Lama, água e tarafes: a geografia da utopia em Mangrove School

“Dez granadas foram distribuídas por cinco guerrilheiros. Quantas granadas cada um recebe?”: na aldeia onde nasce a mãe do realizador Sana Na N’Hada, um dos grandes fundadores do cinema guineense, Filipa César e Sónia Vaz Borges recriam o quotidiano de uma Mangrove School (2022), escola de guerrilha em Guiné Bissau. Estreado mundialmente na mais recente edição do Cinéma du Réel, o filme pensa as redes de resistência engendradas — e ainda possíveis — no país a partir dos centros educacionais livres, entidades que, sendo alvos indispensáveis dos bombardeamentos coloniais, tornaram-se móveis, nómadas, tão voláteis e maleáveis como o rio, e a mão, que encerram as primeiras imagens da curta-metragem. Em constante fuga, muitas destas escolas chegaram às profundezas das selvas e, lá, encontraram os mangais. No espaço impenetrável da mata, a natureza alia-se à militância, “parceira das nuvens na luta contra o sistema de vigilância de Estado”, como descreve uma das personagens. 

Nesta geografia de ramificações, lodo e água, o ofício do cineasta é como o do arquiteto – um arquiteto restaurador. Mangrove School é símbolo e recorte físico da transmissão radical, um filme que incorpora o processo de rememoração oral na sua própria mise-en-scéne e que se torna, ele mesmo, um conto para atravessar histórias e gerações. Aqui, documento e ficção partilham os mesmos contornos, e a mesma relevância: toda a equipa técnica e artística envolve-se numa performance que reinveste de luta, de imagem e de corpo o espírito daqueles homens, mulheres e ecossistemas. Trata-se, assim, de uma tentativa de reviver – e reavivar – os gestos coletivos, transgressores, resilientes, atribuindo-lhe um olhar, que é o da câmara, e uma coreografia, que é o dos atores e atrizes. “Se se caminhar direito, colocando primeiro o calcanhar no chão, imediatamente se escorrega e cai nas represas dos campos de arroz alagados ou se fica preso na lama dos mangues”, revelam as diretoras. 

Mangrove School, de Filipa César e Sónia Vaz Borges. © Direitos Reservados

Numa costura atenta e minuciosa – que parece alargar os horizontes temporais do filme sem, no entanto, torná-lo enfadonho – das interações viáveis entre humano, animal e tarafe, como os enclausurados de Buñuel n’O Anjo Exterminador que se libertam ao conquistarem a repetição das suas ações e dizeres, redescobrem-se as memórias e os movimentos aprendidos, emprestados de outros tempos e ainda urgentes no agora. É este, também, o convite político audacioso do filme de Filipa César e Sónia Vaz Borges: que o cinema possa contribuir para o resgate e o fortalecimento de redes colaborativas e criativas, respostas aos desafios presentes – ainda coloniais – de uma Guiné Bissau com um gravíssimo índice de crianças fora do sistema escolar e entre os países com menor PIB per capita do mundo (Banco Mundial, 2018).

Eleito como o lugar para esta utopia passada e futura, o mangue — e a escola — é este território fértil de opacidades, que preserva a vida de todas as espécies; espaço para reparar, lavar e pintar as representações de mundos de longa data, preparando-nos para os mundos por vir. Tentáculos e fantasmas, trazidos de volta à vida pelo cinema, recordam a coragem e a potência de abrigar-se no outro, com o outro. No mangal, rompe-se para aumentar, parte-se para construir — como o lápis de criança que se perde, mas que se reencontra no fracionar do lápis ao lado. Está, aí, a força de Mangrove School, que será novamente exibido no âmbito do Doclisboa a 15 de outubro, na Cinemateca Portuguesa: demonstrar a possibilidade de acréscimos — ou decréscimos — de realidades a partir da corporeificação de novos modos de existir, de ensinar e de aprender.

Laila Algaves Nuñez

Foto em destaque: Mangrove School, de Filipa César e Sónia Vaz Borges. © Direitos Reservados

A questão colonial no Doclisboa’22: a curadora Amarante Abramovici apresenta a retrospetiva dedicada a cinemas anticoloniais na 20ª edição do festival

Diante do horror, o que pode o ato de filmar? Que silêncios pode ou não remediar? Foi Jean Louis-Comolli que, ao desfiar as particularidades do cinema documental, afirmou, categoricamente: sob o risco do real, com todas as suas dobras, fissuras, resíduos e escórias, a sua maior obrigação é a de criar. Num jogo contínuo entre o aproximar-se e o esquivar-se das armadilhas do mundo — e, nesse caso, também literalmente da guerra —, a ética poética do documentário faz-se na dança com a estranheza, com a parte maldita, com a parte absurda: com a vida e a morte.

