Susana Nobre: “Não tenho uma visão determinada, ideologicamente, mas terei tendência a fazer filmes com finais felizes.”

O tiquetaquear dos relógios relembram a passagem irrevogável do tempo, a memória daquilo que não volta mais, mas também a muito humana capacidade de reinventar a vida. Susana Nobre projeta essa capacidade através de Helena (Raquel Castro), autêntico espelho com quem esbate as fronteiras da realidade, da ficção e da memória pessoal e coletiva, não obstante Cidade Rabat (presente na secção Fórum da Berlinale) ser a sua primeira ficção apoiada num argumento escrito.

A autora dos recentes No Táxi de Jack (2021) e Tempo Comum (2018), títulos que também observam aqueles que tomam as rédeas do seu destino, propõe, desta vez, uma viagem conduzida pela interioridade de Helena, mulher que se vê forçada a lidar com as particularidades do luto da mãe. A realizadora filma com calma, ternura e generosidade, escapando, também na direção dos seus modelos, a qualquer sentimentalismo ou condescendência televisiva.

Como Susana Nobre, também Helena trabalha em cinema, cuidando de relações intercedidas por horários, dinheiro e outras ficções, motivando assim a observação sobre várias redes de relações de pessoas. Pelas aparições que se sucedem, não será descabido vermos Cidade Rabat também como uma carta de amor às pessoas e princípios da Terratreme, produtora de que Susana Nobre é uma das fundadoras.

A certa altura, quando Helena faz serviço comunitário no Clube Desportivo da Reboleira e Damaia, vários espelhos se refletem ao infinito – Helena, que víramos inicialmente a organizar figurantes para uma rodagem, aponta a câmara de filmar para a sua própria imagem, como que se redescobrindo protagonista, alguém que decide a vida que acontece a cada instante.

No rescaldo do visionamento de Cidade Rabat, seguiu-se uma entrevista a Susana Nobre conduzida pelos autores do Cineblog Kenia Pollheim, Flávio Gonçalves e Ricardo Fangueiro:

Ricardo Fangueiro: Cidade Rabat parece ser construído em torno da ideia de família e comunidade. Percebemos que é filmado com muitas pessoas que trabalham na produtora Terratreme, muitas caras conhecidas. Havia essa vontade de se focar na importância dos vários coletivos e comunidades onde nos inserimos?

Susana Nobre

Susana Nobre: Não, como intenção, penso que não. O filme tem alguns aspectos autobiográficos e em relação ao projeto, a escrita é focada em alguns aspectos da minha vida, que surgiu principalmente como ponto de partida, uma janela para a escrita do projeto. A sequência inicial da descrição do prédio existiu quase como uma espécie de filme autónomo que eu já queria ter feito, uma curta-metragem, uma memória descritiva do prédio da minha infância. Era exatamente capaz de me lembrar de cada pessoa que lá vivia, sabia descrever a casa delas, os nomes… Queria fazer esse exercício como filme.

Depois, também já tinha filmado algumas coisas no Clube Desportivo, mesmo ao lado do bairro da Reboleira, onde o Basil da Cunha costuma fazer os filmes dele, e onde eu também estive, efetivamente, a fazer trabalho comunitário. Eram coisas que eu já tinha até explorado com a câmara, tanto o prédio como a Reboleira. São coisas que eu depois acrescentei à história principal – da morte da mãe – e centravam na ideia do ritual da morte, da partida, a partir da minha experiência. [Juntei] estas coisas de uma maneira um pouco imprevisível, sem saber muito bem onde é que me iam levar em termos de narrativa e de correspondência entre as coisas. Acho que [a comunidade e o coletivo] estão lá, mas não através de intenções completamente dirigidas, nem controladas.

Kenia Pollheim: A Susana falou de um trabalho autónomo sobre as portas e histórias, e é assim que começa este filme. Achei interessante vermos as memórias da personagem principal com as portas e o rasgo dessa memória no papel da mãe. Pode falar-nos um pouco desse acto, do rasgo físico da memória? Parece-nos que as lembranças não têm o mesmo valor para a mãe e para a filha…

SN: Não sinto que os movimentos no filme estejam tão sublinhados, mas existe de facto esse movimento contraditório entre a mãe que quer apagar o rastro dela, e a Helena, que tenta resgatar alguma coisa da sua própria vida. Penso que a personagem projeta-se já na vida da mãe, num lugar que sabe que em breve ocupará. Não são conceitos que tenha trabalhado de uma maneira muito direta mas que existem, de facto, no filme.

Flávio Gonçalves: A personagem trabalha em cinema como produtora, cuida dos horários e vê-se uma ligação com os relógios que vão aparecendo no filme: o tempo, a morte… Quando aparece o trabalho comunitário no Clube Desportivo, há uma ligação da montagem do ponto de vista da realização com a personagem, até chegarmos ao momento em que a personagem se filma ao espelho. Acha que a Helena é uma personagem que se esquece de si própria, demasiado atenta em organizar a vida dos outros, mas que se vai esquecendo?

SN: Sim, penso que esta personagem, quando a encontramos, é uma pessoa que aparece sempre em reação às coisas, a resolver problemas numa certa cadeia produtiva do quotidiano. Penso que, quando aceita o trabalho comunitário, existe esse desejo de fazer qualquer coisa que está fora dessa cadeia [e acho que é isso] que a leva a aceitar, ainda de uma forma um pouco incerta, o trabalho comunitário, para ter esse espaço de atenção. Ela esteve naquele bairro a trabalhar como produtora, com relações muito mediadas pelo dinheiro, e o bairro aparecia como décor. Depois volta com um outro olhar sobre aquela comunidade. Isso também era uma coisa que eu queria ter destacado no filme.

Em relação aos relógios, isso sim foi uma coisa muito de argumento. A ideia de que, quando entramos em casa da mãe, estamos sempre a ouvir o relógio, o tempo, cada minuto é importante. Assim, quando chegamos ao fim do filme, o tempo parou, o relógio está tombado. Já são coisas que têm mesmo a ver com a estrutura do filme.

KN: Essa questão de que a vida continua… No Tempo Comum (2018), há o nascimento de uma criança e nós vemos os passos da reinserção dos novos pais na vida social, numa pequena casa em Lisboa, com os amigos e família… Não sei se é propositada ou não, mas há a contraposição do nascimento desse filme com a morte em Cidade Rabat, mas principalmente a ideia de que há muito mais para além do que nos acontece. A vida continua e as coisas vão-se desenvolvendo sem o nosso controlo e isso é enfrentado neste filme de uma maneira muito contida. Vemos a Helena muito tensa, mas sem muita preocupação com o que vai fazendo. As coisas parecem até um pouco [desajeitadas] quando finalmente explodem como na cena da dança ou nos momentos informais com a sua equipa de produção.

