MOTELX: os demónios da alma no cinema de Brandon Cronenberg

A 17ª edição do MOTELX, Festival Internacional de Cinema de Terror, animou Lisboa na passada semana, com inúmeras sessões de cinema, masterclasses e convidados. Brandon Cronenberg, filho do cineasta canadiano David Cronenberg, foi um desses convidados, ele que é uma das mais recentes promessas de cinema de género: um cinema que combina o horror psicológico e o sci-fi. Cronenberg esteve no Cinema São Jorge para acompanhar a estreia portuguesa do seu novo filme: Infinity Pool. Todavia, este ano, o festival decidiu fazer uma retrospetiva de toda a sua obra, passando ainda em sala as suas duas longas-metragens anteriores – Possessor (2020) e Antiviral (2012) – e ainda uma das suas curtas-metragens – Please Speak Continuously and Describe Your Experiences as They Come To You (2019).

Infinity Pool, de Brandon Cronenberg – ©

Neste texto, o foco será a análise das suas duas longas mais recentes: a estreante Infinity Pool e Possessor. Em Infinity Pool, um casal, James (Alexander Skarsgård) e Em (Cleopatra Coleman), passam umas férias numa espécie de resort excêntrico num país ficcional chamado La Tolqa (que se assemelha ao cenário de White Lotus ou de Triangle of Sadness) na esperança de James ganhar inspiração para um novo livro, após o seu primeiro não muito bem sucedido romance. O casal conhece um outro casal, Gabi (Mia Goth) e Alban (Jalil Lespert), que os leva num passeio fora do resort que acaba com o atropelamento de um local. James, culpado do crime, é julgado e percebe que, segundo regras do país, no caso de morte, é o filho mais velho da vítima que deve vingar esta. Contudo, nesta realidade distorcida, há uma saída para os mais privilegiados: a criação de um doppelgänger que assumirá as culpas e morrerá no lugar do culpado. O único senão é este ter de assistir à sua própria execução.

 Três anos antes, em Possessor, Brandon Cronenberg explora uma premissa um pouco mais simples, mas apoiada num mesmo sistema corrupto que valoriza aqueles com mais poder. Voss, interpretada de forma brilhante por Andrea Riseborough, é uma assassina contratada que consegue “possuir” o corpo de uma pessoa próxima da sua vítima, facilitando assim o crime. Quando ao entrar na mente de Colin (Christopher Abbott), o seu novo bode expiatório, algo não corre tão bem e a própria vítima começa a ter controlo sobre a mente da sua parasita (Voss). A partir deste momento, o filme começa a caminhar para uma esquizofrenia mental, muito bem retratada visualmente por Cronenberg, que só pára na destruição e caos total.

Possessor, de Brandon Cronenberg – ©

Ambos os filmes fazem o espectador questionar-se sobre a decência humana e sobre o quão longe alguém iria sabendo que não haveria consequências para as suas ações. É quase como se estivéssemos perante uma régua moral e essa régua parece estar partida, e talvez seja essa a mensagem que o realizador canadiano nos quer passar: a de uma sociedade estilhaçada e que não parece conseguir encontrar o caminho para o bem, associando o mal a algo prazeroso e afrodisíaco. A violência nos dois filmes é praticada da forma mais violenta possível, aproveito a redundância. No caso de Voss (em Possessor), esta evita o uso da pistola substituindo-a por uma arma mais sangrenta, e no caso de Infinity Pool, a violência é quase sempre associada a sexo (vemos quase tantas cenas sangrentas como orgias) e a festa, num tom quase medieval. A crítica social é forte. Nos dois filmes, mas ainda mais evidente em Infinity Pool, o realizador parece mesmo sugerir que é apenas o medo das consequências que impede as pessoas de praticarem o mal, e que se numa sociedade paralela, estas consequências fossem extintas por via, por exemplo, da tecnologia (notemos ainda a crítica ao aumento do uso desta, que nos remete inúmeras vezes para a série televisiva Black Mirror e para, no caso de Possessor, o episódio específico Crocodile, com Andrea Riseborough também como protagonista), o caos estaria instalado e a sobrevivência seria apenas um jogo de poder.

Apesar da crítica ser algo muito evidente, e de o body horror e as cenas sangrentas estarem lá, Brandon Cronenberg explora um lado muito mais identitário e psicológico nos seus filmes: o das repercussões psicológicas que os crimes praticados têm nos seus autores. Se, no caso do seu pai, o foco era o terror físico, no caso de Brandon o foco vira-se para a mente, a alma, e as suas assombrações e demónios. Em ambos os filmes, há uma espécie de duplicação identitária. Em Possessor, por uma via quase de parasita (de habitar o corpo do outro), e em Infinity Pool, através mesmo de uma duplicação, duplicando-se neste caso o corpo. Estas transposições ou duplicações de identidade parecem causar uma certa fragmentação na identidade original, que no caso de Voss, parece estar cada vez mais longe, e no caso de James, que acaba por se confundir com a identidade copiada (a dada altura, alguém lhe pergunta “mas não tens receio que tenham matado o James original?). As sequências experimentais do filme nas quais conseguimos acompanhar aquilo que está a acontecer na mente das personagens principais acabam por superar, ao nível do terror, do medo e da ansiedade, as cenas de violência gratuita e sangue. É muito interessante a forma como o realizador nos consegue conectar com o pânico sentido na mente destas personagens.

A retrospetiva a Brandon Cronenberg foi um dos momentos altos de um festival que segue mais um ano sem desiludir o seu espectador. E Brandon Cronenberg assume-se como uma estrela em ascensão do cinema de terror que, apesar da pesada herança do seu pai, se tem conseguido destacar com um cinema muito próprio e cada vez mais intrigante.

Inês Moreira

Infinity Pool, de Brandon Cronenberg – ©

Um cinema de relações fraturadas e solitárias posto em evidência na 20ª edição do Indielisboa: Sick of Myself, Watcher e The Adults

Na 20ª edição do Indielisboa, para além de muitas outras linhas temáticas, é posto em evidência o cinema das relações fraturadas e débeis através de três filmes que constam na programação: uma sátira, um thriller e um drama-comédia familiar. Os dois primeiros pertencentes à secção Boca do Inferno, a secção de filmes desconcertantes do festival, e por último aquele que encerrou o festival no passado domingo. Fala-se, portanto, da sátira norueguesa Sick of Myself (2022), de Kristoffer Borgli; da primeira longa-metragem da norte-americana Chloe Okuno, Watcher (2022); e da longa-metragem de Dustin Guy Defa, The Adults (2023). 

