Baan e a procura por um lugar onde possamos pertencer

Depois da sua viagem pelo Festival de Locarno, Baan, nova longa-metragem da portuguesa Leonor Teles, chega a Portugal para fechar a 21ª edição do Doclisboa. Não é segredo nenhum que Leonor Teles é uma realizadora acarinhada pelo público português que a segue desde o Urso de Ouro, em Berlim, para a sua curta-metragem Balada de um Batráquio (2015). A sala completamente esgotada da Culturgest lembra-nos isto. 

O cinema de Leonor Teles é um cinema de lugares, ou pelo menos tem vindo a ganhar esse estatuto (todos nos lembramos da Vila Franca de Xira do seu documentário Terra Franca, em 2018). O espaço, físico ou emocional, real ou metafísico; as pessoas que nele habitam e as culturas que se formam da vivência dessas pessoas, em conjunto, formam o tema que a câmara de Teles quer filmar, ela que também é a diretora de fotografia dos seus filmes.

Baan, de Leonor Teles – © Direitos Reservados

Baan segue L (Carolina Miragaia), uma jovem de coração partido, que muda de emprego e de casa. Este estado de instabilidade característico de um período marcado por tantas mudanças gera na personagem uma profunda sensação de não pertença. É desta forma que iniciamos o filme: à procura de um lugar onde possamos pertencer (nós juntamente com a personagem).  Neste processo, L acaba por encontrar K, com quem partilha este sentimento transitório e esta procura de uma “casa” (Baan, título do filme, em tailandês significa casa).

 Leonor Teles oferece-nos, assim, um retrato geracional. É o retrato de uma juventude inquieta a entrar na vida adulta com todas as dificuldades que esta acarreta, e num tempo em que, com a crise que vivemos na habitação, tudo se tornou especialmente imprevisível. Para o espectador que se encontra na mesma situação das personagens e para o espectador que consegue empatizar com estas porque já passou pelo mesmo noutros tempos, este retrato encaixa que nem uma luva, e isso refletiu-se numa empatia geral gerada na sala. Em Baan, há uma importância dada às personagens, que são filmadas de perto, em close-up, mas há ainda uma importância dada à cidade/espaço que intercala os planos das personagens, não apenas para o filme “respirar” mas de modo a obtermos também a história deste espaço. Quando o espectador acompanha a personagem, fica com a sensação de que o espaço em que esta deambula poderia ser qualquer lugar no mundo (nunca vemos o suficiente para nos localizarmos). Todavia, o mesmo acontece ao contrário, quando olhamos o espaço, sentimos que esta visão poderia pertencer a qualquer pessoa, ou seja, é como se ambos fossem, à sua maneira, personagens principais deste filme ou como se o filme se pudesse dividir em dois.

Sendo a paixão de Teles a fotografia, deixa aqui bem claras as suas influências, fazendo quase uma homenagem ao cinema de Wong Kar Wai e ao trabalho do diretor de fotografia Christopher Doyle. As cores vibrantes, os néons, os jump-cuts, o uso do desfoque, a manipulação da velocidade do filme e o uso de película são tudo piscar de olhos ao realizador de Hong Kong. Vemos cenas que podiam ter saído diretamente de Fallen Angels (1995) ou de Chungking Express (1994). E não é só na forma que este filme se aproxima das obras do realizador, é quase como se as personagens pertencessem ao mesmo universo: o universo da nostalgia e da solidão, marcado pela narrativa não convencional. 

Este universo formal e estilístico juntamente com uma banda sonora forte, com ritmos do pop eletrónico e do eurodisco, veste as temáticas do filme de uma maneira jovial, aproximando-o ao cinema de outros realizadores contemporâneos. O filme quebra ainda barreiras na discussão ficção versus documentário: a sua narrativa apesar de ser ficcional emprega elementos da vida real, como o uso da equipa do filme como elenco do próprio filme, numa técnica à la Miguel Gomes; ou como o uso da música, elemento da vida real de Carolina Miragaia, na construção da sua personagem. Assim, o filme deixa o espectador com esta sensação de que talvez ainda existam mais barreiras a serem quebradas entre real e ficção que ele mesmo pode não estar a aperceber-se. Deste modo, parece ser lógico que o filme tenha passado nesta última edição do Doclisboa e que continuemos a contribuir para enriquecer esta discussão sobre as linhas ténues que contornam o género documental.

Baan, de Leonor Teles – © Direitos Reservados

Todos os aspetos aqui descritos, ajudam na criação daquele que talvez seja o ponto mais alto de todo o filme: a fusão mágica entre as cidades de Banguecoque e Lisboa. Ao longo do filme, Leonor Teles aborda dois tipos de lugares: o lugar físico e o lugar emocional. L quer pertencer a estes dois lugares: quer pertencer a um lugar de amor e quer pertencer a uma casa, esta segunda que tanto pode ser emocional como física, pois sem a estabilidade de um lugar físico, torna-se praticamente impossível acessar a um lugar emocional. O facto destes lugares estarem meio desvanecidos na cabeça da personagem, permite à realizadora trazer-nos um terceiro espaço para o ecrã: este mundo mágico onde Banguecoque também é Lisboa. Na verdade, Leonor Teles afirma numa entrevista que não importa muito se é tudo Lisboa ou não. É um espaço cinemático, portanto pode ser aquilo que ele quiser ser. É também interessante num filme que aborda a questão da descriminação racial de ocidentais para com orientais, percebermos no final que é tudo um só lugar, e que na verdade somos todos iguais, não é o lugar onde nascemos que nos define.

Este trocadilho dos espaços está, ainda, relacionado com a questão do coração partido. Quando alguém tem o coração partido nem sempre tem força para se levantar da cama, pode passar noites acordadas sem conseguir dormir, nem sempre tem energia para fazer refeições nas horas consideradas normais, são pessoas que estão a lutar contra algo pesado do foro emocional, são pessoas para as quais o tempo parece que parou, e estes dias, horas, lugares acabam por se misturar e serem percecionados de formas diferentes e com durações diferentes. Esta perceção emocional está muito bem representada em Baan, um filme que é simples, mas que da sua simplicidade podemos retirar ideias tão complexas e discussões intermináveis sobre o mundo e sobre as pessoas à nossa volta. 