Cidade Rabat, de Susana Nobre © Paulo Menezes

SN: É a ideia desta mulher que esteve num ambiente de doença, de morte, que teve uma necessidade enorme de viver outras experiências, e é isso que a leva a ter uma série de impulsos que a põem numa espécie de euforia, de querer viver a alegria do mundo. Ela quer sair daquele universo mórbido. Quer, de certa maneira, acreditar na vida. A ideia de alguém que viu a morte de perto e que precisa de voltar a acreditar. Acho que ela tem essa euforia e, por um lado, acho que há uma ligeira evolução na sua vida e, quando chegamos ao final do filme, não é que tenha havido uma grande evolução, mas sabemos que ela talvez esteja já preparada para viver qualquer coisa de novo, mesmo que não saibamos o quê.

FG: Talvez através do cinema?

SN: Não sei… Ela faz cinema, mas podia fazer outra coisa… Podia escrever, por exemplo. É mais essa ideia de fazer qualquer coisa que tenha a ver com uma vida mais contemplativa.

KN: Isso nota-se já no trabalho com a comunidade no ato de filmar o Clube Desportivo em si.

FG: E há, no filme, uma visão do mundo acolhedora. Não há grande hostilidade entre as pessoas. Talvez esse acreditar na vida possa vir através dos outros, no dar atenção aos outros como já acontecia com a mãe? Os modelos que usou também fazem parte da vida da realizadora, está tudo muito unido, certo?

SN: Sim, há uma composição. É um filme de ficção, é tudo sempre ficcional, mas as coisas partem de experiências da vida que são, depois, muito elaboradas.

FG: E faz-lhe sentido isso de ser acolhedor? Quando se faz um filme, está a criar-se uma certa visão do mundo, um ideal. Neste filme só me lembro de um momento em que se sente uma falta de segurança, um mundo não tão ideal… Ou isto é simplesmente uma coincidência das pessoas que a rodeiam?

SN: Não tenho uma visão muito determinada, ideologicamente, no filme. Não estou a defender nada, estou a juntar as peças e ver o que comunicam entre si. Terei uma tendência, talvez, em fazer filmes com final feliz, apesar de atravessarem depois coisas muito duras. Mas isso talvez já venha da minha personalidade.

FG: Quando se olha ao espelho, há uma certa calma. O filme pode ser intranquilo, mas revela um modo de estar no mundo… Essa ideia de se esquecer de si mesma também estava presente no argumento, na ideia para a personagem?

SN: Sim, acho que há um apontamento auto-reflexivo, mas podem fazer vocês a psicanálise. [Risos]

RF: O filme marca o ritmo do quotidiano, como foi esse trabalho na montagem? A Susana esteve muito presente, foi importante para intensificar esse ritmo?

SN: Estive muito presente. Foi uma montagem bastante feliz. [Cidade Rabat] foi um filme de argumento, montámos a partir do argumento. Não houve um arranjo em termos de ritmo para dar nuances diferentes. Foi mais um trabalho de economia, retirar o que pudesse interromper o filme, foi mais essa a orientação.

KN: Quanto ao trabalho da Raquel Castro, a relação que se criou entre realizadora e atriz e a forma como ela encarna esta personagem, de uma pessoa que está numa espécie de pausa na vida, é bastante intensa. Há também uma contraposição com os outros filmes, sendo o primeiro com argumento escrito, era algo de que sentia falta?

SN: Foi muito interessante, eu não vi mais ninguém. Foi um casting único, foi o André Silva Santos, assistente de realização do filme, que me sugeriu a Raquel depois de ter visto um vídeo com ela e eu achei que sim. O André já conhecia o argumento e achou que a Raquel seria interessante. Encontrámo-nos, conversámos, e havia algumas coisas da sua história de vida que me deram alguma garantia que havia um background bom para se trabalhar a personagem. O facto de ter sido enfermeira, de ser mãe… A partir daí tive uma confiança de que conseguiríamos fazer o trabalho juntas e avançarmos. Fiquei bastante satisfeita, acho complicado lançar expectativas com atores naqueles castings enormes, que são importantes, mas foi bom não ter de entrar nesse domínio. Fui muito feliz porque fez mais sentido assim, e fortaleceu a confiança da Raquel no trabalho.

O processo da Raquel com a personagem foi bastante vivo, não houve uma receita imediata do argumento que se impôs desde o início para ser executada na rodagem. Estava sempre qualquer coisa a funcionar, ela ia fazendo as suas tentativas. Nós rodámos dois meses, e a partir do meio da rodagem ela estava já quase completamente autónoma.

FG: E já está a ser pensado um próximo filme…?

SN: Sim, já há uma ideia. Gostava muito de continuar do trabalho com a Raquel, ainda neste trilho da vida de uma mulher…

Flávio Gonçalves, Kenia Pollheim Nunes e Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Cidade Rabat, de Susana Nobre © Paulo Menezes]

As ilhas em que habitamos – Lobo e Cão de Cláudia Varejão

Ao longo das nossas vidas, vestimos diferentes papéis sociais, criamos as nossas ficções e expressamo-nos com a liberdade e diversidade a que o nosso desejo nos impele. Cada um de nós, vive e sobrevive com os respectivos medos e vontades, muitas vezes limitadas pelos preconceitos instalados na conduta humana e nas relações com os outros. Todas estas questões são convocadas no mais recente filme de Cláudia Varejão.

Tudo começou em 2016, quando a realizadora foi convidada para uma residência artística nos Açores, mais propriamente na zona alta de Rabo de Peixe em São Miguel. A localidade açoriana, conhecida por ser uma das mais pobres da Europa, foi o lugar onde Varejão encontrou a imagem improvável que serviu de mote para o filme: ao descer à vila piscatória, enquanto observava os pescadores que ali trabalhavam, viu aproximar-se daqueles, um grupo de raparigas transsexuais. Virilidade e vulnerabilidade, o que entendemos por masculino e feminino, cruzavam-se perante o olhar da realizadora que viu nesse cenário o conflito a explorar no filme. Desse encontro com os jovens da ilha, nasceu o impulso para a realização de Lobo e Cão (2022), título que já aponta para essa dicotomia que o filme procura perceber e desconstruir.

Daqui se denota toda a carga social que o filme carrega e que também o ultrapassa. Deste projecto, nasceu uma associação de apoio aos jovens LGBT da ilha e às suas famílias. Com um conjunto de psicólogos foram desenvolvidos psicodramas que ajudaram estas pessoas a perceber melhor o lugar do outro e a pensar a multiplicidade de formas existentes em cada um, servindo também de base para a escrita do argumento. Após este trabalho, partindo das histórias pessoais daqueles jovens e ainda das próprias vivências e memórias da realizadora, esta começou a escrever a narrativa que nos havia de guiar por este período fugaz da vida destes jovens.

