Rebentos: Mostra Internacional de Cinema Emergente – Sessão 6

SENTIDO Y RAZÓN (2021)

um filme de Martín Pizarro Veglia

Poster de Sentido y Rázon, de Martín Pizarro Veglia © Direitos Reservados

Toda a gente conhece aquela célebre frase (mal) atribuída a Emma Goldman, figura central do movimento anarquista americano: “Se eu não puder dançar, esta não é a minha revolução”. Não que alguém o tenha dito por ela – ela simplesmente disse outra coisa. O que ela de facto disse foi que a felicidade teria de ocupar um lugar central no movimento, que a alegria não é apenas consequência da revolução, mas sua parte integrante.

Martín Pizarro Veglia parece aqui dar “sentido e razão” não apenas à posição de Emma Goldman através dos dois dançarinos que ocupam as ruas durante os protestos de 2019, no Chile, mas também à própria prática dos dançarinos. Não se trata, portanto, de dançar por dançar, mas de se apropriar do espaço público, dando-lhe um novo uso que tente escapar à dicotomia público-privado, central à construção do Estado moderno. O mesmo poderá ser dito do fotógrafo que documenta os protestos, as cargas policiais, os feridos, as barricadas. Mais do que uma ode à arte ou à sua dimensão política (“se esta não for política, não passa de decoração”, diz o fotógrafo), Sentido e Razão mostra como as capacidades e saberes de cada um podem ganhar um novo uso nestes momentos que suspendem a temporalidade de um mundo que já há muito perdeu qualquer sentido e razão.

João Ayton

KING MAX (2021)

um filme de Adèle Vincenti-Crasson

Poster de King Max, de Adèle Vincenti-Crasson © Direitos Reservados

King Max é um coming-of-age com temas que são cada vez mais comuns no cinema: o universo queer e as consequências e aventuras pessoais que este universo acarreta.

O espelho, representado no primeiro plano do filme, é um elemento chave na construção da curta-metragem: é ele a representação do desejo de mudança, que se revela crucial para a personagem principal. O corpo e o olhar o corpo, através do espelho, mostram esta vontade que se revela quase como uma necessidade de mudança. Mais tarde, percebemos que este desejo se transforma numa outra coisa. 

Dentro de casa, a personagem principal sente-se refém, aprisionada e infiel a si mesma. A corrida que precede a cena familiar mostra isso mesmo, uma vontade de libertação, que talvez seja possível na festa à qual acaba por ir parar. Nessa festa, a personagem recebe uma makeover e, mais uma vez, com a ajuda do espelho e da performance de uma Drag King, esta compreende que a vontade de mudança, antes tão indispensável, se transforma mais numa necessidade de aceitação, dela sobre si própria. É naquela festa, que a nossa personagem compreende que não é preciso forçar a mudança mas simplesmente pode ser aquilo que quiser ser, quando quiser ser. Ouvimos “we don’t have any gender” e sentimos esta libertação acontecer. A personagem, que antes tínhamos visto fragilizada no espelho, torna-se naquilo que dá título ao filme: King Max.

Inês Moreira

BEYOND (2021)

um filme de Julius Lagoutte

Poster de Beyond, de Julius Lagoutte © Direitos Reservados

Cidade. Gruas. Uma mulher. Somos apresentados a esta personagem feminina, que sabemos ter acabado de perder o seu irmão num acidente de trabalho, e que nos vai guiar ao longo do filme. Beyond compõe-se quer de planos em que vemos esta personagem, quer de planos em que vemos e ouvimos o que ela vê e ouve. É um filme desprovido de diálogo, cor e de personagens, onde tudo se passa interiormente nesta personagem única que o acompanha do início ao fim. Este dispositivo parece bastar para nos transmitir a mensagem pretendida: uma viagem de aceitação a uma nova fase da vida, agora sem o seu irmão.

Uma reflexão curta sobre a solidão, a perda e aquilo que fica para lá disso. Os espaços, antes habitados pelo irmão, são agora aquilo que restou dele e são abraçados dessa forma pela nossa personagem principal. As expressões faciais desta são o que constrói a narrativa, num filme que fala através das emoções e dos silêncios. E, apesar de à primeira vista parecer de difícil empatia, o espectador acaba por se ver envolvido no filme através desta personagem feminina que o encara de frente numa quebra da quarta parede. 

Inês Moreira

O QUE QUEDA DE NÓS (2021)

um filme de Miguel Goméz Abad

“Em tempos de auge, a conjectura de que a existência do Homem é uma quantidade constante e invariável pode entristecer ou irritar; em tempos que declinam (como este), é a promessa de que nenhum opróbrio, nenhuma calamidade nem nenhum ditador poderá empobrecer-nos” 

Jorge Luis Borges, El Tiempo Circular
Poster de O Que Queda de Nós, de Miguel Goméz Abad © Direitos Reservados

Ao contrário do imaginário e das mais típicas representações do que seria o fim do mundo – as guerras nucleares, as catástrofes “naturais”, etc. –, Miguel Goméz Abad apresenta-nos em O que Queda de Nós um fim dos tempos bucólico, envolto por montanhas, ao som da chuva, na companhia de duas mulheres. Os seus contornos são-nos vedados, o “inimigo” não tem rosto. Mas é na aparente oposição entre a calmaria de uma vida nas montanhas e o seu entorno incógnito que jaz a virtude do filme: o apocalipse não contará com os seus cavaleiros, não será um acontecimento catártico, mas antes lento, moroso, banal e normal – porque normalizado. O fim do mundo é o que já aqui está, e o desmoronar de toda e qualquer experiência, a pobreza de toda e qualquer relação com pessoas, coisas e lugares, que cada vez mais se apresenta como inevitabilidade histórica e como único caminho possível, é apenas um dos seus sintomas. A catástrofe da nossa liquidação reside precisamente aí, em liquidarmo-nos uns aos outros no mais profundo desespero pela sobrevivência.

O que resta de nós, então? O filme não o pergunta, afirma-o. Mas será isso o que nos resta?

João Ayton

Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.

