Deborah Stratman: a ambiguidade ou o inexpugnável lirismo das máquinas

Subsiste a tendência para, sem tardar, procurar legitimar os objectos artísticos com que nos defrontamos. Legitimação política, social, ética, moral, etc. É – não só, mas também -, a uma tal urgência de integração (e regulamentação) da arte, que a obra de Deborah Stratman diz respeito, criticando-a, justamente, pela resistência que apresenta a uma categorização linear. Deborah Stratman, artista destacada na 31ª edição do Curtas Vila do Conde – International Film Festival, com a projecção de curtas-metragens de sua autoria, a atribuição de uma carte blanche, e a exposição Unexpected Guests, patente na galeria Solar: presença motivadora de um ensaio reflexivo acerca de uma obra inscrita num tempo histórico particularmente ruidoso, cuja impermeabilidade (a uma voz singular, a uma crítica justa, a uma dissensão por mais ponderada), como aparência, como imagem, corpo a modelar, a penetrar, a adulterar, mas igualmente a escutar, a recolher silenciosamente na sua novidade mais ou menos monstruosa, mais ou menos maravilhosa; impermeabilidade, dizíamos, que constitui a matéria-prima do mais refinado posicionamento crítico. Neste sentido, poder-se-á falar de uma poética, ou até, de uma linguagem, da incomunicabilidade. Uma linguagem que trabalha com a imagem que se recusa, que é escuridão, silêncio, sem, todavia, obrigar senão ao mais rico encontro, nesse plano em que imaginação antecipatória e construção se tocam, entre mutismo e diálogo.

Stratman trabalha o problema da legitimação artística, muito embora não na medida em que procura alinhar com um qualquer alfabeto vigente e de alta eficiência mediática, isto é, não ambicionando para si essa legitimidade – a oscilação do espaço de exposição dos seus trabalhos é, de resto, sintomática de uma presença marginal e, daí, potencialmente panorâmica e crítica. À artista norte-americana parece afigurar-se-lhe de maior interesse o exercício de explorar os efeitos que a sua obra visual – cinematográfica e/ou plástica – comporta e pode comportar no espectador, independentemente da sua proveniência social, política ou cultural. Fazer a tábua rasa como o projecto imenso e fresco (Maria Filomena Molder adverte, em Palavras Aladas (2022), para o gesto da tábua rasa como próprio da juventude) do acto (desde logo, político) de olhar um mundo (o nosso), cujo crescimento e expansão correspondem igualmente a um imenso trabalho de destruição e declínio. O que vem complexificar a relação umbilical e perfeitamente mútua entre crescer e destruir, entre prometer e findar, é o gesto concomitante, a que corresponde esse jogo duplo, da assinatura do homem nesse mesmo mundo, e que vem inscrever o poder como o âmbito tão rizomático quanto dissimulado (e, com efeito, dramático) em que o homem se move e por que se constitui. Chegamos a um impasse, tanto de ordem epocal quanto de natureza filosófica; indecidibilidade que se forma precisamente no território flutuante que os seus limites (e, sobretudo, uma certa ideia de limite) encerram por sobre um tempo indeterminado, potencialmente excedente do período histórico em que se anunciam e de que se valorizam simbolicamente. Recuperemos algumas palavras de Bernard Stiegler em States of Shock, a propósito do pensamento invariável e repetidamente (em loop, como Hacked Circuit, exposto na Solar) esgotado e, dessa feita, inconcluso, acerca da economia sistémica pensada por Stratman: “In particular, one cannot fail to notice here that what is said about the system seems to leave no room for the question of the limits of the system, for the fact that any dynamic system has limits, and that a time will inevitably come when these limits are reached, philosophy consisting perhaps always and firstly in thinking such passages to the limit.” (Stiegler, 2015: 93). O plano em que os limites se jogam, antecipando a sua própria refutação, isto é, consistindo no fantasma da sua forma póstuma, é o plano da técnica, à qual Stratman, pela realização de filmes-observatório, cede pela articulação com um lirismo especulativo, gerado no olhar compassivo (assim o imaginamos) do espectador. Assim, o que de puro pode existir é essa articulação técnica, prestes a perder para outra proposta mais refinada numa história técnica universal, lançada, e igualada, no mesmo terreno virtual que a designada história natural: “the pursuit of the evolution of the living by other means than life – which is what the history of technics consists in (…)” (Stiegler, 1998: 135).

Pensemos num filme como Second Sighted (2014), cujo título sugere imediatamente o gesto de voltar a olhar, rever, testemunhar, ou melhor, testemunhar uma testemunha (que se julga, presentemente) passada, sabendo de antemão que um tal exercício comporta o lance no território falsário da ficção – joguete que a artista ajuda a desconstruir, servindo-se, como pedra-de-toque, do registo documental como presença desestabilizadora da fronteira entre fantasia e real, sob mediação do papel do arquivo (como espécie de excedente, destinação entrópica, da História). As primeiras imagens do filme situam-no num registo cindido entre a imagem surreal(ista) – é difícil resistir a sobrepor à imagem inicial, dos olhos incendiados, essa outra de Un Chien Andalou (1929), também a abrir o filme, da sutura do olho – e a mera captação técnica de imagens de uma cidade, no caso, de uma senhora idosa no cais de uma estação de comboios. Partículas brancas em gradativa concentração (lembrando-nos dessa afirmação de Carl Sagan, de que o homem é nada mais que poeira de estrelas), um par de olhos em chamas, prédios incendiados, na iminência do desabamento, tratam-se dos planos iniciais do filme, seguidos de um zoom na figura da tal transeunte, sequência que aponta para a hipótese da identificação de uma agência, pela ligação causal entre o fogo e o rosto humano. Há, todavia, uma força que persiste e que inibe a um encadeamento narrativo que dessa figura humana constituísse o agente de um crime (por fogo posto, nomeadamente), pela atribuição de uma autoria (a culpa seria uma consequência possível, de todo o modo incerta). E, de facto, dessa primeira hiper-sugestão por via de uma vigilância que também nos cabe a nós, espectadores, não há seguimento nem evolução narrativa alguma. A deriva persiste, como essa força enigmática que tudo traga, tudo aparentemente igualando, manifestando-se não só paralelamente ao desenho de directrizes traçadas por cima de imagens de paisagens variadas, como por esses mesmos desenhos instigada. 

Second Sighted (2014), Deborah Stratman ©
Second Sighted (2014), Deborah Stratman ©
Second Sighted (2014), Deborah Stratman ©

Parece haver tão-só circuitos a repetir e matéria a captar, infinitamente. E essa repetição, e a eventualidade da captura e do registo sensíveis, dão-se através de uma data de recursos técnicos. Lembre-se Vever, filme composto de imagens de uma viagem que Barbara Hammer faz à Guatemala em 1975, com textos – a servir de marcação temporal – de Maya Deren, sobre o trabalho artístico, o nascimento da arte, o fracasso, a composição criativa. Estruturalmente o filme é também uma second sight, e é-o nos termos em que repete um determinado circuito, reciclando material imagético e literário, não obstante revitalizado numa montagem singular, pelas mãos de Stratman. A repetição do fracasso, um modo aperfeiçoado de errar, valendo sobretudo a formação de uma imagem inconsciente do corpo, da matéria, memória sensível independente do esquema corporal que a cada um cabe transportar, e que nos une numa língua universal, instigante, muito embora jamais passível de ser articulada. É sob o signo da incomunicação, da opacidade, do que resiste a ser significado sob a suposição de que assim se encontra desconstruído, caso encerrado, que os filmes de Stratman se realizam.

Vever (2019), Deborah Stratman ©
Optimism (2018), Deborah Stratman ©
Optimism (2018), Deborah Stratman ©

Há um retrato que fica sempre por acabar: no caso de Vever (2019), o do modo de viver das comunidades na Guatemala, bem como da intenção (termo assaz referido durante o filme, seja em palavra escrita e inscrita na película, seja pela voz off) que verdadeiramente motivou aquela viagem e, posteriormente, aquele filme, que é, não nos esqueçamos, a marca do abandono de um outro filme (de Hammer). É precisamente com essa impossibilidade de acabar – que o termo (empiricamente necessário) de um objecto fílmico exerce – que o dispositivo técnico dialoga, no sentido de tornar mutáveis as posições de criador e criação, ao ponto de se tornar indistinguível quem filmou e quem foi filmado ou, seguindo as palavras do filme, de quem, de que parte e qual a intenção subjacente: do real prévio à filmagem, do real que a película revelou, do real resultante da montagem de Stratman? O sem termos do acto de olhar, e dos estímulos a que a realidade nos expõe, inviabiliza a definição clara de fronteiras, e apresenta como o porto mais seguro a asserção da ambiguidade: “It was only after I had conceded my defeat as an artist, My inability to master the material in the image of my own intention, That I became aware of the ambiguous consequences of that failure”. Tudo o mais serão traços na areia, deslizamentos de terra, um barco à deriva no mar, vogando sobre as ondas, rimando, de resto, com a imagem particularmente impressionante, imóvel, de um navio num mar congelado, em Optimism (2018)filme que toma, como problema central, o território de Dawson City, no extremo norte do Canada: território gelado, inóspito, no qual toda a forma de vida surge como uma incontornável manifestação, conquanto sóbria, do desejo. Também aí parece operar-se a tentativa de fazer uma razia de sentido, em grande parte sugerida pelo título que denota, quase comicamente, a disponibilidade – e a inteligência – para a confiança, a boa-fé, ainda que acabe por destacar a desolação das primeiras imagens do filme. A paisagem de neve é imensa, qualquer corpo que a atravesse é um pormenor de cuja passagem não se acreditam vestígios. Neste sentido, o ecrã dá-nos os traços de um desenho breve, à partida extinto, de que nada restará senão a sua passagem. Funde-se ouro, bailarinas dançam num bar, que assombrosamente se assemelha a um estaleiro, a um local onde se pára, estando em viagem, mas onde não se fica, onde nada nos diz que fiquemos. Os locais que habitamos são aqueles que nos despertam o desejo de neles reconhecer um motivo para permanecer, tratando-se primeiramente de um desejo de leitura: o lugar diz-me, pede, que o leia e que nele encontre um motivo desejável. Apesar desses elementos de vida breve – um homem a trabalhar o ouro, mulheres a dançar num palco – tudo nos reafirma a estranheza de estar ali. Um recorte circular de espelho surge, ofuscante, no meio da paisagem. Espelho que não deixa ver nada. Imagem abstracta que interliga metonicamente sol e ouro, configurando o primeiro como a matéria fabricada pelos residentes-resistentes da montanha, e o segundo como matéria-prima, o corpo trabalhado e o rosto identitário de quem ali viva, visto por aqueles que se limitam a chegar (para partir): nós próprios, espectadores. Mas, sublinhe-se, em Dawson City os espelhos não compreendem reflexos e/ou estes não devolvem nada.

A estranheza que impera das mais diversas formas é explorada, sendo antes de mais contacto com o real, sob recurso a aparelhos técnicos cuja presença não é nunca obliterada – a câmara está sempre presente -, e pela sucessão de imagens que correspondem muito significativamente à inscrição de desenhos no espaço: no espaço da película fílmica e do mundo, ambas constituindo fundos de estranhamento, plataformas de re-significação. Diz Jean Luc-Nancy, em O Prazer no Desenho, a propósito do desenho como traço e projecto, como forma fechada e plano ao aberto: “O desenho é então a Ideia: ele é a forma verdadeira da coisa. Ou, mais exactamente, ele é o gesto que provém do desejo de mostrar esta forma e de a traçar de modo a mostrá-la. Não se trata, contudo, de traçar para mostrar como uma forma já recebida: traçar é aqui encontrar, e para encontrar há que procurar – ou deixar que ela se procure e se encontre – uma forma por vir, que deve ou que pode vir no desenho.” (Nancy, 2022: 17). O desenho, que em Musical Insects (2013) tem um papel estrutural – filme composto a partir de um livro de ilustrações com a exposição paródica de diversas espécies de gafanhoto -, representa um mecanismo de realização cinética e a proposta de um plano de investigação em curso. E aqui desenho é todo e qualquer movimento de intercepção com o meio: seja um amontoado de terra a ser revolvido por uma escavadora, um barco cortando as águas do mar, a sobreposição de setas e sublinhados por cima do plano de uma paisagem, a impressão da ausência de corpos na relva, em The Magician’s House (2007). Neste filme, fotografias, retratos desvanecidos, o posto de correio com a inscrição “ithaca jounal”, as vozes imperceptíveis de duas crianças, uma casa vazia, em que os sinais de vida compreendem uma função mitológica ampliável (lembrada a Odisseia pela referência a Ítaca, um retrato que não parece do tempo da casa, encerrando um arcaismo, temporalidade ilocalizável, conquanto potencialmente redentora).

