Transformar em cinema uma história verídica é uma tarefa que requer uma atenção especial, mas que, quando feita de forma perspicaz, tem o poder de mostrar muito sobre o mundo em que vivemos. Jean-Paul Salomé aceita a missão de trazer para o cinema o que aconteceu com Maureen Kearney, a sindicalista que denunciou esquemas de corrupção em uma empresa francesa.
Exibido na 24ª Festa do Cinema Francês, o filme é uma adaptação do livro “La Syndicaliste”, escrito por Caroline Michel-Aguirre, responsável por investigar os acontecimentos que se sucederam na vida de Kearney. Interpretada pela grandiosa Isabelle Huppert, A Sindicalista (La Syndicalist) inicia em 2012, quando Maureen descobriu as irregularidades de uma multinacional e buscou tornar público tais informações, desencadeando uma série de ocorrências que colocaram em risco sua vida.
Salomé transpõe para o ecrã as ameaças verbais sofridas por Kearney e, sem medo de chocar, mostra-nos explicitamente a violência física cometida contra ela. Algo fica preso em nossas gargantas. Esse sentimento cresce ainda mais ao lembrarmos da veracidade dos acontecimentos. Kearney é vista como mentirosa por não se lembrar de maneira clara de tudo o que sofreu. A acusação se vira contra ela em um processo conduzido por homens. Relembramos da problemática de vivermos em uma sociedade dominada por figuras masculinas. A segurança que deveria existir, na verdade, ameaça-nos ainda mais. É significativo que a única pessoa a ficar do seu lado – com exceção de sua família – seja uma mulher. Os acontecimentos vividos por Kearney lembram-nos: “somos nós por nós mesmas”.
Entretanto, o grande êxito do realizador em A Sindicalista é esse. Embora assuma como foco principal a violação e o período que se sucedeu, Salomé abandona outros conflitos relativos ao sindicalismo e aos trabalhadores e deixa um buraco no que tange esses assuntos. O filme acaba por se tornar um suspense, uma história que poderia acontecer a qualquer personagem e, em alguns momentos, perde-se um pouco da singularidade da história de Kearney.
Além disso, Salomé tem alguma dificuldade em prender nossa atenção. A escolha por um ritmo relativamente frenético no começo do filme e por situar o espectador, no tempo e espaço, por meio de informações escritas que surgem na tela confere uma certa sensação de filmes de super-herói. Tais escolhas são compreensíveis se considerarmos que nem todos conhecem a vida de Kearney, mas acabam por criar um efeito destoante. A atenção é fisgada somente na metade do filme, quando explode em nós o desejo por saber os autores do crime e a vontade de que a justiça seja feita – coisa que, como é mostrado nos créditos finais, nunca foi. Ademais, o grande destaque, para além da história, é atuação de Huppert, sua presença prende nossa atenção e carrega o filme quando ele parece perder as forças.A Sindicalista é uma história que precisa ser contada. Ilustra o perigo contido nos bastidores da política, a ausência de voz das mulheres, os riscos que existem ao vivermos em um mundo onde os cargos de poder são ocupados por homens. Apesar das objeções em relação às escolhas formais, o conteúdo se sobressai. É urgente, é necessário ser visto. Deixa-nos sem palavras ao final, mas com a mente repleta de reflexões.
* O presente texto encontra-se escrito em português do Brasil.
Uma das boas surpresas de 2023, O Sol do Futuro (Il sol dell’avvenire) é o novo trabalho do realizador italiano Nanni Moretti. Presente na competição de Cannes, tem-se aqui um filme dentro do filme. Em suma, Giovanni (Moretti) é um realizador que está a gravar o seu novo longa-metragem, contextualizado durante a Revolução Húngara de 1956, enquanto precisa lidar com o casamento à beira de um colapso.
A sinopse mostra-se simples, mas Moretti transforma-a em um filme cativante e usa esta história como meio para explorar e transmitir suas percepções sobre o cenário do cinema atual. Ao mesmo tempo, apresenta também as questões políticas já vistas em sua obra anteriormente. O Sol do Futuro é o retrato de um saudosista da tradição cinematográfica. Giovani precisa lidar com as transformações nos modos de produção do cinema, mas isto torna-se uma dificuldade para quem é fortemente conectado com as convenções. A modernidade se instala cada vez mais rápido e isso o aterroriza. Esta representação é feita de forma extremamente cômica, fazendo com que nos esqueçamos das implicações que isto, de facto, pode trazer.
O contraste entre passado e presente pode ser visto na relação entre Giovanni e sua esposa, Paola (Margherita Buy). Ele, um realizador ligado à tradição e à temática histórica, precisa lidar com o trabalho de sua mulher, que está produzindo um filme de ação – à la Michael Bay. O saudosismo de Giovanni é marcado logo no início, ao querer manter a tradição de assistir um filme com sua família enquanto toma gelado, mas a esposa e a filha não podem participar. O tempo passou e é difícil para o personagem aceitar isso. Rimos do personagem e da situação, mas no fundo, todos nós carregamos tradições que são difíceis de serem mudadas.
