Paris, anos 1930. Este é o cenário escolhido por François Ozon para situar seu novo filme, O Crime é Meu (Mon Crime, 2023), uma adaptação da peça de Georges Berr e Louis Verneuil. A narrativa segue a história de Madeleine Verdier (Nadia Tereszkiewicz), uma aspirante a atriz erroneamente acusada de assassinato, e Pauline Mauléon (Rebecca Marder), sua amiga recém formada em direito. Envoltas em um crime ao qual não possuem nenhuma relação, as amigas aproveitam a acusação para mudarem de vida depois de serem absolvidas.
Embora possua uma história que poderia facilmente ser um drama, O Crime é Meu é, na verdade, uma comédia tipicamente francesa de ritmo rápido. Arranca boas gargalhadas do público a partir de diálogos perspicazes que, em certos momentos, nos fazem lembrar dos icônicos filmes norte-americanos de screwball comedy realizados nos anos 1930. A esse aspecto destaca-se a divertida dinâmica atuação dos veteranos Dany Boon e Isabelle Huppert.
Este ritmo frenético também é acentuado pela forma como o filme é construído. Ozon intercala cenas do mundo diegético com as possibilidades encontradas pelas personagens em relação ao assassinato. Estes momentos são marcados pela imagem preta e branca e por atuações exageradas, remetendo-nos aos filmes mudos. Essa é uma das diversas menções ao cinema feitas durante o filme, que é homenageado em outras cenas e aspectos por Ozon.
Apesar de possuir uma narrativa de peso, o filme O Crime é Meu salta aos olhos especialmente no que diz respeito aos aspectos visuais. É criada uma mise-en-scène fiel aos anos 1930 que, por certas vezes, nos deixa com vontade de entrar no ecrã e participar da história. O grande destaque são os figurinos, assinados por Pascaline Chavanne, que vão desde vestimentas simples até as mais glamourosas.
Madeleine e Pauline encontram-se com um montante de dívidas e buscam independência, encontrada a partir do crime e da amizade que beira uma relação entre irmãs. A potência das personagens une-se, no final, à de Odette Chaumette (Isabelle Huppert), mostrando que juntas tornam-se mais fortes.
O Crime é Meu é uma comédia que entrega boas risadas e deixa o público com vontade de se transportar ao passado criado por ele. Por ser baseado na peça homônima, carrega alguns traços da divisão teatral em dois atos, criando a sensação de que estamos diante de dois filmes.No entanto, este facto não é uma problemática e não compromete a experiência. É um filme que busca colocar reflexões, mas não se torna cansativo. Feito para ver em uma tarde de verão ou quando a vontade de viver no cenário nos anos 30 bater à porta.
Há recantos em Portugal que parecem ter sido esquecidos pelo tempo. Aldeias e vilas que persistem, erguidas como monumentos de uma certa maneira de viver, já praticamente extinta, como Manuela Serra teria previsto no fatídico plano final do seu O Movimento das Coisas. Cerca de 40 anos depois, estes mesmos lugares tornaram-se millieux onde diferentes energias geracionais convivem. Aqui, a resistência ancestral dos mais velhos contrasta com a inquietude dos mais jovens, motivados pelo impulso de explorar o que há “lá fora” e o espaço que ainda têm para sonhar.
Légua, de Filipa Reis e João Miller Guerra, que teve estreia na mais recente Quinzena dos Realizadores, em Cannes, tem no seu núcleo este mesmo conflito, enraizado na aldeia homónima em Marco de Canaveses e as personagens que lá habitam. Em particular, Ana e a idosa Emília, carinhosamente apelidada de “Milinha”, caseiras de uma antiga moradia senhorial com o nome de Casa da Botica. Juntas, rotineiramente mudam os lençóis das camas (cada conjunto devidamente organizado e etiquetado), tratam das plantas do jardim, limpam o pó e pulem a prata dos talheres. Tudo para melhor receber os donos-fantasma que porventura nunca voltarão a pisar o chão que as duas mulheres tanto cuidam e que apenas chegará a ser palco de um Manuel Mozos em vestes irónicas de padre. Este, irmão da Senhora, tanto deixa as compras por pagar, como se esforça para retirar o “triste crocodilo” do seu novo polo, não hão de os compadres jesuítas julgar.
Não obstante, Milinha parece encarar o trabalho como a sua missão de vida. É, no sentido mais literal, a sua casa, embora durma num quarto mais modesto na cave, cujo acesso obstruído por degraus traduz-se numa batalha para o seu corpo frágil. Apesar de não considerar a moradia sua, é claramente lá que sente pertencer, regendo-se, no entanto, sempre perante a hierarquia da sua empregabilidade. Não desafia esta condição e lastima Ana, quando esta demonstra sinais de contestação perante o sistema segundo os quais regem os dias de trabalho. Será punida, se deixar o quadro torto? Sim, mas apenas por Milinha.