Tout Le Monde Aime Jeanne: o olhar francês sobre Lisboa

Na passada quarta-feira, voltamos a receber, em Lisboa, a nova edição da Festa do Cinema Francês. Nesta abertura da Festa pudemos contar com o filme Tout Le Monde Aime Jeanne, que teve a sua estreia internacional no Festival de Cannes.  Esta, que é a última longa-metragem da jovem realizadora Céline Devaux, é uma comédia sobre uma mulher nos seus 40 anos – Jeanne (Blanche Gardin) – em confronto com os seus próprios demónios, representados sob a forma de ilustrações da própria realizadora, ao mesmo tempo que se depara com a urgência de arranjar uma solução para a sua própria falência. 

O filme, rodado maioritariamente em Lisboa, é uma coprodução da portuguesa O Som e a Fúria e conta com o ator Nuno Lopes num dos papéis principais, ele que é talvez aquele que mais gargalhadas rouba ao público do Cinema São Jorge.

Tout Le Monde Aime Jeanne, de Céline Devaux – © Les Films du Worso, O Som e a Fúria, France 3 Cinéma, Scope Pictures

Tout Le Monde Aime Jeanne tem o seu toque de humor negro, as piadas são feitas em volta de assuntos como a morte, a falta de dinheiro e o estado do mercado imobiliário/arrendatário em Portugal, país com um papel central nesta comédia que podemos ver como um olhar francês sobre a capital portuguesa. Céline Devaux parece ir além das suas personagens e querer, de alguma forma, transformar Lisboa numa delas. Neste sentido, a cidade é acompanhada pelo peso do suicídio da mãe de Jeanne, presente em cada plano da casa deixada por esta e da Ponte 25 de Abril, e pela angústia daqueles que querem continuar a viver nas casas onde viveram toda a sua vida, mostrando um lado muito triste da evolução da capital.

Tout Le Monde Aime Jeanne, de Céline Devaux – © Les Films du Worso, O Som e a Fúria, France 3 Cinéma, Scope Pictures

O peso do filme é aliviado pelas animações que intercalam os planos dos atores. As inseguranças, dúvidas e devaneios da personagem principal transformam-se em engraçados pequenos demónios que habitam tanto a sua cabeça como o próprio ecrã do filme. Eles dançam, cantam, riem, são amargos, por vezes doces, e ajudam a ritmar um filme que, sem eles, não traz grande novidade ao cinema francês. Os realizadores/argumentistas franceses são muito perspicazes a fazer este tipo de comédias e, mesmo que nem sempre geniais, estas não falham muito a nível técnico ou na sua capacidade de entreter a audiência. O destaque neste caso, possivelmente, vai para a fotografia e a mise-en-scène do filme que relembra até a do cinema do espanhol Almodóvar.

Das peripécias com os seus dois pares românticos, o excêntrico Jean (Laurent Lafitte) e o professor de coro Vítor (Nuno Lopes), às estranhas conversas com agentes imobiliários, Jeanne vai construindo, connosco, esta história que envolve falhar e que envolve também dar a volta por cima. Jeanne está presente em quase todos os planos do filme, e o espectador reage em função das suas reações, sempre particularmente divertidas. Ela é a investigadora falhada, a filha que não atendeu a mãe no momento do suicídio mas é também a mulher mais carismática dos sítios onde se encontra e aquela que todos imediatamente tanto amam.

Inês Moreira

[Foto em destaque: Tout Le Monde Aime Jeanne, de Céline Devaux – © Les Films du Worso, O Som e a Fúria, France 3 Cinéma, Scope Pictures]

Triangle of Sadness: a hipocrisia contemporânea e a sede pelo poder

Depois de sucessos como Force Majeure e de vencer a sua primeira Palma de Ouro com The Square, Ruben Östlund arrecada novamente o grande prémio do festival de Cannes com o recente Triangle of Sadness, filme em exibição nas salas de cinema portuguesas. O realizador sueco, que era já conhecido por fazer filmes com um marcado cunho político e social (é brilhante a forma como os seus filmes conseguem deixar o espectador desconfortável e a questionar os seus valores morais) embarca numa vertente mais cómica da crítica, num filme de chorar a rir do princípio ao fim. Triangle of Sadness apresenta-se, assim, como uma sátira ao capitalismo e aos jogos de poder.

Triangle of Sadness, de Ruben Östlund – © Plattform Produktion

Composto por três atos, o filme divide-se entre a vida de um casal de modelos influencers, um cruzeiro e uma ilha aparentemente deserta. Estes dois últimos décors são escolhidos a dedo e têm também grande significado na narrativa. O cruzeiro, local de grande luxo e ostentação, é símbolo do capitalismo e da clara hierarquia de poderes. A divisão upstairs/downstairs é muito clara quando vemos os passageiros ricos a apanhar banhos de sol no andar de cima, os empregados brancos entusiasmados com a ideia de belas gorjetas, e os empregados não brancos no último andar a quem ninguém parece ver ou prestar contas. Esta marcada hierarquia relembra a distribuição de andares na casa de Parasite, de Bong Joon-ho. 

A ilha deserta, por outro lado, cenário comum de reality shows e de filmes como The Lord Of The Flies, deixa-se encaixar neste tipo de papel, estimulando a luta pela sobrevivência e pelo poder das personagens que se conseguiram manter vivas depois do naufrágio. O instinto de sobrevivência rapidamente se revela num desejo e uma busca pelo poder, e aqueles que antes se encontravam no fim da hierarquia são aqueles que agora dominam. O estatuto, na ilha, não advém da riqueza mas da capacidade de sobrevivência, e uma das empregadas não brancas do cruzeiro mostra ter aptidões que os outros não apresentam, invertendo-se, assim, os papéis. Contudo, quando uma hipótese de salvamento parece estar em vista, esta sede de poder parece corromper os valores morais até daqueles que viveram uma vida de pobreza e humildade. O instinto humano é querer mais e mais, mostra-nos o realizador. Östlund faz-nos assim questionar os nossos próprios valores e códigos morais mostrando-nos como as diferentes pessoas acabam por agir todas da mesma forma quando colocadas naquela situação, a ambição sobrepõe-se ao carácter. O seu cinema não é um cinema de fé, pelo contrário, é um cinema de completa descrença na humanidade, um cinema de escrutínio moral da condição humana. Naquele lugar, seríamos também nós corrompidos pela ambição? É a questão que está implícita quando abandonamos a sala de cinema.