Tensões surgem dentro de casa e fora dela, sendo uma das melhores cenas do filme a sequência em que Giovanni paralisa o trabalho de Paola para discutir sobre a ética do enquadramento da morte de um personagem – uma discussão que remonta ao polêmico travelling de Kapò (1960). Outro momento de destaque é a reunião de Giovanni com a Netflix, na qual ouvimos repetidas vezes que a plataforma está presente em 190 países e as “regras” estabelecidas por eles para ser um bom filme.
O que torna O Sol do Futuro mais singular é sua construção, que mescla cenas do filme que Giovanni está a realizar com o filme que estamos a ver. Os cortes secos de transição e o conteúdo entre as duas obras criam uma atmosfera cômica, que dialogam entre si e colocam em paralelo o que é mundo fictício e mundo real – no caso, “real”, visto que ainda estamos a ver uma ficção. Um dos destaques é o design de produção, especialmente nas cenas dos anos 50, responsável por nos fazer mergulhar não somente na obra criada por Giovanni, mas também no próprio filme de Moretti.
A obra de Moretti gera múltiplas sensações e nos leva a indagações sobre o futuro, o amor e o cinema. Estes últimos, tão essenciais para Giovanni, estão transformando-se e esvaindo-se de sua vida. Lidar com a passagem do tempo se mostra uma tarefa que pode ser difícil de encarar, e Moretti traz à superfície de nossos pensamentos a inevitabilidade dos acontecimentos da vida. Entretanto, a marcha final lembra-nos que há uma vida apesar de tudo e, principalmente, um futuro.
O Sol do Futuro é um retrato da saudade do tempo que já se foi na vida de um realizador. É o amor pela sétima arte traduzida nela própria e Moretti consegue escavar nas nossas lembranças o que nos levou a amá-la. Ri de si mesma e nos faz rir também. Saímos do cinema com o coração aquecido, com a mente repleta de questionamentos sobre o futuro e nos perguntamos qual é o sol de cada um de nós. É, de longe, uma das melhores surpresas do cinema – feito para o cinema – neste ano.
Paris, anos 1930. Este é o cenário escolhido por François Ozon para situar seu novo filme, O Crime é Meu (Mon Crime, 2023), uma adaptação da peça de Georges Berr e Louis Verneuil. A narrativa segue a história de Madeleine Verdier (Nadia Tereszkiewicz), uma aspirante a atriz erroneamente acusada de assassinato, e Pauline Mauléon (Rebecca Marder), sua amiga recém formada em direito. Envoltas em um crime ao qual não possuem nenhuma relação, as amigas aproveitam a acusação para mudarem de vida depois de serem absolvidas.
Embora possua uma história que poderia facilmente ser um drama, O Crime é Meu é, na verdade, uma comédia tipicamente francesa de ritmo rápido. Arranca boas gargalhadas do público a partir de diálogos perspicazes que, em certos momentos, nos fazem lembrar dos icônicos filmes norte-americanos de screwball comedy realizados nos anos 1930. A esse aspecto destaca-se a divertida dinâmica atuação dos veteranos Dany Boon e Isabelle Huppert.
Este ritmo frenético também é acentuado pela forma como o filme é construído. Ozon intercala cenas do mundo diegético com as possibilidades encontradas pelas personagens em relação ao assassinato. Estes momentos são marcados pela imagem preta e branca e por atuações exageradas, remetendo-nos aos filmes mudos. Essa é uma das diversas menções ao cinema feitas durante o filme, que é homenageado em outras cenas e aspectos por Ozon.
Apesar de possuir uma narrativa de peso, o filme O Crime é Meu salta aos olhos especialmente no que diz respeito aos aspectos visuais. É criada uma mise-en-scène fiel aos anos 1930 que, por certas vezes, nos deixa com vontade de entrar no ecrã e participar da história. O grande destaque são os figurinos, assinados por Pascaline Chavanne, que vão desde vestimentas simples até as mais glamourosas.
Madeleine e Pauline encontram-se com um montante de dívidas e buscam independência, encontrada a partir do crime e da amizade que beira uma relação entre irmãs. A potência das personagens une-se, no final, à de Odette Chaumette (Isabelle Huppert), mostrando que juntas tornam-se mais fortes.
O Crime é Meu é uma comédia que entrega boas risadas e deixa o público com vontade de se transportar ao passado criado por ele. Por ser baseado na peça homônima, carrega alguns traços da divisão teatral em dois atos, criando a sensação de que estamos diante de dois filmes.No entanto, este facto não é uma problemática e não compromete a experiência. É um filme que busca colocar reflexões, mas não se torna cansativo. Feito para ver em uma tarde de verão ou quando a vontade de viver no cenário nos anos 30 bater à porta.
