisa que se tenta aproximar duma aparência humana através da mimese. Foram mencionadas figuras de cera, mas podiam também ter sido certos tipos de robôs, esculturas, bonecos e o que é o foco deste ensaio: marionetes, fantoches e outros objetos de espetáculo.

Um termo é crucial: Uncanny. Normalmente é traduzido para “estranho”, mas na realidade é uma palavra com um significado mais específico, tendo um contexto histórico, psicológico, social e cultural muito preciso. O termo, de forma mais concreta, está ligado, não a algo simplesmente misterioso, mas à experiência psicológica de percecionar algo estranhamente familiar. O termo é usado para ilustrar o sentimento ou processo psicológico do ser humano quando se depara com algo que se encontra delicadamente equilibrado na linha ténue entre completamente alienígena e estranhamente demasiado familiar. Uncanny foi pela primeira vez utilizado por Ernst Jentsch num ensaio chamado Das Unheimliche. Neste ensaio Jentsch foca-se no conto Der Sandmann de E. T. A. Hoffman, famoso pela sua personagem Olympia: uma boneca exatamente igual a um ser humano (que mais tarde acaba por ganhar vida). Já neste texto, o uncanny começa a ser ligado a figuras como bonecas e marionetas, objetos miméticos de algo vivo (aqui também já ligado a medos racionalizados, como o de “ganharem vida”).

A doll which closes and opens its eyes by itself, or a small automatic toy, will cause no notable sensation of this kind, while on the other hand, for example, the life-size machines that perform complicated tasks, blow trumpets, dance and so forth, very easily give one a feeling of unease. (Jentsch, 1906)

Outro autor, e provavelmente o mais célebre, a trabalhar o uncanny foi Sigmund Freud no seu ensaio homónimo. Freud vai desenvolver esta definição como encontrar “o estranho no aparentemente normal”, algo que não só reforça entendimento prévio do termo, como lhe acrescenta novas conotações.

I will say at once that both courses lead to the same result: the “uncanny” is that class of the terrifying which leads back to something long known to us, once very familiar. (Freud, 1919)

Na segunda metade do século XX, este termo evolui para a sua fase final célebre. Masahiro Mori, um pioneiro no campo da robótica, cunha, na década de 1970, a expressão “uncanny valley” (nesta altura ainda só aplicado ao seu campo de trabalho). Este conceito tem referência a um vale físico numa representação gráfica da teoria de que robôs com base na figura humana vão ser cada vez mais aceites pelo ser humano, quanto mais corretamente se assemelharem. Todavia, o que Mori mostra com a sua representação gráfica é que esta não é uma curva em subida permanente, ou seja, existe um “vale”, ou uma descida na aceitação em relação à semelhança. Este vale representa a descida drástica de aceitação quando estas máquinas se começam a assemelhar de forma demasiado apurada e realista ao seu objeto (sem serem ainda absolutamente perfeitas). Isto incita no ser humano um sentimento muito forte de uncanny, uma certa inquietante estranheza. O termo, como pode ser visto, é muito específico a uma certa situação, mas o termo de uncanny valley em uso neste ensaio está mais ligado à sua apropriação mais expansiva que se encontra na nossa cultura geral. Este conceito foi estabelecido nos anos 1970 e até hoje verifica-se uma lenta entrada do termo no zeitgeist cultural em que nos inserimos. Isto deu-se em dois passos. Inicialmente o tema foi expandido para se referir a qualquer coisa que se assemelha a um humano e se encontre nesse ponto específico do vale hipotético; mais tarde, o termo começou a ser usado para se referir a qualquer coisa de característica mimética que se aproxima demasiado do objeto da sua mimese (sem esta ser perfeita). Para exemplificar melhor esta segunda evolução, seria interessante estudar a reação à tendência viral que se popularizou na internet, em 2020, da criação de bolos miméticos hiper-realistas. Pode parecer estranho, no entanto, por alguma razão, nesse ano, vídeos de bolos que imitam muito realisticamente objetos ou coisas (sapatos, garrafas, latas e até bebés…) a serem cortados, revelando que não eram a coisa que imitavam, mas sim um bolo, tornaram-se extremamente populares (principalmente no Instagram). Como estes bolos eram feitos não interessa muito para esta discussão, o que é fascinante é a forma como as pessoas reagiram. Em reação a esta tendência ganhar uma popularidade absurda, desenvolveu-se uma piada que se espalhou mundialmente, maioritariamente através do Twitter. Esta piada tinha diversas variações, sendo a sua base um medo jocoso de um futuro distópico ou cenário aterrorizante onde nada é o que parece: tudo é bolo (num momento de abraço a alguém querido, essa pessoa desfaz-se: a sua pele em pasta de açúcar, as suas entranhas em recheio de chocolate…). Pode parecer completamente ridículo, não obstante, mostra perfeitamente como a experiência psicológica do uncanny valley ultrapassa a robótica e até a mimese humana, sendo uma experiência universal que se liga a qualquer objeto camaleónico (e simultaneamente mostra também as justificações do medo do uncanny: algo não é o que parece, etc). 

Antes de abordar o tópico principal, uma rápida ligação tem ainda de ser feita: a das marionetas com o uncanny. As marionetas (neste caso referindo-se a qualquer objeto usado num espetáculo ao qual seja dado vida e movimento) podem, então, ser vistas provavelmente como o exemplo perfeito do uncanny, pois não só têm quase sempre uma característica de imitação (seja ela de um ser humano ou não), como também lhes é “dada vida” através de movimentos controlados (aproximando-se dos robôs aos quais Mori se referia). As marionetas são normalmente utilizadas em artes do espetáculo, mas este texto apenas se focará na sua relação intermedial com o cinema: num filme, a que nível e de que modo é que a técnica e as convenções próprias deste meio artístico afetam e interagem com estes objetos (principalmente no que toca à sua relação com o uncanny e a uncanny valley). Esta exploração será feita a partir do contraste entre dois filmes muito diferentes: Neco z Alenky de Jan Švankmajer (traduzido como Alice, sendo esse o nome pelo qual irá ser referido) e Superstar: The Karen Carpenter Story de Todd Haynes (que será tratado apenas como Superstar no resto do ensaio, por uma questão de brevidade e melhor compreensão).