Sick of Myself é uma comédia desconfortável na qual a sua personagem principal, Signe (Kristine Kujath Thorp), ultrapassa todos os limites para chamar a atenção, num gesto narcisista e sem escrúpulos. Watcher, por sua vez, é um thriller sobre um casal que se muda para Bucareste, na Roménia: Julia (Maika Monroe) e Francis (Karl Glusman). Ele, meio romeno, fala e entende a língua, enquanto ela acaba por se ver sozinha e sem nada para fazer num país que lhe é estranho. Para além do isolamento, Julia começa a sentir-se observada por um olhar estranho vindo do prédio em frente ao seu (num piscar de olhos ao filme Rear Window de Alfred Hitchcok). No filme escolhido para encerrar esta edição do festival, o mais intimista e melancólico dos três, Dustin Guy Defa foca-se na relação entre três irmãos que se veem reunidos devido a uma visita curta de um deles, Eric, à sua terra natal. Eric é interpretado por Michael Cera que coloca o espectador numa posição saudosa, relembrando-se do seu carisma. Em todos estes filmes, as relações humanas são postas em evidência e são, até mesmo, testadas, mostrando-se frágeis e quebradiças, o que parece culminar num isolamento e numa tendência para a autocentralidade.

The Adults, de Dustin Guy Defa – © Dweck Productions, Savage Rose Films

De certa forma, os três filmes parecem existencialistas na sua génese, no sentido em que as suas personagens vivem dentro de si próprias e parecem muitas vezes entrar em colisão consigo próprias, seja pela forma como se veem, seja como são vistas pelos que as rodeiam. Signe (Sick of Myself) é o culminar desta autocentralidade. Uma mulher que tem um trabalho que não gosta e um namorado fútil e despreocupado, que ao ver-se num estado extremo de solidão, começa a destruir a sua vida para chamar atenção sobre si própria. O seu desejo é não cair na sombra do namorado, um artista contemporâneo que representa muito bem a artificialidade do panorama artístico dos nossos dias, e ser a “donzela em apuros” que este quer salvar. Signe é o exemplo perfeito do “main character syndrome”, e do fetiche pela vitimização cada vez mais recorrente numa sociedade da fama artificial e efémera das redes sociais. A personagem da sátira norueguesa começa a tomar uma droga russa chamada Lidexol que tem como efeito secundário uma doença de pele grave. Este masoquismo da personagem, que é, por sua vez, também uma forma de narcisismo, é o que na cabeça dela lhe vai trazer a fama e a atenção que esta sempre quis.

O vazio e a solidão parecem contribuir para este narcisismo e para esta autocentralidade de personagens solitárias que se querem de alguma forma fazer evidenciar. Signe não é a figura solitária por excelência, dado que várias vezes a vemos em festas e ambientes sociais. Contudo, as pessoas que a rodeiam revelam-se ocas e fúteis e acabam por apenas colorir um vazio que, na verdade, permanece. No caso de Julia (Watcher) o isolamento é evidente, mas este não provoca esta autocentralização, mas sim uma espécie de interiorização existencialista, distanciando-se assim de Signe. Desta forma, Julia, acaba por passar os dias muito dentro de si mesma, à falta de companhia, o que a leva a pensar que talvez esteja a ver coisas onde elas não parecem existir. Julia e Signe são quase o oposto uma da outra: a primeira anula-se viajando para um país desconhecido em prol da carreira do marido, e quando o perigo se mostra real esta tem dificuldade em validar aquilo que está à sua frente; a segunda traz o perigo para si, vitimizando-se aos olhos de todos à sua volta. No entanto, é possível encontrar-se um fio condutor nestas duas personagens: a ideia de autovitimização, seja ela real, ou imaginada. Por sua vez, Eric em The Adults, escolhe o isolamento, ficando num hotel em vez de na sua casa de família, na qual mora a sua irmã mais velha, Rachel. Eric vai, ainda, prolongando a sua estadia, que inicialmente seria curta, de modo a conseguir participar em jogos de póquer (com velhos conhecidos, com os quais não parece ter qualquer tipo de relação de intimidade) que vão ficando cada vez mais competitivos, e ao mesmo tempo convencendo as irmãs que este alongamento da estadia se deve a elas. O ego de Eric sobressai nesta intensa competitividade e importância que parece dar ao póquer, contrariamente à sua passividade sobre tudo o resto, numa espécie de exercício de escape. Desta forma aproxima-se de Signe: ambos mentem para manter aparências e parecem viver uma vida falsa e vazia, que no caso de Eric se prende numa incapacidade em comunicar com as suas irmãs.

Eric é um mistério para as suas irmãs, para ele mesmo e até mesmo para o espectador, que parece ter dificuldade em lê-lo. Os momentos em que os três irmãos estão juntos tentam de alguma forma trazer ao de cima este lado mais sentimental de Eric, com jogos teatrais enferrujados recuperados de infância distante. Porém, esta nostalgia da infância acaba por dar a entender a distância que, atualmente, afasta os irmãos. Há neles uma quase negação da vida adulta (na qual os seus pais já não estão lá para os amparar) e isto faz com que as personagens neste coming-of-age de Defa sejam profundamente existencialistas. Eric foge ao confronto emocional, Rachel está deprimida e Maggie (a mais nova dos três) deixou a faculdade e não sabe bem o que fazer com a sua vida. Os três, como acontece também com Signe e Julia nos outros dois filmes, parecem passar muito tempo perdidos nos seus próprios pensamentos e falham quando é preciso enfrentar o outro e o desconhecido, num gesto também ele autocentrado.

Sick of Myself, de Kristoffer Borgli – © Film i Väst, Garage Film International, Oslo Pictures

Em Sick of Myself, a montagem revela-se muito importante, pois as cenas do dia-a-dia são intercaladas pelas fantasias vividas na cabeça de Signe, que, por vezes, passam despercebidas e colocam o espectador a questionar-se sobre a sua veracidade. Este conjunto de cenários comprovam a autocentralidade da personagem, que vive tanto na sua cabeça que parece até ficar sem vida fora desta. O prazer de Signe está na fantasia, no desejo de ser alguém que nunca consegue alcançar, sendo o clímax desta loucura narcisista a cena de sexo que é intercalada por flashes do seu suposto funeral. Um funeral é simbolicamente o lugar onde nada é mais importante do que aquele que está morto. A idealização deste momento é em si um dos pontos máximos do narcisismo de Signe.

Em suma, nestes três filmes podemos ver ao microscópio as dinâmicas de uma (ou várias) relação humana. No caso de Sick of Myself, a futilidade de uma personagem leva-a à sua destruição, não percebendo que o problema é procurar a atenção nas pessoas erradas. A relação entre Signe e Thomas (o namorado artista) é prova disto, dado que nenhum deles parece querer realmente saber um do outro, e ambos estão constantemente em disputa. É a fragilidade que caracteriza esta relação. 

Em Watcher, a distância que Julia sente de Bucareste acaba por a distanciar de um marido que nem sequer parece acreditar quando esta lhe conta que acredita estar em perigo. O enredo do filme coloca à prova esta relação que, apesar de inicialmente ser a mais forte de todas (comparativamente com os outros dois filmes analisados), vai dando de si e revelando os seus pontos menos fortes. 

Em The Adults começamos por ver uma relação, que em tempos acreditamos ter sido forte, e que, no ponto inicial do filme, se mostra enferrujada, talvez num reflexo realista das relações entre irmãos e na forma como estas vão mudando à medida que o tempo passa. 