Triangle of Sadness, de Ruben Östlund – © Plattform Produktion

A verdade é que o cinema europeu tem vindo a focar-se, cada vez mais, nesta questão da corrupção dos valores morais e da hipocrisia da sociedade. No entanto, Östlund não critica só os ricos e poderosos, e isso é talvez o mais interessante de ver nos seus filmes. Ele critica também os mais pobres e aqueles que impulsionam os ideais de esquerda e depois não parecem fazer nada para os levar efetivamente avante (como a personagem do comandante interpretada por Woody Harrelson). Trata-se de uma esquerda que prega mas nada faz. O cinema de Östlund é amargo, desconfortável, ainda que dê ao espectador uma enorme vontade de rir, o facto é que é impossível deixá-lo indiferente. Todavia, Triangle of Sadness dividiu a crítica. A quantidade de cenas visualmente exageradas (envolvendo fluidos corporais) fez com que alguns críticos achassem que o realizador se estaria só a desviar do seu objetivo primordial para impressionar o espectador. Há, sem dúvida, um foco maior nos temas que nas personagens, mas isso talvez seja um trunfo e não um defeito. Estas personagens estão lá para nos obrigar a entender os temas e não para criarmos empatia e conhecermos as suas histórias, uma vez que o objetivo é não perdermos o foco nos temas que são trazidos à discussão.

Triangle of Sadness é consistente na dura crítica que faz, mas talvez falhe quando tenta atingir demasiados alvos ao mesmo tempo: há demasiados focos e demasiadas pessoas a serem julgadas. Desde o oligarca russo, representado pelo brilhante Zlatko Burić, à empregada filipina Abigail (Dolly de Leon), que conduz muito bem a segunda metade do filme; desde o casal de modelos em constante conflito ao casal apaixonado que vê na produção de armamento um hino ao seu amor. A superficialidade destas pessoas descreve-se muito bem com uma das falas mais repetidas do filme: “In Den Wolken”, que quer dizer “nas nuvens”, onde todas elas parecem estar alheias à realidade. O “jantar do comandante” é o culminar do nonsense, deixando o espectador fisicamente enjoado com toda a sua agressividade visual. 

Triangle of Sadness, de Ruben Östlund – © Plattform Produktion

Todo este corrupio de críticas e inside jokes pode ser avassalador para um filme só, ainda assim as duas horas e meia parecem passar a correr. E Triangles of Sadness revela-se uma sólida chamada de atenção ao capitalismo crescente e à sociedade do consumo. Navegando pelos temas dos estereótipos de género, principalmente no seu primeiro ato, Östlund faz um estudo de como até nas relações o dominante é esta ideia de poder, a ideia de uma troca de favores (relações que poderíamos descrever como transacionais), mostrando-nos que estas pessoas não são mais pessoas mas, sim, produtos quase robóticos deste consumismo brutal e de uma grande hipocrisia.

Inês Moreira

[Foto em destaque: Triangle of Sadness, de Ruben Östlund – © Plattform Produktion]

Onde Fica Esta Rua? ou o antes e o depois de uma paisagem humanizada

Era o amor

Que chegava e partia

Estarmos os dois

Era um calor, que arrefecia

Sem antes nem depois

Era um segredo

Sem ninguém para ouvir

Eram enganos e era um medo

A morte a rir

Dos nossos verdes anos

“Canção dos Verdes Anos”, Carlos Paredes

Depois da estreia mundial no Festival de Locarno, foi na 20ª edição do Doclisboa que pudemos ver Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022), na secção Riscos, uma secção que o festival caracteriza com foco em: “um cinema que arrisca, questiona as suas fronteiras e relaciona a sua história com o seu futuro.” Nesta secção, na subcategoria “AUSÊNCIAS, PERSISTÊNCIAS E APARIÇÕES”, onde estão programados filmes que se questionam “sobre o que fica e o que desaparece, o que se lembra e o que se esquece, o que se procura e o que se encontra”, a nova longa-metragem da dupla de realizadores João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata pareceu encaixar que nem uma luva. Como o nome da secção na qual foi programado indica, Onde Fica Esta Rua? é um filme que arrisca, que não tem medo de não resultar, filmado num tempo onde a necessidade de filmar se revela urgente.

Assim que o filme abre é nos dada a informação de que da janela da casa de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, na Avenida de Roma, se poderia ver um décor de Os Verdes Anos, o clássico português de Paulo Rocha. Com essa informação navegamos naquilo a que o filme se propõe: um remake plano a plano do filme de Rocha retirando-lhe as personagens e a narrativa. Todavia, cedo percebemos que este filme não é bem um remake, assim como também não é bem um documentário. Embora dentro desse género, percebemos que é um pouco aquilo que quer ser, apresentando-se, sobretudo, como um questionamento visual sobre a mudança do espaço nos últimos 60 anos. Como é que são os espaços ocupados na contemporaneidade? 

Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata – © Terratreme Filmes, Filmes Fantasma, House on Fire

Normalmente estamos habituados a sobrevalorizar a história em relação à ‘mise-en-scène’. Nos Verdes Anos tentou-se ir contra isso. O que mais interessava era a relação entre o ‘décor’ e o personagem, o tratamento da matéria cinematográfica. Eram as linhas de força, num plano, que lhe davam o seu peso e a sua importância.

Paulo Rocha, Jornal de Letras e Artes, 6 de maio de 64

O ponto de partida do filme foi olhar os lugares do filme de Paulo Rocha, numa carta aberta de amor à cidade de Lisboa, filmada em 16mm, quase como se de uma sinfonia da cidade se tratasse. Podemos olhar ainda o filme como uma homenagem a Rocha, sendo para ele a questão do espaço determinante no cinema. A partitura musical, escrita em 1963 por Carlos Paredes, segue aqui o arranjo de Séverine Ballon e é esta que envolve graciosamente o espaço. 