De 6 a 16 de outubro, na 20ª edição do Doclisboa, e integrada na programação da Temporada Portugal-França 2022, uma retrospetiva dedicada à questão colonial rompe com as narrativas abrandadas e embranquecidas dos dois países colonizadores, devolvendo o olhar aos cineastas africanos e, à guerra, o seu nome sinistro e a sua verdade íntima. Com curadoria de Amarante Abramovici, realizadora e programadora de história e ascendência franco-portuguesa, o programa reúne filmes que cobrem um arco temporal de 72 anos, de 1950 a 2022, e que continua a se estender pelo futuro. Passa-se, assim, por toda a Guerra da Argélia e a Guerra Colonial portuguesa, bem como as subsequentes vagas migratórias que, ainda hoje, deixam a sua marca nas comunidades de ambos os territórios.

Se a ideologia colonial perpetra as suas violências a nível material e, mais decisivamente, a nível espiritual, os filmes d’A Questão Colonial resistem, também, à lógica da dominação corpórea e criativa. Realizados “contra a corrente do sistema colonial e neocolonial”, mas sobretudo “contra o mercado dos filmes ou dos autores”, representam a “luta pela existência dos novos cinemas africanos e transcontinentais”, descreve Abramovici em entrevista à Temporada. As mesmas redes coletivas de solidariedade que, no passado, permitiram que muitas destas obras fossem possíveis repetem-se, hoje, para permitir que estas histórias continuem a ser vistas e ouvidas, em toda a sua diversidade de gestos e formas.

Motivada pela busca de uma “outra” história do cinema, “que começa quando a liberdade se conquista”, a curadora apresenta-nos os itinerários de Cabascabo (1969), o primeiro filme do nigeriano Oumarou Ganda – depois de ser fuzileiro na Guerra da Indochina, estivador no porto de Abidjan, na Costa do Marfim, e ator em Moi, un Noir (1957), de Jean Rouch –; a grande festividade do Carnaval da Vitória (1978), realizado pelo angolano António Ole no primeiro ano da independência do país; ou, ainda, Mueda, Memória e Massacre (1979) e Os Comprometidos – Actas de um Processo de Descolonização [Acta 5] (1985), de Ruy Guerra, um dos criadores do cinejornal Kuxa Kanema (O Nascimento do Cinema) em Moçambique, devotados a filmar a nova imagem, ferida e contraditória, do povo, com o povo e para o povo.

Trata-se, portanto, de ir ao encontro de cinematografias por muito tempo relegadas à clandestinidade e ao silenciamento, cujos esforços, antes de mais, precisavam furar a dura censura do Estado Novo português ou da lei Laval em França. É o caso de Afrique 50 (1950), que valeu a prisão do realizador francês René Vautier, ou Catembe (1965), de Manuel Faria de Almeida, “que partia de uma encomenda, mas acabou por se tornar o filme português mais ‘cortado’ pelos censores”, com 103 cortes e menção no Guiness, conta-nos Abramovici. Outras formas de censura, porém, seguem-se ao controlo político estatal: o desamparo económico, a falta de recursos para preservação e a carência de práticas de arquivamento. 

Mangroove School, de Sónia Vaz Borges e Filipa César. © Direitos Reservados

Nesse sentido, como pontua a curadora, é emblemática “a exibição de Nossa Terra, o filme realizado por Mário Marret nas zonas libertadas da guerrilha do PAIGC, desaparecido durante décadas e só agora reencontrado nos arquivos da Newsreel em Nova Iorque”. A curta-metragem, que data de 1960, é integrada em sessão conjunta com trabalhos de Sónia Vaz Borges e Filipa César, “cuja criação se vêm articulando com o resgaste de filmes perdidos do início do cinema da Guiné-Bissau, como é o caso da seminal obra colectiva O Regresso de Amílcar Cabral, ou dos registos das escolas-piloto mostrados em Navigating the Pilot School“, obra de 2016. Neste movimento de des-re-construir e reflorestar os imaginários europeus do passado e do presente, “A Questão Colonial” não se esquiva de assumir e pensar a responsabilidade de todas e todos os “cineastas, técnicos, arquivistas, programadores, críticos e espetadores, em todas as sessões e todos os debates, em todos os momentos em que os filmes acontecem”, de manter vivas estas obras – e estas lutas. Como adivinha 7 cortes de cabelo no Congo (2022), dos brasileiros Luciana Bezerra, Pedro Rossi e Gustavo Melo, ou Afrique sur Seine (1955), de Paulin Soumanou Vieyra e Mamadou Sarr, Amarante Abramovici sonha com um cinema internacionalista, que “atravessa tempos e oceanos”, e cuja promessa depende da abolição de uma Europa ainda “fortaleza, envelhecida e decadente”, que condena “a humanidade à repetição dos mesmos erros”. 