Baan, de Leonor Teles – © Direitos Reservados

Inês Moreira

Man In Black — Dentro da memória, a nudez

A 21ª edição do DocLisboa abriu oficialmente com Man in Black (2023), o mais recente filme de Wang Bing — um habitué na programação e no palmarés do festival, desde a sua 1ª edição. Neste trabalho atipicamente curto (61 minutos), o realizador chinês filma o compositor e maestro Wang Xilin, ostracizado durante a Revolução Cultural, por ter lutado pela liberdade da sua voz artística, em suposta dissonância com o poder de Mao.

Não é a primeira vez que Wang Bing realiza um “filme testemunhal” que se foca na história conturbada do país e nos efeitos perversos da utopia comunista chinesa, através do retrato de um só personagem. Lembremo-nos de Fengming: Memórias de uma Chinesa (2007), onde, à exceção de alguns planos de transição, estamos do princípio ao fim do filme confinados à imagem da Sra. Fengming que, sentada na sua sala de estar, nos narra a experiência da sua prisão num campo de trabalho durante a campanha “anti-direitista” chinesa (1957-1959). Na economia visível do filme, há espaço para que as palavras da mulher revelem uma torrente de outras imagens — invisíveis, mas maravilhosamente nítidas na sua fantasmagoria. É esta uma das grandes qualidades de Wang Bing: “caçar” personagens reais, cuja presença e discurso superam qualquer ficção imagética, de tão translúcida que é a sua aura, o seu ser.

O encontro do realizador com Wang Xilin é mais uma prova disso, ainda que desta vez Wang Bing se tenha afastado formalmente dos seus trabalhos anteriores. Não só pela redução expressiva da duração, como pela aproximação à encenação. Em Man in Black, o realizador suprime em certa medida — ou, melhor, na medida certa — a distância com que costuma filmar os seus personagens. Em várias entrevistas, Wang Bing tem chamado a este trabalho não um documentário, mas uma peça de vídeo arte. Parece que o realizador quer manter os seus restantes filmes — “verdadeiramente documentais”, pelo seu registo observacional e a sua monumentalidade duracional — num lugar imaculado. Mas, claro, não entendamos esta distinção como uma oposição estanque entre o documentário e a ficção, numa concepção binária simplista. É que mais do que um contentor limitado de convenções formais que permitem o verosímil, o documentário diz respeito a um campo aberto do cinema que possui um vínculo retórico e ético com a representação do real. Sendo que do cruzamento entre o mundo factual e a sua compreensão subjetiva podem resultar “realismos” muito estranhos — ou maravilhosamente estranhos, pela verdade íntima que carregam. Para não falar que num “filme testemunhal” como este, onde não se filma a realidade em curso, estamos sempre no domínio da imaginação e da narrativa. Continuamos próximos de uma ideia de documentário, porque ainda há algo que se documenta: o exercício da memória. Não se estranhe, então, que ao retratar as memórias de um músico, Wang Bing tenha ido além do relato oral e das imagem-documento que seguem pacientemente os personagens nos seus habitats naturais, encontrando numa quase-ficção brechtiana a possibilidade de iluminar com verdade a história de Wang Xilin.

Uma imagem com vestuário, Cara humana, microfone, pessoa

Descrição gerada automaticamente
Sessão de Abertura DocLisboa 2023 © Gonçalo Castelo Soares

Antes de entrar no filme, importa falar do que aconteceu antes, fora do ecrã. O músico de 86 anos — atualmente exilado na Alemanha — esteve presente na sessão. Wang Xilin subiu ao palco do Cinema São Jorge e, num longo e emocionado discurso, adiantou parte da sua narração no filme sobre as histórias do seu povo e da sua vida: relatos de perseguições, prisões e tortura contra os “direitistas”. A certa altura, as suas palavras são interrompidas pelo silêncio dos seus gestos. O músico afasta-se do micro, curva o tronco e lança os braços para trás, demonstrando como fora torturado num campo de trabalho. Quando esta performance ao vivo termina, Xilin abandona o palco e junta-se ao público na plateia lotada da Sala Manoel de Oliveira. A projeção do filme começa e dá-se um raccord curioso entre o espaço exterior ao ecrã e o espaço profílmico. No filme, o músico (res)surge a vaguear, precisamente, pelas cadeiras de uma sala de espetáculos, mas agora estamos no famoso teatro parisiense Bouffes du Nord, a plateia está vazia e Xilin está completamente nu. A sua deambulação pelos balcões e os corredores do teatro termina no centro do palco, onde (re)vemos num loop expressivo a coreografia que evoca os momentos em que fora torturado. Incessantemente, a câmara vai desenhando círculos em torno do seu corpo em movimento, ocupando-se de fixar as marcas da violência na sua pele, qual palimpsesto de violência e resistência. Recalcando o desenho circular do palco, a câmara também consegue transmitir o sufoco de um homem preso no trauma que ainda o cerca e, ao mesmo tempo, o ciclo da História que continua a impor o seu exílio. Durante os primeiros trinta minutos, o filme existe neste nível de abstração, sem uma única palavra. 

Eventualmente, as sinfonias de Xilin preenchem o espaço cénico. Este acrescento é um momento libertador para o espectador e, claro, a música foi a forma com que Xilin conseguiu ele próprio libertar-se da opressão do regime. Com as suas composições não quis produzir a possibilidade de um escape evasivo, mas de uma catarse política. Foi pela música que conseguiu cumprir a urgência em transmitir as imagens da violência que viveu e testemunhou. Quando Xilin abandona o palco e se senta na plateia, como um espectador de si mesmo, ocupa-se de nos traduzir por palavras o que ouvimos. Os pontos altos do seu discurso revelam a dimensão documental da sua música. Às tantas, o compositor explica como conseguiu «representar o metal das grades da prisão», ou com que «materiais» fixou um gesto de tortura. E continuamos a ouvir as suas sinfonias que, às vezes, abafam o seu discurso, completando as imagens invisíveis que já se estavam a formar no ecrã. Nestes momentos, certeiramente, a câmara vai-nos mostrando o pé suspenso e dançante do compositor que, de pernas cruzadas, parece estar sempre a conduzir uma orquestra enquanto fala. Apetece dizer: as suas palavras são música feita de notas que são imagens. Todo o filme se sustenta neste admirável jogo sinestésico.