Na dinâmica entre ambas, e ainda Mónica, filha de Ana, que estuda engenharia no Porto, presenciamos uma linha contínua da relação geracional com o meio. A mais nova e a mais velha, representando opostos, e Ana, suspensa no limbo entre ir e ficar, o novo e o velho. Inicialmente, descobre-se que planeia emigrar com o marido para França, na esperança de melhores salários, que os ajudarão a acabar a construção de uma casa própria. Contudo, decide ficar, quando descobre que a colega está doente. Sabe que Milinha, dada a escolha, preferia ver a sua vida concluída na única casa que conhece, junto das várias caras familiares, emolduradas em fila nas prateleiras. Desta forma, o cuidado da casa converte-se no cuidado de Milinha e um testemunho dos ritmos da morte, encenada aqui por uma não-atriz, cujo sóbrio poder se manifesta na vulnerabilidade da sua entrega.
Perante este exercício, o tempo permanece aquilo que pontua o filme. Acompanhando as várias repetições que compõem os nossos dias, e os transformam em meses e anos, Filipa Reis e João Miller Guerra fazem questão de sublinhar continuamente a passagem das estações e o crescimento das plantas como forma de espelhar o ciclo vital. No centro destas flutuações intermináveis, a Casa da Botica perdura enquanto monstro estanque, microcosmo que aloja transições, aparentemente sob a condição que estas não o afetem.
Em contrapartida, Ana parece curvar-se perante a mudança, adaptando-se às suas mais variadas facetas, como mais um passo no fluxo natural do mundo. É uma personagem que Légua rapidamente nos apresenta em consonância com a sensibilidade das coisas. Uma mulher aberta à sensualidade e às emoções que podem surgir, até no simples ato de pôr creme enquanto se canta “Amor de Água Fresca”. Entregando-se ao prazer dos pequenos momentos, reconhecemos nela a poética do ato de regar as plantas, de estender lençóis lavados, apanhar sol num dia ameno e mergulhar nas águas frias do norte de Portugal. Atendemos aos pormenores e às nuances de cada sentido – o toque, o olhar, o cheiro, o sabor -, despertados pela atenção da câmara e pela humilde magia da presença de Carla Maciel.
Mas para além destes atos facilmente romantizados, desaceleramos com ela, numa entrega mais dura. Fala-se aqui de mudar a fralda de Milinha, de ajudá-la a tomar banho e tão carinhosamente servi-la caralhinhos de São Gonçalo, acompanhados de chá servido na mais fina loiça, que a colega de outro modo provavelmente nunca teria tocado. Vislumbramos o que parece vir a ser o último instante prazeroso, uma espécie de canto do cisne da sua devota servidão, agradecida em contrapartida pela visita de uma agente imobiliária.
Dando um passo para trás, vemos como a relação de Milinha com a casa e os seus objetos em muito espelha o seu estado de saúde, que deteriora à medida que a mesma se insere gradualmente, e apenas por necessidade, nesses espaços e gestos proibidos aos serviçais. Quando a conhecemos, desempenha as suas tarefas com brio, retirando-se ao fim do dia para o seu quarto no andar de baixo. Contudo, à medida que se torna progressivamente mais debilitada, vemo-la, contrariada, mudar-se para um quarto de hóspedes e, mais tarde, para a própria sala de estar, onde a sua cama articulada ocupa proeminentemente o centro da divisão e ela dificilmente limpa os copos de cristal.
Paralelamente, virgulando a rotina sóbria das duas mulheres, surgem impulsos de um certo desejo experimentalista que evoca o tal confronto geracional no cerne da narrativa. São instantes estes que se revelam em quebras, sejam estas visuais ou musicais, por vezes sublimes e por outras disruptivas. Neste último caso, uma prática de certo modo inclinada à mais jovem Mónica, no que parece ser uma tentativa de porventura destacar a personagem, posicionada num patamar em desequilíbrio com as demais. Não deixa de ser, contudo, interessante testemunhar o choque entre a contenção inerente ao 4:3 em que Légua nos chega, os granulosos 16mm, e essa quebra temporal e visual, que a certo ponto até ataca os sentidos que o próprio filme despertou.
Serão estas as pulsações do coração complexo que é Portugal – um país que, tal como Ana, se encontra no limbo entre os gestos ancestrais e a ambição contemporânea que o percorre? Independentemente da resposta e da incerteza do futuro, enquanto espectadores observamos a tesoura de Átropos corroer o fio de Milinha, e o que ela representa, linha a linha.
O mais recente filme de Wes Anderson, Asteroid City, submerge o espectador num emaranhado de narrativas, tempo e espaço. Entre cenários e adereços, o realizador cria um universo fictício e altamente estilizado, preenchido por personagens excêntricas, aparentemente tão estáticas como os planos que ocupam. Nesta história, a única coisa real é o próprio ato de a contar.
Wes Anderson é conhecido pelo seu olhar cinematográfico único, que conduz o espectador por planos meticulosamente simétricos e histórias sobre histórias dentro de histórias. Os cenários detalhados e as cores pastéis características de Wes Anderson conferem um aspeto surreal aos seus filmes, o qual é ampliado pelos modos teatrais das personagens, que surgem no ecrã como atores em palco (em alguns casos, literalmente). As particularidades do realizador são evidentes, refinadas a cada novo projeto, mas, apesar da identidade que atravessa toda a sua obra, cada filme de Wes Anderson é uma peça singular e única.