Jan Švankmajer é um realizador checo surrealista, mundialmente famoso nos círculos de cinema de animação e arthouse devido às suas numerosas e inovadoras curtas e às suas menos numerosas, igualmente fantásticas (no verdadeiro sentido da palavra), longas-metragens. Švankmajer é um surrealista na verdadeira definição do termo enquanto movimento artístico, e não no sentido lato da palavra: um artista que explora uma realidade muito ligada ao inconsciente e que se baseia numa realidade que não é nem a nossa realidade absoluta, nem a realidade do sonho, uma “surrealidade” (como dizia o “fundador” do movimento surrealista, André Breton). Švankmajer é conhecido no seu cinema, não só pela sua vertente surrealista, mas também devido ao uso recorrente de duas artes diferentes que incorporava sempre na sua obra: o teatro de marionetas e o stop-motion (ou animação de volumes). Enquanto aqui são mencionadas marionetas, estas não se limitam à definição de dicionário, algo restritiva, de “Boneco manipulável, geralmente através de cordéis e engonços ou através da mão introduzida numa espécie de luva que constitui o corpo do boneco”. É proposta uma expansão que Švankmajer tentava atingir. No seu cinema, quando se fala de marionetas, o referente de “boneco manipulável controlado por um titereiro” está sempre em questão, no entanto, este não se restringe às limitações mecânicas desta definição. Pode ser qualquer objeto (figurativo) que é manipulado pelo realizador. Muitas vezes é já introduzida a animação de volumes, permitindo uma manipulação destas marionetas sem qualquer visível elemento mecânico da mesma (com raras exceções como o Chapeleiro Louco de Alice a ser abordado). Em segundo lugar, para continuar a falar da animação de volumes, esta não se restringe só ao controlo das marionetas, é também uma técnica utilizada para controlar pontualmente alguns objetos aos quais não são dados “vida” (como às marionetas), e também de forma estilística para criar um novo ritmo de movimento (um movimento quebrado, fluido que habita praticamente todos os seus filmes). Alice, tal como o nome indica, é um filme baseado no seminal livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Este livro trata a história de uma rapariga nova que se depara, depois de seguir um  coelho por um buraco no chão, com um mundo fantástico onde a lógica humana não se aplica. Esta obra está inserida dentro do género do non-sense, sendo as características mais marcantes da mesa a subversão da lógica comum e a estranheza não justificada (e não justificável). Face a estas características, pode-se facilmente classificar esta obra como proto-surrealista (tendo sido escrita praticamente um século antes do surgimento do movimento artístico). Sabendo isto, é de fácil compreensão a escolha de Švankmajer na obra a adaptar para o cinema. Mas existe outro aspeto que vai ao encontro direto com o tema aqui a ser explorado. No livro original, embora se trate do tema de non-sense, nem tudo é completamente abstrato. O que Lewis Carroll pega em referentes do mundo em que vivemos (maioritariamente ligados à infância) e subverte-os de forma a provocar uma assoberbante estranheza. Será uma inquietante estranheza? Não. Carroll podia muito facilmente ter deixado a sua obra cair no reino do uncanny.  Tal não acontece. O essencial a entender é a forma em relação à dupla face do conteúdo. O conteúdo estranho, mesmo dentro da sua estranheza, tem uma certa neutralidade. O conteúdo é a matéria prima a ser trabalhada,  não causa ela em si mesma este efeito no espetador. O que acontece, então, é que a escrita vai ser o elemento que empurra ou afasta este conteúdo estranho do uncanny. A forma influencia o conteúdo. Não só verificamos isto na obra de Carroll, mas também no filme de Švankmajer. A técnica e forma do cinema e da arte das marionetas é que vai influenciar o conteúdo, neste caso empurrando completamente a história até cair no fundo do abismo da uncanny valley. Sabe-se de imediato que Švankmajer não está interessado na história de Lewis Carroll como um simples exemplo de maravilha infantil:

A atração temática de Švankmajer pela infância portanto representa, não uma ânsia por uma prévia inocência, mas a articulação de um perdido conjunto de hábitos, princípios de pensamento e lógicas. De facto, “inocência”, segundo Michael Richardson, “não existe [nos seus filmes],” porque “os terrores [do amadurecimento] nunca são superados.” O perigo real vem, não do enfrentar esses terrores, mas em fingir que já não existem ou que talvez nunca tenham existido (Keith Leslie Johnson, 2017)*

Ao analisar o Uncanny deste filme, a primeira coisa que chama à atenção são as marionetas. As marionetas dividem-se em quatro categorias que devem ser analisadas individualmente. A primeira é a categoria dos objetos apropriados. Švankmajer não se limita apenas a construir as suas marionetas de forma tradicional, optando por remover objectos (normalmente utilitários) do seu propósito de existência, criando uma mistura de objetos que se assemelha à personagem em causa e à qual depois lhes dá uma nova vida. Švankmajer, no seu famoso decálogo onde dita os seus princípios para cinema de animação, afirma: 

Animation isn’t about making inanimate objects move, it is about bringing them to life. Before you bring an object to life, try to understand it first. Not its utilitarian function, but its inner life. (Švankmajer, 1999)

Este “mandamento” demonstra a forma como Švankmajer perceciona estes objetos que usa. Ele não os usa para contar as suas histórias, ele conta as histórias desses objetos (o que é ainda mais fascinante se se pensar na forma como o objeto está a representar um referente diferente: o objeto conta uma história exterior a ele, mas que só ele pode contar). Mas como é que isto promove o ambiente uncanny? Ao criar estas marionetas dá-se uma cisão dupla do referente. Pode-se olhar para a marioneta de duas formas, mas nenhuma delas vai ser reconfortante. Em primeiro lugar, a marioneta como o que ela está a tentar representar, o que incita um sentimento bizarro devido ao reconhecimento pelo espetador da representação, em contraste ao reconhecimento da sua estranheza formal (construída por outros objetos). Em segundo lugar, a marioneta como um conjunto dos objetos que a constituem, também bizarro devido à forma como, mesmo sendo os objetos coisas reconhecíveis do mundo humano, a sua mistura e a forma como são conjugados vão encaminhá-los da zona do objeto mundano reconhecível para o da representação de algo exterior e fantasioso. Isto pode ser visto, por exemplo, na personagem da Lagarta, uma personagem amigável (embora misteriosa) e reconhecível do livro de Carroll, aqui representada por uma meia com uma dentadura e dois olhos de vidro. Estes objetos não são só causadores do uncanny devido à sua aproximação do não-humano ao humano, mas também por serem símbolos da morte, não estando só presentes neste tipo de marionetas.

Isto acabaria na segunda categoria, marionetas da morte, uma categoria de marionetas muito presente na obra de Švankmajer, que se destaca principalmente neste filme. O que se entende com marionetas da morte, são marionetas feitas a partir de animais mortos, sejam estas taxidermias ou apenas esqueletos modificados. 

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

O interessante nesta categoria de marioneta é a subversão completa do uncanny. Em vez de ser uma aparência viva de algo morto, é um processo com mais etapas. Na história já mencionada de E.T.A. Hoffman, Olympia, a boneca, é reconhecida como um dos grandes elementos do fenómeno no conto, devido a ser uma figura estática sem vida que é animada (sendo o animismo um dos grandes causadores do uncanny, segundo Freud). Nestas marionetas, o processo passa por três passos. Estes crânios, ossos e taxidermias são reais: já tiveram vida, sendo essa a primeira etapa. Depois disso, estes animais foram mortos e transformados em taxidermias, a segunda etapa deste processo e também  o primeiro passo para alcançar o uncanny: taxidermias em si, mesmo as que não são marionetas, são normalmente acusadas de incitar este fenómeno no observador (seja isto pela ideia de que algo está morto enquanto devia estar vivo, então existindo a possibilidade de ganhar vida a qualquer momento, seja pela sua atitude fantasmagórica perante a  morte). A terceira etapa é a da animação das marionetas, a criação derradeira do uncanny nestes objetos: algo que já foi vivo, devendo estar morto, e que mesmo assim vive, confirmando o medo (este movimento é natural, mas não devia ser nestas circunstâncias: mais normal que o normal). Outro grande elemento nestas marionetas é o de muitas delas estarem ligadas ao conceito de amputação, sendo por exemplo, só crânios, dando a ideia de um animismo mórbido, macabro e impossível. 