“Esta terra é como uma dama que tem de ser engatada com muito jeito, nada de pressas”, diz-nos Afonso, tio de Júlio, em Os Verdes Anos. Lisboa veste bem a pele desta dama no filme de Rodrigues e Guerra da Mata, uma cidade que é vista e engatada com muito jeito. A personagem de Afonso é, de certa forma, crucial, não só pela lembrança que temos das suas falas mas por o único plano trazido do filme de 1963 ser um plano seu a assentar azulejos, profissão que exercia. Afonso é usado também como símbolo de mudança da cidade, visível através da sua profissão, no antes e no depois do assentar dos azulejos.

O cinema de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, quer em colaboração como realizadores quer em colaboração como realizador-diretor de arte, é um cinema que cria uma história entre si. No início da sua mais recente longa-metragem, presenciamos o encontro entre o bombeiro e o príncipe do recém-estreado Fogo Fátuo, uma fantasia musical, e mal esperamos que este mesmo se transforme numa fantasia musical. O bairro de Alvalade, cenário aqui e em Os Verdes Anos, é também cenário de muitos dos seus outros filmes (como O Fantasma e Odete), e o caráter fantasmagórico de uma Lisboa desprovida de humanos pode ainda fazer ligação com O Fantasma. Por sua vez, Onde Fica Esta Rua? carrega com muita força os fantasmas das personagens do filme de Paulo Rocha e os fantasmas de uma sociedade fechada em casa devido a uma pandemia.

Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata – © Terratreme Filmes, Filmes Fantasma, House on Fire

As dicotomias cidade/campo e modernidade/ruralidade, temas fortes em Os Verdes Anos, principalmente na caracterização da personagem do Julio, são bem visíveis nas mudanças que podemos ver nos espaços. Rios são ciclovias e pequenas carroças são trotinetes e hoverboards. O Texas Bar que facilmente reconhecemos como Musicbox, na Rua Cor de Rosa, ou mesmo aqueles espaços que quase já não reconhecemos, como o café Vává. Estas mudanças transformam o filme quase num documento teórico, num estudo arqueológico, num jogo de descoberta que lhe dá também um motivo quase interativo para aquele que o recebe (o espectador).

Esta interatividade funciona também através dos movimentos de câmara, que nos permitem recordar as cenas daqueles verdes anos, ou imaginá-las, caso não tenhamos visto o filme de Rocha. É a câmara que carrega este peso humano numa paisagem vazia que se torna também ela humanizada. As pessoas (ou personagens), apesar de inexistentes, acabam por ser visíveis, e o filme trabalha muito com estas partes do cinema que nem sempre são tão valorizadas. À falta de diálogo e personagens, a banda sonora, a fotografia e os movimentos de câmara conduzem de forma exímia a narrativa destes lugares. Lisboa transforma-se numa cidade humanizada, mesmo que vazia. Uma cidade capaz de ressuscitar Lídia e, acima de tudo, de sonhar, um sonho cantado na voz doce de Isabel Ruth. 

Inês Moreira

[Foto em destaque: Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata – © Terratreme Filmes, Filmes Fantasma, House on Fire]

Rebentos: Mostra Internacional de Cinema Emergente – Sessão 5

FRUTO DO VOSSO VENTRE, 2021

um filme de FÁBIO SILVA

A partir da casa familiar, das filmagens caseiras do pai até então desconhecidas, das fotografias dos irmãos que nunca conheceu ou dos planos do bairro onde os pais em tempos viveram, Fruto do Vosso Ventre, de Fábio Silva, desenvolve-se como uma narrativa arqueológica que procura dar significado — ou sentido — ao vazio deixado pela figura paternal. Poder-se-ia dizer que o filme é uma espécie de Carta ao Pai, um confronto não apenas com essa mesma figura, tão vaga e pesada quanto distante e dolorosa, mas também e acima de tudo com a “fuga, geralmente para dentro” e com a “pressão geral provocada pelo medo, pela fraqueza e pelo desespero” (Kafka) que recai sobre a figura do filho. Mas se, por um lado, o filho procura compreender essa ausência mergulhando no passado, abrindo gavetas, vendo cassetes antigas e desabafando com a mãe, por outro, ele acaba lentamente por preenchê-la, tornando-a, por isso mesmo, ainda mais evidente através da sobreposição das filmagens caseiras do pai aos planos do filme, nomeadamente aquela com que fecha o filme e que, nas palavras de Fábio, é “hoje impossível, mas que toda a vida desejei”.

João Ayton

MEIO ANO-LUZ, 2021

um filme de LEONARDO MOURAMATEUS

Num estilo documental que relembra o cinéma verité dos anos 60, Half a Light-Year chega-nos pelos olhos do brasileiro Leonardo Mouramateus. E será esta curta-metragem uma viagem por metade da distância que a luz percorreria num ano?

É inegável a relevância dada ao espaço e ao tempo nestes 18 minutos de filme. Em relação ao primeiro, há uma ligação muito próxima à cidade, uma Lisboa filmada com carinho e com verdade. Filmam-se os seus recantos e as pessoas que os preenchem no seu dia-a-dia, quase como se estivéssemos perante uma sinfonia da cidade ou uma carta de amor à Lisboa contemporânea.

Quanto ao tempo, este é utilizado como instrumento da narrativa. A dada altura no filme, as personagens autointitulam-se “viajantes do tempo” e parece que a câmara aprende a viajar com elas, por vezes para lugares e tempos diferentes daqueles que elas nos falam. O que vemos nem sempre é o que ouvimos. Um homem, sentado num degrau numa esquina, desenha no seu caderno, enquanto ouvimos um casal falar sobre uma carteira perdida. No final do filme, percebemos que visualmente a história que acabámos de ouvir começa ali, naquele plano da carteira perdida de que já tínhamos ouvido falar.

Há uma vertente quase de fantasia, engano e ficcionalização presentes no filme, apesar do seu género documental. As vozes que ouvimos levam-nos para diferentes lugares, e os desenhos que vemos confundem-se com esses lugares e com essas histórias. Fazer cinema é contar histórias e as personagens deste filme fazem isso muito bem.