Asteroid City é o culminar do método de Wes Anderson, um novo extremo do seu estilo. Trata-se do seu projeto mais ambicioso até à data, contando com cenários em miniatura construídos em Espanha e uma assembleia de atores de renome, que chega a ocupar metade do cartaz. Contudo, por mais extravagante que seja a produção, este nível de dedicação não deixa de ser expectável por parte do cineasta, sendo antes o rumo da história que eleva o filme a um novo patamar no catálogo do realizador.
Asteroid City (2023), de Wes Anderson @ Focus Features
O palco do filme é Asteroid City, uma amostra de cidade que rasga o deserto, com meia dúzia de edifícios perfeitamente alinhados no espaço negativo da paisagem. A sua maior (e única) atração é uma cratera formada pelo impacto de um asteroide, a origem do nome da povoação. O cenário ideal para um conto à Wes Anderson. O elenco é introduzido com uma precisão típica, a caracterização de cada personagem acrescenta detalhes à sua intriga, e cada conversa desvenda uma nova linha narrativa. Augie Steenbeck (Jason Schwartzman) é um fotógrafo de guerra em luto, teimosamente à espera do momento certo para contar aos quatro filhos que a mãe deles morreu. O filho mais velho, Woodrow (Jake Ryan), é um prodígio que foi convidado a exibir a sua invenção científica na convenção que irá decorrer em Asteroid City. O aglomerado de personagens expande-se em torno desta convenção e a cratera torna-se o lugar onde todos se reúnem. É aí, na pegada de um asteroide, que testemunham um evento insondável, o qual resulta na implementação de uma quarentena na pequena cidade.
Proibidas de sair, as personagens são obrigadas a confrontar a sua realidade, perspetiva e crenças no espaço restrito e quase irreal de Asteroid City. A limitação física das personagens reflete a cinematografia de Wes Anderson, que mantém as personagens fixas nos planos em prol da simetria e teatralidade. No entanto, perante o confinamento em Asteroid City, o realizador desdobra a história sobre si, destorcendo o espaço e o tempo, numa tentativa de procurar o significado das várias narrativas que se desenrolam. Apesar da quarentena, o universo de Asteroid City – e, consequentemente, o de Wes Anderson – abre-se perante as personagens e a audiência.
No meio desta espantosa sinfonia de cenários e narrativas, Wes Anderson revela, na voz de uma das personagens, que o propósito da história é simplesmente contá-la. Com as câmaras apontadas para o céu como telescópios, o realizador procura atravessar o espaço infinito entre história e narrador. Neste universo minuciosamente construído, o cineasta liberta as personagens da narrativa, deixando apenas a experiência do filme e a história que conta, como uma cratera deixada por um asteroide.
O mais recente filme de Laura Poitras, que arrecadou vários prémios, entre os quais o Leão de Ouro em Veneza, é um retrato cândido da artista estadunidense Nan Goldin. Indissociável da vida, a sua obra traz-nos agora um arranjo misterioso do qual podemos colher, muito a tempo, conhecimentos de nós próprios (aproveitando as palavras de Joseph Conrad no seu romance de 1902, Heart of Darkness: “Droll thing life is — that mysterious arrangement of merciless logic for a futile purpose. The most you can hope from it is some knowledge of yourself — that comes too late — a crop of unextinguishable regrets”).
Em seis capítulos, a realizadora faz convergir o presente e passado da artista Nan Goldin, desde as suas primeiras fotografias até ao triunfo (sempre insuficiente) contra a família Sackler, juntamente com o grupo P.A.I.N (Prescription Addiction Intervention Now) que fundou em 2017. Num magnífico gesto fílmico de Poitras, que se liga intimamente ao de Nan, através da carne (as suas fotografias) e das palavras que vai narrando, All the Beauty and the Bloodshed (2022) é um objeto que surge de uma reconstrução, renascido das cinzas do cru sustento da experiência real da memória.
“Please, call me Nan” pediu ao público na masterclass que deu no Teatro Rivoli, em setembro do ano passado, na qual afirmou ter deixado de fotografar por considerar que hoje tinha o significado oposto do que nos mostra o seu trabalho. Não existe, na sua obra, separação da vida. Não começou a fotografar com o intuito de fazer arte mas de captar a beleza da sua única família — os seus amigos — e de a mostrar ao mundo.
É o reflexo desta empatia que confere às suas imagens o icónico lirismo cru que alicerça a balada da sua vida. The Ballad of Sexual Dependency (1983-2022), em particular, funciona como um registo inestimável da sua comunidade, que viria a ser assombrada pelo vírus da SIDA, transformando-se forçosamente num memorial dos seus entes queridos. O olhar complexo sobre a intimidade expandiu o retrato de temas humanos universais, como o desejo e a violência, desde sempre presentes na arte. Sobretudo pela alteração de um olhar sexista sobre o nu, desafiando o espectador a entrar no olhar da artista sobre o sujeito fotografado. Em paralelo, o filme mostra como Nan renasceu dentro da força da comunidade que nunca (a) abandonou, usando agora a sua influência como artista para expor e derrubar a pretensa filantropia da família Sackler, cujo império foi erigido à custa de campanhas de marketing agressivo de fármacos altamente geradores de dependência.