Laila Algaves Nuñez

Foto em destaque: Catembe, de Manuel Faria de Almeida. © Direitos Reservados

Antevisão Doclisboa’22: o sonho escorre pelas brechas da realidade em mundos uma vez privados de si

os pombos não nos pertencem
roubá-los será inútil por enquanto
e que valem os pombos para a fome de uma geração inteira?
Orlando Parolini, Descrição da Praça da República para a amada que mora no interior 

Na noite da última sexta-feira, primeiro dia do mês de julho, apresentou-se na esplanada da Cinemateca Portuguesa, como habitualmente, a sessão de antevisão do Doclisboa’22, que acontece de 6 a 16 de outubro. Nesta edição, o festival celebra os seus 20 anos com a exibição de duas grandes retrospetivas: um tributo ao realizador brasileiro Carlos “Carlão” Reichenbach e uma mostra dedicada à Questão Colonial, no âmbito da Temporada Portugal-França 2022, com filmes que contam e recontam as histórias das invasões e colonizações portuguesa e francesa. Em certa medida, ambos os programas – cujos títulos datam desde as décadas de 50 ou 60 até à contemporaneidade – partilham a qualidade de testemunho, rastos de mundos que ainda cicatrizam as feridas abertas pelos saqueamentos empreendidos pelo Norte global. Do Brasil, com as curtas-metragens Sangue Corsário (1980) e Sonhos de Vida (1979), a Niger, com o filme de estreia de Oumarou Ganda como realizador, Cabascabo (1968), um destino comum marca a trajetória dos protagonistas: a premência da realidade que se impõe sobre o sonho almejado. 

Cabascabo, de Oumarou Ganda. © Direitos Reservados, Argos Films

No primeiro filme, pioneiro no retrato de uma geração pós contracultura, pós Cinema Novo e pós ditadura militar, Orlando Parolini, poeta e grande amigo de Reichenbach – e que encontra mais suporte para os seus escritos no cinema do que nos livros –, erra pela cidade de São Paulo na companhia de um velho companheiro de resistência, agora engravatado, bancário e pai. Dos “mais malditos entre os malditos”, o poeta quase não interage com o seu conhecido, que é todo admiração e elogios por Parolini. Não conversa, declama. É sozinho. E logo também o bancário o abandona: a sua hora de almoço acabou. Há que se deixar os tempos de liberdade e voltar ao trabalho sério que sustenta a família. O tempo também está contado na pequena viagem turística de duas mulheres operárias da periferia paulista. Em Sonhos de Vida, as jovens decidem embarcar numa aventura logo após se reconhecerem no comboio. A aventura, porém, guarda uma incumbência prática: a protagonista precisa buscar água potável para levar de volta à terra onde vive com a mãe. Rapidamente, a espontaneidade do itinerário imaginado vê-se comprometida. 

Também Cabascabo, soldado que regressa à sua aldeia natal depois de integrar as tropas francesas na guerra da Indochina, assiste ao gradual desaparecimento do seu dinheiro e boa reputação na medida em que escolhe viver do prazer e da generosidade. Para o personagem, as economias não interessam, verdadeiramente. O crítico e jornalista Manuel Cintra Ferreira supunha que o motivo para tal desambição fosse uma mentalidade ainda próxima de um sistema “primitivo” de troca, nas suas palavras. Contudo, suspeitamos de que também se tratasse de uma ingênua confiança no seu próprio futuro – Cabascabo chega a afirmar que um ex-soldado como ele lograria, facilmente, qualquer emprego como segurança ou polícia. É rejeitado. No desfecho do filme, resta-lhe apenas o machado e o trabalho, “para o qual parte sem lamento nem deitar culpas a ninguém”, ainda a parafrasear Ferreira. 