Watcher, de Chloe Okuno – © Animal Casting Time, Imagenation Abu Dhabi FZ, Lost City

A verdade é que manter uma relação com outra pessoa é cada vez mais difícil numa sociedade que se revela fútil e hipócrita. Notemos a cena da campanha inclusiva, em Sick of Myself. A estratégia de marketing da campanha seria mostrar ao público corpos com defeitos e fazer com que estes fossem aceites pela sua diferença. No entanto, quando a mesma campanha se apercebe da deterioração do estado de Signe, a inclusividade parece perder-se e a máscara parece cair. As relações inter-humanas desafiam a fragilidade, e exigem que o Eu saia de si mesmo para se colocar no lugar do outro. Thomas, Signe (Sick of Myself) e Francis (Watcher) falham. Contudo, Eric, Rachel e Maggie (The Adults) dão-nos esperança que tal seja possível mesmo que de forma morosa e estranha. O final do filme de Dustin Guy Defa acaba por aquecer uma sala de cinema que se vê sorridente nesta sessão de encerramento do Indielisboa.

Inês Moreira

The Whale: O Olhar Sobre Uma Sociedade Carente de Empatia

The Whale, do cineasta Darren Aronofsky, chegou aos cinemas portugueses e trouxe consigo um tópico urgente: o facto de vivermos num mundo carente de empatia. Na cerimónia dos Óscares arrecadou duas merecidas estatuetas, celebrando-se assim o regresso do ator Brendan Fraser, estrela “esquecida” pelo público.

Assim que o filme abre, somos introduzidos à sua personagem principal: Charlie, um professor de um curso online. Apesar de, inicialmente, apenas ouvirmos a sua voz (Charlie esconde-se atrás de uma câmara que mantém desligada), a intensidade dessa mesma voz prepara-nos para um filme que nos irá levar numa viagem emocional desconfortável. Passados uns minutos vemos aquilo que esperávamos ver desde o início: o enorme corpo de Charlie (antecipado já pelo cartaz e trailer do filme). Aquela figura “monstruosa” (o fato de gordura que lhe valeu o Óscar de melhor caracterização) existe não só para “assombrar” e deixar desconfortável o espectador, mas também para trazer para cima da mesa o tema da obesidade mórbida que, à primeira vista, parece ser o tema principal da nova longa-metragem do realizador de clássicos como Requiem for a Dream e Black Swan

É difícil para o espectador distanciar-se deste corpo e desta obesidade, tendo em conta a forma próxima como a câmara de Matthew Libatique (diretor de fotografia) enquadra a personagem principal – quase sempre em grande plano – e a forma como a montagem sonora dá destaque a certos ruídos que o ator faz enquanto come. Uma das principais críticas feitas ao filme é a de que aquele corpo grotesco apenas serve o propósito de espantar, ou até “entusiasmar” o espectador, de uma forma que pode ser interpretada como populista. Na sala de cinema, vemos que, enquanto Charlie “engole” asas de frango gordurosas, o espectador, que se delicia com um balde de pipocas cobertas de caramelo, ri, sendo pouco claro se se trata de um riso cómico ou nervoso. Considerações à parte, torna-se óbvio que Darren Aronofsky nos queria chocar com estas imagens, ao mesmo tempo que nos remete para a noção extremamente realista das mesmas.

The Whale, de Darren Aronofsky– © A24, Protozoa Pictures 

Desta forma, pode inferir-se que o lado performático do corpo acaba por marcar um filme que é, por sua vez, uma adaptação da peça de teatro de Samuel D. Hunter e que, por isso, se vê, primeiramente, apoiado nos seus diálogos. O espetáculo do corpo – um espetáculo visual, que alguns parecem ver como fetichista – caminha de mãos dadas com a palavra, neste que é um filme que não faz por esconder o seu lado teatral. Esta realidade faz com que The Whale acabe por perder, dado respirar tanto a texto dramático. Ainda assim, esta afinidade com o teatro faz-nos pensar que talvez o diálogo expositivo e o cenário único – um apartamento desleixado mas, em suma, um pouco genérico – sejam as únicas duas formas capazes de dar resposta à história de vida de Charlie: uma vida que se passa num mesmo lugar e onde nada acontece e onde só nos resta falar sobre aquilo que já aconteceu.

Porém, The Whale é sobre questões muito mais gerais do que apenas a vida e a obesidade desta personagem. É um filme com várias camadas, que nos fala de orientação sexual, religião, literatura, relações familiares, parentalidade e sentimentos empáticos que nutrimos sobre “o outro” à nossa volta. Na última semana de vida de Charlie, este tenta uma reaproximação com a sua filha adolescente, interpretada pela atriz Sadie Sink, num papel que se mantém muito colado àquilo que faz na série pela qual ficou conhecida: Stranger Things. Ao longo do filme, para além desta interação com a sua filha, Charlie interage com os seus alunos através de uma câmara desligada; com um estafeta de pizzas através de uma porta que mantém fechada; com um pássaro que vem comer à sua janela; com a sua ex-mulher alcoólica; com um jovem que pertence à Igreja New Life e que tenta salvá-lo espiritualmente; e com a sua grande amiga e irmã do seu companheiro morto, Liz. Interpretada por Hong Chau, Liz é a grande companhia de Charlie e é também através dela que vivemos algumas das emoções mais fortes deste filme. 

The Whale, de Darren Aronofsky– © A24, Protozoa Pictures 

É no olhar de Brendan Fraser que vemos espelhada a necessidade de uma sociedade mais empática. Charlie é um homem que, independentemente da forma como a sua vida tenha corrido, continua a olhar para o mundo à sua volta com um olhar quase inocente, de alguém que vê beleza naquilo que está a presenciar. Há uma felicidade e empatia inerentes a esta personagem que dá ao filme uma pequena mensagem de esperança e que nos faz pensar se terá Darren Aronofsky amolecido ao longo dos tempos. No final de contas, estas personagens todas querem salvar e ser salvas, e é nas ligações entre elas que está a grande magia deste filme. Aronofsky eleva o filme na sua cena final, através de um contraste direto com a câmara desligada no início do mesmo. Finalmente, vemos um Charlie que deixou de se esconder atrás da câmara e atrás de objetos como o andarilho, que o parecia ajudar a movimentar-se pela casa, um Charlie que caminha para a sua filha e que por isso parece ser “absolvido”, numa espécie de libertação religiosa. O branco substitui o preto. A empatia substitui a falta dela.

Inês Moreira

[Foto em destaque: The Whale, de Darren Aronofsky– © A24, Protozoa Pictures ]

Babylon: o sonho demasiado alto de Chazelle

Babylon, do realizador de La La Land e Whiplash, abre com uma cena excêntrica na qual um elefante enorme defeca para o ecrã, parecendo estar a defecar no próprio espectador. Esta cena resume bem a essência do filme, que parece concentrar-se mais nos fluídos corporais, nos golden showers, nas quantidades extraordinárias de droga e no sexo explícito, do que em recriar a história do cinema. A cena seguinte, apesar de igualmente excêntrica, teria sido uma forma muito mais elegante de iniciar o filme: uma festa extravagante na casa de um dos magnatas do cinema mudo, onde as personagens principais parecem todas cruzar-se e a narrativa finalmente desencadear. 

