Agarra na Mão, atinge a Glória: cheap thrills do mundo espírita

Quem agarra na Mão da Glória, revestida de gesso, e disser “talk to me”, entra em comunicação com o mundo dos espíritos em purgatório. Se após o primeiro contacto disserem “I let you in”, são possuídos. Se deixarem passar 90 segundos sem quebrar a possessão, o espírito tem carte blanche para usar o seu corpo eternamente. Num pequeno subúrbio, algures na Austrália, um grupo de adolescentes começa a praticar estes rituais como um jogo de festa: não pelo efeito narcótico de algo como os Choking Games dos anos 2000, mas como um auto-posicionamento em perigo consciente. Claro que isto vem com a vantagem acrescida de serem enviados para um inconsciente estado performático que podem filmar (e partilhar). Jackass demoníaco que abona a favor do seu capital social.

A protagonista, Mia (Sophie Wilde), é uma adolescente que perdeu a mãe recentemente. O seu envolvimento no jogo começa como uma procura desesperada por aprovação, mas muito rapidamente se torna numa perversa terapia da sua psique danificada pela morte na família. Estes problemas levam-na a pôr a vida de amigos e familiares em risco.

Um dos pontos altos do filme é a sua captura de um momento específico da adolescência. A linha mais ténue que qualquer cineasta tem de conseguir dominar ao realizar um filme focado nesta faixa etária, é conseguir mostrar o lado constrangedor dos modos de agir e pensar específicos à adolescência, sem o espetador ficar desconfortável face ao filme em si (ao invés das personagens que o habitam).

O filme é bastante gráfico, mas o mais impressionante é a forma como, acima de ser assustador e violento, é triste. Talk to Me atinge, de forma muito genuína, deprimente e comovente, algo que se sobrepõe aos momentos extremos de violência gráfica, montagem frenética e atitudes corrosivas. Assim sucede a atingir um pico de mal-estar emocional, não necessariamente igual ao do medo (mas que com este é constantemente conjugado), presente em filmes como Lake Mungo.Em último lugar, é importante realçar que o filme consegue levar-se a extremos, sem cair num pessimismo ou crueldade niilista, que, mais que ofensiva, é aborrecida. O espetador é mergulhado num mundo perturbador e violento (um grande foco na crueldade infantil que recentemente era vista como démodé, mas agora volta em momentos como a orgia de sangue da alma penada de Riley a ser torturada numa Sodoma similar ao terceiro ato de Society do Brian Yuzna). Mas mesmo assim, nos seus pontos mais agoniantes e aterradores, a sua base acaba sempre por ter as suas vigas fundacionais numa empatia forte e uma paixão grande pelos adolescentes em sarilhos.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Talk to Me, Danny & Michael Philippou © Matthew Thorne]

Hello Dankness: uma cultura estilhaçada

As luzes apagam-se e a sala de cinema é submetida ao anúncio de 2017 da Pepsi com a Kendall Jenner, apresentado na sua forma integral. Curta-metragem publicitária que causou controvérsia mundial pela sua atitude leve e superficial face a violência policial e manifestos do movimento Black Lives Matter: dentro deste mundo tudo é resolvido com uma super modelo bilionária a entregar uma lata de Pepsi a um polícia. 

Soda Jerk, o coletivo artístico constituído pelos irmãos Dan e Dominique Angeloro, fez uma sala inteira de críticos na Berlinale ver o Pepsi: Live for Now, numa qualidade gloriosa de 480p. Era impossível entender se a resposta era choque, ofensa, ou admiração, mas a única resposta que emanava era um coro de pequenas e descoordenadas explosões de risos pontuais que se tentavam esconder e abafar.