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados

Ana e Luís, protagonistas deste filme, poderiam ser o lobo e o cão, numa troca e mistura de papéis sociais e normas para o que é entendido ser uma pessoa do sexo feminino e do sexo masculino. Ana talvez não seja cão, mas antes o lobo que procura ser selvagem e Luís talvez não seja o lobo que querem que ele seja, mas talvez o cão que precisa de afecto e do abraço materno. E talvez tudo se troque, tudo se confunda e nenhum deles seja lobo nem cão.

No meio do oceano atlântico, o mar surge como horizonte metafórico de fuga e liberdade. Ana é a filha do meio de três irmãos e lida com a opressão que sente aos seus desejos e à sua liberdade. Lida com os códigos que lhe são impostos, diz não saber o que significa pecar, nem o que é o bem e o mal. Luís expressa-se da forma que o faz sentir mais livre e lida com as consequências da moral conservadora da sua família e amigos.

O filme de Cláudia Varejão é claro naquilo que pretende mostrar. Dois jovens são obrigados a viver segundo os padrões normativos da sociedade, sentindo-se oprimidos num código moral com que não se identificam. Infelizes e não conseguindo viver a sua identidade em pleno, procuram vivê-la da forma possível e o filme, criando a distância que nos permite o pensamento sobre as particularidades de cada género, torna-se uma viagem que possibilita ao espectador acompanhar essas descobertas. Notamos na vivacidade das cores da fotografia do filme, o desejo inerente e contido que “não cabe na ilha”, mas que Luís e Ana transportam consigo. 

Contudo, e apesar de algumas ideias visuais interessantes, sente-se falta de alguma subtileza e engenho para evitar que o filme se torne disperso na construção narrativa de algumas personagens (algo que se poderá dever a escolhas de montagem ou da própria rodagem), e que fizesse o filme transcender mais as suas temáticas. Ainda assim, Lobo e Cão é um retrato comovente e importante daquela comunidade e que nos põe a questionar as limitações que são impostas à nossa identidade.

Ricardo Fangueiro

Entrevista a Cláudia Varejão

9 de Dezembro, Lisboa

© Direitos Reservados

O filme tem um peso social muito grande, pelas temáticas de que se aproxima e pelo trabalho feito junto da comunidade da ilha de São Miguel, em particular dos jovens queer/LGBT e das suas famílias. Como é que se articula essa vontade em ajudar aquelas pessoas com a criação de um objecto artístico como é um filme?

O filme parte de uma curiosidade. Neste caso de uma curiosidade observacional. Eu venho mais do documentário, trabalho com pessoas e aquele território interessou-me muito, porque é um território, diria, muito português. Portanto, com heranças judaico cristãs muito presentes no quotidiano e na sociedade, mas ao mesmo tempo um território onde o momento histórico e a vida contemporânea também está presente. As novas gerações trazem isso: uma liberdade de expressão, de expressão de género que aqui é muito importante. Esta questão: o que é o género? O feminino e o masculino e todos os outros géneros que cada vez nós nos permitimos mais a explorar, a validar, a integrar na sociedade… todos estes elementos estavam presentes na ilha, logo desde início. 

Portanto interessou-me muito este território isolado no mar, que tinha todos estes elementos que todos conhecemos. Só que ali era possível circunscrever a um espaço geográfico e depois de eu ver aquela cena na doca piscatória dos pescadores a falarem com miúdas transsexuais e todo esse universo polarizado, levantou-me muita curiosidade. Eu acho que a curiosidade é o motor da criação, de querer conhecer, de querer saber mais, ir à procura de respostas, e quanto mais respostas temos mais perguntas temos, não tem fim… Eu não utilizaria a palavra “ajudar”, mas “participar” na construção de melhores vidas para a comunidade. A partir do momento em que eu queria trabalhar com eles, com pessoas de lá e não levar actores, percebi que não podia não me envolver na vida real destas pessoas e a vida destes jovens é ainda uma vida cheia de sofrimento, cheia de medo… Ser adolescente é isso, mas ser adolescente queer ainda mais. É redobrado o receio de ser diferente, o receio de não pertencer, de exclusão. Quando eu fui percebendo que isto era muito latente e que causava muito sofrimento na população, foi aí que me comecei a envolver num lado mais activista. Tentei ajudar a criar este primeiro centro de apoio a pessoas LGBT e às famílias, mas este lado de trabalhar socialmente com as pessoas não foi o ponto de partida. Foi uma necessidade que apareceu durante o processo e que eu integrei. 

Agora sem dúvida que o cinema e a arte em geral têm uma participação activa na vida das pessoas. Claro que os filmes podem ajudar, desde logo a que as pessoas se sintam representadas, validadas, entendidas, e isso pode empoderar a vida das pessoas, pode dar chão, pode dar afecto. Isto acontece com um filme como pode acontecer com uma fotografia numa exposição, com a música que nós ouvimos e que tem uma letra que parece que foi feita para nós. Isso é o lado que não tem valor. A arte não tem valor nesse sentido. É um valor enorme, um valor humano, de vida, que transcende o valor financeiro, a urgência financeira, o financiamento para a cultura, enfim…

A arte pode ser vista como um espelho da realidade e parece-me que o cinema ajuda a criar a distância necessária para perceber coisas que nem sempre são fáceis de perceber para quem sempre viveu com certas narrativas instaladas. Acreditas que o cinema/os filmes/a arte têm essa capacidade de nos ajudar a ver melhor a realidade?

O cinema é um exercício fabuloso que nos permite uma certa distância, como ponto de partida. Nós estamos distantes do ecrã, distantes do filme e portanto vemos de fora. Mas depois há um espelhamento da vida e somos convocados para dentro. Estes dois movimentos opostos têm uma força enorme, uma força de reflexão, de pensamento e de sentir. Nós sentimos muito quando vemos, quando vemos em silêncio e quando vemos de fora. E depois há momentos de clarividência neste processo de observação. E isto é também aquilo que eu vivo quando estou a fazer, eu estou a olhar para algo, de alguma forma estou de fora, mas estou implicada nessa realidade. Tenho um olhar de relação com a realidade. Eu tenho esta experiência ao fazer que depois também acaba por se sentir nos filmes. Eu não imagino a vida sem estas ferramentas dos filmes, dos livros, da música, porque são momentos de encontro, quase como ir à igreja. São momentos de encontros espirituais, filosóficos, psicológicos em que nós nos permitimos sentir e estar em contacto com o nosso mundo interior, porque a vida é absurda. A vida é absurda. Nós estamos sempre em movimento e a cumprir papéis sociais e a cumprir tarefas, vidas académicas e vidas profissionais. E isto é para quê? Para sobreviver, para fazer parte. E a arte permite-nos reflectir um bocadinho neste absurdo da vida e o cinema, eu sou suspeita, diria que é a forma mais rica de criação, porque a vida é muito real dentro dos filmes. E isso é incrível, é uma ferramenta, é uma arma e uma arma política também, porque é uma arma de transformação. O nosso olhar enquanto vê um filme transforma-se, reencontra-se, conecta-se e depois trazemos isto tudo cá para fora, para a vida. Nós saímos tocados dos filmes, uns mais, outros menos. Mas mesmo aqueles nos quais nós não nos encontramos, validam aquilo que nós não queremos. Portanto é sempre um lugar de encontro e construção da nossa própria identidade.