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

O terceiro e o quarto tipo de marionetas são menos comuns: as marionetas clássicas e a boneca. A marioneta clássica não se encontra muito presente no filme, mas o momento em que aparece é dos mais marcantes. O principal exemplo desta categoria de marioneta é o do chapeleiro louco: uma marioneta no sentido mais clássico da palavra, controlada por fios visíveis que sobem até céus desconhecidos (seria importante ler The Clown Puppet de Thomas Ligotti, um escritor eternamente fascinado com o horror das marionetas e o animismo desse vazio). 

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

O quarto tipo de marioneta toma a forma de Alice quando diminui de tamanho. Ambas estas marionetas funcionam no nível básico do uncanny já explorado anteriormente, o qual uma boneca ou marioneta tradicional apresentam.  A grande diferença entre elas é o facto de uma ser animada e a outra não (o que vai dar de encontro ao próximo tópico onde isto será explorado de forma mais desenvolvida: a animação).

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

A animação é das partes mais importantes de qualquer filme do Švankmajer. Durante muito tempo, o cineasta fez curtas-metragens que a ela se restringiam, mas a mistura entre live-action com este meio começou a ser mais explorada pelo autor nas suas longas-metragens. As últimas têm sempre um nível variante de live-action (algumas até tomando o ator humano como papel principal), contudo, contêm sempre, sem exceção, o uso fulcral da animação. Esta é utilizada em duas grandes vertentes: a animação de marionetas e a “hiper-animação”.

A animação de marionetas já foi de certa forma explorada em parágrafos anteriores, mas não o suficiente para chegar ao seu núcleo. Esta expressão artística é dos elementos mais importantes e responsáveis pelo ambiente uncanny do filme, podendo até ser estudada em separação da marioneta. O referente que dela existe é o de algo que tem um titereiro, alguém que a controla. O que a animação neste caso efetua é retirar “as cordas” ao objeto, ou seja, o elemento que permite o espetador criar uma ligação entre ele e o seu titereiro. A marioneta já é considerada um dos grandes exemplos do uncanny, devido à semelhança ao seu referente e ao animismo que implica. Todavia o titereiro e as suas cordas funcionam como um cobertor reconfortante que garante que esta não passa de um objeto. Švankmajer aumenta o desconforto ao retirar este cobertor de segurança, deixando o espetador a sós com o uncanny.  O cineasta escolhe então estrategicamente também mostrar os fios de uma marioneta: a do chapeleiro louco. O seu artifício fica em completa evidência, ou seja, em vez de ser só um objeto que é suposto tomar o lugar de outra coisa, é uma marioneta. O espetador reconhece a marioneta, como o que ela representa e agora também como marioneta em si. Vê que está a ser controlada, mas não sabe pelo quê. Isto amplifica o horroroso mistério, mas agora para outro campo: o titereiro invisível. 

O outro tipo de animação usada é a “hiper-animação”. Este termo é aqui usado em referência à animação do real, ou seja, das filmagens live action. Esta divide-se em duas grandes categorias, a do possível e a do impossível. A do impossível, contrariamente ao que o nome diz, é a mais “normal”. Esta designação refere-se a quando Švankmajer anima objetos ou pessoas (não marionetas) de forma a conseguirem realizar ações que não conseguiriam no mundo real (tomemos como exemplo a transformação de Alice na boneca, sendo este momento já um crossover entre a hiper-animação e a animação de marionetas, ou até o momento em que a Alice entra dentro da gaveta).

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

Embora isto seja bizarro, obriga-nos a aceitar uma realidade alienígena à nossa. A hiper-animação do possível é mais bizarra. O realizador pega em ações de pessoas ou objetos que poderiam ser simplesmente filmadas e quebra-as em fotogramas, animando-as em vez de as filmar “normalmente”. Esta técnica encontra-se muito presente nos filmes deste realizador, sendo o exemplo mais notório provavelmente o da curta-metragem Food. O efeito que ela tem no espetador é a de este estar a ver uma ação normal na qual algo está ligeiramente errado: o espetador perceciona o movimento, mas este está diferente o suficiente do seu referente real para causar um sentimento uncanny. O oposto disto seria, no cinema digital, a utilização de 60 frames por segundo ou outro tipo de FPS elevado: enquanto neste filme a estranheza vem do movimento ter “frames a menos”, aproximando-se do real sem chegar lá, nestes exemplos do cinema digital a estranheza vem de um sentimento de a imagem ser “mais real que o real”, aproximando-se demasiado da nossa perceção do movimento fora do cinema (algo à qual não estamos habituados).

Seria impossível dar como terminada uma análise de Alice sem mencionar a sua realização. A realização de Švankmajer é interessante devido à sua forma de aproximar o conteúdo da estranheza e do uncanny. Este efeito é alcançado através de uma linguagem maioritariamente clássica e linear no que toca à realização e apresentação da narrativa, ocasionalmente quebrada por chamadas de atenção à sua presença. O que esta linguagem atinge é o embalar do espetador numa consciência narrativa no qual se sente imerso (mesmo com o seu bizarro conteúdo) até ser completamente quebrado por momentos muito artificiais e pouco naturais, como os planos de pormenor da boca de Alice.

Em contraste, é possível concluir este estudo com uma análise do filme Superstar: The Karen Carpenter Story, filme realizado por Todd Haynes, em 1988, que conta a história de vida de Karen Carpenter (a célebre vocalista da banda The Carpenters), focando-se principalmente na luta com o seu distúrbio alimentar (anorexia nervosa). O que esta obra prova é que a técnica cinematográfica, embora seja normalmente usada para exacerbar o sentimento de uncanny causado pelas marionetas, pode também servir para o amenizar.

Neste caso, encontram-se em jogo vários elementos que contribuem para este efeito. Um dos principais é o seu contexto. Este filme usa bonecas e bonecos barbie que modifica e manipula.

Superstar: The Karen Carpenter Story, Todd Haynes ©

Estes objetos, tirados de contexto, muitas vezes seriam ligados ao sentimento de uncanny (brinquedos como bonecas são elementos recorrentes no cinema de terror), mas o que Todd Haynes faz é explorar meta textualmente o contexto sociocultural em que se inserem. Acima de tudo, Haynes quer criar uma identificação com estes bonecos, ou seja, quer estabelecer pathos:

Bem, a ideia de fazer um filme com bonecas na verdade veio antes de qualquer outra coisa. Eu vi um pequeno trailer promocional a preto e branco na televisão – um excerto vintage de TV dos anos 50, que introduzia a Barbie ao público Americano. E tinha uma pequena cena interior em miniatura com a boneca sentada pela sala de estar, e depois a barbie entrava e mostrava o seu novo vestido à Midge e também era intercalado com cenas live action- uma rapariga jovem a abrir a caixa de correio, filmada de dentro da caixa de correio, a receber o seu correio do clube de fãs da Barbie. E eu fiquei muito intrigado com a ideia de fazer uma narrativa bastante direta a beber de formas populares pré-existentes, mas simplesmente substituindo atores reais com objetos inanimados, com bonecos. E sendo muito cuidadoso e detalhado de forma a provocar o mesmo tipo de identificação e investimento na narrativa como um filme real conseguiria. (Haynes, 1989)**

Estes bonecos estão ligados à nossa infância, reconhecemo-los por os termos usado como brinquedos, tendo nós sido os seus manipuladores (ou os titereiros). A primeira escolha importante que Haynes faz é a de não usar animação stop motion, mas sim manipular os objetos como marionetes clássicas. Mesmo tendo o titereiro fora de campo, isto aproxima os objetos à nossa realidade, não de uma forma estranha, mas de uma forma familiar que nos permite estabelecer com eles uma ligação emocional (a experiência de ver o filme é semelhante à de vermos alguém a brincar com uma casa de bonecas, criando narrativas das quais são o seu “Deus”). Outro relevante aspecto do contexto sociocultural é a iconografia da Barbie em si. Esta é uma boneca ligada muitas vezes a estereótipos de “perfeição” que a sociedade impunha no papel da mulher (mesmo que a marca se tenha afastado disso ao longo dos anos, na época em que a história se passa esta era a sua conotação). Por esta razão, faz todo o sentido usar estas bonecas para contar uma história sobre distúrbios alimentares, criando imediatamente uma ligação de forte de pathos do espectador com os objetos, reconhecendo a sua conotação e ligando-a à história real que está a ser recontada.