Dentro dos frequentes debates sobre a figura da mulher na sociedade, um filme desperta a atenção – talvez pelo fato de ter sua direção assinada por Sidney Lumet, mas ser raramente lembrado. O Grupo (The Group), lançado em 1966, é uma adaptação do romance escrito por Mary McCarthy e publicado em 1963. Ambientado na América dos anos 1930, somos apresentados ao mundo de oito jovens recém graduadas e às suas perspectivas sobre a vida.
Num primeiro momento, O Grupo salta aos olhos ao trazer determinadas temáticas que dificilmente seriam vistas de forma crua no cenário pós-Grande Depressão – embora tenha sido realizado trinta anos depois, é singular ver tais assuntos serem abordados no seio daquele contexto. O filme se passa ao longo de quase dez anos, iniciando em 1933 e terminando na época da Segunda Guerra Mundial, em 1940. As jovens encontram-se em um mesmo ponto de partida e seguem suas jornadas individuais ao longo desse período, algumas focam suas vidas no trabalho enquanto outras na vida pessoal – casamento e filhos.
A cena inicial é composta por uma montagem de diversos momentos vividos pelas personagens na Universidade de Vassar – uma instituição localizada a alguns quilômetros da cidade de Nova Iorque e que, até o ano de 1969, só aceitava meninas. A sequência culmina na formatura, quando é proferido um discurso por Helena (Kathleen Widdoes), na qual ela afirma: And we believe, as we take our separate roles, that it is only in achieving the highest personal fulfillment, the goal of our education, that each will make the greatest contribution to our emergent America.
É praticamente impossível não lembrarmos de algumas ideias trazidas em A Mística Feminina ao ouvirmos essa fala e vermos o filme. Lançado em 1963, o livro de Betty Friedan reflete sobre o comportamento e o papel das mulheres nos anos 1950 e 1960, que culminou no conhecido “O Problema Sem Nome”. Na obra, ela coloca em pauta a problemática da figura feminina como alguém limitada a ser esposa, mãe e dona de casa. Em teoria, essas deveriam ser as únicas obrigações de uma mulher e ela deveria se sentir completa e realizada por isso. Assim, embora elas tivessem alcançado o tão desejado “sucesso”, a sensação de vazio crescia cada vez mais.
Friedan retrocede no tempo até os anos 1930 – época em que ocorre a narrativa de The Group – e nota que a função da mulher nesta altura era bastante diferente daquela vista anos depois. Eram heroínas independentes, “profissionais felizes, orgulhosas, aventureiras e atraentes – que amavam os homens e eram amadas por eles. E o espírito, a coragem, a independência, a determinação – a firmeza de caráter que demonstraram no trabalho como enfermeiras, professoras, artistas, atrizes, redatoras, vendedoras – era parte do seu charme.” (p. 41). Além disso, nos anos 1930 elas “estavam caminhando na direção de um objetivo ou visão própria, enfrentando algum problema do trabalho ou do mundo, quando encontravam seu homem” (p. 41).
O que vemos aqui é um retrato da cena inicial e do discurso de Helena, as garotas almejam fazer a diferença a partir da educação que receberam em Vassar. Assim, nota-se a estranheza das demais ao verem Kay (Joanna Pettet) casando-se logo após a saída da universidade – uma vez que o esperado seria seguir a carreira profissional.
Também podemos perceber ao longo do filme outros momentos que trazem à tona as questões postas por Friedan. O arco narrativo de Polly (Shirley Knight) ilustra a ideia de que o homem entraria em suas vidas quando o foco estivesse voltado para o trabalho, ou seja, não haveria uma busca desesperada por alguém para se sentirem completas.
Entretanto, nota-se também o começo da mudança para aquilo que viria a resultar no “Problema Sem Nome”. Priss (Elizabeth Hartman) sofre com o facto de se ver obrigada pelo seu marido a amamentar o filho, quando na verdade ela não consegue fazê-lo – ele inclusive a culpa porque os enfermeiros alimentaram a criança com fórmula. A devoção de Kay ao marido que a trai, a vida dedicada à família de Priss e as questões amorosas de Dottie (Joan Hackett) – ela tem seu coração dividido ao se ver em meio a uma proposta de casamento quando na verdade ama outro homem – contrastam com a vida de Libby (Jessica Walters).
A personagem de Libby e sua jornada são complexas. Ela desvia-se do caminho do casamento e filhos, não porque não queira, mas porque não consegue se relacionar sexualmente com homens. Em paralelo, sua esperteza a ajuda a crescer cada vez mais na carreira profissional e faz com que seja uma das mais bem sucedidas entre as amigas. Em termos visuais, percebemos sua profundidade nas cenas em que está no seu quarto, onde a decoração é composta por tons de roxo e muitas bonecas espalhadas por prateleiras e pelas camas.