Inês Moreira

CORPSELAND, 2020

um filme de YANG LIU

Uma respiração ofegante é o que ouvimos quando o filme inicia, todavia essa exaustão não abandona o espectador até ao final do filme. Corpseland monta um cenário distópico, onde coisas estranhas acontecem a um ritmo alucinante. 

O grafite é a primeira técnica utilizada por Yang Liu para animar este cenário feito de partes de cadáveres, como o próprio título indica, e por ser uma técnica tão crua ajuda a criar uma sensação de angústia e sofrimento, que vai acompanhar a exaustão sentida inicialmente. E mesmo que no final da primeira parte, a cor apareça e a técnica se aproxime de um desenho mais realista, a sensação de angústia não desaparece. É até mais assustador porque nos parece mais próximo e mais real.

Apesar de ser uma animação distópica, Corpseland acaba por refletir os medos da nossa sociedade. As partes do corpo que marcam o campo visual do filme acabam por chamar a atenção para a desumanização desta representação, transformando-se no seu tema chave. Os gestos daqueles a quem podemos chamar personagens são robóticos, e o seu andar relembra o andar de um zombie. 

O filme carrega ainda uma metáfora religiosa, talvez como forma de condenar a maneira como esta religião sobrevive nos dias de hoje. Associamos muitas vezes àqueles que seguem cegamente a fé, uma sensação de brainwash. Os motivos religiosos, como cruzes, remetem para os perigos daqueles que seguem algo sem questionamento. 

Este cenário de Corpseland revela-se recheado de conotações políticas e sociais que terminam no lugar que é a sala de cinema. Poderá esta ser uma chamada de atenção para nós mesmos enquanto espectadores? Se olharmos do ecrã para o espectador, nós somos o espectador, nós somos a sociedade, nós somos talvez quem perpetua estas ideias distorcidas que, segundo Yang Liu, um dia transformarão a distopia em realidade.

Inês Moreira

A VIDA É COISA QUE SEGUE, 2019

Um filme de BRUNA SCHELB CORRÊA

A Vida é Coisa que Segue, de Bruna Schelb Corrêa, é um filme sobre a vida e sobre a morte, das possíveis relações que os vivos podem ter com a morte e, também, com os mortos. Como (re)lembrar os nossos mortos? Como seguir com a vida sem aqueles e aquelas que a preencheram? Como não olhar para determinados objetos sem que eles não evoquem quem ficou para trás? Mas, também, como não olhar para o horizonte e não vislumbrar uma pessoa que julgamos morta? É destas relações e imagens de que trata o filme, que é, talvez por isso mesmo, um retrato de um “ritual de passagem”, da passagem do luto à aceitação de que as coisas seguem com e apesar dos que ficam para trás.

João Ayton

Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.

MOTELX – Final Cut: o remake quase falhado que glorifica o cinema

Final Cut (2022), de Michel Hazanavicius (conhecido pelo premiado The Artist), é o remake do sucesso de culto japonês One Cut Of The Dead (2017), co-escrito e realizado por Shin’ichirô Ueda. Final Cut, ou como no título original, Coupez!, foi o filme de abertura da última edição do Festival de Cannes, que já em 2019 decidiu abrir com The Dead Don’t Die, uma comédia de terror sobre zombies de Jim Jarmusch. E é da tela de Cannes que salta para a tela do Cinema São Jorge, com uma sessão quase esgotada que contou com uma plateia muito bem humorada.

Final Cut, de Michel Hazanavicius – © Getaway Films, La Classe Américaine, SK Global e Blue Light

Rémi, interpretado por Romain Duris, é um realizador falhado que decide aceitar uma proposta para fazer um filme de zombies em direto, num único plano sequência. A proposta é feita pela atriz japonesa Yoshiko Takehara, único elemento do elenco que se repete do original para este. O filme começa, precisamente, dentro deste outro “pequeno filme” que lhe ocupa os primeiros 30 minutos, abrindo com o que parece ser uma cena final, e é, precisamente, aí que ouvimos o primeiro “Corta!” (em referência ao título) e percebemos estar perante um set de filmagens. Mais tarde no filme são nos dadas as três camadas que o compõem, um filme encomendado no qual a narrativa é sobre uma equipa de filmagem que filma um outro filme, portanto, filme dentro do filme dentro do filme. A estrutura é um dos pontos fortes de Final Cut, contudo não o podemos premiar pela originalidade já que esta tinha sido igualmente adotada na versão de Shin’ichirô Ueda, que Hazanavicius copia quase plano por plano.

O filme funciona para quem não viu o original, já os fãs do clássico japonês tecem duras críticas à versão francesa, caracterizando-a como vazia e pouco engraçada. É muito difícil quando temos em mãos refazer um êxito tão acarinhado pelo público e que se compromete mais verdadeiramente com a sua missão. One Cut Of The Dead é o filme que se esperava ser, um filme independente low-budget, com um distinto contorno caseiro e de improviso. Já Final Cut é feito visivelmente com um orçamento superior a tentar parecer low-budget, tornando-se pouco credível e forçado. Até mesmo o espaço em que se filma contrasta radicalmente com o deslavado edifício abandonado de filtração de água utilizado como set do original, que contribui mais uma vez para o aspecto homemade do mesmo. 

Final Cut, de Michel Hazanavicius – © Getaway Films, La Classe Américaine, SK Global e Blue Light

Contudo, não podemos deixar de notar a quantidade de gargalhadas que a versão francesa recebeu no Cinema São Jorge. A verdade é que o seu elenco é competente, composto por caras conhecidas, como Bérénice Bejo, e outras menos conhecidas, como é o caso de Jean-Pascal Zadi, que interpreta o compositor musical deste plano sequência sobre zombies. Zadi é talvez a personagem mais marcante deste Final Cut, primeiro, por ser das poucas adições face ao original, e segundo, por ser uma adição extremamente divertida, é ele que rouba a maioria destas gargalhadas dos espectadores. Há ainda uma inovação no que toca à cinematografia do filme, sendo este muito mais vivo e colorido, relembrando os primeiros filmes de Quentin Tarantino, que é ainda “citado” numa peça de roupa de uma das personagens, numa homenagem direta ao seu trabalho. Final Cut tem a intensidade de Death Proof e heroínas que fazem lembrar Beatrix Kiddo, todavia quando uma das suas personagens nos diz “It’s a japanese script, they know more than we do about zombies.” percebemos que o filme é consciente das suas próprias fraquezas.