Num exercício que poderia sintetizar a obra de Nan — o reflexo universal na espuma de um mergulho pessoal — All the Beauty and the Bloodshed (título que surge do relatório hospitalar da sua irmã Barbara) consubstancia a repetição de perder o que se ama, até ser restituída a beleza da memória de forma simples. O filme de Poitras é também um engenhoso mapeamento de locais e artistas de uma certa Nova Iorque, heterogénea e palimpséstica nas suas subculturas, contribuindo, por isso, para um importante glossário artístico bem como para uma reflexão prática sobre autenticidade na fotografia.
É com imagens de policiais chegando na cena de um crime e de uma televisão com um pastor afirmando o quão pecaminosas são as pessoas que se deixam levar pelos desejos da carne que a narrativa de X inicia-se, do realizador Ti West, lançado em 2022. Após um percurso de quase 20 anos, West realizou o que já pode ser sentido como um clássico dentro dos filmes de slasher.
No final dos anos 1970, um grupo de pessoas viaja para o interior do Texas e hospeda-se em uma fazenda, com o intuito de usá-la como set para o filme pornográfico que irá ser gravado. O dono da propriedade, um senhor com cerca de 90 anos, não simpatiza com os visitantes e quando Pearl (Mia Goth) – sua esposa, também da mesma idade – vê as filmagens do grupo, uma série de assassinatos irrompe no local.
Ao trazer para o terror as frustrações de uma vida que nunca aconteceu, West consegue integrar eficientemente o estilo do gênero a uma narrativa que aborda temáticas complexas. Inconformada com o passado, Pearl atira para os personagens toda a angústia que sente pelo o que gostaria de ter vivido. Ela vê na protagonista Maxime (também interpretada por Mia Goth) um reflexo da sua juventude e, por vezes, tem vontade de tocar em sua pele, como se fosse um dispositivo que trouxesse de volta o tempo que já se desfez.
O desejo carnal é então um dos elementos que permeia toda a narrativa. Pearl também anseia por ter relações com seu marido, embora este sempre a lembre de que está velho demais para isso – o sexo, portanto, explicita mais ainda a dicotomia entre juventude e velhice. West traz estes conflitos no cenário da América puritana dos anos 1970, época de alta na produção de vídeos caseiros, nos quais se incluem filmes pornográficos amadores.
A fazenda texana torna-se cenário para o assassinato em série do grupo – embora seja um local vasto, ele se transforma em um ambiente extremamente claustrofóbico. Ao revisitar o subgênero slasher, West realiza uma atualização de alguns elementos clássicos. Pearl não usa nenhuma fantasia, mas seu visual transmite uma atmosfera tão deteriorada que funciona perfeitamente como uma; Maxime torna-se a “final girl”, a última mulher viva para vencer os vilões e contar a história; e, embora haja uma certa demora para os assassinatos começarem, temos uma intensa presença da violência gráfica quando eles ocorrem. Isso cria uma nostalgia dos clássicos do gênero – especialmente na cena em que Pearl mata RJ (Owen Campbell), quando há um close-ups no rosto dos personagens, na faca e no carro ensanguentado.
Tal violência é o ápice de uma tensão construída substancialmente pela montagem, a partir de súbitas alternações de planos e de cortes abruptos em alguns momentos, e pela trilha sonora. As escolhas formais cumprem o papel de gerar inquietação e quebrar a expectativa do público – West surpreende com novos elementos que surgem no plano quando este é mais fechado. O filme também ganha uma força e profundidade ainda maior com a atuação de Mia Goth, que interpreta tanto Maxime quanto Pearl. A diferença e intensidade com que executa as duas personagens nos faz esquecer que estamos vendo a mesma atriz.
Terminamos X com a vontade de querer saber mais sobre esse universo, uma vez que é perceptível a existência de uma motivação maior engatilhando os assassinatos. A boa notícia é que West realizou Pearl, uma das estreias do IndieLisboa deste ano. O filme é um prelúdio desse cosmos, apresentando a história de Pearl quase 60 anos antes e os acontecimentos que culminaram no comportamento assassino.
Superficial em primeiro momento, X explora no gênero do terror questões mais profundas para além da violência gratuita. Somos confrontados com a recusa do envelhecimento, o desejo por fama e dinheiro e o puritanismo na América dos anos 1970 – temáticas por vezes ainda mais atuais hoje em dia. Ao nos fascinar com uma narrativa intrigante, West cria também um clássico imediato.
Ice Merchants, a curta-metragem de animação de João Gonzalez, fez história ao tornar-se o primeiro filme português a ser nomeado para um Óscar. O filme é um exercício estilístico que cria uma atmosfera sentimental e desenha uma história profunda sem qualquer diálogo ao longo dos seus 15 minutos de duração.