Hello Dankness, Soda Jerk © Soda Jerk

Hello Dankness é uma obra experimental constituída unicamente de centenas de clips pré-existentes, reutilizados e reapropriados com engenho de forma criar um retrato dos Estados Unidos pós-eleição presidencial de 2016. O filme não se limita a ser um clipshow, que reconstitui um ambiente ou sensação (como se especializam na Everything is Terrible, ou outros adjacentes artistas de vídeo), esta obra tem ambições narrativas. Começa por pegar em filmes focados em paranoia nos subúrbios (desde The Burbs de Joe Dante a Serial Mom, de John Waters) e a contrapô-los em montagem alternada e direta, de forma a criar um só universo onde todas estas personagens se encontram em convívio. 

O material usado não se segrega a um género. Começa como uma manipulação de montagem e imagem, de forma a criar um thriller de conspiração jocoso sobre o país dividido antes, durante e pós-eleição (remetendo constantemente ao conceito tão falado nessa época da “sinistra e ameaçadora silent majority”). Ao longo da sua progressão, entra num hyperdrive aceleracionista: filmes, séries de televisão, anúncios, vídeos virais e memes começam a partilhar o suporte com igualdade de importância (desde o aparecimento de Dasha Nekrasova, uma figura pública de nicho que simboliza perfeitamente esta época, a cortes de campo/contra-campo nos quais é insinuado que o Fantasma da Ópera esteve envolvido no russiagate).

As referências começam a desdobrar-se em caminhos cada vez mais rebuscados, extremos e numerosos. A manipulação do material eventualmente sai da montagem e incorpora técnicas cada vez mais bizarras de manipulação de som e da própria imagem dentro do plano. A velocidade é tão rápida e o conteúdo tão absurdo, que se torna impossível assimilar todos os seus momentos e referências.

Hello Dankness, Soda Jerk © Soda Jerk

O espetador, na sua cadeira, deixa-se levar por uma torrente interminável de referências, sendo obrigado a consumir milhões de estilhaços do vidro da realidade que se partiu. Ele é deixado, com níveis iguais de horror e humor, a tentar (com o auxílio da montagem dos cineastas) colar os pedaços numa só peça que talvez se aproxime de uma verdade pura, há tanto tempo já perdida.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Hello Dankness, Soda Jerk © Soda Jerk]

As Naturezas Mortas-Vivas de Mammalia

No Q&A pós-projeção, Sebastian Mihăilescu, realizador de Mammalia, discutiu em detalhe o longo e conturbado caminho desde a conceção da ideia original do filme, até à obra final que estreou na Berlinale. Embora seja um filme contemplativo, que assumidamente faz sentir a sua jocosa meditação contemplativa, a sua esquizofrenia conceptual não se consegue esconder.

O filme foca-se na vida de um homem recentemente despedido do seu emprego, que, perante a entrada da sua namorada numa seita pagã feminina, entra em crise face à sua masculinidade.

Mammalia, Sebastian Mihăilescu © microFILM

Mihăilescu mencionou no Q&A a forma como o seu caminho até ao cinema passou primeiro por ser um “pintor falhado”. O talento pinturesco transborda em todos os planos, sendo a sua maior qualidade. Não se trata apenas da fotografia a 16mm, que mistura um ambiente frio com a entrada de amarelos quentes e decadentes, o enquadramento em si é onde a obra brilha mais. Quase todos os planos são longos e estáticos, sendo enquadrados em volta de conceitos individuais que se fazem sentir através da sua duração. 

A estagnação estática da imagem não é o destino final, havendo sempre algo sinistro que começa a invadir o ecrã. Algo vivo, mas em putrefação, imagens paradas que parecem estar cheias de ovas de moscardo, prontas para nascerem e espalharem o seu zumbido monótono e ameaçador pela realidade apresentada. Um filme constituído, não por naturezas mortas, mas por naturezas mortas-vivas: planos mortos à beira de uma ressurreição demoníaca.

O cineasta menciona Buster Keaton como uma das maiores influências, algo visível na maneira como a segunda força que corrói estas imagens, além dos miasmas que o fora-de-campo emana, é o homem. Não necessariamente o protagonista, mas a figura do Homem como género, que deambula pela morbidez do filme sempre a tropeçar estapafurdiamente nas gavinhas do suposto caos feminino ao qual a namorada foi convertida.