Uma imagem com Cara humana, captura de ecrã, retrato, mandíbula

Descrição gerada automaticamente
Man in Black, Wang Bing © Direitos Reservados
Uma imagem com vestuário, pessoa, homem, edifício

Descrição gerada automaticamente
Man in Black, Wang Bing © Direitos Reservados

De regresso ao palco, Xilin continua o seu testemunho visceral tocando as suas composições  num piano de cauda, cantando a sua história e uivando a sua dor. Mas nesta performance que é um filme, há também “vazios” — não menos viscerais. O mais expressivo acontece quando o realizador decide filmar uma ida do músico à casa de banho. Acontecem outros, sempre que Xilin volta a deambular em silêncio entre as luzes (pontuais) e as sombras do teatro. Não restam dúvidas: o espaço deste objeto fílmico tem tanto de físico como mental. O teatro Bouffes du Nord é o lugar da memória de Wang Xilin, e a memória é um espaço feito de fragmentos e “vazios” — elementos que compõem o espaço de uma ruína que se tenta reanimar, ou reconstruir, no momento da lembrança. Já Cícero tinha entendido a memória como uma arquitetura real. Em Man in Black, Wang Bing dá-nos o privilégio de viajar para dentro da mente de Wang Xilin, de habitar a arquitetura da memória de um homem que nos recebe nu, vestido apenas de revolta e coragem.

João Garcia Neto

The Connection: Entre o sono e o melodrama

Num loft desmazelado em Nova Iorque, o realizador Jim Dunn (William Redfield), juntamente com o operador de câmara J.J. Burden (Roscoe Lee Brown) debate-se por filmar um “retrato autêntico” de um conjunto de heroinómanos, nove cool cats, que entre o sopro do sono e o frenesim do jazz que tocam, anseiam a chegada do dealer.

The Connection (1961), a primeira longa-metragem de Shirley Clarke, exibida na secção Riscos do DocLisboa, manifesta-se assim nesta paisagem de um stimmung Beatnik: no interior de uma espelunca, nove “gatos” proferem discursos lânguidos, como num spoken word sedado, que atravessa o espaço a partir de todos os flancos, em harmonia com a coreografia giratória da câmara. Entre o fumo dos cigarros, os suores, e o ruído exterior das veias da cidade, o bramir do saxofone, juntamente com o piano, a bateria e o baixo, produzem as únicas frases com nexo. 

The Connection, Shirley Clarke © Direitos Reservados.

No mise en abyme estabelecido a partir do primeiro momento do filme, é nos dito o que não é “verdadeiramente real”: uma montagem de found footage feita por J.J. Burden a partir da rodagem do filme de Jim Dunn. Neste abismo que se converte no filme dentro do filme, vai sendo construído um retrato dionisíaco — in vino veritas (pense-se no filme de Clarke, Portrait of Jason de 1967) — em torno da ética (ou da falta dela). The Connection mantém visível o palco da peça de teatro homónima de Jack Gleber, que lhe é referente, ao condensar toda a ação no mesmo espaço. Porém, é na dialética entre elementos intrínsecos à narrativa que essa relação é potenciada. Atente-se no jogo de luz e sombra, em que o primeiro é materializado num foco que o realizador aponta a cada personagem, provocando nelas um desconforto expressivo, e a segunda, metafórica de uma representação da contracultura, bem como da relação de vampirismo do realizador sobre os sujeitos filmados, procurando sugar-lhes a energia autêntica, para condensar em realismo no seu filme futuro. Este jogo também está presente na representação do fora de campo: o obsceno (fora de cena), que no espaço se materializa na casa de banho, um lugar entre o sagrado e o profano, onde o flash da heroína corresponde a uma purificação (novamente à luz), tornando-o numa espécie de confessionário. Este momento de iluminação estende-se também ao realizador que procura fazer um filme “honesto”, alheio à ideia mais pálida do ambiente em que se encontra. 

The Connection, Shirley Clarke © Direitos Reservados

Pense-se na obra da artista plástica Nan Goldin, através das suas palavras sobre a ética na masterclass que deu no Teatro Rivoli, em Setembro do ano passado, onde disse que (em tradução livre) “para fotografar prostitutas nas suas vidas, tem que se viver como prostituta pelo menos um dia”. Bem como, nas palavras de Pedro Costa no livro “Um Melro Dourado, um ramo de flores, uma colher de prata” a propósito do incontornável No Quarto de Vanda (2000): “Claro que entrei naquele quarto com um desejo de ficção, não desejava um documentário. Se fosse esse o caso, teria sido o fim do mundo e do filme. Fui lá para amar a Vanda, o bairro, para ver pela primeira vez (…)” .

Aludindo a uma fórmula brechtiana do elenco poder-se ia dizer que o filme tem apenas quatro personagens: o grupo de heroinómanos, o realizador Jim, o operador de câmara J.J. e o dueto Cowboy (Carl Lee) e Sister Salvation (Barbara Winchester). Os primeiros representam o realismo; o segundo a vaidade ingénua de extrair o néctar desse realismo para lhe chamar “verdade”; o terceiro, que acoplado à câmara representa o “verdadeiro real”; e os últimos representam o sagrado e profano que, neste contexto, se pode traduzir, usando as palavras de Jean-Louis Comolli, pelas condições da própria experiência.

Sebastião Casanova

Menu Plaisirs —  Les Troisgros: Abyme, place, scène

O mais recente filme de Frederick Wiseman, Menu Plaisirs – Les Troisgros (2023), que estreou em Portugal na secção Da Terra à Lua do DocLisboa, aproxima-nos da alta cozinha da família Troisgros, que mantém há cinquenta e cinco anos, o célebre legado das três estrelas Michelin. No quinquagésimo filme da cinematografia antológica de Wiseman, a sua não menos célebre abordagem à instituição enquanto organismo vivo, onde confluem relações de poder e tensões hierárquicas, é espoletada dentro do universo hoteleiro (particularmente da cozinha) que se ramifica num outro: o da família. Em Menu Plaisirs, o espectador é introduzido numa dinâmica cíclica, partindo da lógica operativa da cozinha, desde o garde manger1, à boca de quem se senta à mesa dos restaurantes Troisgros (Maison Troisgros, Le Bois sans feuilles, e La Colline). Assim, neste filme, podemos debruçar-nos sobre a lógica operativa de uma instituição fundada há mais de cem anos, de estrutura hierárquica paramilitar, que por mais que exista à volta de algo tão simples como a comida, é célebre pelo jogo de sombras que envolve e pelo que acontece no fora de campo, antes da degustação. Algo que se pode comparar ao cinema. 