Em todos os casos, portanto, o trabalho aparece como força de resignação. O desejo ardente por uma renovação radical da vida transforma-se numa frágil, fraca chama, que passa a conviver com a conformidade. O sonho a escorrer pelas brechas da realidade, da fome e da sede. Há uma certa melancolia latente em todas estas tramas, seja no silêncio final e na câmera distanciada de Cabascabo, seja pela récita desesperada de Parolini, que, do topo de um carro em movimento, esbraveja ao espetator: “ah, perdida geração / o último avião passou e nos esqueceram / na plataforma nos deitamos / esperando, esperando, esperando, esperando…”. A profecia de Belchior, contemporânea do lirismo social de Reichenbach, não cessa de se repetir: apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos.

Laila Algaves Nuñez

[Foto em destaque: Orlando Parolini em Sangue Corsário, de Carlos Reichenbach. © Direitos Reservados]

Trabalho feminino e cinema brasileiro: entre o trauma e o sonho de uma nação

Pouco mais de dois meses atrás, a Cinemateca Brasileira abria novamente as suas portas, depois de quase dois anos com as atividades interrompidas. A instituição, que preserva o maior acervo audiovisual da América Latina, sofreu o quinto incêndio da sua história em 2021, no seguimento de uma série de desmontes que, embora agravados durante o (des)governo de Jair Bolsonaro, remontam a um projeto de sucateamento cultural muito mais antigo no país. Ontem, ganhou repercussão um caso judicial no estado de Santa Catarina, sul do Brasil, de uma menina de 11 anos, vítima de estupro, impedida de interromper a sua gravidez. Embora a gestação decorrente de violação sexual seja uma dos únicas circunstâncias em que a legislação brasileira permite a realização do aborto, a juíza Joana Ribeiro Zimmer, acompanhada da promotora Mirela Dutra Alberton, tentaram induzir a criança a manter o bebê. Dois relatos que parecem apenas exemplos isolados do absurdo que impera no país, em todas as esferas. Filmes como Creche-Lar (1978), de Maria Luiza d’Aboim, Trabalhadoras Metalúrgicas (1978), de Olga Futemma e Renato Tapajós, Mulheres da Boca (1982), de Inês Castilho e Cida Aidar, Mulheres: Uma outra história (1988) e Amores de Rua (1994), de Eunice Gutman, podem, contudo, provar uma relação mais íntima entre estes dois infelizes acontecimentos, e entre o passado e o presente.

Creche-Lar (1978), de Maria Luiza d’Aboim © Direitos Reservados.

O programa Uma outra história – Cinco filmes sobre o trabalho feminino no Brasil – a ser exibido no Museu do Aljube, em Lisboa, no dia 25 de junho, e fruto de uma parceria entre a plataforma feminista Another Screen e a estrutura Cinelimite – estampa as realidades de mulheres mães, mulheres metalúrgicas, mulheres prostitutas e mulheres políticas, tão distintas como semelhantes. A partir de montagens objetivas, que não ultrapassam 35 minutos cada, as curta-metragens miram no contar de histórias e acertam no recontar da História. Três camadas de leitura são possíveis: aquela que privilegia a dimensão arquivística destes filmes, muitos deles perdidos ou colocados à margem da grande narrativa da Sétima Arte; aquela que destaca a dimensão documental destas imagens, enquanto retratos mais ou menos fidedignos de uma época e de um contexto social; e, por fim, aquela que elege a dimensão afetiva, no que toca à experiência de escuta e de proximidade pelas mulheres atrás das câmeras para com as mulheres em frente a elas.

Importante assinalar, ainda, que os filmes recortam um momento crucial na história do Brasil, um país que nunca conseguiu, verdadeiramente, livrar-se do fantasma da ditadura militar (1964 – ?). O fim dos “anos de chumbo” foi resultado, na verdade, de uma “abertura lenta, gradual e segura”, slogan instituído em 1975 pelo governo Geisel, no mesmo ano em que o jornalista, professor e dramaturgo brasileiro Vladimir Herzog é assassinado numa das instalações do DOI-CODI – os Centros de Operações de Defesa Interna, ou, em outras palavras, centros de tortura e homicídios. Com uma Lei de Anistia recíproca, que equivocada e estrategicamente equipara a violência institucionalizada pelo Estado e a contra-violência da luta democrática, resta um Brasil, sozinho na América Latina, a empurrar a própria história para debaixo do tapete. 