Pior que Yorgos Lanthimos, realizador de algumas obras fascinantes, mesmo que acabe por cair muitas vezes num fetichismo auto-satisfeito de um estilo ascético vazio, são os seus imitadores. Desde o sucesso breakthrough d’ A Lagosta, festivais de cinema começaram a acolher uma praga específica de Lanthimos low-cost, que pegam na sua equivalência entre a escrita e atuação deadpan, com subversividade, humor e inteligência, sem conseguir emular o lado único que o torna interessante (ou desenvolver a sua própria visão única). Ao misturar a crise humana e o religioso sinistro com o humor juvenil recorrente, o filme poucas vezes chega a sair do registo de Lanthimos e a aproximar-se de Peter Strickland (um dos realizadores que melhor trabalha o humor e atuação deadpan nos últimos tempos, ao contrapô-los com humor excêntrico, fetichismo kitsch e um amor genuíno ao invés de cinismo).

Mammalia, Sebastian Mihăilescu © microFILM

O maior problema do filme acaba por residir no seu argumento. Mammalia, segundo o que foi dito pelo realizador após o fim do filme, nasceu deste se encontrar numa crise psicológica análoga à do protagonista durante o início do seu desenvolvimento. Ao amadurecer (desenvolvimento que coincidiu com uma troca de um argumento estrito por uma abordagem mais improvisada), mesmo que o problema já não preocupasse tanto o realizador, o tema tratado no filme não foi mudado. Isto leva a um apuramento muito trabalhado, não só do lado técnico, mas também da linguagem do realizador, que, sem perspetiva alguma, é por ser posto em serviço de nada. Não é que o rei vá nu (o rei vai com roupas lindas e extravagantes), ele acaba é por ser uma pessoa muito desinteressante…

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Mammalia, Sebastian Mihăilescu © microFILM]

A Verdade Universal no Pesadelo Febril

Nunca deixará de ser deprimente ver um filme único e perceber que a maioria dos grupos de críticos e espectadores, unidos nos usuais círculos de pensamento precoce logo após sair da sala, estão unidos num desdém pelo filme. Trocam críticas que, em grande parte, mostram uma incompreensão das regras que o filme está a criar para si próprio, tentando então colocá-lo em caixas pré-existentes no qual este não encaixa.

Perpetrator, de Jennifer Reeder, é um retrato surrealista do horror sentido por jovens raparigas durante a mudança da puberdade face às suas mudanças corporais e psicológicas e a nova visão exterior social em que é colocada.

A identidade visual da cineasta, que, em vez de uma formação oficial em cinema, estudou artes visuais, descende diretamente das suas primeiras curtas metragens de video art (seria plausível imaginar este filme como um produto artístico da autoria das protagonistas de Lullaby e Nevermind, curtas realizadas e protagonizadas por Reeder em 1999). A estética artística do filme é experimental de uma forma muito única: uso recorrente de duplas exposições, efeitos digitais, que se auto-evidenciam, e diálogos líricos e teatrais. Os burburinhos acusavam o filme de ser uma amadora pastiche lynchiana (cineasta normalmente associado a uma exploração da mitologia americana que a fita com níveis iguais de fascínio e horror), o que não só demonstra uma falta enorme de tato face à obra (e uma compreensão completamente errónea de Lynch em si), mas também uma incapacidade de ver esta linguagem não-normativa como algo trabalhado e propositado, em vez de equívocos de um artista amador (a primeira curta-metragem de Jennifer Reeder é datada de 1993, e a sua filmografia é extensa…).