Trabalhas junto da comunidade com não-actores ou actores não profissionais. Poderias ter feito este filme com actores profissionais? Até que ponto é realmente necessário essa proximidade das pessoas filmadas ao papel que representam?

Era possível, mas não era eu certamente. Tudo é possível no cinema, não existem impossíveis. Existem infinitas formas para o ofício, para se fazer…

Esta pergunta tem uma ramificação, que é perceber que cuidados é preciso ter para que o método não seja demasiado invasivo da intimidade destas pessoas? Pelo que contavas na sessão de ontem eles próprios já se confundiam com a personagem que interpretavam.

Acho que é preciso um cuidado extra, porque não existe a proteção nem o treino que os actores têm. Os actores têm treino para entrar numa personagem e saber sair dela. Isto é um trabalho impressionante. Um actor não profissional não tem estas defesas, por isso eu acho que redobra o cuidado não só do realizador, mas de toda a equipa, de proteção, de ajudar as pessoas a entrar e a sair, de ajudá-las a ir para casa depois. O que levas para casa é a experiência que tiveste, mas não levas a personagem. É preciso outra atenção e nesse sentido eu tive muita ajuda. Eu tive ajuda de psicólogos, ajuda de uma equipa que é muito experiente. Quase todas as pessoas que me estavam a acompanhar já tinham feito muitos filmes, portanto havia muita atenção a isso. Falamos todos sobre isso, de como era importante estar atento às pessoas e protege-las da dinâmica do cinema. Às vezes no plateau somos muito agressivos, brutos, temos uma série de coisas adquiridas que as pessoas não entendem. Tem que haver outra atenção e outro cuidado.

Apesar de tudo, o filme parece-me bastante positivo, luminoso, colorido…

Sim, porque isso estava lá na ilha. Estava nestas pessoas.

 …mas gostava de falar de duas cenas em particular que me parecem ser as mais violentas do filme: a cena da romaria em que o pai ataca Luís e o insulta e a cena em que a gente da ilha parece tentar converter Luís através de todo aquele ritual divino.

Quão difícil é representar a homofobia e como é feito esse trabalho com não actores? E de que forma é que isso ajuda a exorcizar preconceitos? 

É uma pergunta muito interessante, porque eu também tinha muito essa dúvida. Como é que eu vou fazer estas cenas sem ser a trabalhar com pessoas que são realmente homofóbicas? É o movimento oposto. É trabalhar com as pessoas que têm o olhar de integração da diversidade, mas com a consciência de que existe a agressão, que existe o fechamento, o conservadorismo, existe a violência. Foi a partir de um lugar bom, de pessoas boas para representar aquilo que nós não desejamos, mas que sabemos que existe e que já vimos ou sentimos. E estas pessoas, estes adultos trouxeram isso. Este pai do Luís tem isso. O pai do Luís é um homem bom. 

…Acho que também se nota isso na sua interpretação. A dificuldade que ele tem a exercer aquela violência…

Sim, ele faz aquilo como as próprias pessoas fóbicas. Elas fazem por embrutecimento da vida e parece que vemos uma humanidade lá dentro. No gesto da violência – isto é um paradoxo – vemos uma inversão da humanidade. Portanto, ela está lá. Não dá para representar uma coisa sem representar o seu oposto. Este foi o processo de trabalhar com estas pessoas. Essa luz está sempre lá, mas as pessoas estão revoltadas pelo medo, pelo medo da não pertença.

Já tiveste reações mais negativas ao filme por parte de pessoas mais preconceituosas ou homofóbicas?

            Não. Agora saímos desta sessão com escolas e, nas partes de mais intimidade entre as miúdas, sente-se o comentário, o riso nervoso, um silêncio envergonhado… Que não deixam de ser preconceitos, um lugar de pré-conceito da nossa educação, ainda de estranheza daquilo que sai da norma, deste lado mais hétero normativo da sociedade e sinto esse desconforto nos olhares, mas não de uma forma agressiva e espero não vivê-la.

Vês a própria ilha como algo simbólico da condição em que se encontram estes jovens? Essa vontade de sair da ilha e alcançar outra liberdade longe daquela bolha.

Claro. Acho que a ilha é uma metáfora para as ilhas em que todos vivemos, não só as pessoas queer. Nós todos nos sentimos em ilhas. Agora nesta sessão perguntou-se a certa altura “quem é que aqui se sente numa ilha?” e os braços levantados eram da maioria das pessoas na sala. Nós todos, de alguma forma, nos sentimos sós. Talvez seja esta a condição do ser humano. Nascemos e morremos sozinhos. E há um enorme sentido de solidão nesta ideia de ilha. Nós somos a ilha. E eu acho que o filme é muito aberto nesse sentido. Não é um filme queer. É muito mais sobre a condição humana de sermos todos tão diversos e termos tanto receio de não conseguir pertencer no dia-a-dia, à sociedade, a este teatro todo que é construído. Isto é um grande teatro. Os papéis sociais, as profissões, os papéis familiares… Isto é uma grande encenação e nós fomos educados logo de início.

Estamos sempre em ficção…

Estamos e já que é para estar em ficção, então que sejamos mais livres na ficção. Acho que é isso que o filme convoca. Já que é para ser um teatro a vida toda, então vamos experimentar vários papéis. E o ser humano permite-se pouco a experimentar diferentes máscaras e isso é que acho que provoca grande sofrimento na vida. Somos educados a ser uma coisa e a escolher ser uma coisa. E nós somos muitas coisas diferentes ao longo da vida. Estamos sempre a mudar, mas estamos sempre com medo de experimentar ser diferentes do que éramos ontem, como se isto fosse incoerente… e não é, porque nós somos uma multiplicidade de coisas. E por isso é que é muito interessante trabalhar com não-actores, porque as pessoas são muito mais autênticas. Como não têm este jogo profissional, descobrem dentro delas várias vozes e isto é um processo infinito de encontro com os mundos interiores.