The Magician’s House (2007), Deborah Stratman ©
The Magician’s House (2007), Deborah Stratman ©
The Magician’s House (2007), Deborah Stratman ©

O mito, na sua dimensão universal, também ela plástica, dispõe tanto a memória como território a desbravar, jamais absolutamente conhecido, como enquanto desolação e abandono de uma forma que, antes de se prestar a constituir o signo identitário de um alguém, é por excelência marca de presenças passadas, irrecuperáveis, tão-só imagináveis. Mas a imaginação é aqui, neste tempo que nos cabe e que parece ter chegado já tarde, matéria para as máquinas talharem. Saberemos, ou não, um dia, com que mãos, e com que guindaste, urdimos o nosso próprio retrato no mundo. E que máquinas habitaram os pontos cegos que nos formam e nos motivam a continuar e aos quis, por facilidade, nos habituámos a designar: universo infinito.

Bibliografia:

Nancy, Jean-Luc (2022). O Prazer do Desenho. Lisboa: Documenta.

Stiegler, Bernard (1998). Technics and Time 1. Stanford: Stanford University Press.

Stiegler, Bernard (2015). States of Shock, Stupidity and Knowledge in the 21th Century. Malden: Polity Press.

Maria Brás Ferreira

A marcha do tempo no laboratório mental de Pedro Maia – Entrevista

É no cruzamento de matérias primas, de suportes analógicos e digitais e na dilatação dos seus limites que se descobre o trabalho de Pedro Maia, realizador português a residir em Berlim há vários anos. O confronto dos materiais, a desfiguração, destruição ou diluição do figurativo e da própria materialidade das imagens, com vista à reificação da abstração, remete para uma ideia de pintura em movimento trabalhada sobretudo em película de 16mm e 8mm. Desde as primeiras experiências em Super 8, passando por um filme criado a partir de “restos” de planos do filme A Zona (2008), de Sandro Aguilar (onde trabalhou como segundo assistente de realização), até à multidisciplinariedade que cruza live cinema, música, livros e instalações, chegamos ao ponto em que já não há (ou nunca houve) imagem real. É o caso de March of Time, que estreou na competição experimental do Curtas Vila do Conde 2023.

O realizador afirma que o filme nasceu do “interesse de explorar a inteligência artificial (AI), porque o que tenho visto é muito mau e muito piroso. Então foi pensar em utilizar isso para voltar atrás. Pegar nesta ideia de regressão da tecnologia, do futuro a olhar para o passado e a recriá-lo. Lembrei-me de pôr a AI a criar imagens destruídas de 16mm. Produzi um algoritmo que concebia uma espécie de terceiro analógico. Portanto, é a inteligência artificial a tentar criar imagens que ela entende serem imagens de 16mm destruídas.”

Partindo de uma reflexão sobre o tempo e a sua influência nos suportes fílmicos, a ideia passou por usar mecanismos de machine learning (um processo tecnológico que permite aos computadores adquirir e desenvolver conhecimento sobre determinado assunto automaticamente) de forma a criar imagens degradadas de 16mm.

Se o conceito nos deixa curiosos, o resultado não é menos interessante. O que vemos é uma sugestão estética daquilo que seria película destruída/desfigurada do ponto de vista da máquina. Nunca saberemos que imagens reais aquela desfiguração esconde, levando a nossa mente a viajar por este filme-fantasma, pleno de cores, formas e texturas, divididas em “capítulos”, de onde a narrativa não está completamente ausente. Há vontade de criar uma estrutura, um desenvolvimento, um ténue fio condutor que, por muito minimal que seja, nos guie pela aventura imagética. Sem deslumbres, – porque há sempre o contacto com a pobreza inerente àquilo que a inteligência artificial é capaz de produzir – o realizador utiliza aquilo que é mais uma ferramenta ao seu serviço, não esquecendo as suas limitações. Neste caso, o trabalho é também a procura das imagens certas. É preciso treinar o computador, domesticá-lo, conduzi-lo através de um caminho atestado de informações e fazê-lo “pensar”, “ensinar-se”. 

March of Time, Pedro Maia ©

À semelhança de alguns projectos como How to Become Nothing (2017) ou Janela do Inferno (2022), onde tem sido feita a articulação entre objectos fílmicos mais tradicionais de montagem fixa e formatos ao vivo, com March of Time acontecerá o mesmo: “Agora estou em conversas com alguns sítios para passar isto para 16mm e mostrar como  instalação. Com o Pedro Vian, que fez a banda sonora, estamos a desenvolver um concerto com base nisto. O filme foi comissariado pelo 25AV que financiava uma peça audiovisual a um duo que concorresse. Agora, quatro desses projectos vão ser selecionados para a vertente ao vivo. Nós ainda não sabemos se vamos ser selecionados, mas já estamos a avançar com o projecto.”

Esse desejo por cruzar diferentes disciplinas artísticas é expresso pelo realizador, que dá o exemplo de vários dos seus outros trabalhos: “Cada vez mais tenho essa necessidade de que o projecto não seja só uma coisa. Especialmente por causa dessa necessidade de deixar um ou vários registos. Por exemplo, a partir do How to Become Nothing fizemos o Fade Into Nothing, porque o Indielisboa estava interessado em mostrar isto em competição. Agora, quando olho para o filme, fico arrependido, porque é muito menos radical. Fizemos uma versão mais contida, menos confusa, onde a montagem é muito mais simples. Ao vivo há muitas coisas que acontecem. Agora arrependo-me de não ter transposto essa radicalidade do live cinema, que para mim foi a melhor forma de mostrar o projecto”.

Também Janela do Inferno, filme comissariado para um concerto do festival Walk&Talk nos Açores, transformou-se numa curta-metragem: “Convidaram-me para fazer o concerto de abertura do festival e decidi convidar a Lucy Railton, que faz música electrónica experimental, para fazermos a residência em conjunto. Depois o Luís Fernandes, que comanda o GNRATION, convidou-nos a fazer uma peça para ficar online, com uma montagem fixa entre 10 a 20 minutos.”

March of Time, Pedro Maia ©

Essa experiência em filmes-concerto e live cinema, levou-o a desenvolver um trabalho muito forte no que toca à articulação com a música e espetáculos ao vivo, algo que é reforçado pela sua visão cinematográfica: “Como eu venho do cinema experimental e não da media art, para mim tudo no ecrã tem que funcionar como um filme. Depois quando pões a banda, as luzes, o público, isso fica muito mais forte. No meu trabalho, apesar de todo o improviso envolvido, há uma estrutura em que sei mais ou menos a música, os tons, e sei que começo num certo ponto e sei onde tenho que estar no momento seguinte. Aquilo tem que continuar a funcionar por si só numa sala de cinema. A narrativa é muito importante também para os músicos e não tem que ser uma coisa óbvia. Nos meus filmes experimentais e concertos abstractos há sempre qualquer coisa que me guia e espero que guie de alguma forma o concerto. Às vezes coisas muito básicas como começar muito escuro e acabar muito claro. Só isso já é importante, porque te ajuda a restringir, a saber que tens que fazer determinada coisa. Como faço isto há muitos anos, já consigo respirar fundo, mas quando estás ao vivo o tempo é muito mais rápido. Se não tens pausas, é difícil. O mais importante para mim é teres uma narrativa, seja lá qual for.”

Sobre voltar a trabalhar filmes mais narrativos ou figurativos como Fade Into Nothing ou Guanche, projecto para o festival ALESTE na Madeira, que voltou a juntá-lo a Paulo Furtado e à actriz Iris Cayatte, o realizador acrescenta: “Apresentamos na Madeira, no Curtas Vila do Conde, no Porto, e é um projecto que é cinema, música e spoken word. Apresentamos no Curtas e tivemos muito bom feedback. É narrativo, mas também muito experimental. Mas a minha tendência é ir sempre para coisas não narrativas, apesar de haver sempre uma estrutura, como no Janela do Inferno: há uma ideia de percurso, uma narrativa, apesar de ser muito experimental, mas acontece mais quando trabalho com outras pessoas. No Guanche escrevemos um guião e acabamos por fazer uma coisa totalmente diferente.”

Guanche, Pedro Maia ©

Nesse cruzamento de várias disciplinas artísticas, naturalmente, os projectos acabam por vir de impulsos diferentes. O facto de trabalhar num dos últimos laboratórios da Alemanha a fazer todos os processos analógicos (revelação, cópias de cinema, etc.), onde é responsável pelas digitalizações, fez com que fosse à procura de bobines de nitrato, “porque as cinematecas têm, mas aquilo está sempre muito bem guardado, porque é muito inflamável e é difícil ter acesso. E eles disseram-me que tinham lá umas latas. E aquilo eram imagens de um incêndio para aí de 1930, um filme que está completamente destruído, com imagens de um fogo num suporte que é altamente inflamável. E decidi que tinha que fazer alguma coisa com aquilo, uma coisa de 5 minutos, muito simples.”

Berlin Feuer, Pedro Maia ©

Daí nasceu Berlin Feuer (2021), onde a forma se alia ao conteúdo representado, dando origem, pela sua fenomenologia, a um filme-chave e representativo do seu trabalho: “Digitalizei as imagens e estava a trabalhar com elas, mas achei que fazer uma coisa só com found footage, como o Bill Morrison faz, não era suficiente e decidi intervir na película. Muitos dos projectos que faço em película passam por uma primeira destruição. Digitalizo, faço uma segunda destruição, digitalizo, etc. Até quase o original ser perdido. No Guanche tenho isso: imagem limpa até um nível de destruição em que quase não vês nada. Gosto dessa ideia de o que fazes ser irremediável, de fazer os filmes como faço os concertos, com essa qualidade quase efémera.”

O que também ajuda a tornar o seu trabalho particularmente interessante e único é uma despreocupação com purismos desnecessários. Identificar as qualidades latentes dos materiais e suportes com que se trabalha, desafiando-se a expandir as características inerentes ao seu trabalho através dos mesmos, tem sido receita para os seus filmes: “Gosto de articular o digital com o analógico. Uso muito o digital, faço muita coisa em 4K. Não me interessa aquela ideia nostálgica da película ou do antigo. Isso não me interessa. Eu uso a película pela sua plasticidade e propriedades. E no Guanche isso é fixe, porque consigo no mesmo concerto ir de uma imagem muito limpa em que te focas numa imagem muito bem construída de forma cinematográfica e passar para uma totalmente caótica em que quase não vês imagem. O que tenho feito em alguns projectos como o Janela do Inferno é filmar em digital e passar para película. Destruir o analógico e voltar a passar para digital. Ando sempre entre uma coisa e outra. Acho que é isso que dá força ao meu trabalho, porque no cinema tu tens os puristas da película que fazem as cópias e não percebem nada de digital. Depois há a malta do digital que não percebe nada de película. Eu estou confortável nos dois campos e acho que o meu trabalho explora isso e valoriza-se por causa disso. Não tenho aquela coisa nostálgica, mas antes um interesse em intervir na película, seja pós-revelação ou na revelação com químicos, onde mudo os tempos, o PH da água… ou aplico efeitos de solarização como o Man Ray fazia.”

Para além dos espetáculos onde alia as suas imagens à música de outros, essa relação com a música e os seus atributos é também importante nos seus filmes: “Sim, a música acaba por ser uma paixão mais forte do que o cinema para mim, mas não tenho talento nenhum. Mas é aquela coisa de fazer música com imagens. É um conceito a que eu não gosto de me associar tanto, mas é um bocado visual music.” 

A experiência em sala é a imersão nas qualidades materiais e plásticas das imagens criadas pelo realizador e da música a que se associam, numa fruição visual e sonora que não deixa de apelar a descobertas estruturais e narrativas por parte do espectador. Essa relação com a música é transposta também para a própria criação de vídeos musicais que, mais uma vez, se articulam com outros suportes:  “Fiz um videoclipe para o Vessel que se chama Passion, que tinha tanto bom material de 16mm, de stills e tudo mais, mas o Vessel não queria lançar o disco em vinil, por motivos ecológicos. Então decidimos fazer uma fanzine, limitada a 50 unidades, com base nas imagens a 16mm que não foram usadas no videoclipe, para quem comprar o digital ter a fanzine. Depois o dinheiro era doado a uma instituição de mind charity, porque a música tem também que ver com isso. Portanto, a ideia era construir um livro que fosse uma espécie de filme. Esta dinâmica é uma coisa que me interessa muito. Obviamente que o meu trabalho é mais ao vivo e sobre esta ideia de construir coisas que não se repetem.”