Perpetrator, Jennifer Reeder © WTFilms

Tal como não é uma pastiche lynchiana, também não é um objeto de fetichismo retro do qual era paralelamente acusado de ser. O filme não se passa nos anos 80, apresentando-se de forma completamente atemporal, pegando em arquétipos de várias épocas de forma a criar um mundo de texturas cativantes. Não se limita ao modus operandi que os verdadeiros objetos fetichistas seguem: escolher mãos cheias de objetos marcantes de uma era e conjugá-los de forma estática, tentando ressuscitar o cadáver do passado com o poder da nostalgia opiácea (observável em grande parte do cinema de terror contemporâneo). 

Muito mais facilmente poderia ser equiparado a Angela Carter e as fábulas e contos de fada tradicionais que filtra através duma visão grotesca e aterrorizada face às mudanças do corpo e da mente de uma jovem rapariga durante a puberdade.

Os elementos de referência mais evidentes não eram mencionados nas conversas: a lógica emocional e não racional do cinema de terror italiano, televisão, filmes e livros de terror para crianças, ou até cinema experimental de série Z (ao longo do filme encontram-se várias referências muito diretas a Death Bed: The Bed that Eats de George Barry) … Um dos maiores equívocos é tentar ver neste filme qualquer tipo de tentativa de se inserir no género Young Adult (ou YA). 

Perpetrator não é adolescente ou juvenil, mas sim infantil. A narrativa foca-se na protagonista adolescente de forma a representar uma no man’s land entre a infância e a vida adulta. Está presente, e em constante análise, o despertar da sexualidade e mudanças corporais únicas da puberdade, postas em perspetiva através de uma visão do mundo que ainda é dominada pelas sinapses e raciocínios de uma criança. 

Um dos exemplos mais fulcrais desta natureza é a representação das personagens adultas, vistas, não como demónios controladores, mas como bruxos misteriosos, cheios de segredos que as personagens ainda não conseguem entender (a personagem de Alicia Silverstone é o arquétipo de “bruxa solteira”, até se chama Hildy, remetendo à série original de Sabrina, The Teenage Witch…). Este mundo misterioso é visto como deficiente da vitalidade física, mental e emocional da criança, que por isso mesmo quer roubar os atributos dos adolescentes, tendo inveja de já terem começado a compreender o mundo racional e definido das formas, ainda sem terem perdido um pé firmemente posicionado no poço ctónico borbulhante da experiência real e visceral.

Perpetrator, Jennifer Reeder © WTFilms

É como se Jennifer Reeder tivesse ficado doente no dia em que entrou na puberdade, faltando à escola e ocupando-se em casa com maratonas televisivas de Goosebumps, a série de terror para crianças. Enquanto extremamente afetada pelos efeitos narcóticos do xarope para a tosse, o seu cérebro ocupa a sua mente com estas narrativas febris na sua sesta pós-episódio (infetadas por novas ansiedades que borbulham debaixo da superfície). 

A outra grande crítica que predomina o discurso que pairava após a sessão, era o da sua aparente incoerência narrativa (ou o desejo de ser aleatório como destino final estético, sem qualquer justificação). Esta psicodelia delirante não é de todo sarcástica e irónica e não tenciona propor ironia como justificação para a aparente falha. Reeder construiu uma obra que é dolorosamente genuína no que está a tratar, fazendo o filme extremamente coerente, apenas não de uma forma racional. 

É possível criticar a narrativa como mal-trabalhada e a sua metáfora como incongruente e falhada, mas essa análise, fora de ser a mais fácil e aparente, nega o facto de a cineasta estar a apresentar um mundo de verdade emocional ao invés de racional. O espectador passa uma hora e trinta e nove minutos dentro de um retrato expressionista em movimento de uma realidade emocional que é tão pura e verdadeira como a de um sonho, que, tal como esta narrativa, não está preocupado com um sentido narrativo tradicional ou uma maquinação química de metáforas legíveis em proporções de 1×1.