O outro aspecto a mencionar é o da realização. Todd Haynes é um realizador intimamente ligado ao cinema clássico norte-americano, principalmente ao género do melodrama, sendo quase todos os seus filmes um comentário ou apropriação da linguagem deste género para uma sensibilidade moderna/contemporânea. O melodrama é o género mais intimamente ligado aos sentimentos, sendo a sua base as emoções fortes (no que mostram e no que incitam no espectador). O que Todd Haynes tenta atingir com esta atualização contemporânea desta linguagem é conseguir incitar nos espectadores sentimentos fortes, um grande pathos e um grande nível de identificação com a narrativa, de forma a que o espetador fique completamente imerso (sem nunca deixar cair o filme numa simples revisão histórica do melodrama, misturando linguagem contemporânea que retira o espetador também do referente absoluto desta linguagem clássica).

Mesmo face a um único objeto ou conteúdo (marionetas), o cinema consegue completamente mudar o efeito que este tem no espectador. A câmara ajuda o conteúdo a subir o vale do uncanny, ou empurra-o para a sua falésia, mas nunca é inocente. O cinema de marionetas nunca será igual ao teatro em que se baseia.

Vasco Muralha

Bibliografia

-Bell, John. Puppets, Masks and Performing Objects. Cambridge: The MIT Press 2001

-Bingham, Adam. Directory of World Cinema East Europe. Bristol: Intellect Books 2011.

-Freud, Sigmund. The Uncanny, E-book: Penguin Books Ltd 2003

-Jentsch, Ernst. Zur Psychologie des Unheimlichen: 1906

-Johnson, Keith Leslie. Contemporary Film Directors Jan Švankmajer. Illinois: University of Illinois Press 2017

-Leyda, Julia. Todd Haynes Interviews. Mississippi: The University Press of Mississippi 2014

– Švankmajer, Jan. “Decalogue” In Vertigo, Volume 3, Issue 1. London: Closeup Film Centre 2006

-White, Rob. Contemporary Film Directors Todd Haynes. Illinois: University of Illinois Press 2013

O Raio Ofuscante da Beleza Artificial: Shin Ultraman

Avatar 2: The Way of Water foi um sismo cultural. Qualquer espectador que se tenha sentado durante as 3 horas da sua duração em sala e que se tenha permitido ver o filme nas regras que este propõe, que tenha deixado aberto em si um intervalo livre para a possibilidade de arrebatamento, consegue corroborar este facto. Um filme que não existe. Filmado num espaço artificial com atores não reais. Mas quem se sentou na sala 4D, sentindo os borrifos de água na cara e os solavancos das cadeiras, sabe isto. O cerne do interesse de Avatar 2 é simples, mas elementar: a ligação entre artifício e realidade. Neste caso nem seria correto dizer que James Cameron está a tentar entender qual o limite extremo a que o artifício pode ser esticado de forma a ainda conter credibilidade imersiva: o que realmente é impressionante em Avatar 2 é que este está a usar o extremo do artifício, esticando-o bem para além do limiar da realidade, de forma a perfurar um cerne de verdades e narrativas emocionais eternas.

Shin Ultraman, realizado por Shinji Higuchi e escrito por Hideaki Anno (realizador do prévio Shin Godzilla e criador da obra-prima Neon Genesis Evangelion), chega agora a Portugal com um ano de atraso. É o segundo filme na trilogia Shin, reboots liderados por Anno focados em antigas propriedades de kaiju ou tokusatsu (sendo o anterior Shin Godzilla e o seguinte Shin Kamen Rider). O cerne deste filme é semelhante ao de Avatar 2, porém diverge na sua abordagem em relação à artificialidade. Enquanto Avatar 2 tenta ativar a crença do espectador ao criar um universo de extrema artificialidade que mesmo assim é percecionado como real, Shin Ultraman faz o oposto: estabelece uma artificialidade tão extrema, tão não-credível e mesmo assim desafia o espectador a conseguir estabelecer uma ligação com os seus raios laser de VERDADE ofuscante.

Shin Ultraman, Shinji Higuchi ©  Toho Co., Ltd.

Higuchi aniquila qualquer mísera pepita de verossimilidade ainda existente no seu universo (algo já escasso devido à realização frenética e desconcertante em que o filme opera) com Ultraman a despenhar dos céus. Propositadamente cria uma artificialidade que é instintivamente alienante. O uso de efeitos em complô com a narrativa e realização, cria uma experiência genuinamente desconcertante. A artificialidade não é um erro (ou um acidente), até sendo utilizados os efeitos de forma a que as criaturas e heróis não pareçam o que são, mas sim pessoas a usar fatos e a representar o que são no filme (algo que não é real na narrativa, mas que vai de encontro ao referente metatextual das séries e filmes originais).

O filme, através de uma trama extremamente nietzscheana (no meio deste filme de super-heróis e monstros, as personagens começam praticamente a citar a sua obra ipsis verbis), é injetado com vitalidade incandescente. Existe uma palpável admiração pela ambição necessária para escapar a um uno primordial sem seguir falsos ídolos, que consegue mesmo assim ir de encontro a ideais de comunhão, empatia e solidariedade. Nietzsche acreditava que a filosofia tinha de aprender a dançar. O cinema também! Deste baile de mensagem pop-Nietzsche (algo em que Hideaki Anno se especializa desde Neon Genesis Evangelion) com artifício extremo, surge um filho, fruto de acasalamento divino: um recém-nascido (ou de novo nascido – Shin), Ultraman, um verdadeiro ícone da realidade emocional que destrói todos os falsos ídolos da razão lógica.

Vasco Muralha

A Entropia Estrutural de Enys Men

Enys Men, filmado em película de 16mm durante o recente confinamento, num curto intervalo de 21 dias, é o filme mais recente de Mark Jenkin. Se a obra deste cineasta oriundo da Cornualha é altamente caracterizada por uma grande prioridade dada à forma, então este filme de terror formalista é o pico das suas ambições.

Foi comercializado como um filme de folk horror, mas os seus pretextos vão além deste marcador de género. A influência é óbvia, claro, surgindo tanto na escolha de cenário onde a narrativa se desenvolve, como na sua origem inglesa (a nação na qual o terror está mais diretamente ligado a este subgénero). Porém, os pontos de referência são escassos. Folk Horror, como argumenta Howard D. Ingham, tem um duplo significado. 