A particularidade de Menu Plaisirs, é a observação de todo este empreendimento a partir de uma outra “instituição” – a família – enquanto alma do negócio, enquanto corpo comum, reunida numa lógica de criação conjunta, de legado, e que por isso convoca novamente a dimensão cíclica. Do pó ao pó, da terra à terra, sob um ponto de vista sustentável e ecológico, mas também geracional, de renovação, e de liberdade (que se adquire tanto no assumir da chefia como na passagem do legado). 

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Menu Plaisirs – Les Troisgros, Frederick Wiseman © Zipporah Films

O filme começa na praça de Roanne, onde os irmãos César e Leo, respetivamente chefs dos restaurantes Le Bois sans Feuilles e La Colline, escolhem contemplativamente alguns ingredientes, antes de se reunirem com o pai, Michel, numa das mesas redondas do restaurante. Discutem os pratos da temporada e os ingredientes a usar em função da época. Como é característico no seu cinema, Wiseman constrói o filme através de dois tipos de cenas: as sequências de instrução visual que, passo a passo, nos aproximam de toda uma paisagem operativa, desde a visualização mental e verbal do menu, à escolha da matéria prima, à sua entrada na cozinha pelo cais, às operações de pré-preparação na cozinha fria, à mise en place2, oferecendo-nos também, por outro lado, uma relação hierárquica retroativa, que nos leva à terra, à compreensão do solo e dos processos de agropecuária. Por outro lado, nas cenas protagonizadas pela conversa, entre um ou mais elementos, através das quais se pode aceder aos meandros das duas instituições. Numa delas, a certa altura, o produtor de vacas que trabalha com os Troisgros afirma: “Respeitando o solo, as plantas e os animais serão saudáveis. É este o ciclo virtuoso”. Esta frase, pode ser apropriada em função dos momentos verbais, que vão retratando esta dinâmica familiar: respeitando a base – a comunicação – o nosso trabalho e as nossas relações serão saudáveis. A conversa, a aprendizagem partilhada, a compreensão mútua, vai pontuando o filme, em paralelo com os momentos da ordem do fazer, de forma eclética, desde a discussão de sabores, às encomendas vinícolas dos clientes, à aprendizagem sobre a fortificação do pasto das vacas, ou até ao briefing da equipa sobre a ética de trabalho anti-bullying. Com efeito, a ética é sublinhada subtilmente durante as quatro breves horas do filme, ao dar-se nota de uma liderança silenciosa, praticamente ímpar no universo da alta cozinha, para não mencionar a imparidade dessa harmonia no que toca a dinâmicas familiares.

Escutamos o filetar de um pregado, o destacar das costeletas de um borrego, entre sons frios das cubas e das facas de inox, que se alargam a toda a sonoridade da cozinha, que se vai apresentando, assim, partida a partida. Paralelamente, na sala, os empregados de mesa posicionam os talheres e os copos imaculados em cima do pano branco com a precisão de um jogador profissional de snooker. Mais tarde, encontramos vários tipos clientes, alguns connaisseurs, uns autênticos, outros vaidosos que se precipitam avidamente para receber todos os sabores e cheiros, rotulando-os rapidamente, sem deixar de parte o telemóvel, esse objeto que hoje, frequentemente, contamina a experiência gastronómica. Outros vão à descoberta, tímida por vezes, por outras, incorporada na celebração.

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Menu Plaisirs – Les Troisgros, Frederick Wiseman © Zipporah Films

Menu Plaisirs evoca por diversas vezes um paralelismo com o cinema. A partir do método de “controlar a cozinha sem levantar a voz, só com o olhar” pode pensar-se na forma como Wiseman terá comunicado com o operador de câmara (James Bishop) e o engenheiro de som (Jean-Paul Mugel), e nesse sentido, pensar na relação entre quem se senta na cadeira do cinema de Wiseman, e em quem se senta à mesa da Maison Troisgros. Foquemo-nos no jogo de sombras da cozinha. Todos os momentos de degustação resultam de uma combinação entre um conhecimento extenso dos produtos e como reagem aos diferentes métodos de confeção. Numa das cenas que provocou sorrisos, o chef Michel precisa de relembrar um dos cozinheiros como drenar o sangue do cérebro dos cabritos antes de os cozer, rematando, que sempre que ele não souber alguma coisa deve recorrer a dois livros, a enciclopédia francesa Larousse e, ou, o Escoffier, a base de toda a cozinha, escrita por Auguste Escoffier. Ou seja, foi tudo escrito há muito tempo. Não existem invenções misteriosas, ou manobras ocultas, mas sim a combinação do conhecimento com um jogo de artifícios, sombras e luzes que, no restaurante, envolvem os pratos e o modo como chegam ao cliente. No cinema de Wiseman, exalta-se o sentido operativo da visão, a capacidade do espectador fazer ligações (independentemente da sua complexidade) e de construir, de certa forma, o seu filme. Essa capacidade obtém-se através do visionamento dos seus filmes, sem quaisquer concepções prévias de tempo, de sentido, e ironicamente, de hierarquia. Da mesma forma, no meio da alta cozinha, o paladar é uma ferramenta que se deve usar operativamente, tanto pelo “realizador” como pelo “espectador”. Qualquer pessoa que tenha trabalhado como cozinheiro sabe (ou devia saber) que as suas ferramentas principais são a colher e o palato, para que possa provar várias vezes tudo antes de ir para a mesa. Neste sentido, o gosto subjetivo é suprimido a favor da prova de sabor, instrumental. Também na mesa, quanto mais operativo for o palato do cliente, mais perto estará da experiência gastronómica.  

Nas cozinhas de Les Troigros, não se fazem refeições. Come-se, em “silêncio” como num gesto de antropofagia, dos corpos e dos processos que em conjunto criaram os vários momentos. Paralelamente, no cinema de Wiseman, os momentos são construídos a partir do que o espetador tem vindo a “comer” ao longo do filme, da atenção que dedica a pormenores, bem como a traços gerais dos planos, ou até à componente verbal, procurando ligações entre imagem e palavra. Todos esses “sabores” se compreendem de forma diferente. Por isso se devem ver e rever, dividir, se for o caso, ou interromper, se se estiver de estômago cheio. O seu visionamento será sempre afetado pela cumulação. O mesmo acontece na boca, onde fica o sabor dos rins com maracujá, dos frutos vermelhos e caviar, da baunilha com uvas e folha de ouro, e de outros prazeres, saboreados com a visão.