Babylon, de Damien Chazelle – © Paramount Pictures, Marc Platt Productions, Organism Pictures e Wild Chickens Productions

O filme conta a história da Hollywood louca e caótica dos anos 20, era do cinema mudo, e da transição para o cinema sonoro dos códigos e das regras morais. Este fascínio com Hollywood e com o som são temas frequentes na filmografia de Damien Chazelle, o jovem realizador americano que tem provado ser uma das grandes apostas do cinema contemporâneo. Aqui, Chazelle parece ter sonhado um pouco alto demais. Num filme que chega quase aos 190 minutos (e como este tempo passa lentamente aos olhos do espectador). Existem demasiadas cenas e preocupações que deveriam ter sido abdicadas na montagem, que acaba por parecer estranha e oscilar em termos de ritmo. O desejo de Chazelle de constantemente querer atingir a perfeição, desta vez, parece tê-lo traído.

No centro do filme estão as personagens de Diego Calva (Manny Torres), um mexicano que diz fazer tudo o que for preciso para estar em contacto com um set de filmagens e que poderá relembrar o produtor executivo Eddie Mannix; Margot Robbie (Nellie LaRoy), uma aspirante atriz com inspirações em Clara Bow; e Brad Pitt (Jack Conrad), um famoso ator do cinema mudo, que é inspirado numa das suas grandes estrelas: John Gilbert. Para além destes, mas com papéis ligeiramente mais secundários, temos Jovan Adepo (Sidney Palmer), um músico de jazz que faz sucesso na transição para o cinema sonoro, que poderá ser inspirado em Curtis Mosby; e Li Jun Li (Lady Fay Zhu), uma cantora/atriz falhada que ganha a vida a legendar filmes mudos, e que parece beber da história da primeira atriz chinesa a aparecer em Hollywood: Anna May Wong. O filme tem ainda espaço (ou força este espaço) para um quase fantasmagórico Tobey Maguire (James Mckay); um Spike Jonze no papel do realizador Otto Von Strauss, uma referência a Erich Von Stroheim; Jean Smart, como a crítica Elinor St.John; e ainda, uma das poucas personagens que não é ficcionalizada: Max Minghella como uma das figuras mais influentes do cinema, Irving Thalberg. O filme dispersa quando deambula pelas histórias de todos estes personagens que ocupam demasiado tempo do ecrã e que, ao mesmo tempo, não parecem ter tempo suficiente para uma construção sólida. É muito tempo com muito a acontecer e pouco tempo para explorar cada coisa, o que resulta num conjunto de muito boas cenas que acabam por não funcionar como um todo. Destaque para a cena da cobra, na qual Lady Fay Zhu mostra ser a heroína, e para a cena na qual Nellie LaRoy está, pela primeira vez, num set de filmagens com gravação de som: uma cena demorada, mas que parece levar o tempo que é preciso para espectador se sentir dentro dela, ou seja, por vezes o tempo do filme é exatamente o tempo certo, mas ainda assim algo parece não funcionar.

Babylon, de Damien Chazelle – © Paramount Pictures, Marc Platt Productions, Organism Pictures e Wild Chickens Productions

Apesar das suas grandes interpretações (Chazelle junta um elenco de luxo) e de estas cenas exímias que constituem o filme, este não funciona e não se torna numa grande obra prima, como seria de esperar do realizador norte-americano. Apesar destes problemas e de uma montagem pouco meticulosa, Chazelle não deixa de nos trazer uma a banda sonora, uma fotografia, cenários e figurinos que funcionam de forma bastante equilibrada neste seu Babylon, nem tudo é criticável.

O tema do Código de Produção do Cinema, conjunto de normas morais aplicadas aos filmes lançados nos Estados Unidos entre 1930 e 1968 pelos grandes estúdios cinematográficos, é um dos pontos fulcrais desta história que pretende trazer de volta a nostalgia sobre uma Hollywood da Golden Era. Aquelas festas excêntricas, os bacanais fabulosos, e o consumo excessivo de drogas já não cumpriam com as leis deste novo cinema: o cinema sonoro. Contudo, quase no final do filme percebemos a hipocrisia desta nova era, que era tão corrompida quanto a anterior, e que apenas sabia melhor encobrir-se. É uma era de aparências que substitui a era muda das extravagâncias.

Babylon, de Damien Chazelle – © Paramount Pictures, Marc Platt Productions, Organism Pictures e Wild Chickens Productions

Apesar de todas as críticas que tem sofrido, Babylon é bem-sucedido na forma como se apresenta enquanto carta de amor ao cinema, e o culminar desse amor está na cena final (que evoca filmes como Cinema Paradiso ou 2001: A Space Odissey): uma montagem de vários filmes da história do cinema que passa no ecrã diante de Manny Torres. Chazelle é um cinéfilo e isso é nítido nos seus filmes anteriores, mas ainda mais neste. A impressão é que Babylon nos faz sentir bem por termos comprado um bilhete e por estarmos sentados na sala de cinema, dado que consegue trazer de volta a nostalgia do cinema e prova que há filmes que devem ser vistos numa sala que faça jus à sua grandiosidade.

Inês Moreira

[Foto em destaque: Babylon, de Damien Chazelle – © Paramount Pictures, Marc Platt Productions, Organism Pictures e Wild Chickens Productions]

Broker e o espaço breve que separa o certo do errado

Depois do brilhante Shoplifters (2018), é difícil para Hirokazu Kore-eda superar-se ou trazer-nos algo que se assemelhe, em termos de excelência, ao vencedor da Palma de Ouro. Broker não é, nem tenta ser, melhor ou tão genial como Shoplifters, todavia não haveria razão para ter passado tão despercebido, já que encaixa que nem uma luva na aclamada filmografia do realizador japonês e continua a emocionar todos aqueles que o assistem. Na verdade, é nisto que Kore-eda se revela exímio: em exponenciar o lado empático do espectador através de uma bem trabalhada direção de atores que permite uma viagem ao interior de cada personagem individualmente.

O realizador deixa o Japão de lado neste filme para dar lugar ao fenómeno sul coreano das “baby boxes”, que consiste numa recente elevada criação de caixas em igrejas para que mães e pais solteiros ou em dificuldade possam deixar os seus recém-nascidos, numa forma quase de pedido de ajuda. Estes bebés não são dados para adoção, a finalidade é eventualmente os seus pais conseguirem, assim que organizarem as suas vidas, voltar. O filme abre dessa forma: vemos uma mãe a deixar o seu bebé numa dessas “caixas”. Na verdade, vemo-la a deixá-lo fora da caixa, atitude que nos parece um pouco imprudente e descuidada a princípio, mas que poderá ser desde logo um sinal de que algo nesta decisão não será definitivo. E o filme acaba por dar imensas voltas, talvez até voltas a mais. Uma das razões porque poderá ser alvo de críticas é por se perder às vezes a tentar ligar todas as mil e uma pontas da sua história, na vida real nem sempre existe esta excessiva ligação entre tudo. 