Há claramente uma tentativa forçada por parte do filme de se encaixar na categoria de filmes de Série B e do Trash Cinema, como aquele que fazia o cineasta Ed Wood, e no qual One Cut Of The Dead encaixava perfeitamente. No entanto, há também uma vontade de tornar o filme mainstream, coisa que parece fazer melhor. A nota, apesar de tudo, não é negativa, tanto o original como a versão francesa são filmes que falam sobre fazer filmes e sobre o companheirismo que se sente neste tipo de trabalho. A cena final da “grua humana”, em ambos, é exemplo do sangue, suor e lágrimas que fazer cinema acarreta, porque também o próprio cinema parece ser uma “grua humana”

Inês Moreira

[Foto em destaque: Final Cut, de Michel Hazanavicius – © Getaway Films, La Classe Américaine, SK Global e Blue Light]

Raquel 1:1 e os perigos da fé na 16ª edição do MOTELX

Mariana Bastos estreia-se a solo na realização com Raquel 1:1, depois da sua primeira longa-metragem em correalização com Esmir Filho. Esta longa-metragem sobre os perigos da religiosidade fanática evoca filmes como Carrie, Saint Maud, Midsommar e The Witch, todos eles apresentando uma mulher como protagonista, submetendo já para um motivo qualquer da luta feminista. A princípio, o filme parece-nos nada mais do que um drama coming-of-age, mas a este a realizadora brasileira vai acrescentando elementos sobrenaturais e de body horror, que o fazem encaixar muito bem na secção Serviço de Quarto deste ano do MOTELX.

Raquel 1:1, de Mariana Bastos – © Claraluz Filmes

Depois da morte da sua mãe Vera, Raquel e o pai decidem mudar-se para a terra natal do mesmo, em Monte Megido. Num novo lar e com a vontade natural de qualquer adolescente de se adaptar, Raquel procura fazer novas amizades e junta-se a um grupo de adolescentes da igreja local evangélica, ainda que contra a vontade do seu pai agnóstico. Contudo, ao familiarizar-se com a palavra de Deus, Raquel começa a questionar a forma como esta põe em causa o valor da mulher. Quando constata tal facto para o resto do grupo, Raquel é silenciada por Ana Helena, líder do mesmo, uma figura opressora que acredita apenas nos dogmas da sua igreja. Mais tarde, Raquel percebe que não está sozinha no seu questionamento à palavra divina e serve quase como “messias” para as outras adolescentes do grupo.

Um Brasil rural é o cenário para este filme que explora muito bem esta ruralidade, trazendo ao de cima os tradicionalismos das mentalidades. Raquel é uma força que vem pôr em causa este pensamento tradicional e tal ação é impugnada violentamente pelos habitantes de Monte Megido, os quais perseguem Raquel e o seu pai, invadindo a sua casa e o pequeno negócio desta família, uma mercearia.

Raquel 1:1, de Mariana Bastos – © Claraluz Filmes

Apesar do acting do filme deixar um pouco a desejar e das suas temáticas ligadas ao terror não serem muito exploradas, aparecendo como pequenos apontamentos aqui e ali apenas para efeito de choque do espectador, Raquel 1:1 é um filme com a força militante de outros filmes brasileiros recentes como, por exemplo, Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Há uma mensagem muito urgente a passar: a misoginia ligada à religião não é coisa do passado, esta prevalece. A necessidade que Raquel sentiu parece-nos ser uma necessidade partilhada com o espectador, a da atualização da religião e das crenças. Como é possível em pleno século XXI ainda serem seguidas regras e ideais escritas num livro há mais de vinte séculos atrás, apenas por homens?

É muito fácil, não olhando para os pormenores sobrenaturais e sangrentos do filme, perceber de onde vem o terror que o coloca nesta categoria. Não há nada mais aterrorizador do que ver um mundo desenvolvido debruçado numa misoginia que parece não ter fim. A crueldade com a qual se olha a mulher e o seu papel na história, mesmo pelas próprias mulheres (noto que Ana Helena e a sua mãe são a força contrária a Raquel neste filme, sendo elas também duas mulheres), provoca medo, dor e tensão, sem necessitarmos de elementos gore adicionais. Raquel 1:1 é um murro no estômago para os espectadores, e é quase desesperante a sensação com que ficamos, e com que fica também Raquel, desta quase impossibilidade de mostrar a estas pessoas o quão os seus ideais são baseados em injustiça e discriminação profunda.

Raquel 1:1, de Mariana Bastos – © Claraluz Filmes

O filme fecha com chave de ouro numa alegoria à pintura do Renascimento, também ele tempo de mudança e de progresso, ambos tão necessários também no nosso tempo. Raquel posa de forma quase estática com uma túnica amarela em frente a um cenário a imitar um céu azul cheio de nuvens brancas. Enquanto este plano, o visualmente mais interessante do filme, acontece, ouvimos uma enumeração de nomes de mulheres, vítimas mortais da opressão masculina, e parece haver uma espécie de libertação destas vítimas. Como se Raquel tivesse tornado agora pública a história destas mulheres e de certa forma as tivesse libertado, e a si mesma, dos seus demónios.

Inês Moreira

[Foto em destaque: Raquel 1:1, de Mariana Bastos – © Claraluz Filmes]

MOTELX: Something In The Dirt e o lançamento do livro “O Quarto Perdido do Motelx”

A dupla de realizadores Aaron Moorhead e Justin Benson não é desconhecida para o público português, há menos de cinco anos estreavam no MOTELX a sua terceira longa-metragem The Endless (2017). Este ano voltaram em grande com a comédia de terror e ficção científica Something In The Dirt e a sua presença em duas sessões contou com a sala quase cheia. O filme tem dois protagonistas: John e Levi, dois vizinhos interpretados pela própria dupla de realizadores. Quando John e Levi testemunham algo sobrenatural no apartamento de Levi, os dois decidem começar um documentário sobre estes acontecimentos.