Além disso, o que encontramos na obra de McCarthy/Lumet é uma série de temas como relações lésbicas, aborto, controle de natalidade… É difícil imaginarmos estas pautas, por exemplo, em um filme da RKO, dentro de uma mise-en-scèneart decó ou sendo debatidas por Katherine Hepburn – especialmente após a instauração do Código Hays. The Group carrega a possibilidade de vermos tais questões sendo discutidas num cenário visual diferente do que estamos habituados.
A força de The Group reside na história. A realização de Lumet é arrastada e cansativa em determinados momentos, assemelha-se, por vezes, a um filme feito para a televisão. Entretanto, algumas planificações chamam à atenção, como na cena em que as amigas estão sentadas numa mesa redonda e a câmera gira ao redor delas, uma escolha livre de problemas técnicos e de pós-produção.
The Group merece ser visto pelas reflexões históricas e se torna ainda mais rico junto da leitura de A Mística Feminina. Não é a obra mais interessante em termos visuais, mas conta uma história que merece ser conhecida se quisermos pensar mais sobre onde a figura da mulher esteve, para onde ela vai e quais são as possibilidades futuras. Em uma época de polarização, estamos inclinados a voltarmos para as ideias dos anos 1950 ou para Vassar da década de 1930?
Utopia, cores e sonhos. Esses foram alguns dos elementos-chave que nortearam a produção de filmes musicais norte-americanos até meados da década de 1960 – responsável pela produção de algumas das mais inesquecíveis e singulares obras do gênero. Entretanto, foi na França que a dança e o canto encontraram um final oposto ao júbilo comum até então.
Os Chapéus de Chuva de Cherburgo (Les Parapluies de Cherbourg), lançado em 1964, foi a terceira longa-metragem dirigida pelo francês Jacques Demy, que manteve algumas características do gênero ao mesmo tempo que rompeu com outras – especialmente no que diz respeito à narrativa. Dividido em três partes, que ocorrem entre o final dos anos 1950 e início dos anos 1960, o filme gira em torno da história do relacionamento entre Geneviève (Catherine Deneuve) e Guy (Nino Castelnuovo). Contudo, o amor fica comprometido quando ele é convocado para servir no exército na guerra da Argélia.
O aspecto visual e a narrativa andam em contramão ao mesmo tempo que são indissociáveis. Demy cria uma atmosfera semelhante à já recorrente nos musicais hollywoodianos, composta por uma paleta de cores vibrante e extremamente diversificada. Essa escolha pode ser vista como um mero cumprimento aos preceitos do gênero até à altura, mas uma vez que terminamos o filme, nota-se que seu uso vai muito além desta suposição.
Deixemos os finais felizes, a terra dos sonhos e a utopia de lado. Em contraposição aos filmes musicais feitos até então, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo carrega uma narrativa dramática e realista. O amor entre os protagonistas não vence, mas sim a razão. Carinho e afeto permanecem, porém, a realidade toma seu lugar e leva Geneviève e Guy a caminhos distintos. Assim, o filme traz temas reais que outrora não seriam vistos no mundo fantástico da cantoria norte-americana.
Demy não se restringe à superfície da desilusão amorosa e mergulha mais fundo em temas complexos. A relação de Geneviève e sua mãe, Madame Emery (Anne Vernon), norteia toda a narrativa e a vida da protagonista também. Ela quer que a filha se case com Roland Cassard (Marc Michel), um homem rico que tem plena condição financeira de manter uma família – ao contrário de Guy, um trabalhador desprovido de poder aquisitivo. Cria-se um impasse na percepção sobre a figura materna que, embora queira o bem para sua filha, acaba influenciando-a em suas decisões e distanciando-a de seu amor. Outra temática vista no filme é a gravidez fora do casamento – uma problemática significativa e complexa para a altura -, que se torna uma questão para a protagonista.
Os Chapéus de Chuva de Cherburgo não apresenta números de dança complexos – planos recorrentes nos musicais são deixados de lado, como aqueles feitos com grua para mostrar a exuberância da coreografia e do cenário – e irreais para o mundo real, mas apresenta todos os diálogos cantados. Assim, a música cumpre umas das convenções vistas no gênero, a de avançar a narrativa.
Embora tramas dramáticas já tenham aparecido em obras realizadas anteriormente – como em West Side Story – Amor Sem Barreiras – Demy contribuiu para uma nova percepção dentro dos musicais ao mesclar uma atmosfera colorida com uma narrativa realista. Essa oposição torna o filme marcante e é fundamental para nos puxar para realidade. Embora seja um ambiente tão vibrante como Oz, em Cherbourg, os sonhos que você ousa sonhar nem sempre se tornam realidade.