Uma imagem com texto, árvore, exterior, autocarro

Descrição gerada automaticamente
Broker, de Hirokazu Kore-eda – © Zip Cinema

Ainda assim, o elenco é de luxo, com o prestigiado ator do sucesso Parasite, Song Kang-ho, a assumir a liderança. A sua personagem é o dono de uma lavandaria e faz voluntariado na mesma igreja em que Moon So-Young (interpretada pela atriz Ji-eun Lee) deixa o seu bebé no início do filme. Juntamente com Dong-soo (Dong-won Gang), Sang-hyeon elabora um esquema de tráfico de crianças. Esporadicamente, os dois escolhem uma criança e levam-na para a lavandaria para depois a poderem vender no mercado de adoção. Dong-soo, também ele em criança abandonado pelos pais, encarrega-se de analisar a veracidade e honestidade dos pais com quem escolhem fazer negócio. A estes três atores principais, juntam-se Bae Doona e Lee Joo-young, duas detetives que querem apanhar estes dois traficantes em flagrante. Contudo, o negócio dos mesmos não enfrenta apenas esse entrave, mas muda quando So-Young volta para buscar o seu filho e acaba por se juntar a eles na jornada da procura de pais para o seu bebé. Numa carrinha, os quatro e, mais tarde, também Hae-jin, uma criança do orfanato de Dong-soo que apenas quer ser incluída uma família, embarcam nesta viagem, transformando este drama num road movie familiar, ao estilo de Little Miss Sunshine.

Na realidade, esta é outra das críticas feitas ao filme: a de tratar estes temas problemáticos com uma certa leveza e comicidade. Todavia, é interessante pensar que talvez Kore-eda esteja apenas a testar os limites do seu espectador e daquilo que este possa considerar certo ou errado. O mesmo método se aplica ao tema da família, que este tem vindo a desconstruir em todos os seus filmes. Será fácil para nós, após passarmos uma hora e meia a acompanhar estas personagens, empatizarmos com elas mesmo que estas tenham tomado as decisões mais erradas? E, afinal, o que podemos classificar como família? Apenas aqueles que nos são ligados através do sangue ou, ainda mais, aqueles que nos acompanham na jornada que é a vida? Torna-se difícil para o espectador distinguir o certo do errado, o bem do mal, e desconsiderar tudo aquilo que aprende sobre cada uma destas personagens ao longo do filme. Se alguns vêem este questionamento que o realizador levanta como crítica, tal também pode ser interpretado como um dos pontos mais fortes do filme: esta interação com o espectador que este questionamento acaba por permitir.

Broker, de Hirokazu Kore-eda – © Zip Cinema

Kore-eda vai continuar a ser um dos melhores realizadores japoneses vivos, e vai continuar a contar-nos histórias de forma brilhante, quer a nível do argumento quer a nível da interpretação dos seus atores. A temática da família, que parece unir toda a sua obra, é arriscada pela forma como a apresenta. O seu cinema é um cinema daqueles que estão à margem, da sociedade, do certo e do errado e que parecem unir-se através do sofrimento e de mágoas passadas. O realizador leva ao extremo estas personagens, muitas vezes crianças, colocando-as em situações em não veem outra saída que não a errada. Os erros não impedem o espectador de se relacionar com elas, este que também é levado ao extremo, e é, até mesmo, o que lhes permite relacionarem-se com as outras personagens dentro do filme. Em suma, Broker é um filme, que mesmo não resultando na perfeição, é digno de ser visto no grande ecrã.

Inês Moreira

[Foto em destaque: Broker, de Hirokazu Kore-eda – © Zip Cinema]

3ª Edição da Mostra de Cinema Emergente REBENTOS

🌱 INSCRIÇÕES ABERTAS 🌱

A mostra de cinema emergente REBENTOS nasceu em 2021 no seio da Clarabóia, uma associação que surge da iniciativa conjunta de outras duas associações: a A3 Apertum Ars e a Dínamo, e cujo objetivo é dinamizar a cultura emergente no Concelho de Sintra.

Este ano, a mostra realiza-se entre os dias 14 de abril e 4 de novembro, em vários locais da linha de Sintra.

A mostra irá incluir um total de cinco sessões, todas abertas e gratuitas ao público, sem fins lucrativos. Em cada sessão serão projetadas entre 5 a 6 curtas de realizadores portugueses e/ou internacionais. Em todas as sessões serão convidados a estarem presentes os realizadores das obras e outros convidados especiais. A projeção dos filmes será seguida, sempre, de uma conversa. Prevêem-se um total de 20 convidados, dos quais 15 serão realizadores.

O prazo para submissão dos filmes termina a 12 de fevereiro de 2023, e as submissões são feitas através da plataforma FilmFreeway, sendo gratuitas para quem tem nacionalidade portuguesa e no valor de 4 euros para produção internacional. As únicas regras para as curtas-metragens são: serem de produção totalmente original e terem sido feitas por jovens entre os 16 e os 30 anos de idade.

Consulte o regulamento do festival aqui.

Para mais informações, contactar:

movimentoclaraboia@gmail.com

(+351) 910 412 656

Rebentos: Mostra Internacional de Cinema Emergente – Sessão 7

TUDO QUE FICA NA SUPERFÍCIE MORRE (2022)

um filme de Carina Pierro Corso

TUDO QUE FICA NA SUPERFÍCIE MORRE (2022), de Carina Pierro Corso

Aprender a nadar e afogar-se. Ficar à tona, neste caso, significa justamente não morrer (ou, pelo menos, não correr tanto esse risco). A superfície como plano sobre o qual caminham os vivos e sob o qual se guardam os mortos. Daí a paradoxalidade do título deste pequeno filme de animação de Carina Pierro Corso, que se debruça sobre a dualidade das coisas, explorando a correlação que existe entre opostos – enfim, um filme que nos fala de como uma coisa pressupõe e precisa do seu contrário (e vice-versa): a vida pressupõe a morte, o dentro pressupõe o fora, a ordem pressupõe o caos, etc.

Neste filme, esta dualidade recai sobre os gestos mais banais da vida quotidiana, desde o lavar a louça ao fazer a cama, mas também sobre desafios e experiências das vidas de cada um, como aprender a nadar ou a sensação de dor. Talvez seja esta a chave para compreender a aparente paradoxalidade do título. É na repetição de determinados gestos – como coçar uma ferida, uma crosta –, mas também no que há de repetitivo neste “ciclo de vida e morte” inerente a tudo o que existe, que a superfície se torna o campo no qual tudo se dissolve, no qual tudo acaba, inevitavelmente, por morrer.