Mulheres: Uma outra história (1988), de Eunice Gutman. © Direitos Reservados

É nesse sentido que a opção pela palavra “trabalho” no título da sessão parece tão bem ajustada. A sua origem etimológica é dupla. Do latim tripalium (“tri”, três, e “palum”, madeira), o termo designava um instrumento de tortura europeu, formado por três estacas de madeira cruzadas em que os escravos eram acorrentados para ser açoitados. Este sentido original é preservado, por exemplo, no francês travailler, que significa “sentir dor” ou “sofrer”. Mas o trabalho também é labor, laborare, sem o qual não existe o elaborar ou o colaborar. É este o fardo do ser mulher no Brasil: articular todos os traumas de uma nação. Incendiadas, violentadas ou simplesmente esquecidas. Engana-se, contudo, quem pressupõe a paralisia, a autopiedade ou o recalcamento como reações a este trabalho duro. “Se a ideia é que a prostituta é coitada, infeliz, miserável, não esperem isso de mim”, desafia, com um sorriso de ponta à ponta, uma das personagens em Amores de Rua

 Fortalecidas pelo desejo e pelo amor – que devem aqui ser interpretados menos num sentido romântico do que como métodos de sobrevivência –, as mulheres da creche, da fábrica, da Boca, do Congresso e do cinema têm em comum uma profunda vontade de autonomia. Autonomia de corpo, de ritmo, de sexo, de voz e de criação. “Toda ‘mulher direita’ tem a fantasia de ser prostituta e toda prostituta tem a fantasia de ser ‘mulher direita'”, preconiza, ainda, outra personagem em Amores de Rua. Em outras palavras, toda mulher, e todo o Brasil, têm a fantasia de serem livres.

Laila Nuñez

[Foto de destaque: Mulheres: Uma outra história (1988), de Eunice Gutman. © Direitos Reservados]

Medusa, Maria Madalena, Monstro e Mulher num Brasil à beira do horror

“Nós, homens, somos relaxados. Mulher, não.  sempre se limpando. Nós, homens, jogamos uma cerveja no piu-piu e  limpo”. “A mulher nasceu para ser mãe, é o papel mais especial da mulher”. “Chegou a nossa hora: é o momento da Igreja ocupar a nação. É o momento da Igreja dizer à nação a que viemos. É o momento da Igreja governar”. Poderiam ser trechos retirados integralmente do roteiro de Medusa, de Anita Rocha da Silveira, em desenvolvimento desde 2015. Mas não são. Tratam-se de frases proferidas publicamente, entre maio de 2016 e abril de 2018, por Jair Bolsonaro, atual Presidente do Brasil, e Damara Alves, ex-Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos durante o seu governo.  
            Numa realidade não-tão-distópica e não-tão-futura, a segunda longa-metragem da realizadora brasileira — apresentada em estreia mundial na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, no ano passado, e em estreia nacional no IndieLisboa 2022 — prenuncia um Estado ditatorial cristão-fascista, no qual os únicos beijos autorizados são aqueles entre a religião e o militarismo. Durante o dia, um grupo de jovens evangélicas cantam louvores ao Senhor e aclamam um sedutor pastor-político. À noite, assumem a missão de açoitar e humilhar qualquer mulher que considerem “impura”, “pervertida” ou “destruidora de lares”, coagindo-lhes a filiar-se à Igreja e afixando os seus testemunhos, em vídeo, nas redes sociais. Neste tempo quase presente, não há qualquer brecha para a dúvida, para a feiura, para a ameaça do prazer e do desejo — tema que se afirma na cinematografia de Anita desde o premiado Mate-me por favor (2015). Não há carnavais, apenas sextas-feiras Santas. Medusa continua a ser insistente e severamente punida por Atena, a deusa virgem de uma civilização que teme, aprisiona e aniquila os seus monstros.

Medusa, de Anita Rocha da Silveira © Best Friends Forever

O filme segue a ruína de Mari Oliveira — personagem que partilha o mesmo nome com a atriz que a interpreta —, boa-moça devota, que se esforça para alcançar o ideal de filha e esposa construído e alimentado pela Igreja. Certa noite, porém, uma das mulheres “libertinas”, alvo do ataque evangelizador da jovem, responde ao seu golpe e fere-lhe o rosto. O corte será a sua primeira e discreta abertura ao real, ao sangue, aos avessos irrevogáveis de um corpo até então pretendido sempre limpo, sempre puro, sempre belo. Será o início da sua transfiguração em monstro – esta figura cuja essência etimológica é, justamente, o ato de mostrar (do latim monstrare). 
            “Ao revelar o que deve permanecer oculto, o corpo monstruoso subverte a mais sagrada das relações entre a alma e o corpo: a alma revelada deixa de ser uma alma, torna-se, no sentido próprio, o reverso do corpo, um outro corpo, mas amorfo e horrível, um não-corpo” [1] (aspas nossas). O apelo à imagem do monstro, portanto, para além de lançar luz sobre o disfarçado vínculo entre a estética e uma estratégia política fascista e castradora – questão explorada, ainda, através da cenografia plástica, quase irreal, que compõe as cenas dos cultos religiosos –, significa a ruptura de qualquer domínio da transcendentalidade sobre o corpo próprio. Em outras palavras, acena para o aguçar da carne, para o arrepiar dos cachos insubordinados e o excitar dos gozos recalcados, desautorizados – que jamais deixam, realmente, de teimar em aparecer.