O primeiro e mais óbvio é o titular folclore ser um aspeto central, e o seu lado inverso, igualmente presente em praticamente todos os filmes do género, é o medo de “folk” (neste caso, grupos de pessoas, relacionado à temática do paganismo). Enys Men não preenche nenhum destes pré-requisitos. O filme não menciona qualquer tipo de folclore, sendo o seu elemento de género derivado de uma muito vaga fabulação científica, e a protagonista do filme é das poucas personagens presentes nele (sendo as outras, à excepção de uma, de existência puramente psicológica). A identidade visual do filme é muito inglesa, mas acaba por beber imensamente mais de outras fontes (um certo estilo de surrealismo televisivo britânico, por exemplo) do que de folk horror propriamente dito.

Enys Men, Mark Jenkin © Neon

A experiência do filme acaba por ser uma de terror formalista. Existe uma narrativa? Sim, contudo esta parece desenvolver-se incidentalmente do trabalho da forma, intimamente ligado a revelações e perturbações emocionais. O filme opera num loop constante ao observar a rotina duma mulher numa ilha deserta, responsável por observar a sua flora todos os dias em curtos exames. O loop é perfeito até a mulher começar a enlouquecer (e algo na ilha começar a mudar). O formalismo informa o conteúdo, algo que ocorre a um nível tão extremo que seria mais interessante estudá-lo através da lente do estruturalismo.

Cinema estruturalista deriva de um afastamento da “forma complexa” em direção a uma abordagem que favorece uma estrutura estrita (usualmente já pré-determinada no seu conceito). Enys Men segue um pressuposto semelhante. A protagonista faz as mesmas ações todos os dias e segue as mesmas tarefas observacionais. O filme repete esta rotina durante quase toda a sua duração. A um certo ponto, simultaneamente, algo estranho com a flora da ilha começa a acontecer e a protagonista começa a enlouquecer, desleixando-se a nível de rotina. Não é claro de que forma ou até a que nível estes campos se entrelaçam. O filme continua a girar em volta deste seu ciclo, mas começa a autodestruir-se. Mesmo assim, o sentimento de estrutura nas mãos do realizador é palpável, agora dentro de uma espiral imparável de entropia. O ciclo continua, agora completamente (e irrevogavelmente) distorcido.

Tal como não é claro se o líquen nas plantas causou o enlouquecimento da protagonista ou se este é em si um produto do seu enlouquecimento, também a linha é inseparável entre a sua sanidade e o caráter estruturalista do filme. O declínio e deformação da estrutura levou ao seu delírio, ou será que o seu delírio psiquicamente distorceu as regras implícitas do filme que habita?

Vasco Muralha

De Humani Corporis Fabrica: Uma Recusa da Objetividade

Ao ver um filme, é praticamente impossível não começar a estabelecer inúmeras ligações com obras que achamos semelhantes, numa desenfreada tapeçaria mental (principalmente quem tem tendência a ser maniacamente apofénico). O ponto de referência óbvio que é mencionado vezes sem conta em textos sobre De Humani Corporis Fabrica, co-realizado por Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, é Near Death de Frederick Wiseman, documentário que toma como tema uma unidade de cuidados intensivos. O tema hospitalar desta obra é semelhante (explorando o quotidiano de um hospital, tanto do lado dos médicos e enfermeiros, como do dos pacientes), mas os seus aspetos mais impressionantes encontram-se na divergência deste ponto de referência. 

1ª divergência: distância física

Wiseman é usualmente creditado como fazendo parte do legado do Cinema Observacional, embora este não aprecie ou concorde especialmente com esta etiqueta. Cinema Observacional (diretamente ligado a Cinema Direto e Cinema Verité) refere-se ao subgénero documental caracterizado pela abordagem “fly on the wall”, ou seja, uma separação objetiva na filmagem que “proíbe” a interação do realizador com o sujeito filmado. Onde Wiseman diverge deste estilo é na sua montagem: embora na rodagem esta abordagem seja regra, na montagem, em vez de ver todos os momentos e planos como iguais, Wiseman intencionalmente estabelece e cria uma narrativa a partir destes brutos. 

De forma a conseguir seguir estas regras, certas acomodações têm de ser estabelecidas no processo técnico, independente da própria estilização do cineasta. É impossível estabelecer uma linha estrita de possível objetividade a nível social/conceptual sem o aspeto físico da realização ter de se conformar também. Não só já a nível prescritivo, mas também como resultado, a linguagem visual de Wiseman tem de se ancorar ao conceito de distância e à restrição de interação.

De Humani Corporis Fabrica nunca se propôs a tentar manter qualquer objetividade da câmara durante a rodagem, elevando-se esta do campo subjetivo para o intrusivo. A obra conjunta de Castaing-Taylor e Paravel normalmente roda no eixo do sensorial, tentando atingir uma atualização quase psicadélica do cinema háptico. Este filme não é exceção à regra, sendo esta ambição posta em serviço de uma exploração do corpo humano. O filme funciona numa estrutura de tableaux, sendo estes, na maioria dos casos, diferentes procedimentos médicos. Os cineastas apropriam-se de inovações técnicas (câmaras médicas) de forma a conseguir filmar de forma mais íntima (microscópica) os seus meandros. A partir destes métodos, o filme trabalha num eixo entre a abstração no que toca à ampliação da interioridade (algo que permite o espetador experienciar um singular espanto estético) e o concreto do que esta nova visão surreal realmente é (nunca se deixando cair na falésia da pura abstração, um efeito conseguido através da montagem de som que estabelece a omnipresença dos profissionais por detrás das cirurgias).

De Humani Corporis Fabrica, Lucien Castaing-Taylor/Véréna Paravel © Grasshopper Film and Gratitude Films

2ª divergência: distância emocional

Limitações físicas não são as únicas que surgem ao ser adotada uma técnica observacional nas filmagens, uma grande diferença em postura pessoal também tem de ser estabelecida. A técnica de Wiseman restringe-o de (quase) qualquer intervenção (o seu filme Law and Order inclui o célebre exemplo de uma mulher a ser estrangulada momentaneamente pela polícia, onde a sua necessidade pela documentação o impediu de intervir), ou seja, um assumir (antes da montagem) da sua presença como autor que se demonstre depois nos brutos. Claro que a sensibilidade artística e personalidade são impossíveis de ser anuladas (ora nos enquadramentos, ora na escolha do que filmar), mas o que se passa dentro dos planos em si encontra-se sem influência. 

Em Near Death, Wiseman não limita o seu foco nos pacientes: o filme extremamente longo concentra-se, em grande parte, em discussões clínicas extremamente complexas e árduas nas quais a vida dos pacientes está em causa. Ao longo das suas (quase) seis horas, todas estas discussões (extremamente) pesadas são levadas ao seu esgotamento. Wiseman não interage com estas conversas, nem com o seu resultado. Em De Humanis Corporis Fabrica, os cineastas também não interagem com os médicos e enfermeiros, ou seja, nada do que acontece é encenado. No entanto, (assumidamente) não existe uma tentativa de alcançar objetividade. As escolhas dos casos são muito específicas, e a forma como são filmados exteriormente (do lado dos profissionais) é tão invasiva como a de como são filmados interiormente (do lado dos pacientes). O físico e o emocional são inseparáveis, por isso a própria escolha de posição e distanciamento da câmara acrescenta uma subjetividade a priori muito maior  em comparação a Wiseman (onde a maioria desta subjetividade autoral é criada em pós-produção).