Para além de March of Time, Pedro Maia apresenta ainda o videoclipe “Scotch Rolex and Shackleton – Deliver The Soul, na competição de vídeos musicais do 31º Curtas Vila do Conde.

Ricardo Fangueiro

Karen e Alice: Como o Cinema aproxima/distância a marioneta da Uncanny Valley

Quando estamos num museu de figuras de cera, não é apenas a célebre e infame câmara dos horrores tão discutida que incita em nós sentimentos negativos. Pelos longos corredores nunca nos sentimos seguros com os olhares daquelas figuras miméticas em cima de nós: nem humanas, nem objetos. Várias razões verificam-no (sentimo-nos observados, temos medo que ganhem vida, etc…), mas independente destas, é uma verdade universal. Esta história não acaba com as figuras de cera, isto é observável com qualquer objeto ou coisa que se tenta aproximar duma aparência humana através da mimese. Foram mencionadas figuras de cera, mas podiam também ter sido certos tipos de robôs, esculturas, bonecos e o que é o foco deste ensaio: marionetes, fantoches e outros objetos de espetáculo.

Um termo é crucial: Uncanny. Normalmente é traduzido para “estranho”, mas na realidade é uma palavra com um significado mais específico, tendo um contexto histórico, psicológico, social e cultural muito preciso. O termo, de forma mais concreta, está ligado, não a algo simplesmente misterioso, mas à experiência psicológica de percecionar algo estranhamente familiar. O termo é usado para ilustrar o sentimento ou processo psicológico do ser humano quando se depara com algo que se encontra delicadamente equilibrado na linha ténue entre completamente alienígena e estranhamente demasiado familiar. Uncanny foi pela primeira vez utilizado por Ernst Jentsch num ensaio chamado Das Unheimliche. Neste ensaio Jentsch foca-se no conto Der Sandmann de E. T. A. Hoffman, famoso pela sua personagem Olympia: uma boneca exatamente igual a um ser humano (que mais tarde acaba por ganhar vida). Já neste texto, o uncanny começa a ser ligado a figuras como bonecas e marionetas, objetos miméticos de algo vivo (aqui também já ligado a medos racionalizados, como o de “ganharem vida”).

A doll which closes and opens its eyes by itself, or a small automatic toy, will cause no notable sensation of this kind, while on the other hand, for example, the life-size machines that perform complicated tasks, blow trumpets, dance and so forth, very easily give one a feeling of unease. (Jentsch, 1906)

Outro autor, e provavelmente o mais célebre, a trabalhar o uncanny foi Sigmund Freud no seu ensaio homónimo. Freud vai desenvolver esta definição como encontrar “o estranho no aparentemente normal”, algo que não só reforça entendimento prévio do termo, como lhe acrescenta novas conotações.

I will say at once that both courses lead to the same result: the “uncanny” is that class of the terrifying which leads back to something long known to us, once very familiar. (Freud, 1919)

Na segunda metade do século XX, este termo evolui para a sua fase final célebre. Masahiro Mori, um pioneiro no campo da robótica, cunha, na década de 1970, a expressão “uncanny valley” (nesta altura ainda só aplicado ao seu campo de trabalho). Este conceito tem referência a um vale físico numa representação gráfica da teoria de que robôs com base na figura humana vão ser cada vez mais aceites pelo ser humano, quanto mais corretamente se assemelharem. Todavia, o que Mori mostra com a sua representação gráfica é que esta não é uma curva em subida permanente, ou seja, existe um “vale”, ou uma descida na aceitação em relação à semelhança. Este vale representa a descida drástica de aceitação quando estas máquinas se começam a assemelhar de forma demasiado apurada e realista ao seu objeto (sem serem ainda absolutamente perfeitas). Isto incita no ser humano um sentimento muito forte de uncanny, uma certa inquietante estranheza. O termo, como pode ser visto, é muito específico a uma certa situação, mas o termo de uncanny valley em uso neste ensaio está mais ligado à sua apropriação mais expansiva que se encontra na nossa cultura geral. Este conceito foi estabelecido nos anos 1970 e até hoje verifica-se uma lenta entrada do termo no zeitgeist cultural em que nos inserimos. Isto deu-se em dois passos. Inicialmente o tema foi expandido para se referir a qualquer coisa que se assemelha a um humano e se encontre nesse ponto específico do vale hipotético; mais tarde, o termo começou a ser usado para se referir a qualquer coisa de característica mimética que se aproxima demasiado do objeto da sua mimese (sem esta ser perfeita). Para exemplificar melhor esta segunda evolução, seria interessante estudar a reação à tendência viral que se popularizou na internet, em 2020, da criação de bolos miméticos hiper-realistas. Pode parecer estranho, no entanto, por alguma razão, nesse ano, vídeos de bolos que imitam muito realisticamente objetos ou coisas (sapatos, garrafas, latas e até bebés…) a serem cortados, revelando que não eram a coisa que imitavam, mas sim um bolo, tornaram-se extremamente populares (principalmente no Instagram). Como estes bolos eram feitos não interessa muito para esta discussão, o que é fascinante é a forma como as pessoas reagiram. Em reação a esta tendência ganhar uma popularidade absurda, desenvolveu-se uma piada que se espalhou mundialmente, maioritariamente através do Twitter. Esta piada tinha diversas variações, sendo a sua base um medo jocoso de um futuro distópico ou cenário aterrorizante onde nada é o que parece: tudo é bolo (num momento de abraço a alguém querido, essa pessoa desfaz-se: a sua pele em pasta de açúcar, as suas entranhas em recheio de chocolate…). Pode parecer completamente ridículo, não obstante, mostra perfeitamente como a experiência psicológica do uncanny valley ultrapassa a robótica e até a mimese humana, sendo uma experiência universal que se liga a qualquer objeto camaleónico (e simultaneamente mostra também as justificações do medo do uncanny: algo não é o que parece, etc). 

Antes de abordar o tópico principal, uma rápida ligação tem ainda de ser feita: a das marionetas com o uncanny. As marionetas (neste caso referindo-se a qualquer objeto usado num espetáculo ao qual seja dado vida e movimento) podem, então, ser vistas provavelmente como o exemplo perfeito do uncanny, pois não só têm quase sempre uma característica de imitação (seja ela de um ser humano ou não), como também lhes é “dada vida” através de movimentos controlados (aproximando-se dos robôs aos quais Mori se referia). As marionetas são normalmente utilizadas em artes do espetáculo, mas este texto apenas se focará na sua relação intermedial com o cinema: num filme, a que nível e de que modo é que a técnica e as convenções próprias deste meio artístico afetam e interagem com estes objetos (principalmente no que toca à sua relação com o uncanny e a uncanny valley). Esta exploração será feita a partir do contraste entre dois filmes muito diferentes: Neco z Alenky de Jan Švankmajer (traduzido como Alice, sendo esse o nome pelo qual irá ser referido) e Superstar: The Karen Carpenter Story de Todd Haynes (que será tratado apenas como Superstar no resto do ensaio, por uma questão de brevidade e melhor compreensão).

Jan Švankmajer é um realizador checo surrealista, mundialmente famoso nos círculos de cinema de animação e arthouse devido às suas numerosas e inovadoras curtas e às suas menos numerosas, igualmente fantásticas (no verdadeiro sentido da palavra), longas-metragens. Švankmajer é um surrealista na verdadeira definição do termo enquanto movimento artístico, e não no sentido lato da palavra: um artista que explora uma realidade muito ligada ao inconsciente e que se baseia numa realidade que não é nem a nossa realidade absoluta, nem a realidade do sonho, uma “surrealidade” (como dizia o “fundador” do movimento surrealista, André Breton). Švankmajer é conhecido no seu cinema, não só pela sua vertente surrealista, mas também devido ao uso recorrente de duas artes diferentes que incorporava sempre na sua obra: o teatro de marionetas e o stop-motion (ou animação de volumes). Enquanto aqui são mencionadas marionetas, estas não se limitam à definição de dicionário, algo restritiva, de “Boneco manipulável, geralmente através de cordéis e engonços ou através da mão introduzida numa espécie de luva que constitui o corpo do boneco”. É proposta uma expansão que Švankmajer tentava atingir. No seu cinema, quando se fala de marionetas, o referente de “boneco manipulável controlado por um titereiro” está sempre em questão, no entanto, este não se restringe às limitações mecânicas desta definição. Pode ser qualquer objeto (figurativo) que é manipulado pelo realizador. Muitas vezes é já introduzida a animação de volumes, permitindo uma manipulação destas marionetas sem qualquer visível elemento mecânico da mesma (com raras exceções como o Chapeleiro Louco de Alice a ser abordado). Em segundo lugar, para continuar a falar da animação de volumes, esta não se restringe só ao controlo das marionetas, é também uma técnica utilizada para controlar pontualmente alguns objetos aos quais não são dados “vida” (como às marionetas), e também de forma estilística para criar um novo ritmo de movimento (um movimento quebrado, fluido que habita praticamente todos os seus filmes). Alice, tal como o nome indica, é um filme baseado no seminal livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Este livro trata a história de uma rapariga nova que se depara, depois de seguir um  coelho por um buraco no chão, com um mundo fantástico onde a lógica humana não se aplica. Esta obra está inserida dentro do género do non-sense, sendo as características mais marcantes da mesa a subversão da lógica comum e a estranheza não justificada (e não justificável). Face a estas características, pode-se facilmente classificar esta obra como proto-surrealista (tendo sido escrita praticamente um século antes do surgimento do movimento artístico). Sabendo isto, é de fácil compreensão a escolha de Švankmajer na obra a adaptar para o cinema. Mas existe outro aspeto que vai ao encontro direto com o tema aqui a ser explorado. No livro original, embora se trate do tema de non-sense, nem tudo é completamente abstrato. O que Lewis Carroll pega em referentes do mundo em que vivemos (maioritariamente ligados à infância) e subverte-os de forma a provocar uma assoberbante estranheza. Será uma inquietante estranheza? Não. Carroll podia muito facilmente ter deixado a sua obra cair no reino do uncanny.  Tal não acontece. O essencial a entender é a forma em relação à dupla face do conteúdo. O conteúdo estranho, mesmo dentro da sua estranheza, tem uma certa neutralidade. O conteúdo é a matéria prima a ser trabalhada,  não causa ela em si mesma este efeito no espetador. O que acontece, então, é que a escrita vai ser o elemento que empurra ou afasta este conteúdo estranho do uncanny. A forma influencia o conteúdo. Não só verificamos isto na obra de Carroll, mas também no filme de Švankmajer. A técnica e forma do cinema e da arte das marionetas é que vai influenciar o conteúdo, neste caso empurrando completamente a história até cair no fundo do abismo da uncanny valley. Sabe-se de imediato que Švankmajer não está interessado na história de Lewis Carroll como um simples exemplo de maravilha infantil:

A atração temática de Švankmajer pela infância portanto representa, não uma ânsia por uma prévia inocência, mas a articulação de um perdido conjunto de hábitos, princípios de pensamento e lógicas. De facto, “inocência”, segundo Michael Richardson, “não existe [nos seus filmes],” porque “os terrores [do amadurecimento] nunca são superados.” O perigo real vem, não do enfrentar esses terrores, mas em fingir que já não existem ou que talvez nunca tenham existido (Keith Leslie Johnson, 2017)*

Ao analisar o Uncanny deste filme, a primeira coisa que chama à atenção são as marionetas. As marionetas dividem-se em quatro categorias que devem ser analisadas individualmente. A primeira é a categoria dos objetos apropriados. Švankmajer não se limita apenas a construir as suas marionetas de forma tradicional, optando por remover objectos (normalmente utilitários) do seu propósito de existência, criando uma mistura de objetos que se assemelha à personagem em causa e à qual depois lhes dá uma nova vida. Švankmajer, no seu famoso decálogo onde dita os seus princípios para cinema de animação, afirma: 

Animation isn’t about making inanimate objects move, it is about bringing them to life. Before you bring an object to life, try to understand it first. Not its utilitarian function, but its inner life. (Švankmajer, 1999)

Este “mandamento” demonstra a forma como Švankmajer perceciona estes objetos que usa. Ele não os usa para contar as suas histórias, ele conta as histórias desses objetos (o que é ainda mais fascinante se se pensar na forma como o objeto está a representar um referente diferente: o objeto conta uma história exterior a ele, mas que só ele pode contar). Mas como é que isto promove o ambiente uncanny? Ao criar estas marionetas dá-se uma cisão dupla do referente. Pode-se olhar para a marioneta de duas formas, mas nenhuma delas vai ser reconfortante. Em primeiro lugar, a marioneta como o que ela está a tentar representar, o que incita um sentimento bizarro devido ao reconhecimento pelo espetador da representação, em contraste ao reconhecimento da sua estranheza formal (construída por outros objetos). Em segundo lugar, a marioneta como um conjunto dos objetos que a constituem, também bizarro devido à forma como, mesmo sendo os objetos coisas reconhecíveis do mundo humano, a sua mistura e a forma como são conjugados vão encaminhá-los da zona do objeto mundano reconhecível para o da representação de algo exterior e fantasioso. Isto pode ser visto, por exemplo, na personagem da Lagarta, uma personagem amigável (embora misteriosa) e reconhecível do livro de Carroll, aqui representada por uma meia com uma dentadura e dois olhos de vidro. Estes objetos não são só causadores do uncanny devido à sua aproximação do não-humano ao humano, mas também por serem símbolos da morte, não estando só presentes neste tipo de marionetas.