Medusa, de Anita Rocha da Silveira © Best Friends Forever

Mas os monstros, neste filme, também usam máscaras, como quem diz que o reverso de um suposto real risonho e límpido só se mostra, verdadeiramente, quando esconde a face. Numa comunidade cristã, benévola e (de) direita, é o vestir de uma máscara branca e angelical que consagra a barbaridade e a violência das noites de perseguição de mulheres contra mulheres. Da mesma forma, é sob fantasias de animais que aqueles jovens ainda em busca de uma liberdade rebelde se encontram e se divertem em festas clandestinas. Tudo o que é criatura, fantástico e assombroso é capaz de subverter o mandamento da ordem e do progresso. 
            É por isso que a Medusa de Anita Rocha da Silveira não petrifica, desperta; e não pelo olhar, pelo berro. “Eu vi o Demónio e ele é uma mulher”, confessa, desesperada, uma das fiéis da Igreja. É claro: apenas a força contida de uma mulher pode torná-la monstro. E apenas a força contida de uma mulher pode romper o mais profundo, longo e constrangedor silêncio que paira sobre o Brasil, hoje. Contra políticas que infantilizam o abuso e legitimam a misoginia; contra a indiferença de um presidente que assiste a tudo que é vida morrer, sem sequer prestar uma nota de rodapé; o mais estridente grito, a convocar todos os gritos em uníssono. 

Laila Algaves Nuñez

[1] Gil, José. (2006). Monstros. Lisboa: Relógio D’Água Editores, p. 79. 

[Foto em destaque: Medusa, de Anita Rocha da Silveira © Best Friends Forever]

Texto escrito em português do Brasil.

O Teu Nome É Alcindo: quem são os corpos políticos?

Às voltas do 25 de abril, e num momento em que a higienização de figuras e discursos fascistas e fascizantes parece normalizar-se por todo o mundo, dois documentários – muito diferentes na forma e muito semelhantes no conteúdo – expõem a ferida aberta que Portugal há muito tenta estancar. Depois de circularem por festivais de cinema nacionais e internacionais, os premiados O Teu Nome É, de Paulo Patrício, e Alcindo, de Miguel Dores, ambos realizados no ano passado, continuam a encher as salas de cinema: no Festival Política, que ruma a Braga entre os dias 5 e 7 de maio após paragem de quatro dias no Cinema São Jorge, em Lisboa, esgotaram-se os bilhetes para as sessões intituladas Corpos Políticos. Do público só se ouviam duas coisas: o riso trágico diante do absurdo e o silêncio retumbante diante da revolta.

É provável que este silêncio derive, na verdade, da incapacidade de articular qualquer sentido face às histórias que se escancaram no grande ecrã. Para qualquer espectador sensível, os assassinatos de Gisberta Salce Jr. e Alcindo Monteiro, reconstituídos, respectivamente, em O Teu Nome É e Alcindo, representam atos de uma barbaridade inumana – e, portanto, ilógica. A linguagem tropeça e a voz se embarga: não é possível que tamanha crueldade exista entre nós. Mas esse silêncio também é signo de uma distância intransponível entre os que compõem este suposto nós. Calamo-nos porque a violência ainda nos surpreende como se não fosse insistente e cotidiana – com a devida e cautelosa nota de que, entre a surpresa e a trivialidade, há lugar para a atenção e o cuidado ativo, que não finge estranheza e não desvia os olhos. 

