Ardente·x·s: o desejo como um fogo que não é de apagar

 A primeira longa-metragem do realizador Patrick Muroni, Ardente·x·s, selecionada para o Visions du Réel, em Nyon, é agora apresentada na 26ª edição do Queer Lisboa, entre os 8 filmes na competição de documentários. O cineasta suíço filma na cidade onde estudou, Lausanne, e acompanha uma parte do trajeto das OIL Productions, produtora de filmes pornográficos queer. Definindo-se como um coletivo feminista ético e dissidente, o grupo é constituído maioritariamente por mulheres e pessoas não-binárias. As suas intenções são claras: repensar a pornografia enquanto género cinematográfico capaz de abarcar a multiplicidade de corpos e desejos humanos através da criação de espaços seguros onde se pode desmistificar e explorar a sexualidade. Muroni possui a habilidade de realmente se (e nos) envolver no complexo projeto que é o tema do seu filme, não desvalorizando a rede de vários processos e pessoas envolvidas nas produções, assim como os debates recorrentes que sustentam e encaminham a sua prática. O pessoal e o político, como sempre, são coincidentes – ao aprendermos sobre quem se dedica à construção deste coletivo, as suas experiências íntimas, aprendizagens e visões acerca de sexo, conectámo-las aos fundamentos dos seus filmes e, muito além disso, a questões políticas, ao movimento transfeminista e à crença na possibilidade de construção de comunidades mais empáticas e inclusivas. As OIL Productions parecem de facto estar a trabalhar nessa construção, a criação do mundo no qual querem viver. Os seus filmes pornográficos partem da defesa de uma “educação sexual baseada em consentimento e prazer”, como referem no seu site. Uma das suas muitas críticas à problemática indústria tradicional da pornografia é precisamente a falta de conforto entre os atores e entre estes e os produtores, o que bloqueia o prazer de quem atua, e, por consequência, de quem vê também. 

Ver Ardente·x·s e conhecer este coletivo é ver uma necessária materialização daquilo que Laura Mulvey defende: a “destruição do prazer como uma arma radical.” [1] A importante teoria e crítica cinematográfica feminista analisa como o olhar do espetador de cinema é fonte de prazer, e censura a comum codificação do erótico no cinema através de uma dinâmica que reduz o corpo feminino a dispositivo através do qual se explora incontestavelmente o desejo do corpo masculino. Para Mulvey, a destruição dessa forma de pensar o prazer no cinema, a sua rejeição e a criação de sistemas alternativos, é reivindicação necessária, e é possibilidade de sentir mais livremente o desejo na vida real também. Torna-se fundamental “transcender formas desgastadas ou opressivas, e ousar romper com as expectativas normais de prazer para conceber uma nova linguagem de desejo.” [2] Mulvey não falava de filmes pornográficos, mas dos filmes de Hollywood, onde o corpo e o sexo estão envoltos de pudor e proibições, mas ainda assim estão presentes, como inevitável parte humana. A questão parece ser como lidar com essa inevitabilidade de se sentir e desejar prazer? Pensa-se o prazer como errado ou como válido? Como algo a controlar? Ou poderá o prazer ser possibilidade de exploração livre, sem constrangimentos, e acessível a todos os corpos? 

Ardente·x·s, de Patrick Muroni © Direitos Reservados 

Os filmes do coletivo que Muroni nos dá a conhecer exigem uma ressignificação radical do desejo, pensado não em referência à velha estrutura heteronormativa, mas em vez disso, em consonância com os limites, necessidades e vontades individuais de cada participante. Aqui os corpos não se encaixam num molde rígido, e já repetido até à exaustão. O prazer é gozado em proporção com a autodeterminação e há permissão para o explorar nos termos de cada um, para o verbalizar, para o questionar, para o adaptar sempre que necessário. Ardente·x·s ensina-nos que, nesses termos, o prazer talvez seja ilimitado. 

Vera Barquero

[1] Mulvey, Laura. “Visual Pleasure and Narrative Cinema” in Visual and Other Pleasures, pag.15. Nova Iorque: Palgrave, 1989.

[2] Mulvey, Laura. “Visual Pleasure and Narrative Cinema” in Visual and Other Pleasures, pag.16. Nova Iorque: Palgrave, 1989.

[Foto em destaque: Ardente·x·s, de Patrick Muroni © Direitos Reservados ]

Por um cinema do cuidado

Entrevista com Constança Carvalho Homem e Daniel Pinheiro, curadores do programa EcoQueerÉcho, em Nice (França)

Diante da grandeza e ferocidade do mar, arrebata-nos, talvez até universalmente, uma certa experiência de eternidade. Este sentimento oceânico, tal como descrito por Romain Rolland em carta a Freud, em 1927, é maior e mais durável que qualquer sensação religiosa, sagrada, ou mesmo que qualquer ímpeto por sobrevivência pessoal. Mais de três décadas depois, em 1961, Emmanuel Levinas publica Totalidade e Infinito. Numa aproximação conscientemente anacrónica, embora nem por isso menos possível, o filósofo da transcendência parece nomear, nos seus próprios termos, esta mesma experiência de abertura ao eterno. Se, em Rolland, o Infinito expressa-se pela natureza, em Levinas, o Infinito é oferecido pelo Outro, na sua alteridade absoluta e indecifrável [1].

Ambos os posicionamentos não são, porém, necessariamente excludentes — não por acaso Levinas é homenageado com a epígrafe de The Ecological Thought, de Timothy Morton; não por acaso o sentimento oceânico é mote inspirador para a realização do EcoQueerÉcho, que formaliza, no âmbito da Temporada Portugal-França 2022, mais uma parceria entre o festical Queer Lisboa e o Rencontres Cinématographiques In & Out – Festival du film Queer de Nice. Há algo de fundamentalmente afim entre os pensamentos cinematográfico, queer e ecológico, para além da mera possibilidade de replicarem os mesmos debates. Mas o quê? Que parentesco é este?  