Sebastião Casanova

  1.  Secção de uma cozinha onde se procede, atualmente, a uma preparação prévia da matéria prima. ↩︎
  2.  Preparação dos ingredientes necessários para o serviço. ↩︎

DocLisboa: The Nothingness Club – Não Sou Nada (2023)

O DocLisboa tem como intuito a exploração de representações únicas da realidade. Quer seja por meio de um experimentalismo ou pelo desafio das conceções do passado, promove filmes que ofereçam novas maneiras de percecionar o mundo. The Nothingness Club – Não Sou Nada (2023) de Edgar Pêra é um deles, afigurando-se como um documentário mental sobre a entrada nos modos de pensamento de Pessoa.

Embrenhado no efeito nebuloso de uma mente patologicamente manchada, é oferecida ao espectador a oportunidade de inserção na realidade deturpada do mais enigmático poeta português: Fernando Pessoa. Baseada nos seus poemas, assiste-se à costura de uma narrativa própria, porque não se trata do real, mas sim de uma distorção onírica do mesmo.

Poder-se-ia afirmar que este filme era mais um ao lado dos demais que basearam as suas linhas orientadoras nos poemas deste grande escritor – e ainda bem que há tantos assim –, mas seria insensato declará-lo de facto, porque não se apresenta como um Filme do Desassossego (2010) ou um La gentilezza del tocco (1987). Pelo contrário, esta obra, escrita de forma perspicaz por Edgar Pêra e Luísa Costa Gomes, constitui-se, de forma anacrónica, como uma perspetiva refrescante (apesar de alucinante), com um ritmo fílmico muito particular, um Pessoa entre todos os outros.

O barulho gritante da sinfonia das máquinas de escrever, esta musicalidade intrínseca ao ato de escrever mestrada por ele próprio, constitui a personificação dos acessos de loucura febril de uma alma perturbada por esta multiplicidade de imaginários labirínticos. Uma agitação do sonoro de tal ordem, impele o espectador para um quarto coberto por espelhos quebrados, onde se instala um clima de terror psicológico, onde são refletidas imagens pertencentes à ordem do não-real.

The Nothingness Club – Não Sou Nada, de Edgar Pêra – © Direitos reservados

A fragmentação do “eu”, os dramas íntimos e a dimensão fantasiosa presentes nos poemas de Pessoa são de tal modo vinculados pela técnica. Quer seja pela câmara lenta e pela voz-off, que adensam o teor psicológico das personagens, quer seja pela banda sonora habilmente trabalhada por Artur Cyanetto e Jorge Prendas, quer seja pela sobreposição e justaposição de imagens, construída na montagem de Tomás Baltazar e Cláudio Vasques, nota-se, aqui, um cinema criador de dimensões imaginárias a partir de dimensões técnicas, usando a técnica para estabelecer esse imaginário estranho e labiríntico, através de um movimento de embriaguez alucinogénica. 

Sente-se o ambiente caótico, o contraste entre o espaço ficcional e o real (o escritório e o hospício), espaços que se contaminam, se devoram e se iluminam. Observa-se Lisboa numa distorção delirante através do cinema – e assumimos o papel de um dos muitos heterónimos, sentido o que ele sente, mas à nossa maneira singular e subjetiva. Constatam-se as fascinantes performances de Miguel Borges, atuando como Fernando Pessoa, um espectador de si mesmo que se procura a si e à sua essência; de Victoria Guerra como Ofélia, um elemento sedutor no meio dos cenários, um indício de cedência da racionalidade ao sentir inerente à condição humana; e de Albano Jerónimo, que é Álvaro de Campos, o corroer de várias personalidades que vão morrendo aos poucos com ele.

Aqui, vê-se o gesto e o grito. Aqui, experimenta-se o cinema, que tem o poder de elevar quem vê à condição de quem sente, num delírio estonteante, numa visão múltipla e deturpada do mundo, que só Pessoa poderia conceber.

Catarina Gerardo

Os espíritos da luta encarnados em Fogo no Lodo

Uma noite de trovoada no meio da vegetação densa e o ressoar dos relâmpagos, fazem lembrar as rajadas de tiros na guerra. Formigas correm, atropelando-se, seguindo o ritmo do seu trabalho, qual comunidade apressada. O cenário é a Guiné-Bissau nos dias de hoje, sob  o olhar de dois cineastas portugueses, quase 50 anos depois da independência daquele país. Aos poucos, vão surgindo objectos que procuram estabelecer o olhar inevitável e protelado, sobre a guerra nas antigas colónias portuguesas, e os vestígios remanescentes dessa época. Seja na ficção ou no documentário, regressar a esse tema, torna-se de importância extrema, e voltar aos países africanos que tiveram sob domínio português para perceber a evolução pós-colonial desses territórios, tem sido centro de vários filmes estreados em Portugal ao longo dos últimos anos. É o caso deste Fogo no Lodo, de Catarina Laranjeiro (investigadora do instituto de história contemporânea da NOVA FCSH), e Daniel Barroca (artista visual), que estreou na competição portuguesa do 21º Doclisboa.

Há décadas que Portugal adia um longo debate de dimensão nacional que é essencial para a percepção que hoje se tem daquilo que foi essa guerra. Esse tempo vive como fantasma na nossa memória colectiva, através dos testemunhos daqueles que a viveram na pele. O que é proposto em Fogo no Lodo é um olhar atento e presente em Unal, uma aldeia de produtores de arroz, onde surgiram os primeiros a envolver-se na revolta armada e na luta pela libertação da Guiné-Bissau.

Fogo no Lodo, Catarina Laranjeiro, Daniel Barroca © Direitos reservados

O trabalho de Catarina e Daniel, prende-se na tentativa de perceber a espiritualidade daquele povo e de como isso os terá conduzido para a luta. Na forma como a comunidade se organiza, nas danças dos mais jovens, nos rituais dos velhos e nos cânticos das mulheres, transparece uma comunidade que se ergue para enfrentar espectros do passado. Entre o lado religioso e político, entre aqueles que lutaram na guerra e os novos que só herdaram os testemunhos e as marcas deixadas no país, registam-se as conversas sobre as memórias da guerra, rodeadas pela beleza profunda da natureza e pelos semblantes vincados pelo tempo do trabalho na produção de arroz. Todo um ciclo de trabalho colectivo, por vezes ainda longe do nosso discernimento.