Todas as ansiedades e horrores de alguém que passa pela puberdade num corpo normativamente feminino são colocados em luta no ringue do cinema sob a influência de esteróides: desde o medo constante de penetração à realidade de uma nova expulsão de sangue mensal. Este pesadelo não trabalha no mundo das metáforas e analogias, mas sim numa arena selvagem de lirismos simbólicos, e é isso que faz dele uma representação artística tão impactante e cosmicamente real.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Perpetrator, Jennifer Reeder © WTFilms]

Os Orlandos do século XXI

 “Estamos convencidos que o inconsciente não é um teatro. Não é um lugar onde Hamlet e Édipo interminavelmente interpretam as suas cenas. Não é um teatro, mas uma fábrica. É uma produção!”

Gilles Deleuze

Como sucessor direto de Foucault e Butler, Paul B. Preciado é, sem qualquer dúvida, uma das vozes chave no mundo da teoria queer do século XXI. Conhecido pelas suas ideias inovadoras e voz única, ao longo do seu trabalho tem vindo a desenvolver um multifacetado estudo crítico do conceito de género que se destaca pela sua abordagem livre à biografia e um refrescante ataque à “catedral” da psicanálise. Em Orlando, Ma Biographie Politique, o autor estreia-se no papel de cineasta, onde trata os seus temas fulcrais com um olhar impressionante para o mundo cinematográfico.

O filme consiste numa (muito) livre adaptação de Orlando de Virginia Woolf, a história de um aristocrata que vive séculos sem envelhecer e de quem o corpo, a um certo ponto da sua vida centenária, passa por uma metamorfose de género noturna. O filme estabelece a personagem do titular Orlando como o arquétipo de todas as vidas e corpos trans, e a partir desta analogia cria uma autobiografia do cineasta e de muitos outros atores trans, estabelecendo um jogo constante entre as suas experiências pessoais e o livro em causa (não só a sua narrativa, mas também o seu contexto histórico e natureza metatextual).

Orlando, Ma Biographie Politique, Paul B. Preciado © Les Films du Poisson

Orlando foca-se numa constante celebração do Devir e recusa à Essência, orquestrando diversas narrativas reais e ficcionais de pessoas que pegaram nos seus destinos pelo colarinho, encarregando-se das suas próprias metamorfoses físicas e sociais. Um dos seus aspetos mais interessantes é a visão de todos estes caminhos como fluídos e constantes ao invés de viagens delineadas entre um ponto A e B. Isto é exemplificado numa das primeiras cenas: enquanto está em quadro a floresta, que é usada como décor em grande parte do filme, ouvem-se vozes a transformarem-se. O filme não se limita a passar de uma voz grave e “tradicionalmente masculina” para o seu suposto oposto: cria não só momentos de sobreposição de duas vozes, como coloca também vozes sem corpo em sucessão sem qualquer desejo de procura da sua identidade de género, chegando a uma sinfonia sonora na qual os espetros de som e de género se complementam na obliteração de hierarquias.

Orlando, Ma Biographie Politique, Paul B. Preciado © Les Films du Poisson

Já era reconhecida a mestria de Preciado no domínio do texto, mas é maravilhoso ver o quão perfeitamente a sua voz artística se adapta a uma voz visual e sonora. A sua escrita pouco ortodoxa dentro do universo da crítica académica dá-se completamente ao mundo imagético que o filme tenta transpor, onde não só os seus sujeitos e temáticas são fluídos, como também a sua forma e linguagem. Observável desde o uso de uma multitude de atores, todos representando o arquétipo e personagem de Orlando (que se desdobra em infinitas tapeçarias de experiências individuais), até à repetição de frases-chave marcantes, chocantes e únicas, que tanto aparecem em ladaínhas repetidas, como em momentos musicais (“no doubt about my sex, but the fashion of the times helps me disguise it”/Dont let freud/lacan get in the history of your mindfuck/Synthetic but not apologetic. No Doctor’s Bitch. Pharmacoliberation”).