E se O Feiticeiro de Oz fosse uma história de terror? Essa é uma das muitas indagações que transpassa nossas mentes ao sairmos da sala de cinema após a sessão de Pearl, realizado por Ti West e exibido no 20º IndieLisboa. O longa-metragem é uma prequela de X e, se o primeiro já foi um regalo ao gênero de terror slasher, este acaba por ser uma surpresa ainda melhor.
Voltemos cerca de 60 anos antes aos acontecimentos de X. Pearl (Mia Goth) é uma jovem moradora de uma fazenda texana que vive com seus pais – imigrantes alemães – e aguarda o retorno de seu marido, combatente na Primeira Guerra Mundial. Somos então expostos aos acontecimentos situados na gênese do comportamento atípico da protagonista e compreendemos o que motivou as atitudes assassinas nos anos 1970.
Um dos elementos mais singulares de Pearl é a estética escolhida para a obra. Deixamos de lado as convenções dos filmes de terror para sermos inseridos em um universo repleto de cores – nota-se que elas são, até mesmo, ligeiramente saturadas. Podemos então iniciar o paralelo que a obra faz com alguns filmes da era de ouro de Hollywood, em especial O Feiticeiro de Oz.
O primeiro plano do filme é constituído por um travelling frontal iniciado dentro do estábulo e termina segundos após as portas abrirem-se para a fazenda. O cenário é o mesmo de X, mas aqui o céu está azul, a casa recém pintada e a grama verde. Estamos na mesma posição de Dorothy no momento em que ela acorda e vê que não está mais em Kansas, mas sim em Oz.
Esse mundo utópico – ao contrário da obra de 1939 – fragmenta-se ainda na sequência de abertura, quando a mãe de Pearl a arranca bruscamente de seu devaneio com o universo do espetáculo. Percebemos então que a protagonista divide-se entre o mundo real e o imaginário. Há uma tentativa de conciliar – a contragosto – os deveres relativos à família e à fazenda com as idas ao cinema e a vontade de ser uma estrela. Sua aspiração é tão latente que West concebe uma longa sequência de dança em uma plantação de milho entre Pearl e um espantalho – mais uma referência ao mundo de Oz.
Entretanto, para além dos anseios mais explícitos, Pearl possui desejos sexuais intensos – comportamento perpetuado até a velhice -, responsáveis por levá-la para um caminho que vai desde a infidelidade ao seu marido até a uma simulação do ato sexual com o espantalho. Nota-se então a complexidade da protagonista e percebe-se a resposta às perguntas que ficam em nossas mentes após X.
A esfericidade relaciona-se principalmente ao seu comportamento assassino. Logo no começo da narrativa, a personagem mata gratuitamente um animal e mostra-nos sua face apática diante da morte. Essa atitude replica-se e recai sobre os outros que estão ao seu redor, incluindo seus pais. É notável a profundidade da personagem ao vermos uma certa angústia e culpa pelas mortes geradas por ela, ao mesmo tempo que notamos uma frieza e impassibilidade.
West utiliza de forma hábil certos elementos que tornam-se simbólicos para o filme. Para além do espantalho, percebemos a passagem de tempo a partir do apodrecimento do porco assado dado de presente à família de Pearl. O animal não serve apenas para localizar-nos temporalmente, mas também reflete o deterioramento dos corpos mortos pela personagem.
Pearl é uma surpresa mais que bem-vinda ao terror. A mistura de elementos estéticos e as referências às obras clássicas, deram um novo ar ao slasher e abriram um leque ainda maior de possibilidades que devem ser exploradas no gênero. West já havia acertado em X, mas aqui ele provou que pode-se fazer ainda mais.
Afeto, compreensão e conflitos familiares foram as temáticas exibidas na sessão de abertura do 20º IndieLisboa, com o filme Something You Said Last Night, o primeiro longa-metragem da realizadora Luis de Filippis. A produção franco-canadense foge extraordinariamente do lugar demasiado recorrente onde as obras sobre pessoas trans, em diversos casos, inserem-se.
As noites quentes passadas em um resort compõem o cenário das férias de Ren (Carmen Madonia) e sua família. Somos inseridos no ambiente familiar de Ren logo no começo da narrativa como uma espécie de voyeur. Após um breve instante de tensão causado pela perda momentânea de um vape e pela impaciência com a matriarca, Mona (Ramona Milano), notamos a relação de afeto e turbulência, que culmina em um plano dos quatro membros da família sentados à beira da estrada a dividirem um lanche.
A noção de voyeurismo é construída pelos planos feitos em câmera na mão, presentes na maior parte do filme, e pelas escolhas de enquadramento, quando os personagens por vezes localizam-se em segundo plano. Nos momentos de tensão, a escolha pelos primeiros planos transfere sublimemente para nós a apreensão das personagens, sentimo-nos sufocados assim como elas.