Isto acabaria na segunda categoria, marionetas da morte, uma categoria de marionetas muito presente na obra de Švankmajer, que se destaca principalmente neste filme. O que se entende com marionetas da morte, são marionetas feitas a partir de animais mortos, sejam estas taxidermias ou apenas esqueletos modificados. 

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

O interessante nesta categoria de marioneta é a subversão completa do uncanny. Em vez de ser uma aparência viva de algo morto, é um processo com mais etapas. Na história já mencionada de E.T.A. Hoffman, Olympia, a boneca, é reconhecida como um dos grandes elementos do fenómeno no conto, devido a ser uma figura estática sem vida que é animada (sendo o animismo um dos grandes causadores do uncanny, segundo Freud). Nestas marionetas, o processo passa por três passos. Estes crânios, ossos e taxidermias são reais: já tiveram vida, sendo essa a primeira etapa. Depois disso, estes animais foram mortos e transformados em taxidermias, a segunda etapa deste processo e também  o primeiro passo para alcançar o uncanny: taxidermias em si, mesmo as que não são marionetas, são normalmente acusadas de incitar este fenómeno no observador (seja isto pela ideia de que algo está morto enquanto devia estar vivo, então existindo a possibilidade de ganhar vida a qualquer momento, seja pela sua atitude fantasmagórica perante a  morte). A terceira etapa é a da animação das marionetas, a criação derradeira do uncanny nestes objetos: algo que já foi vivo, devendo estar morto, e que mesmo assim vive, confirmando o medo (este movimento é natural, mas não devia ser nestas circunstâncias: mais normal que o normal). Outro grande elemento nestas marionetas é o de muitas delas estarem ligadas ao conceito de amputação, sendo por exemplo, só crânios, dando a ideia de um animismo mórbido, macabro e impossível. 

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

O terceiro e o quarto tipo de marionetas são menos comuns: as marionetas clássicas e a boneca. A marioneta clássica não se encontra muito presente no filme, mas o momento em que aparece é dos mais marcantes. O principal exemplo desta categoria de marioneta é o do chapeleiro louco: uma marioneta no sentido mais clássico da palavra, controlada por fios visíveis que sobem até céus desconhecidos (seria importante ler The Clown Puppet de Thomas Ligotti, um escritor eternamente fascinado com o horror das marionetas e o animismo desse vazio). 

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

O quarto tipo de marioneta toma a forma de Alice quando diminui de tamanho. Ambas estas marionetas funcionam no nível básico do uncanny já explorado anteriormente, o qual uma boneca ou marioneta tradicional apresentam.  A grande diferença entre elas é o facto de uma ser animada e a outra não (o que vai dar de encontro ao próximo tópico onde isto será explorado de forma mais desenvolvida: a animação).

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

A animação é das partes mais importantes de qualquer filme do Švankmajer. Durante muito tempo, o cineasta fez curtas-metragens que a ela se restringiam, mas a mistura entre live-action com este meio começou a ser mais explorada pelo autor nas suas longas-metragens. As últimas têm sempre um nível variante de live-action (algumas até tomando o ator humano como papel principal), contudo, contêm sempre, sem exceção, o uso fulcral da animação. Esta é utilizada em duas grandes vertentes: a animação de marionetas e a “hiper-animação”.

A animação de marionetas já foi de certa forma explorada em parágrafos anteriores, mas não o suficiente para chegar ao seu núcleo. Esta expressão artística é dos elementos mais importantes e responsáveis pelo ambiente uncanny do filme, podendo até ser estudada em separação da marioneta. O referente que dela existe é o de algo que tem um titereiro, alguém que a controla. O que a animação neste caso efetua é retirar “as cordas” ao objeto, ou seja, o elemento que permite o espetador criar uma ligação entre ele e o seu titereiro. A marioneta já é considerada um dos grandes exemplos do uncanny, devido à semelhança ao seu referente e ao animismo que implica. Todavia o titereiro e as suas cordas funcionam como um cobertor reconfortante que garante que esta não passa de um objeto. Švankmajer aumenta o desconforto ao retirar este cobertor de segurança, deixando o espetador a sós com o uncanny.  O cineasta escolhe então estrategicamente também mostrar os fios de uma marioneta: a do chapeleiro louco. O seu artifício fica em completa evidência, ou seja, em vez de ser só um objeto que é suposto tomar o lugar de outra coisa, é uma marioneta. O espetador reconhece a marioneta, como o que ela representa e agora também como marioneta em si. Vê que está a ser controlada, mas não sabe pelo quê. Isto amplifica o horroroso mistério, mas agora para outro campo: o titereiro invisível. 

O outro tipo de animação usada é a “hiper-animação”. Este termo é aqui usado em referência à animação do real, ou seja, das filmagens live action. Esta divide-se em duas grandes categorias, a do possível e a do impossível. A do impossível, contrariamente ao que o nome diz, é a mais “normal”. Esta designação refere-se a quando Švankmajer anima objetos ou pessoas (não marionetas) de forma a conseguirem realizar ações que não conseguiriam no mundo real (tomemos como exemplo a transformação de Alice na boneca, sendo este momento já um crossover entre a hiper-animação e a animação de marionetas, ou até o momento em que a Alice entra dentro da gaveta).

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

Embora isto seja bizarro, obriga-nos a aceitar uma realidade alienígena à nossa. A hiper-animação do possível é mais bizarra. O realizador pega em ações de pessoas ou objetos que poderiam ser simplesmente filmadas e quebra-as em fotogramas, animando-as em vez de as filmar “normalmente”. Esta técnica encontra-se muito presente nos filmes deste realizador, sendo o exemplo mais notório provavelmente o da curta-metragem Food. O efeito que ela tem no espetador é a de este estar a ver uma ação normal na qual algo está ligeiramente errado: o espetador perceciona o movimento, mas este está diferente o suficiente do seu referente real para causar um sentimento uncanny. O oposto disto seria, no cinema digital, a utilização de 60 frames por segundo ou outro tipo de FPS elevado: enquanto neste filme a estranheza vem do movimento ter “frames a menos”, aproximando-se do real sem chegar lá, nestes exemplos do cinema digital a estranheza vem de um sentimento de a imagem ser “mais real que o real”, aproximando-se demasiado da nossa perceção do movimento fora do cinema (algo à qual não estamos habituados).

Seria impossível dar como terminada uma análise de Alice sem mencionar a sua realização. A realização de Švankmajer é interessante devido à sua forma de aproximar o conteúdo da estranheza e do uncanny. Este efeito é alcançado através de uma linguagem maioritariamente clássica e linear no que toca à realização e apresentação da narrativa, ocasionalmente quebrada por chamadas de atenção à sua presença. O que esta linguagem atinge é o embalar do espetador numa consciência narrativa no qual se sente imerso (mesmo com o seu bizarro conteúdo) até ser completamente quebrado por momentos muito artificiais e pouco naturais, como os planos de pormenor da boca de Alice.

Em contraste, é possível concluir este estudo com uma análise do filme Superstar: The Karen Carpenter Story, filme realizado por Todd Haynes, em 1988, que conta a história de vida de Karen Carpenter (a célebre vocalista da banda The Carpenters), focando-se principalmente na luta com o seu distúrbio alimentar (anorexia nervosa). O que esta obra prova é que a técnica cinematográfica, embora seja normalmente usada para exacerbar o sentimento de uncanny causado pelas marionetas, pode também servir para o amenizar.

Neste caso, encontram-se em jogo vários elementos que contribuem para este efeito. Um dos principais é o seu contexto. Este filme usa bonecas e bonecos barbie que modifica e manipula.

Superstar: The Karen Carpenter Story, Todd Haynes ©

Estes objetos, tirados de contexto, muitas vezes seriam ligados ao sentimento de uncanny (brinquedos como bonecas são elementos recorrentes no cinema de terror), mas o que Todd Haynes faz é explorar meta textualmente o contexto sociocultural em que se inserem. Acima de tudo, Haynes quer criar uma identificação com estes bonecos, ou seja, quer estabelecer pathos:

Bem, a ideia de fazer um filme com bonecas na verdade veio antes de qualquer outra coisa. Eu vi um pequeno trailer promocional a preto e branco na televisão – um excerto vintage de TV dos anos 50, que introduzia a Barbie ao público Americano. E tinha uma pequena cena interior em miniatura com a boneca sentada pela sala de estar, e depois a barbie entrava e mostrava o seu novo vestido à Midge e também era intercalado com cenas live action- uma rapariga jovem a abrir a caixa de correio, filmada de dentro da caixa de correio, a receber o seu correio do clube de fãs da Barbie. E eu fiquei muito intrigado com a ideia de fazer uma narrativa bastante direta a beber de formas populares pré-existentes, mas simplesmente substituindo atores reais com objetos inanimados, com bonecos. E sendo muito cuidadoso e detalhado de forma a provocar o mesmo tipo de identificação e investimento na narrativa como um filme real conseguiria. (Haynes, 1989)**

Estes bonecos estão ligados à nossa infância, reconhecemo-los por os termos usado como brinquedos, tendo nós sido os seus manipuladores (ou os titereiros). A primeira escolha importante que Haynes faz é a de não usar animação stop motion, mas sim manipular os objetos como marionetes clássicas. Mesmo tendo o titereiro fora de campo, isto aproxima os objetos à nossa realidade, não de uma forma estranha, mas de uma forma familiar que nos permite estabelecer com eles uma ligação emocional (a experiência de ver o filme é semelhante à de vermos alguém a brincar com uma casa de bonecas, criando narrativas das quais são o seu “Deus”). Outro relevante aspecto do contexto sociocultural é a iconografia da Barbie em si. Esta é uma boneca ligada muitas vezes a estereótipos de “perfeição” que a sociedade impunha no papel da mulher (mesmo que a marca se tenha afastado disso ao longo dos anos, na época em que a história se passa esta era a sua conotação). Por esta razão, faz todo o sentido usar estas bonecas para contar uma história sobre distúrbios alimentares, criando imediatamente uma ligação de forte de pathos do espectador com os objetos, reconhecendo a sua conotação e ligando-a à história real que está a ser recontada.

O outro aspecto a mencionar é o da realização. Todd Haynes é um realizador intimamente ligado ao cinema clássico norte-americano, principalmente ao género do melodrama, sendo quase todos os seus filmes um comentário ou apropriação da linguagem deste género para uma sensibilidade moderna/contemporânea. O melodrama é o género mais intimamente ligado aos sentimentos, sendo a sua base as emoções fortes (no que mostram e no que incitam no espectador). O que Todd Haynes tenta atingir com esta atualização contemporânea desta linguagem é conseguir incitar nos espectadores sentimentos fortes, um grande pathos e um grande nível de identificação com a narrativa, de forma a que o espetador fique completamente imerso (sem nunca deixar cair o filme numa simples revisão histórica do melodrama, misturando linguagem contemporânea que retira o espetador também do referente absoluto desta linguagem clássica).

Mesmo face a um único objeto ou conteúdo (marionetas), o cinema consegue completamente mudar o efeito que este tem no espectador. A câmara ajuda o conteúdo a subir o vale do uncanny, ou empurra-o para a sua falésia, mas nunca é inocente. O cinema de marionetas nunca será igual ao teatro em que se baseia.