Orlando é usado como uma metáfora e ponto de partida para a exploração dos temas da obra, onde cada sujeito real, cada Orlando do século XXI, consegue mostrar a sua vida e experiência única a partir da personagem ficcional tornada em arquétipo. Mesmo maioritariamente usando o livro de forma crítica e metatextual, é espantoso o jogo que o escritor tornado cineasta faz, não só acerca dos seus temas, mas também entre a cisão e união da escrita com a imagem em movimento. Impressionante a força de uma das suas cenas mais impactantes, onde todos os Orlandos do filme se unem num consultório (tomando o papel dos médicos que os oprimem) e, de forma literalmente cirúrgica, extraem a frase “Violence was all” do livro de Woolf. Consegue ser um comentário metatextual à própria forma da obra literária adaptada ao cinema, sem perder qualquer do seu impacto emocional.

Orlando, Ma Biographie Politique, Paul B. Preciado © Les Films du Poisson

Além do lado artístico, o lado político também deve ser destacado, e acima de tudo, complexo. Mesmo tendo as frases-chaves em repetição e outros dispositivos semelhantes que poderiam remeter, por exemplo, a Godard nos anos 60, não se fica por aí. Os métodos e dispositivos são numerosos, mas a forma e a narrativa andam sempre de mão dada. Num dos maiores exemplos, o encontro de um Orlando com o seu psiquiatra, opressor que cria uma barreira humana burocrática que o separa de uma possível autonomia médica sobre o seu próprio corpo, é equiparado ao encontro, no livro de Woolf, do espírito jovem de Orlando com o poder opressor colonialista da Rainha de Inglaterra.

O filme todo ocorre, fora das poucas exceções em décors exteriores ou pré-existentes, num soundstage. O espaço poderia facilmente fortalecer um certo distanciamento e artificialidade (importante pensar nos espaços liminais de Let Me Die a Woman, de Doris Wishman, que muitas vezes é criticado pela analogia estabelecida entre a artificialidade destes espaços e a do género dos sujeitos do documentário). Isto, neste caso, é evitado através do argumento complexo e da escolha de pessoas trans para interpretar os diversos Orlandos (nos quais depositam as suas próprias histórias de vida). Dá-se ao longo da duração um malabarismo constante entre a ficção do livro, a ficção do filme e um registo documentarista onde é criado um espaço seguro onde estas pessoas se conseguem autodefinir num devir eterno onde não têm de se preocupar com respostas fixas e destinos tangíveis.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Orlando, Ma Biographie Politique, Paul B. Preciado © Les Films du Poisson]

She Came to Me: Berlinale abre com comédia romântica

She Came to Me, de Rebecca Miller, será o filme de abertura da 73ª edição da Berlinale. A cineasta e argumentista já esteve presente em duas edições do festival, pela primeira vez como parte da secção de competição e, mais recentemente, como convidada do Panorama. 

Deixou o seu marco na Berlinale pela primeira vez em 2009, na Competição Oficial, com The Private Lives of Pippa Lee. Neste filme, Miller adapta para o cinema um romance da sua autoria, produzindo um drama romântico sobre uma mulher de meia-idade que recorda todos os devaneios da sua vida passada enquanto o seu marido mais velho sugere que saiam da sua casa para viverem num lar de acolhimento.

The Private Lives of Pippa Lee, Rebecca Miller © 2022 Plan B Entertainment

Em 2016, Miller regressa, desta vez no Panorama, com Maggie’s Plan. A cineasta continua a trabalhar dentro do género em que já tinha mergulhado no filme prévio. Neste, desenvolve uma narrativa acerca de uma rapariga que consegue com que o homem por quem se apaixonou deixe a mulher e tenha um filho com ela. O problema dá-se quando começa a ter dúvidas se a ex-mulher do novo parceiro não seria realmente a sua alma gémea… Enquanto The Private Lives of Pippa Lee estava repleto de grandes nomes no elenco, desde Keanu Reeves a Julianne Moore, Maggie´s Plan assumidamente estabelece as suas ambições intimistas ao escolher Greta Gerwig, a madrinha do cinema indie dos anos 2010, para interpretar o papel de protagonista. Ao longo dos anos, o filme foi aclamado por muitos críticos pelo seu sentido de humor, inteligência e uma subversão da comédia romântica, que mesmo já presente nos seus filmes anteriores, neste se encontra melhor conseguida.