O mais curioso, na mais recente longa-metragem da dupla de realizadores americanos, é a fórmula caseira segundo a qual foi feita. Com um orçamento baixíssimo e uma equipa muito pequena, os próprios realizadores comentam que, muitas vezes, se encontravam os dois sozinhos no décor e se filmavam um ao outro.  Assim, o filme chega-nos com essa aura independente agregada que joga a favor de si mesmo. A história, por outro lado, parece ser desvalorizada no processo. A premissa do filme é a seguinte: dois estranhos percepcionam acontecimentos paranormais. No entanto, a causa destes acontecimentos nunca é realmente explorada, o que dá a sensação que o filme perde um pouco o foco e se estende sem razão aparente. Os próprios realizadores afirmam que não é tanto a causa daquilo tudo que lhes interessa, mas o processo e as proporções que estes acontecimentos acabam por ter naquelas  duas personagens.

Apesar de se antecipar entusiasmante, o filme acaba por cair um pouco no vazio ao escolher não explorar nem este lado sobrenatural, aparentemente o seu tema principal, nem as motivações e o passado das suas duas personagens. É certo que a interação entre os dois é fulcral e visível, sendo que ambos são levados ao extremo a nível emocional, contudo, continua a existir uma certa distância entre o espectador e John e Levi. No final do filme o sentimento é ligeiramente agridoce.

Something In The Dirt, de Aaron Moorhead e Justin Benson – © Rustic Films

Ainda assim, esta edição do MOTELX continua a surpreender e, neste mesmo dia, um passo grande na historiografia do cinema em Portugal foi dado. Na sala 2 do Cinema São Jorge, ocorreu o lançamento do tão aguardado livro “O Quarto Perdido do MOTELX”, um livro que se dedica à investigação do cinema de terror português antes mesmo de este existir como género (noto que se acreditava que o primeiro filme de terror português seria Coisa Ruim (2006), de Frederico Serra e Tiago Guedes, filme que esteve também em exibição nesta edição do MOTELX). Com textos de vários investigadores conhecidos da academia, o livro conta com uma recolha de filmes desde 1911 a 2006, ano do suposto “primeiro filme de terror português”, e ano em que nasceu o MOTELX. Em 2009, na 3ª edição do festival, é inaugurada uma secção intitulada Quarto Perdido na qual se exploram estes filmes e autores. O livro acaba por retomar esta proposta baseando-se numa lista de filmes do historiador de cinema José de Matos-Cruz que foi cedida pelo realizador António Macedo, “um autêntico mapa de um tesouro desconhecido, um inventário de cinema fantástico”, como é descrito nas primeiras páginas do livro.

Na sessão, estiveram presentes os dois coordenadores do livro, João Monteiro e Filipa Rosário, e ainda José Manuel Costa, diretor da Cinemateca Portuguesa, que deu ao público uma autêntica aula sobre cinema e historiografia do cinema, cinema de terror em Portugal, e explorou ainda a questão da dificuldade em definir géneros no cinema português. A ideia com que ficamos no final desta sessão e que Filipa Rosário sumariza bem quando nos diz “o mais extraordinário é o que a academia pode ser quando não se fecha sobre si mesma” é a de que, desde que haja entusiasmo e paixão, há sempre mais para investigar nesta arte imensa que é o cinema.

O Quarto Perdido do MOTELX – © Direitos Reservados

Inês Moreira

[Foto em destaque: Something In The Dirt, de Aaron Moorhead e Justin Benson – © Rustic Films]

Dark Glasses : o novo filme do mestre do terror italiano no MOTELX

Dark Glasses marca o regresso do mestre do cinema de terror italiano: Dario Argento. O realizador, que conta com sucessos como Suspiria, Deep Red e Inferno, esteve cerca de uma década longe da realização e o seu retorno ao cinema tornou-se muito aguardado pelo público. Com sala cheia no Cinema São Jorge, a sessão de Dark Glasses marcou a 16ª edição do MOTELX, na passada quinta-feira, e contou com a presença da protagonista, Ilenia Pastorelli. 

Dark Glasses é um filme que evoca outros filmes, em particular os mais antigos do realizador. Desde sempre que o cinema de Argento se revela como um cinema muito próprio e de fácil identificação. Dark Glasses encaixa muito bem neste universo, sendo também ele marcado pelos apontamentos avermelhados da cinematografia e pela banda sonora arrepiante, incapaz de deixar o espectador indiferente. Se nos dissessem que Dark Glasses era uma cópia restaurada de um filme de Argento dos anos 80, tal não nos pareceria estranho, pois há no filme uma função de revisitação deste passado do cinema, recheando de nostalgia o regresso do mestre.

Dark Glasses, de Dario Argento – © Urania Pictures S.r.l., Getaway Films

Elena Pastorelli interpreta Diana, uma prostituta que é perseguida por um serial killer. A premissa do filme é simples, encaixando-se no género literário e cinematográfico italiano giallo, muito popular entre as décadas de 60 e 80. O filme abre com um eclipse solar e, no momento em que Diana olha para este, parece ficar momentaneamente cega. A esta cena segue-se a morte de uma prostituta que teria acabado de estar com um cliente num quarto de hotel. O que esta personagem sobre a qual nunca chegamos a saber sequer o nome e Diana parecem ter em comum, para além de ambas serem mulheres, é a profissão. Desta forma, percebemos o que motiva o assassino e que Diana será o próximo alvo a perseguir. Uma dessas perseguições resulta num acidente de viação grave, no qual Diana perde a visão e provoca a morte involuntária dos pais de uma criança chinesa, Chin. A cena inicial funcionou então como cena chave para o desenrolar dos eventos do filme, premeditando esta cegueira da personagem principal.