Um último momento liga estes dois lados. Algures a meio do filme, um paciente da ala de doença mental repara nos cineastas e bate à janela. A câmara pára um bocado para ver o que se passa. Perto do fim do filme, a pessoa por detrás da câmara abre a sua porta, deixando-o passear pelo hospital quando normalmente não poderia, até de novo ser levado pelos enfermeiros para o seu quarto. O filme possibilita esta pequena liberdade, mesmo que breve, e acompanha-o em registo câmara-à-mão…Um filme completamente sui generis, até agora discutido maioritariamente através da lente da inovação tecnológica (focando-se quase todo o discurso que o rodeia nas arrebatadoras representações sensoriais do processo cirúrgico). Porém, o espaço exterior é igualmente importante. A procura dos cineastas por uma ética que se mantenha transversal no registo de subjetividade, uma das suas maiores proezas, é tão presente no interior dos corpos, como no mundo que os rodeia. A ligação destas duas realidades é arrebatadora, permanente e inseparável.

Vasco Muralha

O Zumbido Atordoador da Discoteca – Pacifiction de Albert Serra

Seria possível reduzir Pacifiction, (2023),  de Albert Serra, ao seu discurso político, como muitos já o fizeram (imperialismo, colonialismo, apropriação cultural…), mas isso seria ignorar o que o realizador espreme desses temas: um dos filmes mais assustadores e opressivamente sinistros do ano passado. Claro que os temas políticos estão presentes, mas em vez de serem apresentados numa perfeita trama narrativa, estes surgem como um bloco monolítico incessante de zumbido atormentante. O impulso anti-narrativo do filme funciona porque barra o espetador da entrada no mundo-além dos segredos, ou seja, ele sente que uma verdade coerente existe, mas ao tentar seguir os fios da história que são apresentados, inevitavelmente acaba no chão emaranhado no novelo. Serra sabe isto e assume o papel de dominante neste jogo shibari (não estás no chão enrolado em lã como um gato, foste atado minuciosamente e com precisão, com um olho perspicaz ao valor estético da ação).

O protagonista, De Roller, assume-se como estando num nível de perceção elevada em relação às outras personagens. Ao longo do filme, ele é arrastado pela lama proverbial até perder qualquer confiança no seu intelecto e visão. Tudo o que lhe resta é lamber a chuva que Deus lhe oferece, livre, no meio do campo de futebol (onde mesmo assim, não está livre de vigilância). Não há um declínio constante, mas sim um caminho aos solavancos (como a incrível cena das ondas). 

Pacifiction, Albert Serra © Rosa Filmes

Serra já não está diretamente a inspirar-se em Sade, como no seu filme anterior, porém Sade brota nos seus recantos. Longe do sensorial, o foco sadeano deste filme encontra-se no  não-pornográfico, tão ignorado na sua obra, o oratório. Nos livros de Sade, no meio da pornografia extrema, é comum as personagens entrarem em diálogos (estruturados como trocas de massivos monólogos) acerca das suas crenças e filosofias pessoais. O filme é, estruturalmente, constituído por diálogos completamente incompreensíveis. Personagens a trocarem de posição e estratégia num campo de xadrez decadimensional a que todos têm acesso menos nós (e o De Roller, mesmo que não queira admitir). De Roller é a personagem que mais se assume no perfil de diálogo sadeano, contudo acima de querer estabelecer a sua filosofia, parece infinitamente estar a tentar convencer os seus oponentes (e acima deles, a si mesmo).

O filme já foi criticado por uma estética visual vazia, focada numa harmonia auto-satisfeita de cores e texturas. Isto não poderia estar mais longe da verdade. Pacifiction tem uso recorrente de néon, principalmente vermelho e branco irradiante, porém, ao contrário do seu uso fetichista em revivalismos vazios dos anos 80, neste caso, o afeto provocado não poderia ser mais rançoso. Por um lado ligado à radioatividade em jogo constante do filme, por outro lado, focado num sentimento de inversão do signo, onde o apelativo das discotecas se torna completamente grotesco. Uma discoteca só tem valor proporcional ao calor dos corpos que a enchem. A tese do filme parece ser que a geopolítica é uma discoteca vazia no inferno. O que acontece quando a sala apenas é preenchida pelas luzes do néon? 

Pacifiction, inegavelmente, tem cenas de intensidade marcantes, no entanto, o seu carisma está nesta sedução do néon, uma sedução anestesiante e soporífera que conduz a sua vítima a um mundo de horrores. Simone Weil, em A Gravidade e a Graça afirma que “O mal imaginário é romântico, variado, o mal real é morno, monótono, desértico, enfadonho.” O cineasta parece aventurar-se em trazer a monotonia enfadonha do Mal real para o mundo da ficção, algo que só o torna mais aterrador. 

Pacifiction, Albert Serra © Rosa Filmes

A experiência de ver este filme é a de olhar para a monotonia no seu mais maligno. Burocracia infindável apenas preocupada consigo própria, responsável pela morte de milhões e vestida para matar no seu vestido VERMELHO estonteante e com a pele BRANCA, que cega com o seu brilho. Quando em Twin Peaks: Fire Walk With Me Laura Palmer olha para a ventoinha no teto de sua casa, seduzida pelo seu zumbido, apenas o faz sob a influência dum mal cósmico. Este filme emula a experiência de olhar na cara do mal sedutor da ventoinha da família Palmer enquanto mentalmente estável. É possível sentir a loucura infiltrar-se.

Duas cenas a destacar que sintetizam tudo o que foi aqui apresentado. A primeira, o tableau nauseabundo de uma mulher a ser estrangulada “meigamente” enquanto tenta fugir sem grande convicção. Não se ouvem as vozes desta parelha, apenas a música eletrónica ambiente a ser curada por uma DJ nativa do Taiti em topless, com os seus seios proeminentes na cena (imediatamente após uma conversa entre outras duas personagens acerca de uma mulher, que devido aos testes nucleares no Taiti, teve cancro da mama 3 vezes ao longo da sua vida…). A segunda, o monólogo de De Roller, no qual estabelece como missão “ligar as luzes da discoteca e revelar a violência”. Este monólogo é contrastado com a grande peça armilar da discoteca, única cena em que De Roller não tem agência (sendo também a única em que não está a usar o seu fato branco, de forma a não ser destacado pela luz negra). Nesta discoteca o Almirante responsável pelos testes nucleares dança de forma assustadoramente patética em frente de um mural com um panorama de um vulcão em erupção, enquanto acaricia homens musculados (corpos esculturais que se irão perder para deformações no iminente desastre).

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Pacifiction, Albert Serra © Rosa Filmes]

Agarra na Mão, atinge a Glória: cheap thrills do mundo espírita

Quem agarra na Mão da Glória, revestida de gesso, e disser “talk to me”, entra em comunicação com o mundo dos espíritos em purgatório. Se após o primeiro contacto disserem “I let you in”, são possuídos. Se deixarem passar 90 segundos sem quebrar a possessão, o espírito tem carte blanche para usar o seu corpo eternamente. Num pequeno subúrbio, algures na Austrália, um grupo de adolescentes começa a praticar estes rituais como um jogo de festa: não pelo efeito narcótico de algo como os Choking Games dos anos 2000, mas como um auto-posicionamento em perigo consciente. Claro que isto vem com a vantagem acrescida de serem enviados para um inconsciente estado performático que podem filmar (e partilhar). Jackass demoníaco que abona a favor do seu capital social.