No que toca à ética de trabalho de um cineasta, há sempre uma tensão que é preciso gerir, quando a voz daquelas populações é guiada por aqueles que sempre tiveram voz. Impõe-se um olhar directo, honesto, de igual para igual, que evite cair na tentação de esteticizar e criar uma imagem baseada nas nossas concepções. É preciso se prestar a ver e ouvir. O que fica notório ao ver este filme é esse lugar da câmara e, consequentemente, o lugar do espectador. Sem intertítulos explicativos ou qualquer voz a narrar, para lá da voz dos que estão representados, Fogo no Lodo é uma sequência de cenas marcadas por essa distância, puramente observacionais do trabalho na aldeia, dos relatos sobre o passado, e dos momentos de convívio ao som da música e dos dispositivos eletrónicos que, aos poucos, invadem aquela aldeia. Há um cuidado para não se deixar deslumbrar pela beleza da natureza e das pessoas daquela aldeia. Porém, talvez essas cautelas também impeçam o filme de ir mais ao encontro da temática de que parece querer aproximar-se, acabando por transmitir uma visão contida da relação da câmara com as pessoas – ou das pessoas com a câmara -, que mesmo alguns planos mais aproximados não conseguem disfarçar. Ficamos com a ideia de que era preciso mais tempo na aldeia de Unal, para que o filme se tornasse mais do que um apanhado do quotidiano dos guineenses. Recolha valiosa sim, mas pouco cinematográfica.

Fogo no Lodo, Catarina Laranjeiro, Daniel Barroca © Direitos reservados

O intuito de fazer uma recolha da cosmologia política de uma aldeia com cerca de 500 habitantes, reflecte-se aqui sob esse olhar antropológico, com uma fotografia cuidada, pouco saturada, e um desenho sonoro que ganha destaque pelo uso hábil das vozes e narrativas das pessoas. Vozes que, muitas vezes, só na montagem puderam entender, pela barreira imposta pela língua.

Tentando, ainda assim, ser terreno para levantar discussões prementes, sai-se da sala com a consciência de que se viu algo importante, feito com cuidado e atenção, fulcral para que o diálogo de lembranças perdure e nos consiga trazer mais conclusões e informação sobre uma guerra, cujas atrocidades e crimes, estão ainda longe da percepção pública. E em defesa do filme, talvez não possa ser de outra forma: como uma escuta atenta, sem floreados ou visões quiméricas, onde transparece a sensibilidade dos realizadores.

Ricardo Fangueiro

Objectos de Luz: Memórias luminosas

Comecemos pela referência bíblica: “Antes não havia nada, depois fiat lux.” Do vácuo e da escuridão nasceram a matéria e a luz. Esta frase é determinante para nos ajudar a olhar Objectos de Luz, filme de Acácio de Almeida e Marie Carré, obra escolhida para a sessão de encerramento do 20º DOCLISBOA. Para além de uma bonita homenagem à arte da luz, assim como ao caso específico do cinema português, fica o registo de uma meditação fulgurosa sobre a importância da luz enquanto criadora da matéria cinematográfica.

Objectos de Luz, Acácio de Almeida, Marie Carré © Doclisboa

Acácio de Almeida participou como director de fotografia em dezenas de filmes de realizadores como António Reis e Margarida Cordeiro, João Botelho, João César Monteiro, Manoel de Oliveira, Margarida Gil, Paulo Rocha ou Teresa Villaverde, entre muitos outros, que são revisitados neste inusitado ensaio visual. O seu amor pelo desenho da luz e a sua inscrição em imagens levou Acácio e Marie a prestarem toda a atenção e pensamento àquilo que faz existir não só o cinema, mas toda a vida. Partindo dos diálogos que Marie ia guardando dos almoços entre os dois, é a voz de Acácio, o “Homem da Luz” (como aparece creditado no genérico final), que nos guia ao longo de uma série de imagens em que a luz é a protagonista e o centro em torno do qual gravita o pensamento deste filme.

Entre as memórias invocadas e o conhecimento que foram reunindo no trabalho e na vida em conjunto, Acácio de Almeida e Marie Carré viajam no mundo da luz e das sombras, naquela que ambiciona ser uma viagem universal pelo cinema, mas também uma imponente reflexão sobre a existência das coisas. Disperso na sua forma, trabalhando com vários registos, do arquivo do cinema português a novas imagens produzidas para este filme, a obra entusiasma pelo foco que incide no acto cinematográfico, no acto de fazer cinema e tudo o que rodeia a arte de criar imagens. A dada altura, o narrador constata que, não só precisamos da luz para as criar, como para dar vida a uma bobine que contém o universo de um filme. Numa das sequências vemos uma personagem, interpretada por Manuel Mozos, a correr atrás de uma bobine que ganha vida e foge. O objectivo é claro: pará-la e perceber o que ela contém. Até que a vemos a ser projectada – iluminada e dada a ver.

Com pouco mais de uma hora de duração, este jogo de luzes vai mostrando os rostos que foram iluminados por Acácio de Almeida ao longo da sua vasta carreira no cinema. Rostos de actores como Isabel Ruth, a própria Marie Carré ou Luís Miguel Cintra, que numa das cenas mais impactantes do filme confronta-se com o seu rosto reanimado 50 anos depois do filme de João César Monteiro Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1971).

Objectos de Luz, Acácio de Almeida, Marie Carré © Doclisboa

Ao longo do filme são várias as perguntas que o narrador vai fazendo sobre a luz ou directamente a ela, “O que somos nós em relação à luz?” ou “que seria de ti sem nós?”, lembrando as palavras dirigidas ao sol em Assim Falava Zaratustra: “Ó grande astro! Que seria da tua alegria se te faltassem aqueles a quem iluminas?”. Objectos de Luz é a estreia luminosa de Acácio de Almeida e Marie Carré na realização e, mais que filme-testamento, é um filme que se alavanca nas memórias para lançar ao futuro a vontade que continuam a ter de fazer cinema.