Como é que vês a questão da identidade de cada um e a diversidade de que somos feitos? Porquê que achas que ainda existe a necessidade da dicotomia masculino/feminino?

Acho que é um perigo para a sociedade sairmos de um jogo que está tão profundamente instalado. Isto destrói todas as nossas convicções. Isto dá muito medo, sobretudo ao poder. Se de repente passamos todos a ser queer, ser gays, trans, diversos… isto questiona todo este sistema. O poder vem de cima, não vem de dentro. Isto é a grande luta social. Acho que é daí que vem o preconceito e acho que vem bastante da religião, porque é uma narrativa muito vincada: o homem, a mulher, a procriação. Isto questiona tudo, tudo aquilo que nos foi ensinado. Questiona esta ideia de família mais fechada, do pai, da mãe e dos filhos… questiona muita coisa, não só a própria identidade, como a própria ideia de desejo e orientação sexual. Levanta tantas perguntas, põe tanto em causa que é um perigo. É um perigo e depois permitimo-nos muito pouco. Acho que temos todos muito medo do que acontece se não correspondermos ao esperado. O que me vai acontecer? Será que vou ter lugar na sociedade? Será que vou ter trabalho? Será que vou saber quem sou? Vou-me perder? E depois como é que me volto a encontrar? Isto levanta muitos medos.

Como no texto da Clarice Lispector que leste…

“Se eu fosse eu?” Se a gente pensar seriamente sobre isto, percebe que nós não sabemos e que nunca nos permitimos. Ficamos assustados com o que temos andado a fazer, mas eu acho que é um bom exercício fazermos mais vezes esta pergunta: se eu fosse eu o que diria nesta situação? Se eu fosse realmente eu, o que eu sinto, o que respondia? A maior parte das vezes ficamos pelo pensamento, mas se experimentássemos ser, que rico que seria…

De um ponto de vista formal, tens vontade de manter este método de fazer cinema no futuro ou vais procurar experimentar novas formas de construir narrativas, novas formas de mostrar aquilo que pretendes? Tens vontade de continuar a trabalhar perto de comunidades/grupos de pessoas?

            Eu acho que já estava a trabalhar bastante neste sentido de trabalhar a realidade, mas com ideias formais que construo com as pessoas. Sem dúvida, o meu grande prazer são as pessoas. Eu sinto-me uma amadora. O tempo passa e eu tenho cada vez menos certezas. Tenho muitas dúvidas e gosto muito de experimentar e sinto-me mais segura a experimentar com as pessoas do que com actores, porque estes trazem-me sempre tantas seguranças e convicções que eu fico assustada, sinto-me diminuída. Gosto muito da liberdade deste lugar de experimentação a partir do real.

Entrevista a Cláudia Varejão conduzida por Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados]

Alma Viva: Entrevista com Cristèle Alves Meira

Por altura da estreia de Alma Viva, o mais recente trabalho de Cristèle Alves Meira, tivemos a oportunidade de falar um pouco com a realizadora. Alma Viva é um regresso às origens da realizadora, filha de emigrantes portugueses em França, e mostra-nos, num registo assombroso e místico, a relação espiritual entre Salomé e a sua avó, no momento em que esta se aproxima da morte.

A herança mística que é transmitida de avó para neta é o motor da acção, aquilo que põe Salomé em movimento e que a faz entrar em conflito com o seu universo íntimo e familiar. Alma Viva toca no tema da emigração, dos rituais tradicionais, das tensões entre a população da aldeia, e faz-nos olhar para uma realidade ficcionada, para uma terra que nos parece próxima e familiar (o filme foi filmado numa aldeia em Trás-os-montes, terra da mãe da realizadora), mas que é fruto de sonhos, memórias e matéria do inconsciente. 

No equilíbrio entre o realismo da mise-en-scène e o lado fantástico e ascético que envolve a história, reside parte do encanto deste filme que faz encarnar na pequena Salomé, não só a alma da avó, como uma energia sobrenatural que nos mostra o lado mais enigmático da paisagem transmontana.

Alma Viva é um olhar fresco sobre o interior do país, sobretudo, porque não tem ambições antropológicas e serve-se de um imaginário criado pela autora para atingir camadas mais profundas da realidade.

Alma Viva, Cristèle Alves Meira © Midas Filmes

Entrevista com Cristèle Alves Meira

Cristèle Alves Meira

De onde surge o impulso para fazer este filme? Calculo que tenha um lado autobiográfico e que tenha origem num desejo de voltar a olhar para estas pessoas e estes lugares, para onde voltava todos os verões com a sua família.

É engraçado, porque muitas vezes dizem que é autobiográfico, mas o filme é uma ficção pura. Há um lado autobiográfico por conhecer aqueles décors, estar envolvida de forma mais íntima com as pessoas que aparecem na imagem e com as histórias que vou contar, mas o filme é uma ficção pura. É um filme de género quase fantástico, mas o que dá aquele ar autobiográfico é a minha opção de tornar as coisas muito realistas na forma de filmar, na forma de falar… e para mim é muito interessante, porque o público agarra no filme como se este fosse antropológico, mas na verdade essa aldeia não existe e essas pessoas não existem. Isso tudo é ficção do cinema e cada quadro, cada rosto foi exposto a uma sublimação de luz, de enquadramento e de pensamento de encenação. Aquela aldeia não existe, aqueles céus estrelados não existem, a câmara não consegue filmar aqueles céus estrelados, aqueles sons… Quando filmamos não havia nenhum insecto, não havia nenhum animal e tivemos que criar aquele ambiente sonoro, que tem que ver também com a minha vontade de criar um ambiente um pouco mágico, sobrenatural, com a presença de animais particulares que podem criar essa tensão dramática.

Quando falava em lado autobiográfico referia-me mais a essa vontade de replicar certas memórias, aspectos e vivências.