Vasco Muralha

Bibliografia

-Bell, John. Puppets, Masks and Performing Objects. Cambridge: The MIT Press 2001

-Bingham, Adam. Directory of World Cinema East Europe. Bristol: Intellect Books 2011.

-Freud, Sigmund. The Uncanny, E-book: Penguin Books Ltd 2003

-Jentsch, Ernst. Zur Psychologie des Unheimlichen: 1906

-Johnson, Keith Leslie. Contemporary Film Directors Jan Švankmajer. Illinois: University of Illinois Press 2017

-Leyda, Julia. Todd Haynes Interviews. Mississippi: The University Press of Mississippi 2014

– Švankmajer, Jan. “Decalogue” In Vertigo, Volume 3, Issue 1. London: Closeup Film Centre 2006

-White, Rob. Contemporary Film Directors Todd Haynes. Illinois: University of Illinois Press 2013

Um cinema de relações fraturadas e solitárias posto em evidência na 20ª edição do Indielisboa: Sick of Myself, Watcher e The Adults

Na 20ª edição do Indielisboa, para além de muitas outras linhas temáticas, é posto em evidência o cinema das relações fraturadas e débeis através de três filmes que constam na programação: uma sátira, um thriller e um drama-comédia familiar. Os dois primeiros pertencentes à secção Boca do Inferno, a secção de filmes desconcertantes do festival, e por último aquele que encerrou o festival no passado domingo. Fala-se, portanto, da sátira norueguesa Sick of Myself (2022), de Kristoffer Borgli; da primeira longa-metragem da norte-americana Chloe Okuno, Watcher (2022); e da longa-metragem de Dustin Guy Defa, The Adults (2023). 

Sick of Myself é uma comédia desconfortável na qual a sua personagem principal, Signe (Kristine Kujath Thorp), ultrapassa todos os limites para chamar a atenção, num gesto narcisista e sem escrúpulos. Watcher, por sua vez, é um thriller sobre um casal que se muda para Bucareste, na Roménia: Julia (Maika Monroe) e Francis (Karl Glusman). Ele, meio romeno, fala e entende a língua, enquanto ela acaba por se ver sozinha e sem nada para fazer num país que lhe é estranho. Para além do isolamento, Julia começa a sentir-se observada por um olhar estranho vindo do prédio em frente ao seu (num piscar de olhos ao filme Rear Window de Alfred Hitchcok). No filme escolhido para encerrar esta edição do festival, o mais intimista e melancólico dos três, Dustin Guy Defa foca-se na relação entre três irmãos que se veem reunidos devido a uma visita curta de um deles, Eric, à sua terra natal. Eric é interpretado por Michael Cera que coloca o espectador numa posição saudosa, relembrando-se do seu carisma. Em todos estes filmes, as relações humanas são postas em evidência e são, até mesmo, testadas, mostrando-se frágeis e quebradiças, o que parece culminar num isolamento e numa tendência para a autocentralidade.

The Adults, de Dustin Guy Defa – © Dweck Productions, Savage Rose Films

De certa forma, os três filmes parecem existencialistas na sua génese, no sentido em que as suas personagens vivem dentro de si próprias e parecem muitas vezes entrar em colisão consigo próprias, seja pela forma como se veem, seja como são vistas pelos que as rodeiam. Signe (Sick of Myself) é o culminar desta autocentralidade. Uma mulher que tem um trabalho que não gosta e um namorado fútil e despreocupado, que ao ver-se num estado extremo de solidão, começa a destruir a sua vida para chamar atenção sobre si própria. O seu desejo é não cair na sombra do namorado, um artista contemporâneo que representa muito bem a artificialidade do panorama artístico dos nossos dias, e ser a “donzela em apuros” que este quer salvar. Signe é o exemplo perfeito do “main character syndrome”, e do fetiche pela vitimização cada vez mais recorrente numa sociedade da fama artificial e efémera das redes sociais. A personagem da sátira norueguesa começa a tomar uma droga russa chamada Lidexol que tem como efeito secundário uma doença de pele grave. Este masoquismo da personagem, que é, por sua vez, também uma forma de narcisismo, é o que na cabeça dela lhe vai trazer a fama e a atenção que esta sempre quis.

O vazio e a solidão parecem contribuir para este narcisismo e para esta autocentralidade de personagens solitárias que se querem de alguma forma fazer evidenciar. Signe não é a figura solitária por excelência, dado que várias vezes a vemos em festas e ambientes sociais. Contudo, as pessoas que a rodeiam revelam-se ocas e fúteis e acabam por apenas colorir um vazio que, na verdade, permanece. No caso de Julia (Watcher) o isolamento é evidente, mas este não provoca esta autocentralização, mas sim uma espécie de interiorização existencialista, distanciando-se assim de Signe. Desta forma, Julia, acaba por passar os dias muito dentro de si mesma, à falta de companhia, o que a leva a pensar que talvez esteja a ver coisas onde elas não parecem existir. Julia e Signe são quase o oposto uma da outra: a primeira anula-se viajando para um país desconhecido em prol da carreira do marido, e quando o perigo se mostra real esta tem dificuldade em validar aquilo que está à sua frente; a segunda traz o perigo para si, vitimizando-se aos olhos de todos à sua volta. No entanto, é possível encontrar-se um fio condutor nestas duas personagens: a ideia de autovitimização, seja ela real, ou imaginada. Por sua vez, Eric em The Adults, escolhe o isolamento, ficando num hotel em vez de na sua casa de família, na qual mora a sua irmã mais velha, Rachel. Eric vai, ainda, prolongando a sua estadia, que inicialmente seria curta, de modo a conseguir participar em jogos de póquer (com velhos conhecidos, com os quais não parece ter qualquer tipo de relação de intimidade) que vão ficando cada vez mais competitivos, e ao mesmo tempo convencendo as irmãs que este alongamento da estadia se deve a elas. O ego de Eric sobressai nesta intensa competitividade e importância que parece dar ao póquer, contrariamente à sua passividade sobre tudo o resto, numa espécie de exercício de escape. Desta forma aproxima-se de Signe: ambos mentem para manter aparências e parecem viver uma vida falsa e vazia, que no caso de Eric se prende numa incapacidade em comunicar com as suas irmãs.

Eric é um mistério para as suas irmãs, para ele mesmo e até mesmo para o espectador, que parece ter dificuldade em lê-lo. Os momentos em que os três irmãos estão juntos tentam de alguma forma trazer ao de cima este lado mais sentimental de Eric, com jogos teatrais enferrujados recuperados de infância distante. Porém, esta nostalgia da infância acaba por dar a entender a distância que, atualmente, afasta os irmãos. Há neles uma quase negação da vida adulta (na qual os seus pais já não estão lá para os amparar) e isto faz com que as personagens neste coming-of-age de Defa sejam profundamente existencialistas. Eric foge ao confronto emocional, Rachel está deprimida e Maggie (a mais nova dos três) deixou a faculdade e não sabe bem o que fazer com a sua vida. Os três, como acontece também com Signe e Julia nos outros dois filmes, parecem passar muito tempo perdidos nos seus próprios pensamentos e falham quando é preciso enfrentar o outro e o desconhecido, num gesto também ele autocentrado.

Sick of Myself, de Kristoffer Borgli – © Film i Väst, Garage Film International, Oslo Pictures

Em Sick of Myself, a montagem revela-se muito importante, pois as cenas do dia-a-dia são intercaladas pelas fantasias vividas na cabeça de Signe, que, por vezes, passam despercebidas e colocam o espectador a questionar-se sobre a sua veracidade. Este conjunto de cenários comprovam a autocentralidade da personagem, que vive tanto na sua cabeça que parece até ficar sem vida fora desta. O prazer de Signe está na fantasia, no desejo de ser alguém que nunca consegue alcançar, sendo o clímax desta loucura narcisista a cena de sexo que é intercalada por flashes do seu suposto funeral. Um funeral é simbolicamente o lugar onde nada é mais importante do que aquele que está morto. A idealização deste momento é em si um dos pontos máximos do narcisismo de Signe.

Em suma, nestes três filmes podemos ver ao microscópio as dinâmicas de uma (ou várias) relação humana. No caso de Sick of Myself, a futilidade de uma personagem leva-a à sua destruição, não percebendo que o problema é procurar a atenção nas pessoas erradas. A relação entre Signe e Thomas (o namorado artista) é prova disto, dado que nenhum deles parece querer realmente saber um do outro, e ambos estão constantemente em disputa. É a fragilidade que caracteriza esta relação. 

Em Watcher, a distância que Julia sente de Bucareste acaba por a distanciar de um marido que nem sequer parece acreditar quando esta lhe conta que acredita estar em perigo. O enredo do filme coloca à prova esta relação que, apesar de inicialmente ser a mais forte de todas (comparativamente com os outros dois filmes analisados), vai dando de si e revelando os seus pontos menos fortes. 

Em The Adults começamos por ver uma relação, que em tempos acreditamos ter sido forte, e que, no ponto inicial do filme, se mostra enferrujada, talvez num reflexo realista das relações entre irmãos e na forma como estas vão mudando à medida que o tempo passa. 

Watcher, de Chloe Okuno – © Animal Casting Time, Imagenation Abu Dhabi FZ, Lost City

A verdade é que manter uma relação com outra pessoa é cada vez mais difícil numa sociedade que se revela fútil e hipócrita. Notemos a cena da campanha inclusiva, em Sick of Myself. A estratégia de marketing da campanha seria mostrar ao público corpos com defeitos e fazer com que estes fossem aceites pela sua diferença. No entanto, quando a mesma campanha se apercebe da deterioração do estado de Signe, a inclusividade parece perder-se e a máscara parece cair. As relações inter-humanas desafiam a fragilidade, e exigem que o Eu saia de si mesmo para se colocar no lugar do outro. Thomas, Signe (Sick of Myself) e Francis (Watcher) falham. Contudo, Eric, Rachel e Maggie (The Adults) dão-nos esperança que tal seja possível mesmo que de forma morosa e estranha. O final do filme de Dustin Guy Defa acaba por aquecer uma sala de cinema que se vê sorridente nesta sessão de encerramento do Indielisboa.

Inês Moreira

O Raio Ofuscante da Beleza Artificial: Shin Ultraman

Avatar 2: The Way of Water foi um sismo cultural. Qualquer espectador que se tenha sentado durante as 3 horas da sua duração em sala e que se tenha permitido ver o filme nas regras que este propõe, que tenha deixado aberto em si um intervalo livre para a possibilidade de arrebatamento, consegue corroborar este facto. Um filme que não existe. Filmado num espaço artificial com atores não reais. Mas quem se sentou na sala 4D, sentindo os borrifos de água na cara e os solavancos das cadeiras, sabe isto. O cerne do interesse de Avatar 2 é simples, mas elementar: a ligação entre artifício e realidade. Neste caso nem seria correto dizer que James Cameron está a tentar entender qual o limite extremo a que o artifício pode ser esticado de forma a ainda conter credibilidade imersiva: o que realmente é impressionante em Avatar 2 é que este está a usar o extremo do artifício, esticando-o bem para além do limiar da realidade, de forma a perfurar um cerne de verdades e narrativas emocionais eternas.

Shin Ultraman, realizado por Shinji Higuchi e escrito por Hideaki Anno (realizador do prévio Shin Godzilla e criador da obra-prima Neon Genesis Evangelion), chega agora a Portugal com um ano de atraso. É o segundo filme na trilogia Shin, reboots liderados por Anno focados em antigas propriedades de kaiju ou tokusatsu (sendo o anterior Shin Godzilla e o seguinte Shin Kamen Rider). O cerne deste filme é semelhante ao de Avatar 2, porém diverge na sua abordagem em relação à artificialidade. Enquanto Avatar 2 tenta ativar a crença do espectador ao criar um universo de extrema artificialidade que mesmo assim é percecionado como real, Shin Ultraman faz o oposto: estabelece uma artificialidade tão extrema, tão não-credível e mesmo assim desafia o espectador a conseguir estabelecer uma ligação com os seus raios laser de VERDADE ofuscante.

Shin Ultraman, Shinji Higuchi ©  Toho Co., Ltd.