As respostas se esboçam a partir das obras de Pedro Neves Marques, Salomé Lamas, Cláudia Varejão & Joana Castro, Jorge Jácome, Francisco Moura Relvas, André Uerba e João Pedro Rodrigues – que recebe uma retrospetiva especial e uma exposição de suas obras –, para além de um conjunto de artistas franceses e francófonos, cujos trabalhos ocupam a Cinemateca de Nice, o Cinéma Jean-Paul Belmondo, a Villa Arson e a Librairie Vigna, de 28 de abril a 6 de maio. Constança Carvalho Homem e Daniel Pinheiro, artistas, programadores e curadores de EcoQueerÉcho, apresentam, a partir de um conjunto variado de propostas artísticas, “visões do cinema e práticas queer para além do desastre”. Propostas de desvios: desvios a uma sociedade com estruturas já muito enferrujadas, e desvios, também, à própria ideia dominante de “natureza” — que, sendo herdeira do positivismo, perpetua noções dicotómicas e põe em curso relações de exclusão. 

Paul Hamy em O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues © Direitos Reservados

Neste espaço “demasiadamente grande, e talvez indefinível” que é o termo queer, como qualifica Daniel, todas as naturezas são passíveis de desnaturalização e todos os corpos são passíveis de naturalização. O resultado é uma “conjugação de identidades e territórios” em ecologias que descrevem, simplesmente, a “pertença ao vivo”, como aposta Constança, colocando um “s” em ecologias como quem não ignora o + em LGBTQIA+. Sem ontologia e sem teleologia, resta-nos um grande universo de matérias com as quais podemos trabalhar, investigar e inventar novos futuros. “Esta é a pertinência dos festivais e das práticas queer“, afirma Daniel.

Numa outra digressão aos anos 60, Alberto Carneiro, para quem a natureza sempre foi tão cara, escreveu que “falaram de valores de erotismo” acerca de uma das suas esculturas em madeira: “disseram mesmo: a madeira parece carne. Não sei o que seja erotismo; mas se for a identidade profunda entre um corpo, o meu, e outro corpo, o da árvore, até à exaustão da posse e da simbiose, eu direi que esse será um conceito justo para dizer o que se passou nos momentos da criação” [2]. Nesta passagem, Desejo, matéria e alteridade concretizam-se numa relação quase óbvia, sobre a qual Levinas também discorre: o Outro corpo, verdadeiramente Outro, é aquilo sobre o qual o Eu não tem nenhum domínio. Jamais compreensível ou capturável, o vínculo que o Outro produz comigo é sempre da ordem do Desejo insaciável, da eterna quase-descoberta, da surpresa latente. É impulso e movimento. Fora do campo da conquista, a nova autoridade passa a ser o afeto – ou, nas palavras dos curadores, o cuidado.   

É o ato de cuidar, cuja “capacidade não é exclusiva de ninguém e não demanda nenhuma qualidade complexa”, segundo Constança, que reside no seio das histórias contadas por EcoQueerÉcho. E é este cuidado, manifesto de tantas formas diferentes, que recobra o nosso poder de cultivar response-ability – nos termos da bióloga e pensadora ecofeminista Donna Haraway –, mesmo, e sobretudo, em tempos de catástrofes. Constança diz-nos que, “para além da ideia perpetrada pelos meios de comunicação de massas sobre o que é o ativismo ecologista – uma juventude de primeiro mundo fotogénica, de braços no ar –, há muitas formas de fazer e atuar no presente, sendo todas elas necessárias”.

Donna Haraway: Story Telling for Earthly Survival, de Fabrizio Terranova © Direitos Reservados

Pode ser sob a forma de rituais coletivos, no nível de ação simbólica, como no filme Ecosex, a User’s Manual(2018), com Annie Sprinkle e Beth Stephens, que corajosamente converte o paradigma da “mãe Terra” para a “amante Terra”. Ou, ainda, como em Inviting Moments of Stillness (2021), de André Uerba, uma exploração coreográfica-performativa da prática do toque como meio potencial para a união. Pode ser no âmbito de uma ação ficcional, num fabular de soluções para o futuro que expande o universo do imaginável e do possível, como no estimulante documentário de Fabrizio Terranova Donna Haraway: Story Telling for Earthly Survival (2016). É preciso, porém, que esses modos de ação também sejam complementares “daquela que vemos, por exemplo, em Ni les femmes ni la terre! (2018), que retrata a luta da terceira idade das mães na Argentina e na Bolívia, a fazer finca-pé no seu território e opor-se àquilo que reconhecem como uma forma muitíssimo agressiva de patriarcado nas grandes multinacionais extrativistas”, prossegue Constança.

“Não se trata, obrigatoriamente, de política”, diz a curadora. “Não acredito que todas as narrativas queer sejam políticas; são, sim, sempre pessoais”. Difícil não suspeitar que, talvez por isso, sejam até mais potentes que qualquer política. Assim, para responder objetivamente à pergunta colocada no início deste texto, aquilo que o cinema, as práticas queer e as ecologias guardam de intimamente comum – e que EcoQueerÉcho tão bem exprime – é, provavelmente, o convite à atenção e ao acolhimento de todos os Outros. 

Laila Algaves Nuñez

[1] Levinas, Emmanuel. Totalité et Infini. La Haye: Martinus Nijhoff, 1961.

[2] Carneiro, Alberto. Das Notas para um Diário (14 de Março de 1965). In: Alberto Carneiro – Exposição Antológica. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 40.

Texto escrito em Português do Brasil