Sim, tem uma parte autobiográfica, mas é limitado pensar que é só isso, porque demorei muito tempo a encontrar a história. Sabia que queria contar a história de uma avó e de uma neta, mas a neta durante muito tempo era uma adolescente. Salomé, a protagonista, voltou a ser criança no final da escrita do argumento e depois também demorei bastante tempo a perceber qual era o equilíbrio entre as crises familiares. Queria contar as crises dessa família, a forma como vivem o luto, o momento das partilhas e essas famílias divididas entre aqueles que partiram e regressam com um poder económico muito grande e aqueles que ficaram e que sentem um complexo de inferioridade. Queria contar a família, mas não sabia no argumento o que era mais importante. Quando soube que o mais importante era a relação entre uma avó e uma neta e uma transmissão mística de um saber esotérico, aí é que comecei mesmo a tocar no assunto do filme. Mas não foi fácil, porque estava confrontada com dois tabus, o da morte e o da bruxaria, e no início ficava a tremer perante a palavra “bruxa”. Será que podia falar sobre isso?  Pesquisei muito, de forma quase antropológica. Fui ler livros sobre bruxaria em Portugal e também fui ler coisas em França, porque há uma parte em França onde há muita bruxaria. Houve um rapaz muito importante que se chama Jorge Dias, um jovem imigrante, estudante de mestrado na universidade em Lyon que fez a tese sobre a avó dele que é bruxa. Esse foi um encontro muito importante para mim, porque ele inscreveu na tese a relação que ele tinha com a avó quando regressava no verão e a via ter capacidades de médium. Foi quando li a tese dele que pensei que também poderia assumir esse tipo de temática. Havia uma vontade de falar da relação dos vivos com os mortos e da transmissão entre uma avó e uma neta. Mas, depois, para chegar lá foi um processo bastante grande de escrita da narrativa.

Esse lado espiritual descobriste com o filme? Ou já tinhas essas memórias associadas àquele local?

Já nasci numa família onde o oculto estava presente… era normal curar-se com plantas… e desde criança sempre ouvi os adultos falar sobre histórias muito estranhas de bruxas, maldades, mau olhado … e isso lembro-me que me fascinava e ao mesmo tempo aterrorizava-me. E acho que o filme está a tentar transmitir essa contradição que esse tipo de história pode criar em nós. Fascínio e terror. O que acho bastante singular é que o demónio nessa história é uma pessoa que amamos. Porque muitas vezes nos filmes de terror há muitas histórias de pessoas que são possuídas pelo demónio, que são temáticas clássicas do género fantástico, mas aqui a particularidade é que se trata da avó amada, a querida avó. Isso é que cria ali uma confusão entre amor e sofrimento, luz e obscuridade, e também a forma realista de tratar do assunto, porque, muitas vezes, nos filmes americanos ou nos teenage movies são temáticas que vemos sempre. Só que neste filme estamos num lado muito realista e muito envolvido numa comunidade. Se analisarmos bem, os rituais no filme foram completamente inventados, porque reparei também nas minhas pesquisas que cada praticante ou bruxo/a, ou curador, médium, (eles têm vários nomes), cada um tem a sua própria prática e vão buscar símbolos a várias culturas. Não há nenhum livro que diga que a magia vai ser assim e vai ser assim que vamos proceder, cada um vai ali fazer a sua receita e eu pensei a mesma coisa. Qual seria a receita do nosso filme? Então fui buscar São Jorge, fui buscar os cigarros, que é uma prática mais do xamanismo. Em Portugal nunca vi bruxos nenhuns usar cigarros, mas é uma mistura de rituais para criar uma realidade que é uma realidade de ficção para esse filme.

Acaba por ser um universo construído a partir das tuas vivências e referências. Contudo, de que forma é que a realidade que encontraste invadiu a narrativa inicial?

O que mais transforma a escrita é a encarnação dos actores. Quando comecei mesmo a escolher os actores, a personagem transforma-se num corpo, numa voz, numa pessoa concreta que vai entrar naquele papel. Isso transforma a escrita e cada vez que acontece vou também buscar muito da realidade do actor que escolhi, para pôr nas cenas e na personagem. Por exemplo, a personagem da avó era, no argumento, uma avó muito mais austera, menos excêntrica e colorida, e a Ester Catalão foi um encontro incrível, porque ela tem essa liberdade, sensualidade, essa luz que transformou o papel da avó. E isso aconteceu com várias personagens, como com a protagonista, a Lua Michel. Quando escrevi, a personagem tinha onze anos e quando filmei ela só tinha oito. Então isso transformou a personagem. Por exemplo, o facto de conhecer o Duarte Pina de O Invisível Herói (2019), a outra curta que fiz com ele, e de saber que ele tinha capacidades de cantar, pensei: “vou pôr um grupo de músicos no meu argumento”. Então, foi o facto de conhecer esse actor e as suas capacidades instrumentais que fez nascer esse lado na personagem.

A única coisa que tento é guardar uma espontaneidade, por isso não ensaio muito com os actores, e os actores não profissionais não vão ler o texto, ter o argumento na mão, para não estarem ali a fingir. Passo muito tempo a falar com eles a explicar qual vai ser a história, a situação, mais ou menos o que eles têm de dizer… e depois eles dizem com as palavras deles, mas quase sempre é parecido com o que eu escrevi, porque escrevi a pensar neles. A metodologia é observar e conhecer muito bem as pessoas com quem vou trabalhar. Por exemplo a Marta Quina, a personagem da Gracinda, eu já sabia como ela falava, porque já a conheço. Dizia-lhe: “Oh marta, a marta vai subir as escadas, mas está muito zangada, porque os cães estiveram a dar cabo dos tomates” e já sabia que ela tinha aquela capacidade, porque na vida real ela tem essa energia. Era só dizer acção. E é bastante realista, porque sei que ela é assim. Depois com a Ester Catalão já era outra metodologia. Trabalhamos com um auricular porque muitas vezes ela esquecia-se de coisas… na verdade cada pessoa tem uma metodologia diferente.

Alma Viva, Cristèle Alves Meira © Midas Filmes

Ao ver a Lua Michel no filme, parece ter sido um casting certeiro. No entanto, ela sempre esteve ali ao teu lado. Foi uma escolha óbvia?

Cometi o erro de a ter filmado noutros filmes, mas cortei-a sempre na montagem. Ela entrou no Sol Branco (2015) como um bebé, depois entrou no Campo de Víboras (2016) tinha três anos e no Invisível Herói tinha 5 ou 6. E a cada vez foi cortada na montagem. Quando chegou aos seis anos ela disse: “Mamã, estás sempre a cortar-me” (risos). Foi outra amiga minha que a revelou num filme, porque ela estava à procura de uma criança para o filme dela e disse-lhe: “Se calhar vou-te mandar a Lua em casting, porque sempre a cortei na montagem e desta vez é um papel principal, por isso se gostares dela, já vai ter um papel onde não está cortada”. Depois desse filme, ela foi muito felicitada em festivais, ganhou prémios com essa curta e aí apercebi-me que tinha uma actriz ao meu lado e pensei porque não seria ela. Decidi então que o papel ficasse mais jovem, mas ela tem uma maturidade que nem percebemos bem a idade dela.

O filme conta com poucos actores profissionais e foca-se mais no trabalho feito com a população da aldeia. Como é que foi feita essa articulação no trabalho das personagens?