João Ayton

NINO (2021)

um filme de Alice Voisin

NINO (2021), de Alice Voisin

Nino é um filme que parece colocar a vida a falar sobre ela mesma, assim como fazem Richard Linklater ou Mia Hansen-Løve nos seus romances, sem grandes dispositivos ou distrações. Ainda assim, faz parte de um tipo de cinema que não deixa de prender e surpreender o espectador.

Três amigas (Andréa, Camille e Inès) alugam um apartamento em Marselha. O dono, Nino, não está presente, no entanto é ele que preenche as conversas e as fantasias destas mulheres, que de certa forma se sentem próximas dele através dos seus objetos espalhados pela casa. É ainda ele que dá nome ao filme. Andrèa é a personagem que estabelece maior contacto com esta personagem Nino, que acaba por não ser nada mais do que um conceito. A solidão de Andrèa, que carrega livros para todo lado como se estes fossem os seus melhores amigos, é colmatada perpetuando esta fantasia de estar próxima de alguém, ainda que esse alguém nunca chegue realmente a ter vida.

Há em Nino uma reflexão sobre o eu e sobre o saber estar com esse eu. As constantes trocas de ideias que as amigas têm sobre a vida são também sinónimo disso: de uma necessidade de autoconhecimento e de definição. O poema final é dirigido a Nino mas é também dirigido a elas, numa tentativa de se aproximarem delas mesmas e de tornarem as fantasias, dos livros que lêem, dos filmes que vêem e das músicas que ouvem, na sua própria realidade.

Inês Moreira

A NARRATION OF A FUNERAL (2022)

um filme de Amir Sedghinir

A NARRATION OF A FUNERAL (2022), de Amir Sedghinir

A história de um funeral não contém, aparentemente, nada de novo. No entanto, narrar um enterro implica dois gestos inversos: por um lado, trata-se de mostrar algo que já não existe, de dar presença a uma ausência (o morto); por outro, e inversamente, trata-se de dar presença àquilo que existe (ou fica) sob a forma de ausência (a dor, por exemplo). Mas eis que este ritual, tão antigo quanto a própria humanidade, é abalado por um recente acontecimento histórico que interrompe e bloqueia o seu funcionamento normal: a pandemia de Covid-19.

Por mais diversos que sejam os rituais em honra dos mortos, o funeral funciona como ritual de passagem. Aí somos confrontados com a nossa própria finitude, central à condição humana. Ora, Narration of a Funeral, de Amir Sedghinir, não se limita apenas a contar a história de alguém que morreu e da tristeza que recai sobre os seus familiares, mas antes retrata os seus infelizes contornos. O morto não é mais alguém a quem nos dirigimos para dele nos despedirmos, mas um corpo que nos é vedado, ao qual não temos acesso devido às restrições da pandemia. No meio de máscaras e fatos médicos que não deixam de lembrar aqueles usados durante a Peste Negra, o morto torna-se inalcançável, um corpo reduzido à sua condição de defunto e, por isso, equivalente a qualquer outro.

João Ayton

SARIKAT (2021)

um filme de Ezra Cecio

SARIKAT (2021), de Ezra Cecio

Sarikat, de Ezra Cecio, não é apenas um documentário sobre um velho casal. É, acima de tudo, um filme sobre esses pequenos gestos, as conversas, os hábitos e costumes que preenchem a vida de cada um. Tal como no século XIX se dá uma grande viragem na representação artística, abandonando os grandes acontecimentos e personagens, que favorece não apenas a vida das classes mais baixas, mas principalmente aquilo de que ela é feita, poder-se-ia dizer que Ezra Cecio segue, hoje, nessa mesma direcção. Não se trata, contudo, de uma simples inversão representativa, mas antes de uma transformação formal.

À parte as consequências políticas do movimento realista de outrora, o interessante aqui reside nessa mudança de olhar, no foco da vida quotidiana e no que ela tem de mais ordinário. Ao invés de enaltecer a vida do casal, Sarikat mostra-nos não só o que ela tem de mais simples, mas também o que nela há de aborrecido: os dias monótonos de um casal e a alegria que ele aí encontra, ora relembrando o dia em que se conheceram ou o dia de casamento, ora tomando refeições em conjunto ou falando do que é o amor.

João Ayton

ANDRÔMEDA (2022)

um filme de Lucas Gesser

ANDRÔMEDA (2022), de Lucas Gesser

Andrômeda de Lucas Gesser é um filme que abraça a tristeza daqueles que perderam alguém. A palavra Andrômeda ocupa dois lugares importantes no filme, acabando por se fundir num só: é o nome de uma mesa de jogos na qual Júlia e Mariana costumavam jogar e é ainda o nome da galáxia mais próxima da Via Láctea. Andrômeda é o fantasma de Mariana e é ao mesmo tempo aquilo que permite preservar as memórias que Júlia tem dela. 

A solidão e a tristeza de Júlia levam-nos de regresso ao passado, atravessando a cidade ao som de uma música que relembra a ficção científica e os videojogos, à procura destas memórias de Mariana que apenas conhecemos através do nome. A noite domina o presente e o dia domina o passado, como mecanismo utilizado para separar os dois, noite que é mais uma vez ligada a uma tristeza que está inerente no presente e dia ligado a uma felicidade e claridade que pertence ao passado.

Todavia, no final do filme, com a ajuda da amiga de Júlia, percebemos que esta Andômeda/galáxia tem ainda um outro significado. O seu brilho, o que restou dela depois dela morrer, é uma metáfora para a forma como Júlia deve encarar as suas memórias, não de uma forma triste mas como um brilho que lhe resta e que ela pode conservar para o resto da vida. Os fantasmas do passado tomam a forma de estrelas.

Inês Moreira

Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.

Rebentos: Mostra Internacional de Cinema Emergente – Sessão 6

SENTIDO Y RAZÓN (2021)

um filme de Martín Pizarro Veglia

Poster de Sentido y Rázon, de Martín Pizarro Veglia © Direitos Reservados

Toda a gente conhece aquela célebre frase (mal) atribuída a Emma Goldman, figura central do movimento anarquista americano: “Se eu não puder dançar, esta não é a minha revolução”. Não que alguém o tenha dito por ela – ela simplesmente disse outra coisa. O que ela de facto disse foi que a felicidade teria de ocupar um lugar central no movimento, que a alegria não é apenas consequência da revolução, mas sua parte integrante.

Martín Pizarro Veglia parece aqui dar “sentido e razão” não apenas à posição de Emma Goldman através dos dois dançarinos que ocupam as ruas durante os protestos de 2019, no Chile, mas também à própria prática dos dançarinos. Não se trata, portanto, de dançar por dançar, mas de se apropriar do espaço público, dando-lhe um novo uso que tente escapar à dicotomia público-privado, central à construção do Estado moderno. O mesmo poderá ser dito do fotógrafo que documenta os protestos, as cargas policiais, os feridos, as barricadas. Mais do que uma ode à arte ou à sua dimensão política (“se esta não for política, não passa de decoração”, diz o fotógrafo), Sentido e Razão mostra como as capacidades e saberes de cada um podem ganhar um novo uso nestes momentos que suspendem a temporalidade de um mundo que já há muito perdeu qualquer sentido e razão.