Maggie’s Plan, Rebecca Miller © 2022 Hall Monitor, Inc.

Agora de novo na Berlinale, desta vez abrindo o festival, Miller regressa com She Came to Me, prometendo apurar o género que veio a desenvolver sem deixar de exercer o seu cunho pessoal subversivo. A Berlinale descreve o filme como uma “comédia encantadora sobre o amor em todas as suas formas, que cria uma teia de histórias a partir das vidas de um carismático elenco de personagens a viver na romântica e movimentada metrópole de Nova Iorque.” A narrativa desenvolve-se à volta de Steven Lauddem, um compositor interpretado por Peter Dinklage, que se encontra num estado aflitivo de bloqueio criativo no momento em que precisa de acabar a partitura com que vai regressar ao mundo da ópera. Segindo o conselho da sua mulher, Patricia (interpretada por Anne Hathaway), ele começa uma missão com o objetivo de encontrar inspiração. Esta viagem acaba por o levar por caminhos que não pretendia, ou sequer imaginava…

A realizadora continua a inovar a comédia romântica dentro do próprio sistema, algo especialmente visível na técnica já exercida nos seus últimos filmes, ao contrastar elementos mais mainstream (neste caso o género do filme e os grandes nomes que interpretam diversos papéis), com inovações narrativas, temáticas e formais (que podemos esperar tendo em conta a sua filmografia). A sinopse descreve o filme como uma “comédia irresistível que se desenvolve em cima dos conflitos quotidianos da sociedade ocidental” e decide destacar a forma como as suas personagens encontram liberdade indo contra as regras estritas da sociedade (chegando a comparar a energia do filme à liberdade de expressão palpável nos filmes da era pre-code de Hollywood). Este caráter e descrição rima com a escolha que o festival fez na curadoria da secção Retrospective, na qual decidiu encarnar e celebrar o espírito livre da juventude na primeira edição do festival sem restrições ligadas à pandemia que o afetou nos últimos anos.

Destaca-se na lista da equipa e elenco o nome de Christine Vachon, uma produtora de cinema importantíssima, principalmente no mundo do cinema indie, desde o seu papel fulcral no desenvolvimento de filmes transgressivos e de baixo orçamento na década de 90, à escrita de Shooting to Kill, um dos livros mais aclamados sobre a produção de cinema independente. A presença deste nome pode levar à antecipação de She Came to Me como algo realmente único.

Os espectadores terão de esperar até à sua estreia no dia 16, mas a prometida conjugação de “destinos e coincidências” que permeiam a narrativa com o seu caráter excêntrico, mostra que o filme é, sem dúvida, uma escolha adequada para começar esta edição do festival, reforçando a aposta do mesmo numa liberdade e autonomia agora recuperada.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: She Came to Me, Rebecca Miller © 2022 Protagonist Pictures]

Berlinale, Jovem de novo

Ao explorar o programa da 73ª edição da Berlinale é difícil não ficar maravilhado com as numerosas ofertas de cinema contemporâneo que este oferece, mas isto não nos deve ofuscar a atenção da secção Retrospective. Esta secção dedicada à história do cinema foca-se, em cada edição, numa temática diferente.