Higuchi aniquila qualquer mísera pepita de verossimilidade ainda existente no seu universo (algo já escasso devido à realização frenética e desconcertante em que o filme opera) com Ultraman a despenhar dos céus. Propositadamente cria uma artificialidade que é instintivamente alienante. O uso de efeitos em complô com a narrativa e realização, cria uma experiência genuinamente desconcertante. A artificialidade não é um erro (ou um acidente), até sendo utilizados os efeitos de forma a que as criaturas e heróis não pareçam o que são, mas sim pessoas a usar fatos e a representar o que são no filme (algo que não é real na narrativa, mas que vai de encontro ao referente metatextual das séries e filmes originais).

O filme, através de uma trama extremamente nietzscheana (no meio deste filme de super-heróis e monstros, as personagens começam praticamente a citar a sua obra ipsis verbis), é injetado com vitalidade incandescente. Existe uma palpável admiração pela ambição necessária para escapar a um uno primordial sem seguir falsos ídolos, que consegue mesmo assim ir de encontro a ideais de comunhão, empatia e solidariedade. Nietzsche acreditava que a filosofia tinha de aprender a dançar. O cinema também! Deste baile de mensagem pop-Nietzsche (algo em que Hideaki Anno se especializa desde Neon Genesis Evangelion) com artifício extremo, surge um filho, fruto de acasalamento divino: um recém-nascido (ou de novo nascido – Shin), Ultraman, um verdadeiro ícone da realidade emocional que destrói todos os falsos ídolos da razão lógica.

Vasco Muralha

Entre o fantástico e o horror: as convergências estéticas e de gênero em Pearl

E se O Feiticeiro de Oz fosse uma história de terror? Essa é uma das muitas indagações que transpassa nossas mentes ao sairmos da sala de cinema após a sessão de Pearl, realizado por Ti West e exibido no 20º IndieLisboa. O longa-metragem é uma prequela de X e, se o primeiro já foi um regalo ao gênero de terror slasher, este acaba por ser uma surpresa ainda melhor.

Voltemos cerca de 60 anos antes aos acontecimentos de X. Pearl (Mia Goth) é uma jovem moradora de uma fazenda texana que vive com seus pais – imigrantes alemães – e aguarda o retorno de seu marido, combatente na Primeira Guerra Mundial. Somos então expostos aos acontecimentos situados na gênese do comportamento atípico da protagonista e compreendemos o que motivou as atitudes assassinas nos anos 1970.

Um dos elementos mais singulares de Pearl é a estética escolhida para a obra. Deixamos de lado as convenções dos filmes de terror para sermos inseridos em um universo repleto de cores – nota-se que elas são, até mesmo, ligeiramente saturadas. Podemos então iniciar o paralelo que a obra faz com alguns filmes da era de ouro de Hollywood, em especial O Feiticeiro de Oz

O primeiro plano do filme é constituído por um travelling frontal iniciado dentro do estábulo e termina segundos após as portas abrirem-se para a fazenda. O cenário é o mesmo de X, mas aqui o céu está azul, a casa recém pintada e a grama verde. Estamos na mesma posição de Dorothy no momento em que ela acorda e vê que não está mais em Kansas, mas sim em Oz.

Esse mundo utópico – ao contrário da obra de 1939 – fragmenta-se ainda na sequência de abertura, quando a mãe de Pearl a arranca bruscamente de seu devaneio com o universo do espetáculo. Percebemos então que a protagonista divide-se entre o mundo real e o imaginário. Há uma tentativa de conciliar – a contragosto – os deveres relativos à família e à fazenda com as idas ao cinema e a vontade de ser uma estrela. Sua aspiração é tão latente que West concebe uma longa sequência de dança em uma plantação de milho entre Pearl e um espantalho – mais uma referência ao mundo de Oz.

Pearl, de Ti West © A24

Entretanto, para além dos anseios mais explícitos, Pearl possui desejos sexuais intensos – comportamento perpetuado até a velhice -, responsáveis por levá-la para um caminho que vai desde a infidelidade ao seu marido até a uma simulação do ato sexual com o espantalho. Nota-se então a complexidade da protagonista e percebe-se a resposta às perguntas que ficam em nossas mentes após X

A esfericidade relaciona-se principalmente ao seu comportamento assassino. Logo no começo da narrativa, a personagem mata gratuitamente um animal e mostra-nos sua face apática diante da morte. Essa atitude replica-se e recai sobre os outros que estão ao seu redor, incluindo seus pais. É notável a profundidade da personagem ao vermos uma certa angústia e culpa pelas mortes geradas por ela, ao mesmo tempo que notamos uma frieza e impassibilidade. 

West utiliza de forma hábil certos elementos que tornam-se simbólicos para o filme. Para além do espantalho, percebemos a passagem de tempo a partir do apodrecimento do porco assado dado de presente à família de Pearl. O animal não serve apenas para localizar-nos temporalmente, mas também reflete o deterioramento dos corpos mortos pela personagem.

Pearl é uma surpresa mais que bem-vinda ao terror. A mistura de elementos estéticos e as referências às obras clássicas, deram um novo ar ao slasher e abriram um leque ainda maior de possibilidades que devem ser exploradas no gênero. West já havia acertado em X, mas aqui ele provou que pode-se fazer ainda mais.

Lílian Lopes

A Entropia Estrutural de Enys Men

Enys Men, filmado em película de 16mm durante o recente confinamento, num curto intervalo de 21 dias, é o filme mais recente de Mark Jenkin. Se a obra deste cineasta oriundo da Cornualha é altamente caracterizada por uma grande prioridade dada à forma, então este filme de terror formalista é o pico das suas ambições.

Foi comercializado como um filme de folk horror, mas os seus pretextos vão além deste marcador de género. A influência é óbvia, claro, surgindo tanto na escolha de cenário onde a narrativa se desenvolve, como na sua origem inglesa (a nação na qual o terror está mais diretamente ligado a este subgénero). Porém, os pontos de referência são escassos. Folk Horror, como argumenta Howard D. Ingham, tem um duplo significado. 

O primeiro e mais óbvio é o titular folclore ser um aspeto central, e o seu lado inverso, igualmente presente em praticamente todos os filmes do género, é o medo de “folk” (neste caso, grupos de pessoas, relacionado à temática do paganismo). Enys Men não preenche nenhum destes pré-requisitos. O filme não menciona qualquer tipo de folclore, sendo o seu elemento de género derivado de uma muito vaga fabulação científica, e a protagonista do filme é das poucas personagens presentes nele (sendo as outras, à excepção de uma, de existência puramente psicológica). A identidade visual do filme é muito inglesa, mas acaba por beber imensamente mais de outras fontes (um certo estilo de surrealismo televisivo britânico, por exemplo) do que de folk horror propriamente dito.

Enys Men, Mark Jenkin © Neon

A experiência do filme acaba por ser uma de terror formalista. Existe uma narrativa? Sim, contudo esta parece desenvolver-se incidentalmente do trabalho da forma, intimamente ligado a revelações e perturbações emocionais. O filme opera num loop constante ao observar a rotina duma mulher numa ilha deserta, responsável por observar a sua flora todos os dias em curtos exames. O loop é perfeito até a mulher começar a enlouquecer (e algo na ilha começar a mudar). O formalismo informa o conteúdo, algo que ocorre a um nível tão extremo que seria mais interessante estudá-lo através da lente do estruturalismo.

Cinema estruturalista deriva de um afastamento da “forma complexa” em direção a uma abordagem que favorece uma estrutura estrita (usualmente já pré-determinada no seu conceito). Enys Men segue um pressuposto semelhante. A protagonista faz as mesmas ações todos os dias e segue as mesmas tarefas observacionais. O filme repete esta rotina durante quase toda a sua duração. A um certo ponto, simultaneamente, algo estranho com a flora da ilha começa a acontecer e a protagonista começa a enlouquecer, desleixando-se a nível de rotina. Não é claro de que forma ou até a que nível estes campos se entrelaçam. O filme continua a girar em volta deste seu ciclo, mas começa a autodestruir-se. Mesmo assim, o sentimento de estrutura nas mãos do realizador é palpável, agora dentro de uma espiral imparável de entropia. O ciclo continua, agora completamente (e irrevogavelmente) distorcido.

Tal como não é claro se o líquen nas plantas causou o enlouquecimento da protagonista ou se este é em si um produto do seu enlouquecimento, também a linha é inseparável entre a sua sanidade e o caráter estruturalista do filme. O declínio e deformação da estrutura levou ao seu delírio, ou será que o seu delírio psiquicamente distorceu as regras implícitas do filme que habita?

Vasco Muralha

Índia: uma melancólica tour pelas ruas lisboetas

Lisboa é terra de saudade, cor e melancolia. É palco de revoluções, poesia, de amores e desamores. Índia, a mais recente longa-metragem de Telmo Churro, nasce da necessidade de retratar Lisboa, estabelecendo um diálogo entre a mudança e aquilo que permanece na sua essência.  

Filmado em película de 16mm, este filme transporta-nos para as ruas labirínticas da cidade. Entre subidas, descidas e coloridos cenários pitorescos, conhecemos a intimidade de três gerações de homens portugueses. Tiago (Pedro Inês) é um guia turístico que sofre perdidamente de amor. Foi deixado pela mulher e tem a consciência turva por um profundo delírio existencial. Vive com o seu pai, Raul (José Manuel Mendes), um marinheiro fascinado pela história marítima portuguesa, e com o seu filho, Manuel (João Carvalho), um adolescente que não bebe cerveja, mas está embebido pelos seus sonhos cósmico-eróticos. Em sua casa recebem Karen (Denise Fraga), uma turista brasileira desolada pela recente morte do marido. 

Índia é, acima de tudo, uma história sobre uma viagem turística não convencional, um filme que despreza a ideia de uma cidade gentrificada, entregue às multidões de turistas sedentos. As quatro personagens (e o espectador) embarcam numa cómica tour de melancolia e luto coletivo. Durante alguns dias, navegam por uma Lisboa de heróis suicidas e histórias revolucionárias, onde se cruzam diferentes tempos e narrativas. 


Índia, Telmo Churro © Direitos Reservados

Envoltos em poesia, cartas sobre as deambulações e monólogos interiores, procuram Fernão Lopes, um historiador português renascentista empenhado em registar objetivamente a presença dos portugueses na Índia. A verdade é que a sua obra, desprovida da aura heroica atribuída a este período, parece estabelecer uma correspondência com o olhar crítico do filme. O título deixa de parecer fruto do acaso ou de uma glorificação do passado colonial. Não é disso que se trata. Trata-se, antes, de uma vontade de descrever a essência da experiência lisboeta (tal como Fernão Lopes retratou a da Índia). Como é Lisboa longe da herança salazarista, da política colonialista e do turismo desenfreado? Qual é, afinal, o segredo desta cidade?

Simultaneamente contemplativo e frenético, Índia assume uma enorme liberdade narrativa e estética. É um filme confuso, com uma cadência própria e cujo estranhamento não deixa de ser, no entanto, uma experiência familiar. Lisboa é também deambulação, introspecção e memória de quem já não está cá. É tudo isto que o filme retrata. Como uma carta de amor (de: Telmo Churro, para: Lisboa), este filme traz até ao IndieLisboa um pouco da história da cidade que o acolheu. 

Maria Mendes

Amiko: Quando a infância é assombrada

Amiko, o primeiro filme do realizador Morii Yusuke, representa em cores vibrantes o mundo de uma criança com um olhar único, desenquadrada da família e colegas de escola. Apesar do isolamento de Amiko, que se acentua enquanto cresce, o filme mantém sempre um tom mágico, fiel à perspetiva excêntrica e inocente da sua protagonista.

A estreia de Morii como realizador surge de uma adaptação do romance de Natsuko Imamura, expandindo a imaginação de Amiko (Osawa Kana) para o universo do visual. No ecrã, o olhar de Amiko conduz o filme, convidando o espectador a acompanhar a sua exploração juvenil, e ao mesmo tempo distanciando a audiência das restantes personagens. A personalidade de Amiko define o tom de todo o filme, que se desenrola tão imprevisível e implacavelmente como a vida de uma criança desamparada.

Amiko vive em Hiroshima, no Japão, com os pais e o irmão mais velho, numa rotina que não lhe assenta. Em tudo o que faz, Amiko rompe as normas que lhe são impostas. Impulsiva, inoportuna e impaciente, Amiko não percebe por que razão os que a rodeiam não a acompanham.