Os actores profissionais são muito importantes, mesmo que minoritários. Temos a Ana Padrão, a Jacqueline Corado, Catherine Salée, Valdemar Santos, Pedro Lacerda e o Nuno Gil.  A Ana Padrão é originária de uma aldeia ali perto e aceitou rememorar e lidar de novo com as suas origens. Isso foi muito importante, porque ela foi buscar lembranças das tias, da avó e ajudou-me a enriquecer os diálogos com palavras mesmo locais. Durante os ensaios, dias antes, ela ficou a dormir na casa da avó, porque é numa aldeia perto e perguntava: “Como é que dirias aquela palavra? Quando chove, como é que dirias?”. Fez esse trabalho para voltar a essa forma de falar e todo um trabalho do corpo, da fisicalidade, porque o seu papel é mesmo de uma pessoa de aldeia, que trabalha a terra e encarna uma masculinidade que foi buscar e que não tem nada que ver com os papéis que a Ana faz normalmente. Fico muito emocionada com a generosidade com que ela se envolveu neste projecto. É uma enorme actriz. Já tínhamos tido uma experiência juntas, fizemos o Campo de Víboras juntas, que já era um papel similar nas mesmas aldeias e isso ajudou a desenvolver a confiança. Mas nesse filme ela trabalhava uma parte mais feminina, enquanto neste ressalta um lado mais masculino.

Apesar de assombroso e fantasmagórico, o filme conserva um lado cómico. Era importante para ti realçar esse aspecto?

Sim, muito importante. A comédia, o lado mais cómico, quase burlesco, estava presente desde as primeiras linhas, porque é a forma que tenho de mostrar o carinho que tenho por estas situações extremas do ser humano, crises, guerras entre vizinhos… aquilo é tão excessivo que dá para rir e o cinema permite essa mise-en-scène, esse tom mais cómico. E não foi fácil no momento do financiamento do filme, porque apontavam esse aspecto aparentemente incoerente de, numa mesma cena, tão dramática, chegar aquele momento em que se torna tragicomédia. O desafio era enorme. Diziam que não era possível criar lágrimas e ao mesmo tempo mostrar aquela situação quase absurda. Mas sabia que na vida isso acontece. E a comédia permite uma certa crítica simpática sobre o lado materialista da emigração. Então aproveitei essa tonalidade mais cómica para dizer: “Bom, não acham que às vezes é um bocado absurdo quererem exibir as vossas riquezas?” (risos), como nas cenas em que trazem prendas, porque é um sinal de sucesso da vida lá fora. É uma forma de os infantilizar e apontar coisas mais subtis da realidade da vida dos emigrantes.

A tua formação foi toda feita em França?

Nunca vivi em Portugal. A minha formação foi para actriz. Antes de fazer cinema fiz teatro durante dez anos e depois tirei o mestrado em teatro. Nunca fiz escola de cinema, mas para escrever o Alma Viva tive um ano na escola La Fémis, para escrever o argumento. Sozinha teria sido impossível. Agora também escrevo para outras pessoas…

Pergunto isto, porque reparei no ritmo particular do filme. Estava à espera de mais densidade e mistério em algumas cenas. Como o filme tem um lado fantasmagórico, estava à espera de sentir outra densidade no tempo, na atmosfera, no som das cenas… Qual é a tua relação com o cinema português?

Na verdade, para este filme não tenho referências portuguesas. Claro que vejo cinema português, mas não foi a ele que fui buscar as referências para fazer o Alma Viva. Tem mais que ver com o cinema italiano, neo-realismo, Ettore Scola, cinema espanhol, Carlos Saura… o Cria Cuervos (1976) foi o filme que mais me acompanhou. E nos filmes mais contemporâneos foi a Alice Rohrwacher ou o La Cienaga (2001) da Lucrecia Martel, muito pela forma de filmar um grupo, uma família num lugar fechado e a Lucrecia é uma rainha, um génio da encenação. Na duração dos planos, sinto, fazendo aqui uma confissão, que às vezes cortei um pouco cedo. Às vezes são 3 ou 4 segundos que acho que devia ter a mais… mas é assim, estou a aprender. Ao mesmo tempo, aquela brutalidade com cortes mais abruptos tem que ver também com a energia das personagens. Eu gosto de mudar de ritmo.  Enquanto espectadora, também sinto que, em alguns planos que se demoram mais,  muitas vezes são os realizadores a olharem para si próprios. 

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Alma Viva, Cristèle Alves Meira © Midas Filmes]

Trazos de Silencio e uma constelação de borboletas – Entrevista com Valentina Pelayo Atilano no Curtas Vila do Conde

Ouvem-se duas vozes, contam-se duas histórias, mas nenhuma personagem é visível em Trazos de Silencio, de Valentina Pelayo Atilano. Na primeira narrativa, ouve-se a voz de Valentina a descrever uma viagem de Uber pela Cidade do México. Na segunda, o actor Lázaro Gabino Rodriguez lê a crónica True History of the Conquest of New Spain, de Bernal Díaz del Castillo, sobre a conquista espanhola do México. Nenhuma das vozes possui um corpo, no entanto, elas ecoam pelas paisagens do filme como a sua matéria sensível e concreta. Sobrepostas uma na outra, o passado e presente que cada uma narra dialogam no filme numa dimensão atemporal, na qual a experiência sensorial predomina e põe em evidência a história colonial no México ao lado da violência de género. 

Nos silêncios quase inaudíveis que interpelam as duas vozes sente-se subtilmente a sugestão da violência que perpassa os dois eixos narrativos em contraste com a beleza das paisagens de Aguascalientes, Altadena, Bakersfield, Cidade do México, Estado do México, San Luis Potosí, Baja California Sur, Tlaxcala e Zacatecas. À índole naturalista destas imagens, compostas por diferentes elementos paisagísticos, combinam-se os sons não naturalistas da passagem de cavalos, da água, de ferrovias, … e a marca dessa violência toma forma, substância, sempre em silêncio. A alternância entre a impossibilidade de ouvir o que se mostra e de nunca se mostrar o que se ouve gera, dentro do filme, uma alteridade, um espaço e uma dimensão outra que abrem uma fissura entre os conceitos “aqui” e “noutro lugar”, passado e presente, conquistador e conquistado, identificados por Raquel Schefer no texto dedicado ao filme. A imagem dessa fissura é povoada por uma constelação de borboletas que representam as deambulações da própria realizadora entre “um ambiente canibalista e patriarcal”, entre o México descrito em True History of the Conquest of New Spain e o México que ela conhece e vive 450 anos depois. Mais do que as diferenças que a passagem do tempo e a história deixou na terra de Valentina e del Castillo, Trazos de Silencio procura na paisagem ferida, comum à experiência de ambos, algum sinal que se projeta para lá da transitoriedade.