O Teu Nome É, de Paulo Patrício © Direitos Reservados

Calamo-nos porque esquecemo-nos de que não somos apenas espectadores: corpos políticos também são os brancos, não apenas os negros e os queer. Calamo-nos sem percebermos que o silêncio é a omissão dos que assistem, choram e batem palmas ao final, e que na fenda aberta por este mesmo silêncio, ainda que saturado pela revolta, produzir-se-á, inevitavelmente, barulho. Há sempre uma História a ocupar o lugar das histórias não contadas. Para cada crime de ódio, um Portugal harmónico, multirracial. Para cada invasão colonial, um Portugal dócil e hospitaleiro. Aquilo que O Teu Nome É e Alcindo logram é o resgate das narrativas certas, a partir dos relatos de amigos e familiares que, confrontados com o trauma das tragédias que os cercam, não se deixam, porém, ceder à mudez. 
Alcindo, de Miguel Dores © Direitos Reservados

Um corpo negro, outro transsexual; um corpo caboverdiano, outro brasileiro; um em Lisboa, outro no Porto; um vítima de corpos racistas, outro vítima de corpos homofóbicos; dois corpos espancados até a morte. Mas corpos somos vários, e Alcindo foi um só. Gisberta foi uma só. Diana foi uma só. Kuku foi um só. Bruno Candé foi um só. Giovani Rodrigues foi um só. Antes de tornarem-se mártires, personagens de um momento de vergonha nacional ou números de uma estatística, eram corpos com nomes e apelidos. E o nome é, ao mesmo tempo, direito e dever — direito de memória aos injustiçados, dever de exposição dos criminosos. Afinal, é preciso também não esquecer de Mário Machado. Nuno Silva. Nuno Monteiro. Hugo Silva. Ricardo Abreu. José Paiva. Tiago Palma. Jaime Hélder. Nélson Silva. João Martins. Alexandre Cordeiro. Nuno Cerejeira. Jorge Martins. Nélson Pereira…

Laila Algaves Nuñez

[Foto em destaque: Alcindo, de Miguel Dores © Direitos Reservados]

Texto escrito em português do Brasil.

Por um cinema do cuidado

Entrevista com Constança Carvalho Homem e Daniel Pinheiro, curadores do programa EcoQueerÉcho, em Nice (França)

Diante da grandeza e ferocidade do mar, arrebata-nos, talvez até universalmente, uma certa experiência de eternidade. Este sentimento oceânico, tal como descrito por Romain Rolland em carta a Freud, em 1927, é maior e mais durável que qualquer sensação religiosa, sagrada, ou mesmo que qualquer ímpeto por sobrevivência pessoal. Mais de três décadas depois, em 1961, Emmanuel Levinas publica Totalidade e Infinito. Numa aproximação conscientemente anacrónica, embora nem por isso menos possível, o filósofo da transcendência parece nomear, nos seus próprios termos, esta mesma experiência de abertura ao eterno. Se, em Rolland, o Infinito expressa-se pela natureza, em Levinas, o Infinito é oferecido pelo Outro, na sua alteridade absoluta e indecifrável [1].

Ambos os posicionamentos não são, porém, necessariamente excludentes — não por acaso Levinas é homenageado com a epígrafe de The Ecological Thought, de Timothy Morton; não por acaso o sentimento oceânico é mote inspirador para a realização do EcoQueerÉcho, que formaliza, no âmbito da Temporada Portugal-França 2022, mais uma parceria entre o festical Queer Lisboa e o Rencontres Cinématographiques In & Out – Festival du film Queer de Nice. Há algo de fundamentalmente afim entre os pensamentos cinematográfico, queer e ecológico, para além da mera possibilidade de replicarem os mesmos debates. Mas o quê? Que parentesco é este?  

As respostas se esboçam a partir das obras de Pedro Neves Marques, Salomé Lamas, Cláudia Varejão & Joana Castro, Jorge Jácome, Francisco Moura Relvas, André Uerba e João Pedro Rodrigues – que recebe uma retrospetiva especial e uma exposição de suas obras –, para além de um conjunto de artistas franceses e francófonos, cujos trabalhos ocupam a Cinemateca de Nice, o Cinéma Jean-Paul Belmondo, a Villa Arson e a Librairie Vigna, de 28 de abril a 6 de maio. Constança Carvalho Homem e Daniel Pinheiro, artistas, programadores e curadores de EcoQueerÉcho, apresentam, a partir de um conjunto variado de propostas artísticas, “visões do cinema e práticas queer para além do desastre”. Propostas de desvios: desvios a uma sociedade com estruturas já muito enferrujadas, e desvios, também, à própria ideia dominante de “natureza” — que, sendo herdeira do positivismo, perpetua noções dicotómicas e põe em curso relações de exclusão. 