Amiko (2022), de Morii Yusuke © Direitos reservados

Quando uma tragédia cai sobre a sua família, a realidade colide com o mundo de Amiko, alienando-a ainda mais profundamente. Com a mãe fechada no quarto, o pai absorvido no luto, e o irmão fora de casa, Amiko perde todo o contacto que lhe oferecia alguma orientação. Esquecida entre um mundo fantástico e uma realidade assombrada, as dores de crescimento de Amiko intensificam-se. Parecendo encolher na sua roupa, sem tomar banho e ignorando a escola, Amiko torna-se mais um fantasma em sua casa.

É no espaço entre imaginação e realidade que Amiko tenta fazer sentido da sua dor. O seu mundo enche-se de fantasmas, coloridos e extravagantes, que se fazem ouvir quando Amiko está só, e aparecem apenas a si e à audiência. Sem saber o que mais fazer, Amiko canta “Os fantasmas não são reais… Mas eu tenho um pouco de medo”.

Apesar de todo o seu peso, Amiko permanece uma história encantadora, uma procura pela beleza mesmo nos momentos mais dolorosos, uma lição de que a esperança pode existir mesmo nas paisagens revestidas de fantasmas.

Margarida Rodrigues

Desdobramento de um Incidente: Entrevista com Bill Morrison

Bill Morrison, cineasta com obras já presentes em edições anteriores do Indie Lisboa, regressa este ano à Competição Internacional de Curtas com Incident. Morrison é conhecido pela sua abordagem arquivística ao documentário e ao trabalho de vídeo. Embora a sua filmografia se situe em várias épocas e explore vários temas, o cineasta é normalmente associado à utilização de gravações antigas e arquivadas em película. No entanto, este já trabalhou diversas vezes com material que não se restringe a arquivos cinematográficos, tendo até chegado a focar-se em captações contemporâneas. Incident insere-se firmemente nesta segunda vertente da sua obra.

O filme em causa, a partir de uma montagem criativa de vídeo de várias origens (câmaras de segurança, câmaras de polícia…), tenta esmiuçar todos os ângulos de um tiroteio que ocorreu em Chicago de forma a chegar a alguma conclusão. O caso trata-se de um barbeiro de meia idade em posse (legal) de uma arma, que, ao ser abordado sem razão por um grupo de polícias, acaba por ser injustamente morto. 

Incident coloca em causa questões sociais óbvias pelo seu tema, mas vai muito além disso. No seu decorrer, esta curta metragem torna-se numa exploração do conceito de vídeo em si e a sua pluralidade, o papel observacional da câmara e a materialidade do vídeo digital.

Incident, Bill Morrison ©

Entrevista a Bill Morrison no IndieLisboa

Vasco Muralha (VM) — So a lot of your previous work, before Incident, had a big focus on old archival film footage and I wanted to ask mainly how was this shift from that type of archival footage to a new type of archival footage?

Bastante do seu trabalho anterior a Incident focava-se em imagens de arquivo antigas. Como é que se deu esta transição para um novo meio de filme de arquivo?

Bill Morrison (BM) — That’s true, a lot of my footage has not only been archival footage but very old archival footage and so a lot of what has been the point of the earlier stuff is that it shows material degradation, which is, of course, a specific subsection of archival footage. So in this shift to using a contemporary archive, I didn’t feel like I was dealing with film, I didn’t feel like it needed to be edited in the way in which you would edit film. So I was more at liberty to use some vídeo devices, like the split-screens and the quad-screens and the wipes, this kind of thing that I wouldn’t normally use. In a way, the form reflected the type of media that I was working with. 

É verdade, muito do meu trabalho tem tratado de filmagens de arquivo muito antigas, cujo objectivo é mostrar a degradação material, que é uma subsecção das filmagens de arquivo. Na transição para um arquivo contemporâneo, não senti que estava a lidar com película, por isso não montei do mesmo modo que monto filmes. Por isso, tomei mais liberdade para usar dispositivos de vídeo, como os split-screens, os quad-screens ou os wipes, o tipo de coisas que normalmente não uso. De certo modo, a forma refletiu-se no tipo de media com que estava a trabalhar.

VM — There is of course a material difference between the old footage and the new footage, but how did you approach it, not in a material sense but in a more contextual sense? How did you feel like approaching footage that was very old with footage from our contemporary types?

Claro que há uma diferença material entre as filmagens antigas e as novas. De que modo abordou, não no sentido material, mas no contextual, estas diferenças?

BM — My choice of older footage always has been a reflection through the prism of contemporary times, usually they’re meant to show how little things have changed, the differences between our society now and hundred years ago. In this case, we’re seeing the systemic racism of the police force in the United States, which is something I have referenced in earlier work, for example Buried News from a few years ago, where I used race riots from a 100 years ago. I think eventually these two films will be shown together.

A minha escolha em filmagens antigas sempre se refletiu através de um prisma contemporâneo. Normalmente é suposto mostrar quão pouco as coisas mudaram, as diferenças entre a nossa sociedade agora e há 100 anos. Neste caso, estamos a ver o racismo sistémico da polícia dos Estados Unidos, que é algo que já referenciei em trabalhos anteriores, como, por exemplo, no Buried News, de há uns anos, onde usei motins raciais de há 100 anos atrás. Acho que eventualmente esses dois filmes serão exibidos juntos. 

VM — So do you think there was a certain difference in approaching this topic that is so inherently political, in a contemporary sense, with your already political work in another area? Or do you think it was a more natural shift?

Então, acha que há uma certa diferença ao abordar este tópico tão inerentemente político, num sentido contemporâneo, com o seu trabalho político de outros modos? Ou acha que a mudança foi mais natural?

BM — To me, it felt natural because when I was presented with this archive I saw the potential of the film there almost immediately and I’m always inspired by an archive to make a new film. I’m seldom picking through an archive to support a theory, usually it comes from the archive and my projects grow organically out of that. That was the case here too, the issue of gun control obviously is in a crisis situation right now in the United States, there’s probably a mass shooting that happened today that I don’t know about yet. It’s just preposterous. In some ways, in very explicit ways, this film underscored the hypocrisy of those who are allowed to carry guns and those who are allowed to carry guns but are deemed by the police that they shouldn’t be.

Para mim foi natural, porque, quando me apresentaram o arquivo, percebi imediatamente o potencial do filme e sou sempre inspirado pelo arquivo a fazer um novo filme. Raramente examino um arquivo para apoiar uma teoria, normalmente os projectos crescem organicamente do arquivo. Esse também foi o caso aqui, o controlo de armas está obviamente numa situação de crise nos Estados Unidos. Neste momento, há provavelmente um tiroteio em massa que aconteceu hoje e eu ainda não sei, é absurdo. De muitas maneiras, de formas muito explícitas, este filme sublinha a hipocrisia dos que são permitidos ter porte de arma e dos que são permitidos, mas a polícia considera que não deveriam. 

VM — There’s the big use of angles and split-screens as you’ve mentioned and we can piece apart a narrative from all these different views, angles and aspects. In your older work there’s a big focus on the decay of it being old footage, like in Decasia for example, and in the old archival footage having a material/ physical space, but there’s an interesting thing even if its connected to narrative, the zoom ins, split-screens and the lower quality of how it is filmed. There’s also an apparent plasticity of the limits of digital, the pixelisation. What do you think about that?

Neste filme utilizam-se várias câmeras, em diferentes ângulos, os split-screens como já mencionou. Neste sentido, podemos juntar uma narrativa a partir desses diferentes bocados. No seu trabalho anterior há um foco na deterioração de imagens de arquivo antigas, por exemplo o Decasia, em ter um material/espaço físico. Também se pode notar esta aparente plasticidade no caso dos limites do digital, da pixelisação, juntando aos zoom-ins, split-screens e a pior qualidade de como é filmado. Nota-se algo interessante ligado à narrativa. O que pensa sobre isso?

BM — I don’t think of it as a materiality but I do think of it as self-referential. A big part of this film is, of course, the law that I set up in the beginning as a contextualisation and now all of this footage is mandated to be released to the public. That wasn’t the case before, and so this is in ways a police force that is coming to grips with this new law. There’s a performative aspect of it, which they know they’re on camera and they know that anything they say can be used to incriminate themselves, or one of they’re colleagues. So there’s this dance that happens about evening knowledge and the truth of what they saw and how slippery the truth can be, even more when it’s recorded. And so there’s several different types of cameras that were used in this, there’s the establishing shot which is the POD, or Police Observation Device, then we cut to the closed circuit tv, the private security cameras which are the highest resolution that we have and from there we go in to the dashboard cam, and the body-worn cam and its not until we get to the body-worn cam that we have audio. This difference between these silent cameras that establish the scene and the context and we dip into the contemporaneous footage, which gives us the story, then as soon as those cameras are turned off, the ones with microphones, we’re back out in a scene were we have no context or no grasp of what’s happening. That also underlies how little we can possible know, its really dependent of what’s captured at the time and what’s released. Absurdly all of these cameras are manually triggered, which doesn’t serve anyone’s purpose, of course from the police officer it can’t be expected if things get really heated in the moment to say “ohh I have to turn my camera on”, they have other concerns going on. Us, as a public,  want to make sure of everything, before it gets heated, what were these circumstances, what was built up, so these cameras should be on all the time. 

Não penso nisso como uma materialidade, penso enquanto algo auto-referencial. Uma grande parte deste filme tem que ver com a lei que coloquei no início como contexto, de como agora aquelas imagens tem que ser libertas para o público, o que não era o caso antes. De certo modo, isto é uma força policial que se está a confrontar com esta nova lei. Há um aspecto performativo, eles sabem que estão a ser filmados e sabem que tudo o que dizem pode ser usado para os incriminar a eles, ou a um dos colegas. Há esta dança que acontece sobre equilibrar o conhecimento e a verdade do que viram, e de quão escorregadia pode ser essa verdade, ainda mais quando filmada. Há diferentes tipos de câmaras usadas: o plano geral (establishing-shot) que é o POD, ou Dispositivo Policial de Observação, depois cortamos para o circuito de TV fechada, câmaras de segurança privadas, que são as com maior resolução, daí vamos para a câmara do tablier e depois para as câmeras dos uniformes e só nessas é que temos audio. Então há esta diferença entre as câmaras silenciosas que estabelecem a cena e o contexto, e depois mergulhamos nas imagens contemporâneas, que nos dão a história. Assim que essas câmaras com microfone se desligam, voltamos (para o plano geral) para uma cena onde não temos contexto, onde não conseguimos perceber o que se está a passar. O que também sublinha o quão pouco podemos saber e que está muito dependente do que é filmado na altura e de quando são libertas as imagens. É absurdo, mas todas aquelas câmeras são ligadas manualmente, o que não serve o propósito de ninguém – é claro que não podemos esperar que um polícia, no calor do momento diga “ohhh tenho que ligar a minha câmara”, eles têm outras preocupações. Nós, enquanto público, queremos saber de tudo, antes de ter aquecido, quais foram as circunstâncias, qual foi o crescendo, por isso as câmaras deviam estar sempre ligadas.

Incident, Bill Morrison ©

VM — As you mentioned before in your work, you used footage of old race riots. That has always been a political approach, but how do you feel about the difference between going from this other footage you use, that has an artist or an aesthetic point in its inception, to this “incidental” one, with utilitarian purpose, where it was filmed for a specific/technical purpose?

Como já mencionou, no seu trabalho usou filmagens de antigos motins raciais. Sempre houve uma abordagem política, mas o que acha da diferença entre ir destas filmagens antigas que usou, que tinham um ponto de concepção artistico ou estético, para este, que é acidental ou utilitário, que foi filmado para um propósito técnico/específico? 

BM — In some cases the stuff that’s become artful, as you said, began as utilitarian footage as well, as actuality footage, or a sort of record of something that otherwise would seem. I don’t know if you’d call it artistic, it’s reportage. I guess it’s the treatment of it, as our perspective changes, there are incredible accidents that happen within Incident that I think are artful though I’m not trying to aestheticise a murder, but this seagull is an accident but it becomes the narrator, it brings us into this story and that was of course pretty circumstantial 

Em alguns casos, o que se torna artístico, como disseste, começa por ser utilitário. Filmagens de actualidades, uma espécie de registo de algo, não sei se lhe poderíamos chamar artístico, é reportagem. Talvez seja do tratamento que têm, enquanto as nossas perspectivas mudam, há inacreditáveis acidentes que acontecem em Incident, que julgo serem artísticos, embora não esteja a tentar estetizar um homicídio. A gaivota é um acidente, mas ela torna-se no narrador, traz-nos para dentro daquela história e isto foi bastante circunstancial, claro. 