A narrativa de Something You Said Last Night caminha em um percurso diferente daquelas vistas dentro do cinema queer. Não há conflitos com a família relacionados à transição. O processo já ocorreu. Ren é uma mulher trans aceita, amada e apoiada por seus familiares. Os embates aqui ocorrem em outras esferas. Ela lida com o amor, a rejeição e a frustração com o trabalho em um ambiente que não dispõe de uma rota de fuga. Embora tente escapar, Ren sempre volta para ele e, no final, relembra a importância desse regresso.
Luis de Filippis então opta por trazer ao centro do debate os problemas de relacionamento existentes em qualquer relação de pais e filhos. Essa escolha apresenta um novo ponto de vista, onde família, acolhimento e perdão são o cerne da vida de Ren. Recorda-nos que as vivências, sentimentos e experiências vão além dos acontecimentos que atravessam o processo de transição. Something You Said Last Night é um filme que – embora os personagens já tenham passado da adolescência- apresenta uma atmosfera de amadurecimento comum em obras coming-of-age. Uma obra que dialoga com toda a juventude e uma referência para o cinema queer.
Durante o IndieLisboa, conversamos com a realizadora acerca de suas influências, opiniões e perspectivas sobre o filme e o cinema queer.
Lílian Lopes (LP): Primeiramente, parabéns pelo filme! Quero começar perguntando o que te motivou a retratar uma narrativa sobre as férias de uma família – apresentando suas relações complexas -, misturando traços do cinema coming-of-age e de road movie, no seu primeiro longa-metragem?
Luis de Filippis (LdP): Acho que Something You Said Last Night pega a deixa do meu curta-metragem For Nonna Anna, sobre uma mulher trans e relação com a sua avó italiana. As duas mulheres estão a passar por questões de consciência corporal e Chris, a personagem principal [de For Nonna Anna], está a entrar em si mesma e realmente começa a sentir que está se vendo, quando se olha no reflexo do espelho. Sua avó está a perder o senso de identidade. E é realmente sobre duas mulheres a verem-se e a olharem suas experiências refletidas uma na outra, não sobre Chris ser trans ou ser aceito por sua família – todas essas coisas já aconteceram. É realmente uma questão de “Ok, e agora? O que acontece depois da transição?”. Eu diria que Something You Said Last Night é semelhante a isso. Não é sobre Ren se assumir, não é sobre sua transição, é realmente sobre seu relacionamento com sua família. No filme, acho que ela é uma filha, ela é uma neta, ela é uma irmã. Ela é todas essas coisas primeiro e ela é uma mulher trans depois. Para mim era importante retratar isso porque simplesmente não vemos o suficiente, as pessoas estão muito obcecadas com a mecânica da transição. Eu só queria contar uma história diferente.
LP: Como os acontecimentos de sua vida influenciaram na construção do filme? A família tem ascendência italiana, então imagino que você tenha se inspirado em alguns elementos pertencentes à sua própria experiência.
LdP: Sim, a família do filme é parecida com a minha família. Não são exatamente réplicas – o que minha mãe sempre me diz, porque ela odeia a personagem de Ramona -, mas acho que são representações de pessoas da minha família. São um mosaico das pessoas da minha vida. Minhas tias, meus primos, minha irmã, meu irmão, meus pais… “mais uma vez, não conte isso para minha mãe”. Em minha experiência, eu queria retratar uma família que apenas aceita, ama, apoia e aborrece – quero dizer, isso também faz parte. Penso que só queria contar uma história diferente. A gente vê sempre a mesma, sobre a aceitação das famílias, e eu queria contar a história de uma menina que já foi aceita. Quando conversei com a minha família, falei com a minha avó e ela disse “não é grande coisa, Jesus ama a todos e eu vou cuidar do resto da família”. E é essa energia que queria retratar.
LP: Embora Something You Said Last Night seja um filme de ficção, também é autobiográfico. A sua experiência pessoal é também a experiência de Carmen Madonia? Ela, como personagem e atriz trans, espelha-se em você como mulher trans e cineasta?
LdP: Então Carmen e eu tivemos a sorte de trabalhar nesse papel por quase um ano e meio – dois anos – junto a um mentor de atuação. Então, naquele tempo, nós realmente nos conhecemos muito bem e percebemos que nossas vidas eram muito parecidas. A forma como crescemos, ela também é ítalo-canadense, além disso, tinha um relacionamento muito próximo com sua avó. Isso é muito engraçado: nós duas fomos para o National Ballet of Canada e não nos conhecíamos, mas fomos para aquela escola. Então havia todos esses paralelos em nossas vidas. Mas há diferenças, eu diria, em Carmen que precisei colocar na personagem de Renata. Uma das principais coisas é o vape dela. Originalmente, ela nunca deveria usá-lo, mas ao longo de um ano e meio de trabalho, ela sempre usou esse maldito vape. Eu fiquei tipo “isso é um trejeito de personagem interessante e divertido”. Obviamente, ela de facto se apoia nisso de algumas maneiras, então acabei escrevendo a história e agora é do género “como esse personagem pode não ser uma consumidora de vape?”. Então, sim, foi uma união entre alguns dos elementos em mim, alguns dos elementos nela e meio que juntamos tudo para chegar a Renata.
