Era o amor
Que chegava e partia
Estarmos os dois
Era um calor, que arrefecia
Sem antes nem depois
Era um segredo
Sem ninguém para ouvir
Eram enganos e era um medo
A morte a rir
Dos nossos verdes anos
“Canção dos Verdes Anos”, Carlos Paredes
Depois da estreia mundial no Festival de Locarno, foi na 20ª edição do Doclisboa que pudemos ver Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022), na secção Riscos, uma secção que o festival caracteriza com foco em: “um cinema que arrisca, questiona as suas fronteiras e relaciona a sua história com o seu futuro.” Nesta secção, na subcategoria “AUSÊNCIAS, PERSISTÊNCIAS E APARIÇÕES”, onde estão programados filmes que se questionam “sobre o que fica e o que desaparece, o que se lembra e o que se esquece, o que se procura e o que se encontra”, a nova longa-metragem da dupla de realizadores João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata pareceu encaixar que nem uma luva. Como o nome da secção na qual foi programado indica, Onde Fica Esta Rua? é um filme que arrisca, que não tem medo de não resultar, filmado num tempo onde a necessidade de filmar se revela urgente.
Assim que o filme abre é nos dada a informação de que da janela da casa de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, na Avenida de Roma, se poderia ver um décor de Os Verdes Anos, o clássico português de Paulo Rocha. Com essa informação navegamos naquilo a que o filme se propõe: um remake plano a plano do filme de Rocha retirando-lhe as personagens e a narrativa. Todavia, cedo percebemos que este filme não é bem um remake, assim como também não é bem um documentário. Embora dentro desse género, percebemos que é um pouco aquilo que quer ser, apresentando-se, sobretudo, como um questionamento visual sobre a mudança do espaço nos últimos 60 anos. Como é que são os espaços ocupados na contemporaneidade?
Normalmente estamos habituados a sobrevalorizar a história em relação à ‘mise-en-scène’. Nos Verdes Anos tentou-se ir contra isso. O que mais interessava era a relação entre o ‘décor’ e o personagem, o tratamento da matéria cinematográfica. Eram as linhas de força, num plano, que lhe davam o seu peso e a sua importância.
Paulo Rocha, Jornal de Letras e Artes, 6 de maio de 64
O ponto de partida do filme foi olhar os lugares do filme de Paulo Rocha, numa carta aberta de amor à cidade de Lisboa, filmada em 16mm, quase como se de uma sinfonia da cidade se tratasse. Podemos olhar ainda o filme como uma homenagem a Rocha, sendo para ele a questão do espaço determinante no cinema. A partitura musical, escrita em 1963 por Carlos Paredes, segue aqui o arranjo de Séverine Ballon e é esta que envolve graciosamente o espaço.
“Esta terra é como uma dama que tem de ser engatada com muito jeito, nada de pressas”, diz-nos Afonso, tio de Júlio, em Os Verdes Anos. Lisboa veste bem a pele desta dama no filme de Rodrigues e Guerra da Mata, uma cidade que é vista e engatada com muito jeito. A personagem de Afonso é, de certa forma, crucial, não só pela lembrança que temos das suas falas mas por o único plano trazido do filme de 1963 ser um plano seu a assentar azulejos, profissão que exercia. Afonso é usado também como símbolo de mudança da cidade, visível através da sua profissão, no antes e no depois do assentar dos azulejos.
O cinema de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, quer em colaboração como realizadores quer em colaboração como realizador-diretor de arte, é um cinema que cria uma história entre si. No início da sua mais recente longa-metragem, presenciamos o encontro entre o bombeiro e o príncipe do recém-estreado Fogo Fátuo, uma fantasia musical, e mal esperamos que este mesmo se transforme numa fantasia musical. O bairro de Alvalade, cenário aqui e em Os Verdes Anos, é também cenário de muitos dos seus outros filmes (como O Fantasma e Odete), e o caráter fantasmagórico de uma Lisboa desprovida de humanos pode ainda fazer ligação com O Fantasma. Por sua vez, Onde Fica Esta Rua? carrega com muita força os fantasmas das personagens do filme de Paulo Rocha e os fantasmas de uma sociedade fechada em casa devido a uma pandemia.
As dicotomias cidade/campo e modernidade/ruralidade, temas fortes em Os Verdes Anos, principalmente na caracterização da personagem do Julio, são bem visíveis nas mudanças que podemos ver nos espaços. Rios são ciclovias e pequenas carroças são trotinetes e hoverboards. O Texas Bar que facilmente reconhecemos como Musicbox, na Rua Cor de Rosa, ou mesmo aqueles espaços que quase já não reconhecemos, como o café Vává. Estas mudanças transformam o filme quase num documento teórico, num estudo arqueológico, num jogo de descoberta que lhe dá também um motivo quase interativo para aquele que o recebe (o espectador).
Esta interatividade funciona também através dos movimentos de câmara, que nos permitem recordar as cenas daqueles verdes anos, ou imaginá-las, caso não tenhamos visto o filme de Rocha. É a câmara que carrega este peso humano numa paisagem vazia que se torna também ela humanizada. As pessoas (ou personagens), apesar de inexistentes, acabam por ser visíveis, e o filme trabalha muito com estas partes do cinema que nem sempre são tão valorizadas. À falta de diálogo e personagens, a banda sonora, a fotografia e os movimentos de câmara conduzem de forma exímia a narrativa destes lugares. Lisboa transforma-se numa cidade humanizada, mesmo que vazia. Uma cidade capaz de ressuscitar Lídia e, acima de tudo, de sonhar, um sonho cantado na voz doce de Isabel Ruth.
Inês Moreira
[Foto em destaque: Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata – © Terratreme Filmes, Filmes Fantasma, House on Fire]
Um comentário a “Onde Fica Esta Rua? ou o antes e o depois de uma paisagem humanizada”
Simplesmente espetacular. Muito bem escrito, por alguém genial, muito profissional, e dedicada. Parabéns, de quem se orgulha muito de ti.