Diogo Albarran (DA) – We already talked a little bit about the editing side and multiple cameras that you used to make this film. I was wondering, because a lot of your previous work, the old archive footage, the editing is more about mood, or the meaning with the evolving of those archival images, and here you’re telling a real story. How is this change of approach from working with such abstract material to much more concrete? 

Nós já falámos um pouco sobre a montagem, as múltiplas câmaras usadas para fazer este filme. Estava a pensar, muito do seu trabalho anterior, os tais antigos arquivos filmados, a montagem é mais sobre ambientes (mood) ou significados que evoluem com o seguimento das imagens de arquivo, enquanto, neste filme está a contar uma história real. Como é que a abordagem muda, de trabalhar com material tão abstracto para este muito mais concreto?

BM — I just want to clarify that much of my work has not been abstract for a long time now. Dawson City: Frozen Time, for its time was an incredible feat of journalism if I do say so myself. I know that my reputation started with Decasia and people often think of this sort of pure abstraction as a nom de plume, but I just want to draw people’s attention that I’ve been making what you’d call straight documentary films since the minor films, which is 2011, so that’s 12 years. I know that I’m always going to be considered this weird abstract guy. That said, I try to edit in a way which is consistent with the material that I’m using, so with all that stuff that was trapped on film I would use straight cuts, I don’t use dissolves a lot, if I do slow something down it’s in the denominator of 24 frames per second, so I’m either doubling a frame two times or tripling it and not mixing weird frame rates. I don’t use a lot of split-screens of zooms-in, I try to stay true to the integrity of the frame because this was pixels, lower resolution, it was vídeo. I felt like I could treat it in a different way, so that was a different approach. This is a story that took place a couple of miles from where I grew up, a couple of miles from where my mother and sister still live. It’s very much a part of my personal background, this neighborhood, that’s the most marked difference with earlier work, this is in some ways more autobiographical. 

Eu gostava de clarificar que há muito tempo que o meu trabalho já não é abstracto. Dawson City: Frozen Time para o seu tempo foi um incrível feito de jornalismo, se o posso dizer. Eu sei que a minha reputação começou com o Decasia e alguns pensam que essa espécie de pura abstração é um nom de plume, mas gostava de chamar à atenção que já faço documentários ditos normais (straight) desde 2011, portanto são 12 anos. Sei que vou ser sempre considerado como um weird abstract guy. Dito isso, eu tento montar de um modo consistente com o material que estou a usar, por isso para tudo o que foi captado em película usei cortes diretos, não uso muito dissolves. Se preciso de abrandar alguma coisa é no denominador de 24 frames por segundo, por isso ou duplico os frames, ou triplico, nunca misturo frame rates esquisitos. Não uso muitos split-screens ou  zooms-in, quero manter a integridade do frame. Neste caso eram pixels, baixa resolução, era vídeo, por isso senti que podia tratar o material de maneira diferente, foi uma abordagem diferente. Esta história aconteceu a poucas milhas de onde cresci, a umas milhas de onde a minha mãe e a irmã ainda vivem, isto é parte de meu contexto pessoal, aquele bairro. Essa é a maior diferença para o meu trabalho mais antigo, este é de alguns modos, mais autobiográfico. 

DA — I wanted to ask about your stance on documentary filmmaking and truth. In archive analogue films decay plays a major role. Do you see a crisis in documentary filmmaking and truth in this new age of sound manipulation, visual manipulation and a sort of new decay, perhaps in terms of morality or authority, how is that reflected in your movies?

Gostava de saber a sua posiçãosobre a relação entre documentário e verdade. Em filmes analógicos de arquivo, a deterioração tem um papel fundamental. Vê uma crise no documentário e na verdade, nesta nova era de manipulação de som e de imagem e desta nova espécie de deterioração (eventualmente em termos morais ou de autoridade), de que modo se refletem estas questões nos seus filmes?

BM — That’s a great question, I would add to that AI. This is the elephant in the room right now, it’s also when you talk about an AI Image it’s really against the archive. Any film shoot is an archival act, anytime you record anything, what we’re recording now, there’s a timecode, there’s a date-stamp, that makes it archival the moment it happens, it doesn’t need to sit in a box and rot to be archival. It’s immediately archival because it has those numbers and has a title and can be called back again. What AI is doing is stripping those numbers and taking little pieces and decontextualising, deauthorizing, and de-copywriting, through the atomisation of images. The potential, I don’t know if we can imagine it yet, but just what we’ve seen in five years, and the last five months are breathtaking, I guess if I see a change it’s there. When you talk about political actors or manipulation, it can become very difficult very soon to discern what is true and what it’s not, if it isn’t already. Moving forward we’re going to need to see those numbers, and see the timecode as part of any sort of evidence. If we don’t see them, there will be reason to doubt everything.

Ótima questão, eu gostava de acrescentar AI (Inteligência Artificial), o elefante na sala neste momento, quando se fala sobre imagens de AI, que são mesmo contra arquivo. Qualquer coisa filmada é um ato de arquivo, sempre se grava qualquer coisa, estamos a gravar agora, há um timecode, um date stamp, isso faz com que seja arquivo assim que acontece. Não precisa de apodrecer numa caixa para ser arquivo, é imediatamente arquivo porque tem aqueles números, aquele título e pode ser convocado. O que a Inteligência Artificial faz é tirar esse números e pegar em bocadinhos pequeninos e descontextualizar, desautorizar, retirar o copywrite através da atomização da imagem. O potencial não sei se o conseguimos imaginar ainda, mas os últimos 5 meses são de cortar a respiração. Se vir alguma mudança é aí. Quando se fala de actores políticos ou de manipulação, pode ser muito difícil discernir o que é verdade do que não é. Daqui em diante vamos precisar de ver os números, e ver o timecode como parte de qualquer tipo de prova. Se não os virmos, teremos razões para duvidar de tudo, se é que já não temos.

DA — Do you think that having this new movement and this new age beginning, archive movies, whether old ones or new ones, could in a way be a response and serve a counteraction by going to the past and bringing the past to the present or to the future and contextualizing it, could it be a weapon against this manipulation of images?

Acha que neste novo movimento, esta nova era que começa, os filmes de arquivo, quer os antigos ou os novos, podem responder, de certo modo servindo de contra-acção, nesse ir ao passado e trazê-lo para o presente e para o futuro, contextualizando-os? Poderá estar aí a arma contra a manipulação das imagens?

BM — We’ll have to see, obviously you can add a timecode to anything, I added a timecode to Incident, but it doesn’t make it real. We’re going to have to be very clever about how we communicate to each other to say “This actually happened” because we’re already in thin ice. In my country there’s an enormous amount of the population that wants to deny that a presidential election took place, this is an example of a leader of the free world, what does that say for the rest of the world, this could happen on a regular basis, but people just say “that’s not real”. I don’t know if looking back at archival footage will always save us from that, I think our task at hand is to concern what happened, it’s incumbent upon all of us, it’s kind of a scary time we’re entering.

Vamos ter que ver, claro que se pode por um timecode em tudo, eu pus um timecode no Incident, mas isso faz dele real (o timecode). Vamos ter que ser muito espertos na forma como comunicamos uns aos outros para dizer “isto aconteceu”, já estamos em terreno escorregadio. Nos Estados Unidos há uma grande parte da população que quer negar que uma eleição presidencial aconteceu, isto é um exemplo do líder do mundo livre, o que é que isso diz ao resto do mundo? Isto pode acontecer com regularidade, as pessoas simplesmente dizerem “isso não aconteceu”. Não sei se o arquivo nos vai salvar sempre disso, penso que a nossa tarefa agora é discernir o que acontece. É um período perigoso em que entramos.

DA — On that point of a certain objective reality and people denying what the world considers objective reality, I would like to go to your movie and try to get a sense of if you think it’s objective, if you think what’s there is there. Because I imagine, for example, seeing that the police officer got a very short sentence and got out fast, I could imagine those images being misconstrued and seeing a lot that happened we still don’t see enough to be able to bulletproof it and say this is exactly what happened (or how it happened).

Gostava de ir ao filme e tentar perceber se acha que ele é objectivo, se acha que o que lá está, lá está? Imagino as imagens a serem deturpadas (pela polícia), visto que o polícia teve uma sentença leve e saiu rapidamente da prisão. Será que tendo visto tanto, não vimos o suficiente para conseguirmos dizer com certeza “isto é exatamente o que aconteceu?”

BM — Just to play devil’s advocate, and devil, in this case, being the officer who shot the 37-year-old barber walking back from work on a Saturday night. Those are very rough streets and you can’t show weakness, with a different character this could’ve turned out differently. In defense of the police, they do have to make split-second decisions, in this case, they created the situation where they had to make that split-second decision, there was no reason this needed to escalate. I also think that footage shows the cop arriving with his hand on his gun, as do two other officers, and he’s ready to go, as soon as the victim goes between the car, he pursues him with the gun, and it’s only then that you see Augustus reach for his gun, in reaction to this cop, he knows he’s going to die anyway, what else can you do? I think it does show that. I do think he got off easy, Augustus didn’t have a family that was in support of him, it wasn’t a law case brought by an aggrieved family, he was a loner, and people didn’t know him that well, that weren’t a lot of people lobbying on his behalf. The police thought that the fact that he showed a gun and he might’ve been reaching for it was enough of a grey area that they could run for cover.  I think there’s no question in my mind that it objectively shows that they created that situation. 

Para ser advogado do diabo, sendo o diabo o agente da polícia que matou o barbeiro de 37 anos que voltava para casa do trabalho num sábado à noite, aquelas ruas são complicadas, não se pode mostrar fraqueza, com um personagem diferente isto podia ter sido diferente. Em defesa da polícia, eles têm que tomar decisões em segundos, neste caso, foram eles que criaram a situação em que precisaram de agir em segundos, não havia razão para escalar a situação. Também acho que as imagens mostram que o polícia aparece com a pistola na mão, tal como dois outros, ele está ready to go – assim que a vítima corre entre os carros, em reação aos polícias, ele persegue-o com a arma e só nesse momento é que se vê Augustus esticar-se para a arma, novamente em reação a este polícia. Ele (Augustus) sabe que vai morrer, que mais podia fazer? Eu acho que mostra isso. Também acho que a polícia se safou. O Augustus não tinha família para o apoiar, isto não foi uma acusação legal de uma família ressentida, ele era solitário e as pessoas não o conheciam muito bem, não havia gente a fazer lobbying por ele. A polícia pensou que o facto de ele mostrar uma arma e talvez estar a tentar alcançá-la seria área cinzenta suficiente para correr para abrigo. Não tenho dúvidas que o filme mostra objectivamente que eles é que criaram aquela situação.

DA — How did you come across this footage? 

Como é que encontrou estas filmagens?

BM — A friend of mine named Jamie Kalven, who’s a journalist in Chicago had actually filed a case against the Chicago Police Department to sue for the dashboard cam of the Laquan McDonald case, that happened in 2014. So it was really because of his efforts and another journalist that this law was passed, whereby the Chicago PD had to release the footage. With the Invisible Institute, they collaborated with Forensic Architecture from London and digitally recreated what had been enacted, reenacting those scenes using the existing footage and with that created 6 different vídeos that contextualize this incident in different ways. When Jamie wrote about it he referred to some of the footage in footnotes, which sent me to the archive, and by reviewing all of the footage that was in the archive that had been uploaded by the Chicago Police Department, I started to understand this as a story that could be told in a different way. It was really through Invisible Institute that I became aware of it. 

Um amigo meu chamado Jamie Kalven, um jornalista de Chicago, tinha aberto um caso contra o Departamento da Polícia de Chicago, processando-os pelas filmagens do tablier no caso Laquan McDonald, que aconteceu em 2014. Na verdade, foi por causa do esforço dele e de outro jornalista que esta lei foi aprovada, na qual a Polícia de Chicago tem que libertar as filmagens. Em conjunto com o Invisible Institute, colaborámos com a Forensic Architecture de Londres e recriou-se digitalmente o que tinha ocorrido, recriando as cenas usando as filmagens existentes. Com isso fez-se os 6 vídeos que contextualizam este incidente de maneiras diferentes. Quando o Jamie escreveu sobre o que aconteceu, referenciou algumas das filmagens em rodapé, o que me apontou para o arquivo e ao rever as filmagens que estavam no arquivo, carregadas para a internet pela Chigado PD, comecei a perceber que esta história podia ser contada de um modo diferente. Mas foi pelo Invisible Institute que conheci o caso. 

Diogo Albarran e Vasco Muralha