LP: Apesar dos conflitos, o filme fala muito sobre o apoio e o perdão familiar. Pode nos contar sobre a importância desses sentimentos associados à história de personagens comumente marginalizadas?
LdP: Agora estamos em um momento em que vemos mais personagens marginalizados, o que é ótimo. Entretanto, por outro lado, também estamos a ver muitos personagens marginalizados a serem colocados em um pedestal. Confere-se um status de herói quando eles não são. Eles não têm falhas. E para mim foi muito importante mostrar um personagem que é trans, mas nem sempre foi uma boa pessoa, nem sempre faz as escolhas certas. Então, organicamente, há os temas como perdão, apoio e amor. Eu acho que quando você conta uma história autêntica sobre uma pessoa de uma maneira humana, esses elementos saem naturalmente. Outra coisa também, eu acho interessante que você não sabe como é essa família fora dessas pequenas férias. E realmente gosto que a única corda salva-vidas deles para ter qualquer tipo de vida social seja um ao outro. Então suas vidas se tornam muito pequenas e isoladas naquele momento. E a questão da família é que essas são provavelmente as pessoas que podem te irritar mais, porque elas sabem exatamente quais botões apertar. Portanto, acho que por um lado há muito aborrecimento e por outro há muito perdão, porque você não pode ficar chateado com as únicas pessoas que você conhece durante as férias. Para mim, há muito disso na história.
LP: Em relação à pergunta anterior e ao começo da entrevista, tanto nesse filme quanto em For Nonna Anna, você traz personagens trans, porém, colocando o foco mais na relação familiar do que nessa questão. O que te impulsionou a trazer essa visão diferenciada?
LdP: Acho que estou entediado com histórias sobre transição para ser honesta. Eu somente acho chato. Nós entendemos, nós sabemos disso, do género, vamos contar outras histórias. E então eu acho que quando você conta outras histórias, isso dá às pessoas outras opções. Acredito que se você conversar com Carmen sobre esse papel, ela vai dizer que mudou sua vida porque ela pôde ver uma versão de si mesma, uma versão da realidade que ela poderia ter. Ela poderia ter um relacionamento próximo com sua irmã, ela poderia ter um relacionamento próximo com sua família, mas ela só percebeu depois de trabalhar nisso por tanto tempo. Eu dei a ela uma opção diferente do que ela sempre foi programada para ver.
LP: Quais são as dificuldades associadas com a produção de filmes com personagens e temas como este?
LdP: Acho que em todas as etapas recebemos muitos “nãos”. Quando eu escrevi recebi muitos “nãos”. As pessoas não conseguiam ver como o filme iria acabar, não conseguiam entender, do género “se você tem uma personagem trans porque ninguém está falando sobre ela ser trans?”. E eu recebi muitas perguntas sobre isso, muitos questionamentos como “você pode escrever mais?”. Quero dizer, “não, não posso escrever isso”. Mesmo depois dessa fase, quando o filme está pronto e à sua frente, ainda há muitas perguntas acerca do por que não falar sobre mais. Acho que, de certa forma, é um bloqueio, especialmente para os distribuidores americanos. Acredito que eles têm dificuldade com isso, para ser honesto. Penso que outro desafio em fazer cinema trans é o de não ser somente sobre as pessoas na frente da câmera, é importante ter pessoas trans atrás também. Então, neste filme, criamos uma mentoria e convidamos cinco jovens trans para virem ao set e estarem conosco desde a pré-produção até a produção – eu queria que também estivessem na pós-produção, mas não estavam. Isso significava que havia presença trans em todos os departamentos.
Eu não percebi isso na época, mas depois que tudo acabou, Carmen veio até mim e disse “obrigada por fazer isso”, porque significava que quando acordasse de manhã, ela saberia que ao sentar-se na cadeira de maquiagem, haveria uma garota trans para maquiá-la. Quando ela estava vestindo-se, sabia que tinha uma garota trans a vesti-la. Quando ela estava no set, sabia que havia uma garota trans atrás da câmera. Sabíamos que havia mulheres trans em toda a equipe, acredito que esse tipo de escolha levou ao filme que você vê na tela.
LP: Então, a última pergunta: quais mudanças você acha que ainda precisam ocorrer tanto no contexto de narrativa quanto de produção no cinema queer?