A protagonista, Mia (Sophie Wilde), é uma adolescente que perdeu a mãe recentemente. O seu envolvimento no jogo começa como uma procura desesperada por aprovação, mas muito rapidamente se torna numa perversa terapia da sua psique danificada pela morte na família. Estes problemas levam-na a pôr a vida de amigos e familiares em risco.

Um dos pontos altos do filme é a sua captura de um momento específico da adolescência. A linha mais ténue que qualquer cineasta tem de conseguir dominar ao realizar um filme focado nesta faixa etária, é conseguir mostrar o lado constrangedor dos modos de agir e pensar específicos à adolescência, sem o espetador ficar desconfortável face ao filme em si (ao invés das personagens que o habitam).

O filme é bastante gráfico, mas o mais impressionante é a forma como, acima de ser assustador e violento, é triste. Talk to Me atinge, de forma muito genuína, deprimente e comovente, algo que se sobrepõe aos momentos extremos de violência gráfica, montagem frenética e atitudes corrosivas. Assim sucede a atingir um pico de mal-estar emocional, não necessariamente igual ao do medo (mas que com este é constantemente conjugado), presente em filmes como Lake Mungo.Em último lugar, é importante realçar que o filme consegue levar-se a extremos, sem cair num pessimismo ou crueldade niilista, que, mais que ofensiva, é aborrecida. O espetador é mergulhado num mundo perturbador e violento (um grande foco na crueldade infantil que recentemente era vista como démodé, mas agora volta em momentos como a orgia de sangue da alma penada de Riley a ser torturada numa Sodoma similar ao terceiro ato de Society do Brian Yuzna). Mas mesmo assim, nos seus pontos mais agoniantes e aterradores, a sua base acaba sempre por ter as suas vigas fundacionais numa empatia forte e uma paixão grande pelos adolescentes em sarilhos.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Talk to Me, Danny & Michael Philippou © Matthew Thorne]

Hello Dankness: uma cultura estilhaçada

As luzes apagam-se e a sala de cinema é submetida ao anúncio de 2017 da Pepsi com a Kendall Jenner, apresentado na sua forma integral. Curta-metragem publicitária que causou controvérsia mundial pela sua atitude leve e superficial face a violência policial e manifestos do movimento Black Lives Matter: dentro deste mundo tudo é resolvido com uma super modelo bilionária a entregar uma lata de Pepsi a um polícia. 

Soda Jerk, o coletivo artístico constituído pelos irmãos Dan e Dominique Angeloro, fez uma sala inteira de críticos na Berlinale ver o Pepsi: Live for Now, numa qualidade gloriosa de 480p. Era impossível entender se a resposta era choque, ofensa, ou admiração, mas a única resposta que emanava era um coro de pequenas e descoordenadas explosões de risos pontuais que se tentavam esconder e abafar.

Hello Dankness, Soda Jerk © Soda Jerk

Hello Dankness é uma obra experimental constituída unicamente de centenas de clips pré-existentes, reutilizados e reapropriados com engenho de forma criar um retrato dos Estados Unidos pós-eleição presidencial de 2016. O filme não se limita a ser um clipshow, que reconstitui um ambiente ou sensação (como se especializam na Everything is Terrible, ou outros adjacentes artistas de vídeo), esta obra tem ambições narrativas. Começa por pegar em filmes focados em paranoia nos subúrbios (desde The Burbs de Joe Dante a Serial Mom, de John Waters) e a contrapô-los em montagem alternada e direta, de forma a criar um só universo onde todas estas personagens se encontram em convívio. 

O material usado não se segrega a um género. Começa como uma manipulação de montagem e imagem, de forma a criar um thriller de conspiração jocoso sobre o país dividido antes, durante e pós-eleição (remetendo constantemente ao conceito tão falado nessa época da “sinistra e ameaçadora silent majority”). Ao longo da sua progressão, entra num hyperdrive aceleracionista: filmes, séries de televisão, anúncios, vídeos virais e memes começam a partilhar o suporte com igualdade de importância (desde o aparecimento de Dasha Nekrasova, uma figura pública de nicho que simboliza perfeitamente esta época, a cortes de campo/contra-campo nos quais é insinuado que o Fantasma da Ópera esteve envolvido no russiagate).

As referências começam a desdobrar-se em caminhos cada vez mais rebuscados, extremos e numerosos. A manipulação do material eventualmente sai da montagem e incorpora técnicas cada vez mais bizarras de manipulação de som e da própria imagem dentro do plano. A velocidade é tão rápida e o conteúdo tão absurdo, que se torna impossível assimilar todos os seus momentos e referências.

Hello Dankness, Soda Jerk © Soda Jerk

O espetador, na sua cadeira, deixa-se levar por uma torrente interminável de referências, sendo obrigado a consumir milhões de estilhaços do vidro da realidade que se partiu. Ele é deixado, com níveis iguais de horror e humor, a tentar (com o auxílio da montagem dos cineastas) colar os pedaços numa só peça que talvez se aproxime de uma verdade pura, há tanto tempo já perdida.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Hello Dankness, Soda Jerk © Soda Jerk]

As Naturezas Mortas-Vivas de Mammalia

No Q&A pós-projeção, Sebastian Mihăilescu, realizador de Mammalia, discutiu em detalhe o longo e conturbado caminho desde a conceção da ideia original do filme, até à obra final que estreou na Berlinale. Embora seja um filme contemplativo, que assumidamente faz sentir a sua jocosa meditação contemplativa, a sua esquizofrenia conceptual não se consegue esconder.

O filme foca-se na vida de um homem recentemente despedido do seu emprego, que, perante a entrada da sua namorada numa seita pagã feminina, entra em crise face à sua masculinidade.

Mammalia, Sebastian Mihăilescu © microFILM

Mihăilescu mencionou no Q&A a forma como o seu caminho até ao cinema passou primeiro por ser um “pintor falhado”. O talento pinturesco transborda em todos os planos, sendo a sua maior qualidade. Não se trata apenas da fotografia a 16mm, que mistura um ambiente frio com a entrada de amarelos quentes e decadentes, o enquadramento em si é onde a obra brilha mais. Quase todos os planos são longos e estáticos, sendo enquadrados em volta de conceitos individuais que se fazem sentir através da sua duração. 

A estagnação estática da imagem não é o destino final, havendo sempre algo sinistro que começa a invadir o ecrã. Algo vivo, mas em putrefação, imagens paradas que parecem estar cheias de ovas de moscardo, prontas para nascerem e espalharem o seu zumbido monótono e ameaçador pela realidade apresentada. Um filme constituído, não por naturezas mortas, mas por naturezas mortas-vivas: planos mortos à beira de uma ressurreição demoníaca.

O cineasta menciona Buster Keaton como uma das maiores influências, algo visível na maneira como a segunda força que corrói estas imagens, além dos miasmas que o fora-de-campo emana, é o homem. Não necessariamente o protagonista, mas a figura do Homem como género, que deambula pela morbidez do filme sempre a tropeçar estapafurdiamente nas gavinhas do suposto caos feminino ao qual a namorada foi convertida.

Pior que Yorgos Lanthimos, realizador de algumas obras fascinantes, mesmo que acabe por cair muitas vezes num fetichismo auto-satisfeito de um estilo ascético vazio, são os seus imitadores. Desde o sucesso breakthrough d’ A Lagosta, festivais de cinema começaram a acolher uma praga específica de Lanthimos low-cost, que pegam na sua equivalência entre a escrita e atuação deadpan, com subversividade, humor e inteligência, sem conseguir emular o lado único que o torna interessante (ou desenvolver a sua própria visão única). Ao misturar a crise humana e o religioso sinistro com o humor juvenil recorrente, o filme poucas vezes chega a sair do registo de Lanthimos e a aproximar-se de Peter Strickland (um dos realizadores que melhor trabalha o humor e atuação deadpan nos últimos tempos, ao contrapô-los com humor excêntrico, fetichismo kitsch e um amor genuíno ao invés de cinismo).