Fruto de técnicas de animação tradicionais, Ice Merchants recorre apenas à imagem, de traços suaves e cores contrastantes, ao som e à banda sonora, composta pelo próprio realizador, para contar a história de um pai e filho que, todos os dias, saltam de paraquedas da sua casa encastrada num precipício, para vender gelo na aldeia situada aos pés da montanha. O primeiro plano do filme mostra o filho a oscilar tranquilamente num baloiço construído por baixo do alpendre da casa, planando sobre as luzes da aldeia distante. De imediato, João Gonzalez convida o espectador a mergulhar no encanto surreal do filme, assimilando a realidade destas duas personagens.
Ice Merchants desenrola a rotina repetitiva do pai e filho de forma despreocupada, tão leve como o desenho que dá vida a todas as cenas. Apesar dos ângulos vertiginosos e dos sons ameaçadores que percorrem toda a casa, o filme expõe-se ao espectador com a mesma tranquilidade com a qual pai e filho saltam para o espaço vazio que os espera para além do seu alpendre. Uma e outra vez, os dois saltam juntos, rasgando o ar gélido e agreste entre a sua casa e a aldeia, perdendo os seus chapéus pelo caminho, até que o pai abre o paraquedas e aterram no chão com uma confiança muda. A sua passagem pela aldeia é metódica – o filho entrega o gelo e recolhe o dinheiro, o pai usa parte dos lucros para comprar novos chapéus. Ao fim do dia, já estão de regresso a casa.
Ice Merchants (2022), de João Gonzalez @ Direitos Reservados
No entanto, sobre tudo o que os dois fazem, paira um peso inexpressável, um vazio representado por uma caneca amarela que nem o pai nem o filho usam. Este espaço negativo assombra a história mais do que o mais alto precipício. Mesmo sem falarem, o luto das personagens é claro, e talvez por não ser expresso em palavras, essa emoção torna-se maior do que a própria falésia.
Apesar da altitude arrepiante, da dor e saudade que as personagens carregam, Ice Merchants permanece sempre uma história esperançosa, iluminada mesmo no espaço mais inóspito, um contraste realçado pelas cores quentes das personagens sobre os tons frios do ambiente que as rodeia. João Gonzalez consegue contar uma história única, visualmente algo surreal, transmitindo os sentimentos mais profundos através das ferramentas que distinguem o cinema como arte; a imagem viva e o som.
Margarida Rodrigues
[Foto em destaque: Ice Merchants (2022), de João Gonzalez @ Direitos Reservados]
Seria possível reduzir Pacifiction, (2023), de Albert Serra, ao seu discurso político, como muitos já o fizeram (imperialismo, colonialismo, apropriação cultural…), mas isso seria ignorar o que o realizador espreme desses temas: um dos filmes mais assustadores e opressivamente sinistros do ano passado. Claro que os temas políticos estão presentes, mas em vez de serem apresentados numa perfeita trama narrativa, estes surgem como um bloco monolítico incessante de zumbido atormentante. O impulso anti-narrativo do filme funciona porque barra o espetador da entrada no mundo-além dos segredos, ou seja, ele sente que uma verdade coerente existe, mas ao tentar seguir os fios da história que são apresentados, inevitavelmente acaba no chão emaranhado no novelo. Serra sabe isto e assume o papel de dominante neste jogo shibari (não estás no chão enrolado em lã como um gato, foste atado minuciosamente e com precisão, com um olho perspicaz ao valor estético da ação).
O protagonista, De Roller, assume-se como estando num nível de perceção elevada em relação às outras personagens. Ao longo do filme, ele é arrastado pela lama proverbial até perder qualquer confiança no seu intelecto e visão. Tudo o que lhe resta é lamber a chuva que Deus lhe oferece, livre, no meio do campo de futebol (onde mesmo assim, não está livre de vigilância). Não há um declínio constante, mas sim um caminho aos solavancos (como a incrível cena das ondas).
Serra já não está diretamente a inspirar-se em Sade, como no seu filme anterior, porém Sade brota nos seus recantos. Longe do sensorial, o foco sadeano deste filme encontra-se no não-pornográfico, tão ignorado na sua obra, o oratório. Nos livros de Sade, no meio da pornografia extrema, é comum as personagens entrarem em diálogos (estruturados como trocas de massivos monólogos) acerca das suas crenças e filosofias pessoais. O filme é, estruturalmente, constituído por diálogos completamente incompreensíveis. Personagens a trocarem de posição e estratégia num campo de xadrez decadimensional a que todos têm acesso menos nós (e o De Roller, mesmo que não queira admitir). De Roller é a personagem que mais se assume no perfil de diálogo sadeano, contudo acima de querer estabelecer a sua filosofia, parece infinitamente estar a tentar convencer os seus oponentes (e acima deles, a si mesmo).