João Ayton

KING MAX (2021)

um filme de Adèle Vincenti-Crasson

Poster de King Max, de Adèle Vincenti-Crasson © Direitos Reservados

King Max é um coming-of-age com temas que são cada vez mais comuns no cinema: o universo queer e as consequências e aventuras pessoais que este universo acarreta.

O espelho, representado no primeiro plano do filme, é um elemento chave na construção da curta-metragem: é ele a representação do desejo de mudança, que se revela crucial para a personagem principal. O corpo e o olhar o corpo, através do espelho, mostram esta vontade que se revela quase como uma necessidade de mudança. Mais tarde, percebemos que este desejo se transforma numa outra coisa. 

Dentro de casa, a personagem principal sente-se refém, aprisionada e infiel a si mesma. A corrida que precede a cena familiar mostra isso mesmo, uma vontade de libertação, que talvez seja possível na festa à qual acaba por ir parar. Nessa festa, a personagem recebe uma makeover e, mais uma vez, com a ajuda do espelho e da performance de uma Drag King, esta compreende que a vontade de mudança, antes tão indispensável, se transforma mais numa necessidade de aceitação, dela sobre si própria. É naquela festa, que a nossa personagem compreende que não é preciso forçar a mudança mas simplesmente pode ser aquilo que quiser ser, quando quiser ser. Ouvimos “we don’t have any gender” e sentimos esta libertação acontecer. A personagem, que antes tínhamos visto fragilizada no espelho, torna-se naquilo que dá título ao filme: King Max.

Inês Moreira

BEYOND (2021)

um filme de Julius Lagoutte

Poster de Beyond, de Julius Lagoutte © Direitos Reservados

Cidade. Gruas. Uma mulher. Somos apresentados a esta personagem feminina, que sabemos ter acabado de perder o seu irmão num acidente de trabalho, e que nos vai guiar ao longo do filme. Beyond compõe-se quer de planos em que vemos esta personagem, quer de planos em que vemos e ouvimos o que ela vê e ouve. É um filme desprovido de diálogo, cor e de personagens, onde tudo se passa interiormente nesta personagem única que o acompanha do início ao fim. Este dispositivo parece bastar para nos transmitir a mensagem pretendida: uma viagem de aceitação a uma nova fase da vida, agora sem o seu irmão.

Uma reflexão curta sobre a solidão, a perda e aquilo que fica para lá disso. Os espaços, antes habitados pelo irmão, são agora aquilo que restou dele e são abraçados dessa forma pela nossa personagem principal. As expressões faciais desta são o que constrói a narrativa, num filme que fala através das emoções e dos silêncios. E, apesar de à primeira vista parecer de difícil empatia, o espectador acaba por se ver envolvido no filme através desta personagem feminina que o encara de frente numa quebra da quarta parede. 

Inês Moreira

O QUE QUEDA DE NÓS (2021)

um filme de Miguel Goméz Abad

“Em tempos de auge, a conjectura de que a existência do Homem é uma quantidade constante e invariável pode entristecer ou irritar; em tempos que declinam (como este), é a promessa de que nenhum opróbrio, nenhuma calamidade nem nenhum ditador poderá empobrecer-nos” 

Jorge Luis Borges, El Tiempo Circular
Poster de O Que Queda de Nós, de Miguel Goméz Abad © Direitos Reservados

Ao contrário do imaginário e das mais típicas representações do que seria o fim do mundo – as guerras nucleares, as catástrofes “naturais”, etc. –, Miguel Goméz Abad apresenta-nos em O que Queda de Nós um fim dos tempos bucólico, envolto por montanhas, ao som da chuva, na companhia de duas mulheres. Os seus contornos são-nos vedados, o “inimigo” não tem rosto. Mas é na aparente oposição entre a calmaria de uma vida nas montanhas e o seu entorno incógnito que jaz a virtude do filme: o apocalipse não contará com os seus cavaleiros, não será um acontecimento catártico, mas antes lento, moroso, banal e normal – porque normalizado. O fim do mundo é o que já aqui está, e o desmoronar de toda e qualquer experiência, a pobreza de toda e qualquer relação com pessoas, coisas e lugares, que cada vez mais se apresenta como inevitabilidade histórica e como único caminho possível, é apenas um dos seus sintomas. A catástrofe da nossa liquidação reside precisamente aí, em liquidarmo-nos uns aos outros no mais profundo desespero pela sobrevivência.

O que resta de nós, então? O filme não o pergunta, afirma-o. Mas será isso o que nos resta?

João Ayton

Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.

Tout Le Monde Aime Jeanne: o olhar francês sobre Lisboa

Na passada quarta-feira, voltamos a receber, em Lisboa, a nova edição da Festa do Cinema Francês. Nesta abertura da Festa pudemos contar com o filme Tout Le Monde Aime Jeanne, que teve a sua estreia internacional no Festival de Cannes.  Esta, que é a última longa-metragem da jovem realizadora Céline Devaux, é uma comédia sobre uma mulher nos seus 40 anos – Jeanne (Blanche Gardin) – em confronto com os seus próprios demónios, representados sob a forma de ilustrações da própria realizadora, ao mesmo tempo que se depara com a urgência de arranjar uma solução para a sua própria falência. 

O filme, rodado maioritariamente em Lisboa, é uma coprodução da portuguesa O Som e a Fúria e conta com o ator Nuno Lopes num dos papéis principais, ele que é talvez aquele que mais gargalhadas rouba ao público do Cinema São Jorge.

Tout Le Monde Aime Jeanne, de Céline Devaux – © Les Films du Worso, O Som e a Fúria, France 3 Cinéma, Scope Pictures

Tout Le Monde Aime Jeanne tem o seu toque de humor negro, as piadas são feitas em volta de assuntos como a morte, a falta de dinheiro e o estado do mercado imobiliário/arrendatário em Portugal, país com um papel central nesta comédia que podemos ver como um olhar francês sobre a capital portuguesa. Céline Devaux parece ir além das suas personagens e querer, de alguma forma, transformar Lisboa numa delas. Neste sentido, a cidade é acompanhada pelo peso do suicídio da mãe de Jeanne, presente em cada plano da casa deixada por esta e da Ponte 25 de Abril, e pela angústia daqueles que querem continuar a viver nas casas onde viveram toda a sua vida, mostrando um lado muito triste da evolução da capital.

Tout Le Monde Aime Jeanne, de Céline Devaux – © Les Films du Worso, O Som e a Fúria, France 3 Cinéma, Scope Pictures

O peso do filme é aliviado pelas animações que intercalam os planos dos atores. As inseguranças, dúvidas e devaneios da personagem principal transformam-se em engraçados pequenos demónios que habitam tanto a sua cabeça como o próprio ecrã do filme. Eles dançam, cantam, riem, são amargos, por vezes doces, e ajudam a ritmar um filme que, sem eles, não traz grande novidade ao cinema francês. Os realizadores/argumentistas franceses são muito perspicazes a fazer este tipo de comédias e, mesmo que nem sempre geniais, estas não falham muito a nível técnico ou na sua capacidade de entreter a audiência. O destaque neste caso, possivelmente, vai para a fotografia e a mise-en-scène do filme que relembra até a do cinema do espanhol Almodóvar.