Paul Hamy em O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues © Direitos Reservados

Neste espaço “demasiadamente grande, e talvez indefinível” que é o termo queer, como qualifica Daniel, todas as naturezas são passíveis de desnaturalização e todos os corpos são passíveis de naturalização. O resultado é uma “conjugação de identidades e territórios” em ecologias que descrevem, simplesmente, a “pertença ao vivo”, como aposta Constança, colocando um “s” em ecologias como quem não ignora o + em LGBTQIA+. Sem ontologia e sem teleologia, resta-nos um grande universo de matérias com as quais podemos trabalhar, investigar e inventar novos futuros. “Esta é a pertinência dos festivais e das práticas queer“, afirma Daniel.

Numa outra digressão aos anos 60, Alberto Carneiro, para quem a natureza sempre foi tão cara, escreveu que “falaram de valores de erotismo” acerca de uma das suas esculturas em madeira: “disseram mesmo: a madeira parece carne. Não sei o que seja erotismo; mas se for a identidade profunda entre um corpo, o meu, e outro corpo, o da árvore, até à exaustão da posse e da simbiose, eu direi que esse será um conceito justo para dizer o que se passou nos momentos da criação” [2]. Nesta passagem, Desejo, matéria e alteridade concretizam-se numa relação quase óbvia, sobre a qual Levinas também discorre: o Outro corpo, verdadeiramente Outro, é aquilo sobre o qual o Eu não tem nenhum domínio. Jamais compreensível ou capturável, o vínculo que o Outro produz comigo é sempre da ordem do Desejo insaciável, da eterna quase-descoberta, da surpresa latente. É impulso e movimento. Fora do campo da conquista, a nova autoridade passa a ser o afeto – ou, nas palavras dos curadores, o cuidado.   

É o ato de cuidar, cuja “capacidade não é exclusiva de ninguém e não demanda nenhuma qualidade complexa”, segundo Constança, que reside no seio das histórias contadas por EcoQueerÉcho. E é este cuidado, manifesto de tantas formas diferentes, que recobra o nosso poder de cultivar response-ability – nos termos da bióloga e pensadora ecofeminista Donna Haraway –, mesmo, e sobretudo, em tempos de catástrofes. Constança diz-nos que, “para além da ideia perpetrada pelos meios de comunicação de massas sobre o que é o ativismo ecologista – uma juventude de primeiro mundo fotogénica, de braços no ar –, há muitas formas de fazer e atuar no presente, sendo todas elas necessárias”.

Donna Haraway: Story Telling for Earthly Survival, de Fabrizio Terranova © Direitos Reservados

Pode ser sob a forma de rituais coletivos, no nível de ação simbólica, como no filme Ecosex, a User’s Manual(2018), com Annie Sprinkle e Beth Stephens, que corajosamente converte o paradigma da “mãe Terra” para a “amante Terra”. Ou, ainda, como em Inviting Moments of Stillness (2021), de André Uerba, uma exploração coreográfica-performativa da prática do toque como meio potencial para a união. Pode ser no âmbito de uma ação ficcional, num fabular de soluções para o futuro que expande o universo do imaginável e do possível, como no estimulante documentário de Fabrizio Terranova Donna Haraway: Story Telling for Earthly Survival (2016). É preciso, porém, que esses modos de ação também sejam complementares “daquela que vemos, por exemplo, em Ni les femmes ni la terre! (2018), que retrata a luta da terceira idade das mães na Argentina e na Bolívia, a fazer finca-pé no seu território e opor-se àquilo que reconhecem como uma forma muitíssimo agressiva de patriarcado nas grandes multinacionais extrativistas”, prossegue Constança.

“Não se trata, obrigatoriamente, de política”, diz a curadora. “Não acredito que todas as narrativas queer sejam políticas; são, sim, sempre pessoais”. Difícil não suspeitar que, talvez por isso, sejam até mais potentes que qualquer política. Assim, para responder objetivamente à pergunta colocada no início deste texto, aquilo que o cinema, as práticas queer e as ecologias guardam de intimamente comum – e que EcoQueerÉcho tão bem exprime – é, provavelmente, o convite à atenção e ao acolhimento de todos os Outros. 

Laila Algaves Nuñez

[1] Levinas, Emmanuel. Totalité et Infini. La Haye: Martinus Nijhoff, 1961.

[2] Carneiro, Alberto. Das Notas para um Diário (14 de Março de 1965). In: Alberto Carneiro – Exposição Antológica. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 40.

Texto escrito em Português do Brasil