O filme já foi criticado por uma estética visual vazia, focada numa harmonia auto-satisfeita de cores e texturas. Isto não poderia estar mais longe da verdade. Pacifiction tem uso recorrente de néon, principalmente vermelho e branco irradiante, porém, ao contrário do seu uso fetichista em revivalismos vazios dos anos 80, neste caso, o afeto provocado não poderia ser mais rançoso. Por um lado ligado à radioatividade em jogo constante do filme, por outro lado, focado num sentimento de inversão do signo, onde o apelativo das discotecas se torna completamente grotesco. Uma discoteca só tem valor proporcional ao calor dos corpos que a enchem. A tese do filme parece ser que a geopolítica é uma discoteca vazia no inferno. O que acontece quando a sala apenas é preenchida pelas luzes do néon?
Pacifiction, inegavelmente, tem cenas de intensidade marcantes, no entanto, o seu carisma está nesta sedução do néon, uma sedução anestesiante e soporífera que conduz a sua vítima a um mundo de horrores. Simone Weil, em A Gravidade e a Graça afirma que “O mal imaginário é romântico, variado, o mal real é morno, monótono, desértico, enfadonho.” O cineasta parece aventurar-se em trazer a monotonia enfadonha do Mal real para o mundo da ficção, algo que só o torna mais aterrador.
A experiência de ver este filme é a de olhar para a monotonia no seu mais maligno. Burocracia infindável apenas preocupada consigo própria, responsável pela morte de milhões e vestida para matar no seu vestido VERMELHO estonteante e com a pele BRANCA, que cega com o seu brilho. Quando em Twin Peaks: Fire Walk With Me Laura Palmer olha para a ventoinha no teto de sua casa, seduzida pelo seu zumbido, apenas o faz sob a influência dum mal cósmico. Este filme emula a experiência de olhar na cara do mal sedutor da ventoinha da família Palmer enquanto mentalmente estável. É possível sentir a loucura infiltrar-se.
Duas cenas a destacar que sintetizam tudo o que foi aqui apresentado. A primeira, o tableau nauseabundo de uma mulher a ser estrangulada “meigamente” enquanto tenta fugir sem grande convicção. Não se ouvem as vozes desta parelha, apenas a música eletrónica ambiente a ser curada por uma DJ nativa do Taiti em topless, com os seus seios proeminentes na cena (imediatamente após uma conversa entre outras duas personagens acerca de uma mulher, que devido aos testes nucleares no Taiti, teve cancro da mama 3 vezes ao longo da sua vida…). A segunda, o monólogo de De Roller, no qual estabelece como missão “ligar as luzes da discoteca e revelar a violência”. Este monólogo é contrastado com a grande peça armilar da discoteca, única cena em que De Roller não tem agência (sendo também a única em que não está a usar o seu fato branco, de forma a não ser destacado pela luz negra). Nesta discoteca o Almirante responsável pelos testes nucleares dança de forma assustadoramente patética em frente de um mural com um panorama de um vulcão em erupção, enquanto acaricia homens musculados (corpos esculturais que se irão perder para deformações no iminente desastre).
É sobre uma citação de Samuel Langhorne Clemens, amplamente conhecido pelo pseudónimo Mark Twain, que III Guerra Mundial, (2022) deHouman Seyyedi, se constrói: “A História nunca se repete, mas por vezes rima”.
A nota de Twain transporta uma aura sorridente face à razão de simplicidade/veracidade própria do seu universo que se instala mesmo antes de conhecermos Shakib (Mohsen Tanabandeh). Perscrutamos a conversa gestual in media res entre o protagonista e a sua amiga surda-muda Ladan (Mahsa Hejazi) na qual a particular ausência de vociferação redobra a atenção para o diálogo. Shakib faz um gesto transversal ao pescoço que dispensa traduções, concluíndo o prólogo da diegese.
Shakib é um homem que sobrevive depois de perder a família num terramoto e começa a trabalhar na rodagem de um filme que reproduz o Holocausto. Sem aviso prévio, a produção recorre a ele e aos restantes operários para figurantes, no papel de prisioneiros do campo de concentração. Momentos adiante no que se virá a revelar numa espiral cáustica de eventos, o realizador decide que Shakib tem “algo” que é preciso para o papel de Hitler.
Se a frase de Twain nos deixa em mente um sorriso simples e puro, a aridez emocional que transborda do protagonista traduz um estado de sobrevivência desapegada e desapaixonada no qual a razão de viver se reduz ao automatismo do hábito. Ao entrar no deserto interior de Shakib, o espetador concebe uma realidade precária e solitária, marcada pelas características anteriormente mencionadas. Contudo, o pessimismo requintado instalado gradualmente, consegue ter um efeito peristáltico precisamente pela mesma simplicidade da nota inicial.