Das peripécias com os seus dois pares românticos, o excêntrico Jean (Laurent Lafitte) e o professor de coro Vítor (Nuno Lopes), às estranhas conversas com agentes imobiliários, Jeanne vai construindo, connosco, esta história que envolve falhar e que envolve também dar a volta por cima. Jeanne está presente em quase todos os planos do filme, e o espectador reage em função das suas reações, sempre particularmente divertidas. Ela é a investigadora falhada, a filha que não atendeu a mãe no momento do suicídio mas é também a mulher mais carismática dos sítios onde se encontra e aquela que todos imediatamente tanto amam.

Inês Moreira

[Foto em destaque: Tout Le Monde Aime Jeanne, de Céline Devaux – © Les Films du Worso, O Som e a Fúria, France 3 Cinéma, Scope Pictures]

Triangle of Sadness: a hipocrisia contemporânea e a sede pelo poder

Depois de sucessos como Force Majeure e de vencer a sua primeira Palma de Ouro com The Square, Ruben Östlund arrecada novamente o grande prémio do festival de Cannes com o recente Triangle of Sadness, filme em exibição nas salas de cinema portuguesas. O realizador sueco, que era já conhecido por fazer filmes com um marcado cunho político e social (é brilhante a forma como os seus filmes conseguem deixar o espectador desconfortável e a questionar os seus valores morais) embarca numa vertente mais cómica da crítica, num filme de chorar a rir do princípio ao fim. Triangle of Sadness apresenta-se, assim, como uma sátira ao capitalismo e aos jogos de poder.

Triangle of Sadness, de Ruben Östlund – © Plattform Produktion

Composto por três atos, o filme divide-se entre a vida de um casal de modelos influencers, um cruzeiro e uma ilha aparentemente deserta. Estes dois últimos décors são escolhidos a dedo e têm também grande significado na narrativa. O cruzeiro, local de grande luxo e ostentação, é símbolo do capitalismo e da clara hierarquia de poderes. A divisão upstairs/downstairs é muito clara quando vemos os passageiros ricos a apanhar banhos de sol no andar de cima, os empregados brancos entusiasmados com a ideia de belas gorjetas, e os empregados não brancos no último andar a quem ninguém parece ver ou prestar contas. Esta marcada hierarquia relembra a distribuição de andares na casa de Parasite, de Bong Joon-ho. 

A ilha deserta, por outro lado, cenário comum de reality shows e de filmes como The Lord Of The Flies, deixa-se encaixar neste tipo de papel, estimulando a luta pela sobrevivência e pelo poder das personagens que se conseguiram manter vivas depois do naufrágio. O instinto de sobrevivência rapidamente se revela num desejo e uma busca pelo poder, e aqueles que antes se encontravam no fim da hierarquia são aqueles que agora dominam. O estatuto, na ilha, não advém da riqueza mas da capacidade de sobrevivência, e uma das empregadas não brancas do cruzeiro mostra ter aptidões que os outros não apresentam, invertendo-se, assim, os papéis. Contudo, quando uma hipótese de salvamento parece estar em vista, esta sede de poder parece corromper os valores morais até daqueles que viveram uma vida de pobreza e humildade. O instinto humano é querer mais e mais, mostra-nos o realizador. Östlund faz-nos assim questionar os nossos próprios valores e códigos morais mostrando-nos como as diferentes pessoas acabam por agir todas da mesma forma quando colocadas naquela situação, a ambição sobrepõe-se ao carácter. O seu cinema não é um cinema de fé, pelo contrário, é um cinema de completa descrença na humanidade, um cinema de escrutínio moral da condição humana. Naquele lugar, seríamos também nós corrompidos pela ambição? É a questão que está implícita quando abandonamos a sala de cinema.

Triangle of Sadness, de Ruben Östlund – © Plattform Produktion

A verdade é que o cinema europeu tem vindo a focar-se, cada vez mais, nesta questão da corrupção dos valores morais e da hipocrisia da sociedade. No entanto, Östlund não critica só os ricos e poderosos, e isso é talvez o mais interessante de ver nos seus filmes. Ele critica também os mais pobres e aqueles que impulsionam os ideais de esquerda e depois não parecem fazer nada para os levar efetivamente avante (como a personagem do comandante interpretada por Woody Harrelson). Trata-se de uma esquerda que prega mas nada faz. O cinema de Östlund é amargo, desconfortável, ainda que dê ao espectador uma enorme vontade de rir, o facto é que é impossível deixá-lo indiferente. Todavia, Triangle of Sadness dividiu a crítica. A quantidade de cenas visualmente exageradas (envolvendo fluidos corporais) fez com que alguns críticos achassem que o realizador se estaria só a desviar do seu objetivo primordial para impressionar o espectador. Há, sem dúvida, um foco maior nos temas que nas personagens, mas isso talvez seja um trunfo e não um defeito. Estas personagens estão lá para nos obrigar a entender os temas e não para criarmos empatia e conhecermos as suas histórias, uma vez que o objetivo é não perdermos o foco nos temas que são trazidos à discussão.

Triangle of Sadness é consistente na dura crítica que faz, mas talvez falhe quando tenta atingir demasiados alvos ao mesmo tempo: há demasiados focos e demasiadas pessoas a serem julgadas. Desde o oligarca russo, representado pelo brilhante Zlatko Burić, à empregada filipina Abigail (Dolly de Leon), que conduz muito bem a segunda metade do filme; desde o casal de modelos em constante conflito ao casal apaixonado que vê na produção de armamento um hino ao seu amor. A superficialidade destas pessoas descreve-se muito bem com uma das falas mais repetidas do filme: “In Den Wolken”, que quer dizer “nas nuvens”, onde todas elas parecem estar alheias à realidade. O “jantar do comandante” é o culminar do nonsense, deixando o espectador fisicamente enjoado com toda a sua agressividade visual. 

Triangle of Sadness, de Ruben Östlund – © Plattform Produktion

Todo este corrupio de críticas e inside jokes pode ser avassalador para um filme só, ainda assim as duas horas e meia parecem passar a correr. E Triangles of Sadness revela-se uma sólida chamada de atenção ao capitalismo crescente e à sociedade do consumo. Navegando pelos temas dos estereótipos de género, principalmente no seu primeiro ato, Östlund faz um estudo de como até nas relações o dominante é esta ideia de poder, a ideia de uma troca de favores (relações que poderíamos descrever como transacionais), mostrando-nos que estas pessoas não são mais pessoas mas, sim, produtos quase robóticos deste consumismo brutal e de uma grande hipocrisia.

Inês Moreira

[Foto em destaque: Triangle of Sadness, de Ruben Östlund – © Plattform Produktion]