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A Sindicalista e um retrato do machismo

Transformar em cinema uma história verídica é uma tarefa que requer uma atenção especial, mas que, quando feita de forma perspicaz, tem o poder de mostrar muito sobre o mundo em que vivemos. Jean-Paul Salomé aceita a missão de trazer para o cinema o que aconteceu com Maureen Kearney, a sindicalista que denunciou esquemas de corrupção em uma empresa francesa. 

Exibido na 24ª Festa do Cinema Francês, o filme é uma adaptação do livro “La Syndicaliste”, escrito por Caroline Michel-Aguirre, responsável por investigar os acontecimentos que se sucederam na vida de Kearney. Interpretada pela grandiosa Isabelle Huppert, A Sindicalista (La Syndicalist) inicia em 2012, quando Maureen descobriu as irregularidades de uma multinacional e buscou tornar público tais informações, desencadeando uma série de ocorrências que colocaram em risco sua vida.

Salomé transpõe para o ecrã as ameaças verbais sofridas por Kearney e, sem medo de chocar, mostra-nos explicitamente a violência física cometida contra ela. Algo fica preso em nossas gargantas. Esse sentimento cresce ainda mais ao lembrarmos da veracidade dos acontecimentos. Kearney é vista como mentirosa por não se lembrar de maneira clara de tudo o que sofreu. A acusação se vira contra ela em um processo conduzido por homens. Relembramos da problemática de vivermos em uma sociedade dominada por figuras masculinas. A segurança que deveria existir, na verdade, ameaça-nos ainda mais. É significativo que a única pessoa a ficar do seu lado – com exceção de sua família – seja uma mulher. Os acontecimentos vividos por Kearney lembram-nos: “somos nós por nós mesmas”.

Entretanto, o grande êxito do realizador em A Sindicalista é esse. Embora assuma como foco principal a violação e o período que se sucedeu, Salomé abandona outros conflitos relativos ao sindicalismo e aos trabalhadores e deixa um buraco no que tange esses assuntos. O filme acaba por se tornar um suspense, uma história que poderia acontecer a qualquer personagem e, em alguns momentos, perde-se um pouco da singularidade da história de Kearney. 

A Sindicalista, de Jean-Paul Salomé © Synapse

Além disso, Salomé tem alguma dificuldade em prender  nossa atenção. A escolha por um ritmo relativamente frenético no começo do filme e por situar o espectador, no tempo e espaço, por meio de informações escritas que surgem na tela confere uma certa sensação de filmes de super-herói. Tais escolhas são compreensíveis se considerarmos que nem todos conhecem a vida de Kearney, mas acabam por criar um efeito destoante. A atenção é fisgada somente na metade do filme, quando explode em nós o desejo por saber os autores do crime e a vontade de que a justiça seja feita – coisa que, como é mostrado nos créditos finais, nunca foi. Ademais, o grande destaque, para além da história, é atuação de Huppert, sua presença prende nossa atenção e carrega o filme quando ele parece perder as forças.A Sindicalista é uma história que precisa ser contada. Ilustra o perigo contido nos bastidores da política, a ausência de voz das mulheres, os riscos que existem ao vivermos em um mundo onde os cargos de poder são ocupados por homens. Apesar das objeções em relação às escolhas formais, o conteúdo se sobressai. É urgente, é necessário ser visto. Deixa-nos sem palavras ao final, mas com a mente repleta de reflexões.

* O presente texto encontra-se escrito em português do Brasil.

Lílian Lopes

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