As “rimas” que pululam numa coreografia inesperada, “totalmente original e chocante” (Atom Egoyan), sublevam o que entre elas se transfere en abyme, de uma forma notável, dentro e fora do ecrã: no ato de resistência que significa per se filmar-se hoje no regime opressor do Irão (na senda de Rivette mostra como este filme é em si um documento sobre a sua própria execução) bem como na abordagem dupla da reprodução do Holocausto dentro do cinema. Com efeito, dentro e fora de tela, as rimas fundem-se à luz da simplicidade inicial, condição que exalta nas imagens a frescura de uma crueldade crua. No filme dentro do filme, a reprodução do Holocausto é apenas um pretexto ao serviço do mal, uma coincidência que tem tanto de nefasta como de cândida.
O traço humorístico da narrativa desdobra-se precisamente a partir destas coincidências (miméticas) mesmo à frente dos nossos olhos sem que tivéssemos aceitado vê-las. A troca de roupa dos operários de rodagem para um pijama às riscas é célere no modo como (não) os coloca numa posição tão diferente, chamando drasticamente à realidade sobre uma manipulação de expressão física que se repete. Veja-se por exemplo o plano que mostra os “prisioneiros” atrás das grades, enquanto comentam o desempenho do primeiro ator no papel Hitler antes de “sujar a roupa toda”. É nesta sequência que Shakib é escolhido a dedo pelo realizador para o papel de führer numa revelação atroz em que o vazio emocional é escolhido para ser preenchido pela figuração do abjeto — a simplicidade do mal. Em boa vizinhança com o O Grande Ditador (1940) de Chaplin (na videochamada entre Shakib e Ladan) o protagonista torna-se, por fim, na arma de Tchekhov de ambos os filmes.
É através de um ecrã que é dado o tom de Tár (2022), num live que rima simultaneamente com o enquadramento de uma situação e com a morosa iminência do que está para acontecer. Simultaneamente, Tár é Lydia (Cate Blanchet) e um espaço observacional, no qual mergulhamos, onde a genialidade, o poder e o fantasmático estabelecem entre si uma inextricável relação de conflito.
Lydia Tár é uma maestrina brilhante, cujo nome entrou para a história, reconhecido amplamente como o de uma das maiores maestrinas vivas e a primeira mulher a dirigir a Filarmónica de Berlim. Numa das primeiras cenas, ficamos a par do seu notável e extenso currículo, através de uma entrevista conduzida por Adam Gopnik (cameo), a propósito do lançamento da sua biografia “Tár on Tár”. Na entrevista, que grosso modo decorre em mezzo piano, ouvem-se os pontos acutilantes para o curso da narrativa: o papel do maestro, do ponto de vista do controlo do tempo (a espontaneidade da musica é uma ilusão) e a leve discussão sobre a relação de Gustav Mahler (compositor no qual Lydia é especialista) com a sua mulher Alma, com enfoque na credibilidade desta como compositora aos olhos do marido (“só há lugar para um idiota”).
A estética de Tár é assim estabelecida numa musicalidade simbólica desencadeada através do diálogo. Em Tár os símbolos são charneiras e vão sendo ativados num lento crescendo, contínuo e contíguo com o que não podemos garantir estar a ver nem a ouvir, isto é, com presença de fantasmas: da estetização do bélico, no próprio espaço de Berlim (para além do espaço físico, em referências históricas), na música clássica per se (já com a controversa nota de abertura sobre Mahler e Alma), na figura de poder do maestro (e na relação com os seus subordinados) e, requintadamente, na figura de uma mulher lésbica no papel de “deus” (de quem se gosta), acusada de abusos sexuais (mas não se pode).
Todd Field orquestra provocadoramente esta rapsódia de conflitos quase como se se tratasse de uma epoché, em que a mise-en-scéne está em perfeita harmonia com uma frieza estética de símbolos, numa narrativa em que a ambiguidade é uma neblina envolvente. Lydia viaja sempre de jato, mas conduz um Porsche elétrico (uma incongruência que lhe podia servir de síntese). Representa uma descentralização da masculinidade preponderante no meio da música erudita, embora conserve imaculadas as suas propriedades tóxicas. Deus está presente (“ele vê tudo”) em Tár e em Lydia, oscilando entre o reconhecimento divino e o adestramento dos seus (fiéis) seguidores. Nas palavras de Luís Miguel Oliveira “é dos filmes mais me too que já se fizeram, mas a protagonista e abusadora é uma mulher, e uma mulher lésbica”. No próprio diálogo verifica-se esta dicotomia palpitante entre o que se percebe e o que se concebe, quando a certa altura há um equívoco fonético entre a palavra misoginia e misogamia.
Com efeito, os símbolos que compõem Tár, em três andamentos — contemplação, crise e queda — surgem-nos num cruzamento de atuais guerras culturais e de uma série de clichés dos retratos de poder, sedimentando uma imagem mais ou menos familiar de alguém que beneficia dos seus privilégios de maneiras eticamente dúbias. Projeta-se no mundo com um único propósito: a arte. Lydia Tár, fria, determinada, genial, maquiavélica e alvo de um escândalo, é uma personagem reescrita sobre um palimpsesto de figuras sobre as quais se mantém aceso o debate sobre a (não) separação entre a arte e a vida.