Ricardo Fangueiro

[Objectos de Luz, Acácio de Almeida, Marie Carré © Doclisboa]

Onde Fica Esta Rua? ou o antes e o depois de uma paisagem humanizada

Era o amor

Que chegava e partia

Estarmos os dois

Era um calor, que arrefecia

Sem antes nem depois

Era um segredo

Sem ninguém para ouvir

Eram enganos e era um medo

A morte a rir

Dos nossos verdes anos

“Canção dos Verdes Anos”, Carlos Paredes

Depois da estreia mundial no Festival de Locarno, foi na 20ª edição do Doclisboa que pudemos ver Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022), na secção Riscos, uma secção que o festival caracteriza com foco em: “um cinema que arrisca, questiona as suas fronteiras e relaciona a sua história com o seu futuro.” Nesta secção, na subcategoria “AUSÊNCIAS, PERSISTÊNCIAS E APARIÇÕES”, onde estão programados filmes que se questionam “sobre o que fica e o que desaparece, o que se lembra e o que se esquece, o que se procura e o que se encontra”, a nova longa-metragem da dupla de realizadores João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata pareceu encaixar que nem uma luva. Como o nome da secção na qual foi programado indica, Onde Fica Esta Rua? é um filme que arrisca, que não tem medo de não resultar, filmado num tempo onde a necessidade de filmar se revela urgente.

Assim que o filme abre é nos dada a informação de que da janela da casa de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, na Avenida de Roma, se poderia ver um décor de Os Verdes Anos, o clássico português de Paulo Rocha. Com essa informação navegamos naquilo a que o filme se propõe: um remake plano a plano do filme de Rocha retirando-lhe as personagens e a narrativa. Todavia, cedo percebemos que este filme não é bem um remake, assim como também não é bem um documentário. Embora dentro desse género, percebemos que é um pouco aquilo que quer ser, apresentando-se, sobretudo, como um questionamento visual sobre a mudança do espaço nos últimos 60 anos. Como é que são os espaços ocupados na contemporaneidade? 

Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata – © Terratreme Filmes, Filmes Fantasma, House on Fire

Normalmente estamos habituados a sobrevalorizar a história em relação à ‘mise-en-scène’. Nos Verdes Anos tentou-se ir contra isso. O que mais interessava era a relação entre o ‘décor’ e o personagem, o tratamento da matéria cinematográfica. Eram as linhas de força, num plano, que lhe davam o seu peso e a sua importância.

Paulo Rocha, Jornal de Letras e Artes, 6 de maio de 64

O ponto de partida do filme foi olhar os lugares do filme de Paulo Rocha, numa carta aberta de amor à cidade de Lisboa, filmada em 16mm, quase como se de uma sinfonia da cidade se tratasse. Podemos olhar ainda o filme como uma homenagem a Rocha, sendo para ele a questão do espaço determinante no cinema. A partitura musical, escrita em 1963 por Carlos Paredes, segue aqui o arranjo de Séverine Ballon e é esta que envolve graciosamente o espaço. 

“Esta terra é como uma dama que tem de ser engatada com muito jeito, nada de pressas”, diz-nos Afonso, tio de Júlio, em Os Verdes Anos. Lisboa veste bem a pele desta dama no filme de Rodrigues e Guerra da Mata, uma cidade que é vista e engatada com muito jeito. A personagem de Afonso é, de certa forma, crucial, não só pela lembrança que temos das suas falas mas por o único plano trazido do filme de 1963 ser um plano seu a assentar azulejos, profissão que exercia. Afonso é usado também como símbolo de mudança da cidade, visível através da sua profissão, no antes e no depois do assentar dos azulejos.

O cinema de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, quer em colaboração como realizadores quer em colaboração como realizador-diretor de arte, é um cinema que cria uma história entre si. No início da sua mais recente longa-metragem, presenciamos o encontro entre o bombeiro e o príncipe do recém-estreado Fogo Fátuo, uma fantasia musical, e mal esperamos que este mesmo se transforme numa fantasia musical. O bairro de Alvalade, cenário aqui e em Os Verdes Anos, é também cenário de muitos dos seus outros filmes (como O Fantasma e Odete), e o caráter fantasmagórico de uma Lisboa desprovida de humanos pode ainda fazer ligação com O Fantasma. Por sua vez, Onde Fica Esta Rua? carrega com muita força os fantasmas das personagens do filme de Paulo Rocha e os fantasmas de uma sociedade fechada em casa devido a uma pandemia.

Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata – © Terratreme Filmes, Filmes Fantasma, House on Fire

As dicotomias cidade/campo e modernidade/ruralidade, temas fortes em Os Verdes Anos, principalmente na caracterização da personagem do Julio, são bem visíveis nas mudanças que podemos ver nos espaços. Rios são ciclovias e pequenas carroças são trotinetes e hoverboards. O Texas Bar que facilmente reconhecemos como Musicbox, na Rua Cor de Rosa, ou mesmo aqueles espaços que quase já não reconhecemos, como o café Vává. Estas mudanças transformam o filme quase num documento teórico, num estudo arqueológico, num jogo de descoberta que lhe dá também um motivo quase interativo para aquele que o recebe (o espectador).

Esta interatividade funciona também através dos movimentos de câmara, que nos permitem recordar as cenas daqueles verdes anos, ou imaginá-las, caso não tenhamos visto o filme de Rocha. É a câmara que carrega este peso humano numa paisagem vazia que se torna também ela humanizada. As pessoas (ou personagens), apesar de inexistentes, acabam por ser visíveis, e o filme trabalha muito com estas partes do cinema que nem sempre são tão valorizadas. À falta de diálogo e personagens, a banda sonora, a fotografia e os movimentos de câmara conduzem de forma exímia a narrativa destes lugares. Lisboa transforma-se numa cidade humanizada, mesmo que vazia. Uma cidade capaz de ressuscitar Lídia e, acima de tudo, de sonhar, um sonho cantado na voz doce de Isabel Ruth. 

Inês Moreira

[Foto em destaque: Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata – © Terratreme Filmes, Filmes Fantasma, House on Fire]

A Date in Minsk: A vida é uma ficção

A Date in Minsk é um objecto curioso por várias razões. Nikita Lavretski, realizador bielorrusso – que, para além deste, apresentou, ainda nesta edição do DocLisboa, o filme que realizou com Alexey Suhanok, Jokes About War -, é já conhecido pelo baixo ou inexistente orçamento das suas produções e por uma profunda paixão pelo cinema e engenho para construir os seus filmes. A Date in Minsk é filmado totalmente com um smartphone e um par de microfones de lapela, num longo plano sequência que dura os 88 minutos do filme. 