LdP: É uma ótima pergunta para a minha última resposta. Novamente, acho que estamos vendo mais representação queer na tela. Porém, ainda estamos atrasados quando o assunto é atrás da tela, mesmo ao fazermos o que podemos para levar as pessoas ao set. Mas então é do género, e quanto aos tomadores de decisão? E as pessoas que financiam os projetos? E as pessoas que compram os projetos?
Chegamos ao ponto onde podemos fazer os filmes que pedimos, mas agora a questão ainda é a de como fazer estas produções chegarem às audiências que pediram por elas? Eles ainda são os porteiros que estão a paralisar os filmes de serem vistos, amados e exibidos ao redor do mundo, porque eles acham que é um risco muito grande. Eu penso que esse seja o próximo nível em representação queer, trans e pessoas de cor. É como “ok, vamos colocar mais dessas pessoas não apenas atrás da câmera e na frente da câmera, mas também na mesa, na tomada de decisões sobre o que acaba por ir para os cinemas”.
É com imagens de policiais chegando na cena de um crime e de uma televisão com um pastor afirmando o quão pecaminosas são as pessoas que se deixam levar pelos desejos da carne que a narrativa de X inicia-se, do realizador Ti West, lançado em 2022. Após um percurso de quase 20 anos, West realizou o que já pode ser sentido como um clássico dentro dos filmes de slasher.
No final dos anos 1970, um grupo de pessoas viaja para o interior do Texas e hospeda-se em uma fazenda, com o intuito de usá-la como set para o filme pornográfico que irá ser gravado. O dono da propriedade, um senhor com cerca de 90 anos, não simpatiza com os visitantes e quando Pearl (Mia Goth) – sua esposa, também da mesma idade – vê as filmagens do grupo, uma série de assassinatos irrompe no local.
Ao trazer para o terror as frustrações de uma vida que nunca aconteceu, West consegue integrar eficientemente o estilo do gênero a uma narrativa que aborda temáticas complexas. Inconformada com o passado, Pearl atira para os personagens toda a angústia que sente pelo o que gostaria de ter vivido. Ela vê na protagonista Maxime (também interpretada por Mia Goth) um reflexo da sua juventude e, por vezes, tem vontade de tocar em sua pele, como se fosse um dispositivo que trouxesse de volta o tempo que já se desfez.
O desejo carnal é então um dos elementos que permeia toda a narrativa. Pearl também anseia por ter relações com seu marido, embora este sempre a lembre de que está velho demais para isso – o sexo, portanto, explicita mais ainda a dicotomia entre juventude e velhice. West traz estes conflitos no cenário da América puritana dos anos 1970, época de alta na produção de vídeos caseiros, nos quais se incluem filmes pornográficos amadores.
A fazenda texana torna-se cenário para o assassinato em série do grupo – embora seja um local vasto, ele se transforma em um ambiente extremamente claustrofóbico. Ao revisitar o subgênero slasher, West realiza uma atualização de alguns elementos clássicos. Pearl não usa nenhuma fantasia, mas seu visual transmite uma atmosfera tão deteriorada que funciona perfeitamente como uma; Maxime torna-se a “final girl”, a última mulher viva para vencer os vilões e contar a história; e, embora haja uma certa demora para os assassinatos começarem, temos uma intensa presença da violência gráfica quando eles ocorrem. Isso cria uma nostalgia dos clássicos do gênero – especialmente na cena em que Pearl mata RJ (Owen Campbell), quando há um close-ups no rosto dos personagens, na faca e no carro ensanguentado.
Tal violência é o ápice de uma tensão construída substancialmente pela montagem, a partir de súbitas alternações de planos e de cortes abruptos em alguns momentos, e pela trilha sonora. As escolhas formais cumprem o papel de gerar inquietação e quebrar a expectativa do público – West surpreende com novos elementos que surgem no plano quando este é mais fechado. O filme também ganha uma força e profundidade ainda maior com a atuação de Mia Goth, que interpreta tanto Maxime quanto Pearl. A diferença e intensidade com que executa as duas personagens nos faz esquecer que estamos vendo a mesma atriz.
Terminamos X com a vontade de querer saber mais sobre esse universo, uma vez que é perceptível a existência de uma motivação maior engatilhando os assassinatos. A boa notícia é que West realizou Pearl, uma das estreias do IndieLisboa deste ano. O filme é um prelúdio desse cosmos, apresentando a história de Pearl quase 60 anos antes e os acontecimentos que culminaram no comportamento assassino.
Superficial em primeiro momento, X explora no gênero do terror questões mais profundas para além da violência gratuita. Somos confrontados com a recusa do envelhecimento, o desejo por fama e dinheiro e o puritanismo na América dos anos 1970 – temáticas por vezes ainda mais atuais hoje em dia. Ao nos fascinar com uma narrativa intrigante, West cria também um clássico imediato.