The Whale, do cineasta Darren Aronofsky, chegou aos cinemas portugueses e trouxe consigo um tópico urgente: o facto de vivermos num mundo carente de empatia. Na cerimónia dos Óscares arrecadou duas merecidas estatuetas, celebrando-se assim o regresso do ator Brendan Fraser, estrela “esquecida” pelo público.
Assim que o filme abre, somos introduzidos à sua personagem principal: Charlie, um professor de um curso online. Apesar de, inicialmente, apenas ouvirmos a sua voz (Charlie esconde-se atrás de uma câmara que mantém desligada), a intensidade dessa mesma voz prepara-nos para um filme que nos irá levar numa viagem emocional desconfortável. Passados uns minutos vemos aquilo que esperávamos ver desde o início: o enorme corpo de Charlie (antecipado já pelo cartaz e trailer do filme). Aquela figura “monstruosa” (o fato de gordura que lhe valeu o Óscar de melhor caracterização) existe não só para “assombrar” e deixar desconfortável o espectador, mas também para trazer para cima da mesa o tema da obesidade mórbida que, à primeira vista, parece ser o tema principal da nova longa-metragem do realizador de clássicos como Requiem for a Dream e Black Swan.
É difícil para o espectador distanciar-se deste corpo e desta obesidade, tendo em conta a forma próxima como a câmara de Matthew Libatique (diretor de fotografia) enquadra a personagem principal – quase sempre em grande plano – e a forma como a montagem sonora dá destaque a certos ruídos que o ator faz enquanto come. Uma das principais críticas feitas ao filme é a de que aquele corpo grotesco apenas serve o propósito de espantar, ou até “entusiasmar” o espectador, de uma forma que pode ser interpretada como populista. Na sala de cinema, vemos que, enquanto Charlie “engole” asas de frango gordurosas, o espectador, que se delicia com um balde de pipocas cobertas de caramelo, ri, sendo pouco claro se se trata de um riso cómico ou nervoso. Considerações à parte, torna-se óbvio que Darren Aronofsky nos queria chocar com estas imagens, ao mesmo tempo que nos remete para a noção extremamente realista das mesmas.
Desta forma, pode inferir-se que o lado performático do corpo acaba por marcar um filme que é, por sua vez, uma adaptação da peça de teatro de Samuel D. Hunter e que, por isso, se vê, primeiramente, apoiado nos seus diálogos. O espetáculo do corpo – um espetáculo visual, que alguns parecem ver como fetichista – caminha de mãos dadas com a palavra, neste que é um filme que não faz por esconder o seu lado teatral. Esta realidade faz com que The Whale acabe por perder, dado respirar tanto a texto dramático. Ainda assim, esta afinidade com o teatro faz-nos pensar que talvez o diálogo expositivo e o cenário único – um apartamento desleixado mas, em suma, um pouco genérico – sejam as únicas duas formas capazes de dar resposta à história de vida de Charlie: uma vida que se passa num mesmo lugar e onde nada acontece e onde só nos resta falar sobre aquilo que já aconteceu.
Porém, The Whale é sobre questões muito mais gerais do que apenas a vida e a obesidade desta personagem. É um filme com várias camadas, que nos fala de orientação sexual, religião, literatura, relações familiares, parentalidade e sentimentos empáticos que nutrimos sobre “o outro” à nossa volta. Na última semana de vida de Charlie, este tenta uma reaproximação com a sua filha adolescente, interpretada pela atriz Sadie Sink, num papel que se mantém muito colado àquilo que faz na série pela qual ficou conhecida: Stranger Things. Ao longo do filme, para além desta interação com a sua filha, Charlie interage com os seus alunos através de uma câmara desligada; com um estafeta de pizzas através de uma porta que mantém fechada; com um pássaro que vem comer à sua janela; com a sua ex-mulher alcoólica; com um jovem que pertence à Igreja New Life e que tenta salvá-lo espiritualmente; e com a sua grande amiga e irmã do seu companheiro morto, Liz. Interpretada por Hong Chau, Liz é a grande companhia de Charlie e é também através dela que vivemos algumas das emoções mais fortes deste filme.
É no olhar de Brendan Fraser que vemos espelhada a necessidade de uma sociedade mais empática. Charlie é um homem que, independentemente da forma como a sua vida tenha corrido, continua a olhar para o mundo à sua volta com um olhar quase inocente, de alguém que vê beleza naquilo que está a presenciar. Há uma felicidade e empatia inerentes a esta personagem que dá ao filme uma pequena mensagem de esperança e que nos faz pensar se terá Darren Aronofsky amolecido ao longo dos tempos. No final de contas, estas personagens todas querem salvar e ser salvas, e é nas ligações entre elas que está a grande magia deste filme. Aronofsky eleva o filme na sua cena final, através de um contraste direto com a câmara desligada no início do mesmo. Finalmente, vemos um Charlie que deixou de se esconder atrás da câmara e atrás de objetos como o andarilho, que o parecia ajudar a movimentar-se pela casa, um Charlie que caminha para a sua filha e que por isso parece ser “absolvido”, numa espécie de libertação religiosa. O branco substitui o preto. A empatia substitui a falta dela.