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Baan e a procura por um lugar onde possamos pertencer

Depois da sua viagem pelo Festival de Locarno, Baan, nova longa-metragem da portuguesa Leonor Teles, chega a Portugal para fechar a 21ª edição do Doclisboa. Não é segredo nenhum que Leonor Teles é uma realizadora acarinhada pelo público português que a segue desde o Urso de Ouro, em Berlim, para a sua curta-metragem Balada de um Batráquio (2015). A sala completamente esgotada da Culturgest lembra-nos isto. 

O cinema de Leonor Teles é um cinema de lugares, ou pelo menos tem vindo a ganhar esse estatuto (todos nos lembramos da Vila Franca de Xira do seu documentário Terra Franca, em 2018). O espaço, físico ou emocional, real ou metafísico; as pessoas que nele habitam e as culturas que se formam da vivência dessas pessoas, em conjunto, formam o tema que a câmara de Teles quer filmar, ela que também é a diretora de fotografia dos seus filmes.

Baan, de Leonor Teles – © Direitos Reservados

Baan segue L (Carolina Miragaia), uma jovem de coração partido, que muda de emprego e de casa. Este estado de instabilidade característico de um período marcado por tantas mudanças gera na personagem uma profunda sensação de não pertença. É desta forma que iniciamos o filme: à procura de um lugar onde possamos pertencer (nós juntamente com a personagem).  Neste processo, L acaba por encontrar K, com quem partilha este sentimento transitório e esta procura de uma “casa” (Baan, título do filme, em tailandês significa casa).

 Leonor Teles oferece-nos, assim, um retrato geracional. É o retrato de uma juventude inquieta a entrar na vida adulta com todas as dificuldades que esta acarreta, e num tempo em que, com a crise que vivemos na habitação, tudo se tornou especialmente imprevisível. Para o espectador que se encontra na mesma situação das personagens e para o espectador que consegue empatizar com estas porque já passou pelo mesmo noutros tempos, este retrato encaixa que nem uma luva, e isso refletiu-se numa empatia geral gerada na sala. Em Baan, há uma importância dada às personagens, que são filmadas de perto, em close-up, mas há ainda uma importância dada à cidade/espaço que intercala os planos das personagens, não apenas para o filme “respirar” mas de modo a obtermos também a história deste espaço. Quando o espectador acompanha a personagem, fica com a sensação de que o espaço em que esta deambula poderia ser qualquer lugar no mundo (nunca vemos o suficiente para nos localizarmos). Todavia, o mesmo acontece ao contrário, quando olhamos o espaço, sentimos que esta visão poderia pertencer a qualquer pessoa, ou seja, é como se ambos fossem, à sua maneira, personagens principais deste filme ou como se o filme se pudesse dividir em dois.

Sendo a paixão de Teles a fotografia, deixa aqui bem claras as suas influências, fazendo quase uma homenagem ao cinema de Wong Kar Wai e ao trabalho do diretor de fotografia Christopher Doyle. As cores vibrantes, os néons, os jump-cuts, o uso do desfoque, a manipulação da velocidade do filme e o uso de película são tudo piscar de olhos ao realizador de Hong Kong. Vemos cenas que podiam ter saído diretamente de Fallen Angels (1995) ou de Chungking Express (1994). E não é só na forma que este filme se aproxima das obras do realizador, é quase como se as personagens pertencessem ao mesmo universo: o universo da nostalgia e da solidão, marcado pela narrativa não convencional. 

Este universo formal e estilístico juntamente com uma banda sonora forte, com ritmos do pop eletrónico e do eurodisco, veste as temáticas do filme de uma maneira jovial, aproximando-o ao cinema de outros realizadores contemporâneos. O filme quebra ainda barreiras na discussão ficção versus documentário: a sua narrativa apesar de ser ficcional emprega elementos da vida real, como o uso da equipa do filme como elenco do próprio filme, numa técnica à la Miguel Gomes; ou como o uso da música, elemento da vida real de Carolina Miragaia, na construção da sua personagem. Assim, o filme deixa o espectador com esta sensação de que talvez ainda existam mais barreiras a serem quebradas entre real e ficção que ele mesmo pode não estar a aperceber-se. Deste modo, parece ser lógico que o filme tenha passado nesta última edição do Doclisboa e que continuemos a contribuir para enriquecer esta discussão sobre as linhas ténues que contornam o género documental.

Baan, de Leonor Teles – © Direitos Reservados

Todos os aspetos aqui descritos, ajudam na criação daquele que talvez seja o ponto mais alto de todo o filme: a fusão mágica entre as cidades de Banguecoque e Lisboa. Ao longo do filme, Leonor Teles aborda dois tipos de lugares: o lugar físico e o lugar emocional. L quer pertencer a estes dois lugares: quer pertencer a um lugar de amor e quer pertencer a uma casa, esta segunda que tanto pode ser emocional como física, pois sem a estabilidade de um lugar físico, torna-se praticamente impossível acessar a um lugar emocional. O facto destes lugares estarem meio desvanecidos na cabeça da personagem, permite à realizadora trazer-nos um terceiro espaço para o ecrã: este mundo mágico onde Banguecoque também é Lisboa. Na verdade, Leonor Teles afirma numa entrevista que não importa muito se é tudo Lisboa ou não. É um espaço cinemático, portanto pode ser aquilo que ele quiser ser. É também interessante num filme que aborda a questão da descriminação racial de ocidentais para com orientais, percebermos no final que é tudo um só lugar, e que na verdade somos todos iguais, não é o lugar onde nascemos que nos define.

Este trocadilho dos espaços está, ainda, relacionado com a questão do coração partido. Quando alguém tem o coração partido nem sempre tem força para se levantar da cama, pode passar noites acordadas sem conseguir dormir, nem sempre tem energia para fazer refeições nas horas consideradas normais, são pessoas que estão a lutar contra algo pesado do foro emocional, são pessoas para as quais o tempo parece que parou, e estes dias, horas, lugares acabam por se misturar e serem percecionados de formas diferentes e com durações diferentes. Esta perceção emocional está muito bem representada em Baan, um filme que é simples, mas que da sua simplicidade podemos retirar ideias tão complexas e discussões intermináveis sobre o mundo e sobre as pessoas à nossa volta. 

Baan, de Leonor Teles – © Direitos Reservados

Inês Moreira

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