Habitualmente organizado pela da Cinemateca Alemã, este ano a abordagem foi especial: mantendo a curadoria de Rainer Rother, diretor da Deutsche Kinemathek, foram por ele escolhidos 29 cineastas, argumentistas e atores a quem deu carta branca para a escolha de um filme predileto que se enquadrasse dentro do tema “Young at Heart”, focando-se em filmes “coming of age

Rainer Rother disse: “Nesta altura, com as alterações climáticas, a pandemia e a guerra, a geração jovem está a enfrentar medo, dúvida e um futuro incerto. O cinema – como uma instituição cultural também em fluxo – oferece um lugar onde encontrar e ilustrar ideias para moldar o futuro. (…) Podem imaginar liberdade e exprimir ideais, evocar sentimentos profundos, criar comunidades, e deixar marcas para toda a vida. Filmes coming-of-age, em particular, são um diálogo de possibilidades, de onde a audiência pode retirar perspetiva e inspiração sobre como moldar o futuro.”

Depois de dois anos marcados pela pandemia, temos finalmente, em 2023, uma edição da Berlinale sem medidas de restrição que aposta num regresso à  experiência anual comunitária de ver cinema em liberdade, permitindo aos espectadores do festival mergulharem nas obras e no próprio ambiente destes 11 dias. 

Ao ver as escolhas da Carta Branca desta secção, o primeiro sentimento é o quão variado o programa é, mostrando as multitudes imensas que se encontram no género. Isto não é indicado apenas para bradar louvores ao género, mas porque mostra que a escolha de cineastas, atores e argumentistas foi feita de forma a englobar perspetivas que ocupam todo o espectro da visão artística, não só na sua criação, mas também no seu visionamento.

Para mostrar esta variedade, é possível fazer alguns destaques:

Nadav Lapid, realizador israelita conhecido por criar uma obra muito densa, não só a nível temático, mas também formal, da qual se destaca, por exemplo, A Professora do Jardim de Infância, realizado em 2014, um filme que explora as teias sinuosas da ética). Lapid escolhe De Bruit et de Fureur, realizado em 1988 pelo iconoclasta, recentemente falecido, Jean-Claude Brisseau. Este filme, que se tem vindo a tornar de culto ao longo das últimas décadas (principalmente tendo em conta o restauro recente), destaca-se pela abordagem violenta e chocante, e ocasionalmente surreal, com que trata a vida dos jovens que protagonizam o filme.

De Bruit et de Fureur, Jean-Claude Brisseau © Les Films du Losange

Tilda Swinton, que além do seu papel de atriz é também conhecida pela sua ardente cinefilia eclética, faz uma escolha fora da caixa, decidindo programar Kiseye Berendj, realizado em 1996 por Mohammad-Ali Talebi. Este filme iraniano conta de forma simples uma história de uma criança no Teerão na sua missão dedicada de comprar um saco de arroz. Kiseye Berendj permanece até hoje pouco visto e com esta escolha Tilda Swinton expõe-no a um público maior.

Kiseye Berendj, Mohammad-Ali Talebi © Mitra Mahaseni

M. Night Shyamalan é um realizador que dentro do mainstream consegue sempre ir contra a corrente, não só através das suas narrativas bizarras e sempre esperançosas, mas também através de uma apuração cada vez mais extrema de um formalismo autoimposto. Este ano, escolhe programar The Last Picture Show, realizado em 1971 por Peter Bogdanovich. Esta seleção regressa ao cinema clássico americano, não a escolha mais comum nesta secção (mas que faz todo o sentido tendo em conta o cineasta). Shyamalan decide destacar um filme chave do movimento do New Hollywood Cinema, um rejuvenescimento de Hollywood a autocompreender-se através de novas regras e parâmetros (um paralelo fulcral com o que o realizador tenta fazer na sua carreira).

The Last Picture Show, Peter Bogdanovich © Columbia Pictures Industries

“Depois de dois anos de pandemia, todos nós nos sentimos como uma personagem num filme coming-of-age” afirma Rainer Rother. Isto aplica-se não só de forma geral, mas também especificamente à redescoberta de uma nova vida do espectador de cinema. Com este ciclo, a Berlinale convida toda a gente a entrar no festival com um olhar novo e perceber o crescimento que já houve e o que ainda há de vir.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Rebel Without a Cause, Nicholas Ray © 2022 Warner Bros]