Mammalia, Sebastian Mihăilescu © microFILM

O maior problema do filme acaba por residir no seu argumento. Mammalia, segundo o que foi dito pelo realizador após o fim do filme, nasceu deste se encontrar numa crise psicológica análoga à do protagonista durante o início do seu desenvolvimento. Ao amadurecer (desenvolvimento que coincidiu com uma troca de um argumento estrito por uma abordagem mais improvisada), mesmo que o problema já não preocupasse tanto o realizador, o tema tratado no filme não foi mudado. Isto leva a um apuramento muito trabalhado, não só do lado técnico, mas também da linguagem do realizador, que, sem perspetiva alguma, é por ser posto em serviço de nada. Não é que o rei vá nu (o rei vai com roupas lindas e extravagantes), ele acaba é por ser uma pessoa muito desinteressante…

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Mammalia, Sebastian Mihăilescu © microFILM]

A Verdade Universal no Pesadelo Febril

Nunca deixará de ser deprimente ver um filme único e perceber que a maioria dos grupos de críticos e espectadores, unidos nos usuais círculos de pensamento precoce logo após sair da sala, estão unidos num desdém pelo filme. Trocam críticas que, em grande parte, mostram uma incompreensão das regras que o filme está a criar para si próprio, tentando então colocá-lo em caixas pré-existentes no qual este não encaixa.

Perpetrator, de Jennifer Reeder, é um retrato surrealista do horror sentido por jovens raparigas durante a mudança da puberdade face às suas mudanças corporais e psicológicas e a nova visão exterior social em que é colocada.

A identidade visual da cineasta, que, em vez de uma formação oficial em cinema, estudou artes visuais, descende diretamente das suas primeiras curtas metragens de video art (seria plausível imaginar este filme como um produto artístico da autoria das protagonistas de Lullaby e Nevermind, curtas realizadas e protagonizadas por Reeder em 1999). A estética artística do filme é experimental de uma forma muito única: uso recorrente de duplas exposições, efeitos digitais, que se auto-evidenciam, e diálogos líricos e teatrais. Os burburinhos acusavam o filme de ser uma amadora pastiche lynchiana (cineasta normalmente associado a uma exploração da mitologia americana que a fita com níveis iguais de fascínio e horror), o que não só demonstra uma falta enorme de tato face à obra (e uma compreensão completamente errónea de Lynch em si), mas também uma incapacidade de ver esta linguagem não-normativa como algo trabalhado e propositado, em vez de equívocos de um artista amador (a primeira curta-metragem de Jennifer Reeder é datada de 1993, e a sua filmografia é extensa…).

Perpetrator, Jennifer Reeder © WTFilms

Tal como não é uma pastiche lynchiana, também não é um objeto de fetichismo retro do qual era paralelamente acusado de ser. O filme não se passa nos anos 80, apresentando-se de forma completamente atemporal, pegando em arquétipos de várias épocas de forma a criar um mundo de texturas cativantes. Não se limita ao modus operandi que os verdadeiros objetos fetichistas seguem: escolher mãos cheias de objetos marcantes de uma era e conjugá-los de forma estática, tentando ressuscitar o cadáver do passado com o poder da nostalgia opiácea (observável em grande parte do cinema de terror contemporâneo). 

Muito mais facilmente poderia ser equiparado a Angela Carter e as fábulas e contos de fada tradicionais que filtra através duma visão grotesca e aterrorizada face às mudanças do corpo e da mente de uma jovem rapariga durante a puberdade.

Os elementos de referência mais evidentes não eram mencionados nas conversas: a lógica emocional e não racional do cinema de terror italiano, televisão, filmes e livros de terror para crianças, ou até cinema experimental de série Z (ao longo do filme encontram-se várias referências muito diretas a Death Bed: The Bed that Eats de George Barry) … Um dos maiores equívocos é tentar ver neste filme qualquer tipo de tentativa de se inserir no género Young Adult (ou YA). 

Perpetrator não é adolescente ou juvenil, mas sim infantil. A narrativa foca-se na protagonista adolescente de forma a representar uma no man’s land entre a infância e a vida adulta. Está presente, e em constante análise, o despertar da sexualidade e mudanças corporais únicas da puberdade, postas em perspetiva através de uma visão do mundo que ainda é dominada pelas sinapses e raciocínios de uma criança. 

Um dos exemplos mais fulcrais desta natureza é a representação das personagens adultas, vistas, não como demónios controladores, mas como bruxos misteriosos, cheios de segredos que as personagens ainda não conseguem entender (a personagem de Alicia Silverstone é o arquétipo de “bruxa solteira”, até se chama Hildy, remetendo à série original de Sabrina, The Teenage Witch…). Este mundo misterioso é visto como deficiente da vitalidade física, mental e emocional da criança, que por isso mesmo quer roubar os atributos dos adolescentes, tendo inveja de já terem começado a compreender o mundo racional e definido das formas, ainda sem terem perdido um pé firmemente posicionado no poço ctónico borbulhante da experiência real e visceral.

Perpetrator, Jennifer Reeder © WTFilms

É como se Jennifer Reeder tivesse ficado doente no dia em que entrou na puberdade, faltando à escola e ocupando-se em casa com maratonas televisivas de Goosebumps, a série de terror para crianças. Enquanto extremamente afetada pelos efeitos narcóticos do xarope para a tosse, o seu cérebro ocupa a sua mente com estas narrativas febris na sua sesta pós-episódio (infetadas por novas ansiedades que borbulham debaixo da superfície). 

A outra grande crítica que predomina o discurso que pairava após a sessão, era o da sua aparente incoerência narrativa (ou o desejo de ser aleatório como destino final estético, sem qualquer justificação). Esta psicodelia delirante não é de todo sarcástica e irónica e não tenciona propor ironia como justificação para a aparente falha. Reeder construiu uma obra que é dolorosamente genuína no que está a tratar, fazendo o filme extremamente coerente, apenas não de uma forma racional. 

É possível criticar a narrativa como mal-trabalhada e a sua metáfora como incongruente e falhada, mas essa análise, fora de ser a mais fácil e aparente, nega o facto de a cineasta estar a apresentar um mundo de verdade emocional ao invés de racional. O espectador passa uma hora e trinta e nove minutos dentro de um retrato expressionista em movimento de uma realidade emocional que é tão pura e verdadeira como a de um sonho, que, tal como esta narrativa, não está preocupado com um sentido narrativo tradicional ou uma maquinação química de metáforas legíveis em proporções de 1×1.

Todas as ansiedades e horrores de alguém que passa pela puberdade num corpo normativamente feminino são colocados em luta no ringue do cinema sob a influência de esteróides: desde o medo constante de penetração à realidade de uma nova expulsão de sangue mensal. Este pesadelo não trabalha no mundo das metáforas e analogias, mas sim numa arena selvagem de lirismos simbólicos, e é isso que faz dele uma representação artística tão impactante e cosmicamente real.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Perpetrator, Jennifer Reeder © WTFilms]