Através do cartão inicial e da sinopse percebemos a premissa do filme: Nikita e Volha são, na “vida real” (não é certo o que isso significa neste filme), um casal disfuncional com uma relação tóxica que dura há anos e que aqui interpretam um casal que acaba de se conhecer. O filme é todo filmado pelo terceiro elemento presente, a também realizadora bielorrussa Yulia Shatun, que vai apontando a câmara para a ação, tentando encontrar (de forma improvisada como é toda a ação o filme) o ângulo adequado para cada momento. Facilmente se percebe a potencialidade existente nesta ideia e o que ela pode alcançar.

Começando por acompanhar uma partida de bilhar entre os dois num salão de jogos, a câmara segue este casal no seu percurso até à estação de metro, onde cada um segue o seu caminho. Por entre a conversa ligeira de encontro amoroso, vai sendo revelado o contexto político e a actualidade da Bielorrússia. Rodado há poucos meses, já depois da invasão russa na Ucrânia, essa é também uma temática presente no filme e, simbolicamente ou não, ao sair do salão de jogos, Nikita veste um cachecol com as cores ucranianas.

A Date in Minsk, Nikita Lavretski © Doclisboa

Para quem não percebe russo, o constante diálogo entre as personagens que se estão a conhecer torna-se cansativo de acompanhar, já que o espectador dá por si a ler durante o filme inteiro, sobrando pouco tempo para olhar com atenção as imagens e reparar nos pormenores da ação. Contudo, o filme funciona, pois a dinâmica entre Nikita e Volha permite que do seu total improviso saia uma espécie de comédia romântica (algo que o realizador assume ter como inspiração) pautada por momentos de discussão e curiosidade pelas opiniões um do outro sobre os mais variados temas.

Do ponto de vista formal, este é um filme surpreendente. Como afirma o realizador, o aspecto performativo é o seu conceito central, daí só fazer sentido este ser realizado num só take, sem qualquer escrita de diálogos ou tópicos ensaiados. Entre a comédia e o drama, com a cidade de Minsk em pano de fundo, o jogo ficcional que o casal cria faz-nos questionar sobre as barreiras que separam a vida do cinema.A Date in Minsk acabou mesmo por vencer o grande prémio da 20ª edição do DocLisboa, “pelo conceito cinematográfico, pela preocupação com temáticas atuais, pela autenticidade dos diálogos e interpretações”, segundo as palavras do júri. Nikita Lavretski é já um dos nomes a acompanhar do cinema bielorrusso e a sua inventividade faz-nos querer seguir de perto o seu percurso.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: A Date in Minsk, Nikita Lavretski © Doclisboa]

Terra que Marca: imagens colhidas da terra

Terra que Marca, o mais recente trabalho de Raúl Domingues – que teve a sua estreia nacional nesta edição do DocLisboa -, à semelhança do seu anterior Flor Azul (2014), é o cinema do gesto e do fragmento, obra que revela uma profunda sabedoria do ato de apontar e enquadrar. Num registo de câmara à mão, a função do realizador neste filme é sobretudo a de apontar a câmara para o movimento das ferramentas, para a natureza e para o corpo das figuras humanas que aqui são vultos que pairam trabalhando a terra. 

Ao abrir o leque de imagens, encontramos as únicas palavras do filme que contam como “em tempos, vieram dois malfeitores cumprir a pena de tomar conta desta terra desabitada e em pousio. A sua sentença passou de geração em geração e foi herdada pelos homens que a trabalham. Uma mulher descalça ajeita a terra e é surpreendida por uma folha.” Da força literária destas palavras, partimos para um contacto profundo entre o trabalho da câmara e o da enxada.

Terra que Marca, Raúl Domingues © Oublaum filmes

Num dos primeiros planos do filme vemos as mãos de pessoas diferentes rasgarem o plano da vegetação e apontarem para o fora de campo. Logo desde início, fica evidente a forma peculiar como Domingues escolhe enquadrar, mostrando que tem bem ciente aquilo em que se quer focar,  podendo dizer-se de forma jocosa que, se os seus familiares trabalham o campo, Domingues trabalha o campo e o fora-de-campo. Também o som é trabalhado de forma exímia, tendo a função de destacar certos momentos ou acontecimentos e, por exemplo, segundo as palavras de Domingues, “realçar o passarinho que passa em 2 ou 3 frames”. 

Além disso, para além do seu trabalho enquanto realizador, Domingues tem vindo a trabalhar como montador  em  filmes como António Um Dois Três (2017), Canto do Ossobó (2017) ou Entre Leiras (2021). Dessa forma, tem desenvolvido uma capacidade para olhar o material que tem e juntá-lo de forma a estabelecer fortes relações entre as imagens, a encontrar rimas, texturas, sobreposições ou raccords improváveis. Sendo essencialmente na montagem que se fazem todas as derradeiras escolhas, em particular no género documental, o trabalho do montador é um trabalho de filtragem – o de separar o trigo do joio. Através de um arquivo de imagens que foi reunindo ao longo dos últimos anos, foi na montagem que o realizador descobriu o seu filme.

Terra que Marca, Raúl Domingues © Oublaum filmes

Terra que Marca é sobre o labor da terra e sobre a aproximação do realizador àqueles que são os gestos familiares, mas  é sobretudo um ensaio visual sobre a textura e cores da natureza e desse trabalho no campo. A sua técnica remete para uma certa expressão primitiva e também aí reside o fascínio pelas suas imagens: pintar o que se vê na natureza e juntar as peças de forma a criar um retrato vivo do labor familiar. O cinema tem essa força e Raúl Domingues percebe-o. Esse respeito pela terra conflui num aspeto animista que o seu filme parece também conter. Lembrando as palavras de Jean Epstein: “One of cinema’s greatest powers is its animism. On the screen there is no still life. Objects have attitudes. Trees gesture. Mountains, like this Etna, signify. Each element of staging becomes a character.” É desse espírito presente nos objetos e nos elementos que  emana a força cinematográfica do filme.

Essa sincera disponibilidade para olhar o trabalho dos familiares e para se deixar deslumbrar pelos seus gestos, ritmo e sonoridades, é a semente de onde nasce esta obra: esta terra que marca, mas que sobretudo é marcada pela presença de outra natureza – a humana.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Terra que Marca, Raúl Domingues © Oublaum filmes]