O acidente, de um dramatismo a la Argento, acaba por dar espaço a que Diana e Chin se unam e formem uma dupla que se entreajuda, algo que se torna símbolo da perda em comum. Este lado mais emocional do filme acaba por ganhar destaque face à investigação policial que se mostra, de certa forma, irrelevante. O filme foge, assim, ao género policial e deixa um pouco de parte o dispositivo da “investigação”. Não importa tanto a identidade do assassino, mas a forma como a protagonista feminina reage à sua perseguição. É um filme que se preocupa sobretudo com as questões de género e que coloca masculino versus feminino em destaque, trazendo um pouco a ideia de “donzela em apuros” de volta ao grande ecrã. Contudo, o nível de gore a que Dario Argento sempre nos habituou é mantido também aqui, e é de tirar o chapéu a Sergio Stivaletti pela forma como levou a cabo as cenas mais sensíveis para os espectadores. Quanto à cinematografia, é interessante perceber algumas semelhanças com as cores de Pedro Almodóvar, não deixando de haver referências a Brian de Palma e Quentin Tarantino. Todavia, a maior referência parece-nos ser o próprio cinema de Dario Argento, o que acaba por jogar um pouco contra o próprio filme que não prima pela originalidade.

Dark Glasses, de Dario Argento – © Urania Pictures S.r.l., Getaway Films

Não foi apenas a ausência do realizador na sessão que pareceu desapontar os espectadores, o próprio filme perdeu-se um bocadinho, quer em cenas carentes de sentido, como é o caso das serpentes na água, quer em performances não muito cativantes dos atores, com uma exceção de destaque para Asia Argento, a filha do realizador, que interpreta, e bem, a doce e calma Rita que ajuda Diana a adaptar-se à nova vida, agora cega. O ritmo do filme é confuso e o público acaba por rir em momentos de suposta tensão que, de tão previsíveis, se revelam quase “patetas”. 

Em suma, mesmo não sendo o regresso triunfante que se esperava, Dario Argento não deixou de receber uma enorme salva de palmas de um público fiel que continuará a ansiar os seus próximos filmes. E que sejam ainda muitos!

Dark Glasses, de Dario Argento – © Urania Pictures S.r.l., Getaway Films

Inês Moreira

[Foto em destaque: Dark Glasses, de Dario Argento – © Urania Pictures S.r.l., Getaway Films]

MOTELX: Bodies Bodies Bodies e a estupidez cómica da geração Z

Foi com a estreia nacional do novo filme da A24, Bodies Bodies Bodies, que decorreu a sessão de abertura oficial da 16ª edição do MOTELX, Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa, no Cinema São Jorge. O slasher da geração Z, segunda longa-metragem da atriz e realizadora holandesa Halina Reijn, foca-se num grupo de jovens ricos que planeiam uma festa durante uma tempestade na mansão de família de um deles. Ao jogarem Bodies Bodies Bodies, jogo que dá título ao filme, algo corre mal e o pânico instala-se.

Bodies Bodies Bodies, de Halina Reijn – © 2AM, A24

Reijn inspira-se nos clássicos do sub-género slasher e transporta o espírito de sucessos como Scream (1996) para uma geração de jovens tik-tokers que usam e abusam de palavras como “toxic” e “gaslighting”. O humor do filme está precisamente na forma como reflete esta geração e os preconceitos que existem sobre ela, e é, precisamente, nos diálogos que o filme atinge a sua inteligência e perspicácia máximas. A trama conta com sete personagens principais: Sophie e Bee (Amandla Stenberg e Maria Bakalova), David, o dono da mansão e a sua namorada Emma (Pete Davidson e Chase Sui Wonders), Alice (Rachel Sennott) e o seu namorado mais velho, Greg (Lee Pace) e Jordan (Myha’la Herrold), praticamente todos eles estrelas jovens em ascensão. E, portanto, à escrita inteligente aliam-se performances certeiras, com destaque para Rachel Sennott (a protagonista de Shiva Baby), que aqui interpreta a dramática Alice e que arrecadou quase todos os aplausos e gargalhadas dos espectadores.

O dispositivo da “procura por um assassino” (quase como um Cluedo ao vivo) entre aqueles que constituem o grupo faz com que o mesmo se desmorone e os segredos de cada um venham ao de cima porque, na verdade, esta é a sociedade dos likes e da superficialidade, onde tudo parece ser vazio e desprovido de emoções sinceras. Quando o medo e o pânico se instalam, os filtros das redes sociais deixam de ser suficientes para mascarar a mesquinhez desta juventude invejosa e psicologicamente afetada que exagera no álcool, nas drogas e nos antidepressivos.

Bodies Bodies Bodies, de Halina Reijn – © 2AM, A24

O mais interessante neste tipo de filmes é a interatividade que a câmara nos proporciona. O próprio espectador faz parte do processo de descoberta do assassino e a câmara “brinca” com ele, entrando num jogo de mostrar o que quer e escolher o que esconder. Faz-se sentir quase uma claustrofobia vinda da escolha de planos, na qual parece sempre escapar-nos alguma coisa em volta. Dessa forma, Bodies Bodies Bodies relembra-nos as adaptações de Agatha Christie, como And Then There Were None, e o mais recente Knives Out, com um contorno moderno, pop e excêntrico. A banda sonora é exemplo disso, contando com o êxito “Hot Girl” de Charlie XCX que colocou os espectadores do Cinema São Jorge com vontade de saltar fora da cadeira.

Bodies Bodies Bodies é um exemplo evidente de como o casamento entre o humor e o terror pode ser um dos mais felizes. Esta união valeu-lhe múltiplos aplausos vindos de uma sala de cinema lotada e cheia de entusiasmo para o início deste festival que é tão aguardado pelos portugueses. São mais de 100 filmes que compõem esta edição do MOTELX. Com aguardadas estreias nacionais e internacionais, o festival dedica-se a uma revisitação da história do terror português, ao lançamento de um livro e de muitas sessões especiais, cine-concertos e masterclasses. Para além do novo filme do mestre do terror italiano Dario Argento, Dark Glasses, filmes como o filme de zoombies francês Final Cut (2022), a comédia de ficção científica que conta com a presença dos realizadores, Something in the Dirt (2022), e ainda o filme de animação português, Os Demónios do Meu Avô (2022) aparecem-nos como alguns dos nomes sonantes desta edição que termina no dia 12 de setembro, próxima segunda-feira, no Cinema São Jorge.

Inês Moreira

[Foto em destaque: Bodies Bodies Bodies, de Halina Reijn – © 2AM, A24]