A gradual colonização pela escuridão da fissura atmosférica e do espaço visível de Trazos de Silencio é símbolo da realidade pré-colonial em subducção, do desaparecimento da crença ancestral na reincarnação pela sobreposição de um conceito de morte enquanto facto externo à vida, por contraste com o misticismo da morte enquanto facto interno à vida. O duplo estatuto da morte desdobra-se em duas metáforas: a borboleta que inaugura o filme, num estado de passagem da vida para a morte, e os pirilampos que inundam e se movimentam na escuridão da última paisagem, que, mais do que encerrar o filme, deixam no espectador um traço de continuidade da vida. 

Pela sua natureza experimental, igualmente notável no plano narrativo e no plano formal, Trazos de Silencio propõe um outro olhar, uma outra geografia, onde se esbatem as fronteiras entre o pessoal e político e a experiência individual e colectiva se tornam uma e a mesma. Só assim a experiência de del Castillo se projecta na experiência de Valentina e a fragilidade de um ecoa na fragilidade do outro, pois, independentemente dos seus tempos e histórias pessoais, há algo de avassalador que perpassa pelos dois, que não reconhece nem bem, nem mal, nem passado nem presente, a experiência individual da mortalidade. 

Cátia Rodrigues 

Entrevista com Valentina Pelayo Atilano no Curtas Vila do Conde

Vila do Conde, 17 de Julho de 2022

Cátia Rodrigues (CR): Trazos de Silencio teve a sua estreia nacional aqui no Curtas Vila do Conde. O que é que te levou a escolher Portugal e o Curtas para exibir pela primeira vez o teu filme fora do México? 

Valentina Atilano

Em primeiro lugar, quero agradecer o teu interesse e o espaço para refletir sobre Trazos de Silencio, que, não vamos esquecer, é uma co-produção com Portugal e Espanha e que esta foi a primeira estreia do filme fora do México onde estreou no FICUNAM. Talvez deva mencionar que vivi em Portugal algum tempo durante o desenvolvimento do filme e recebi o apoio tanto do espaço de desenvolvimento Arché do Doclisboa como de Elias Quereta Zine Eskola, tendo tido o privilégio de ter como tutora principal do projecto a Salomé Lamas. 

Foi uma honra e muito importante estrear o meu filme no Curtas Vila do Conde, porque é um festival com uma enorme projecção nacional e internacional e um marco entre os festivais de curta-metragens, do qual ouvi falar tanto e tão bem antes, tendo sido incentivada por amigos a enviar o meu filme. 

Outra razão para o Curtas ser tão especial para mim prende-se com a hospitalidade da equipa talentosa e carinhosa do festival e de todos os que tive oportunidade de conhecer, o que torna a vivência do Curtas uma das mais singulares e extraordinárias. 

CR: O teu filme envolveu muita pesquisa, como é possível ver no booklet que criaste para o acompanhar. O que é que motivou essa pesquisa e como é que chegaste ao livro de Bernal Díaz del Castillo, True History of the Conquest of New Spain?

VA: Eu saí do México com nove anos para viver nos Estados Unidos e, por isso, não aprendi na escola a história do meu país. Quando regressei ao México com 26 anos, tudo o que sabia tinha-me sido contado pelos meus pais. Mas não era suficiente para compreender o país onde nasci e para o qual regressei e o porquê de as coisas lá serem como são. Porque seria impossível estudar toda a história do México, decidi começar pelo início e procurar textos e livros pré-hispânicos e aztecas, um povo dizimado pelos espanhóis aquando da conquista do México.  Um dos poucos textos que restavam e retratavam o México como ele era antes da colonização é o de Bernal Díaz del Castillo. Há rumores de que del Castillo era o próprio Cortez, o conquistador espanhol do México, o qual, porque não queria revelar a sua verdadeira identidade, escreveu True History of the Conquest of New Spain sob o pseudónimo Bernal Díaz del Castillo.

O que me atraiu neste livro, apesar de ser uma crónica sobre a conquista espanhola, não foi apenas um “olhar de fora para um território desconhecido”, mas também foi a sensibilidade das descrições de del Castillo, muito sensoriais. Num espanhol antigo, difícil de ler até, o que tornava a experiência ainda mais desafiante e fascinante, ele falava muito do espaço que o rodeava e de como se sentia nele, deixando transparecer uma fragilidade. Por isso, usei-o como bode expiatório da minha própria fragilidade, como se na experiência dele se pudesse revelar a minha. Outros dos motivos que me levou a escolher True History of the Conquest of New Spain foi a diferença da terra que eu e del Castillo partilhamos. O México que estava a redescobrir e que via é completamente diferente do México que encontramos no livro. Perguntava-me – como pode este lugar idílico de então ter desaparecido completamente? Atualmente, o México é um lugar de tensão e fragilidade, especialmente para as mulheres. Neste sentido, fui motivada por colegas e consultores que trabalhavam comigo no filme a juntar à experiência de Bernal Díaz del Castillo, a minha voz, elemento essencial da minha fragilidade.

CR: Foi daí, dessa tensão e fragilidade que encontras agora no país, que surgiu a ideia de acrescentar uma segunda narrativa a Trazos de Silencio sobre uma viagem de Uber na Cidade do México?

VA: Quando regressei ao México vivia-se um contexto de grande violência no país. O desaparecimento de mulheres e violações, algo que era comum noutras partes do México, começava a acontecer com maior frequência na Cidade do México e afectava também a classe média alta. Havia sempre uma amiga, uma amiga de uma amiga, de quem se conheciam histórias por terem sido vítimas de violência de género. Eu não sabia bem como lidar e aguentar esta realidade, tinha medo de que um dia pudessem acontecer-me alguma dessas coisas e acabou mesmo por acontecer a viagem de Uber que eu conto no filme. Penso que terá sido a primeira vez que esse medo ganhou forma na minha vida e fiquei profundamente desiludida por viver numa cidade onde isso poderia acontecer. Pela primeira vez na minha vida sentia-me frágil e essa fragilidade abriu a minha sensibilidade e motivou-me a usar o meu conhecimento, a minha voz. O objectivo do filme é precisamente transmitir estes sentimentos e experiências de fragilidade e medo, mas sempre através da beleza. Não bastava para mim, contudo, ter apenas imagens belas, eu queria poder questionar, através e com elas, o porquê de eu poder usar a minha voz. Eu queria fazer um filme que refletisse a realidade de outras mulheres, no qual esses sentimentos e experiências se tornam, através do cinema, numa experiência colectiva, com a qual, infelizmente, todas mulheres se relacionam em maior ou menor grau. Enquanto artista, acho que é da maior importância discutir estes assuntos e abordá-los no nosso trabalho. Não obstante, a verdade é que me sinto privilegiada por ter tempo e os meios para fazer um filme.

CR: O título do teu filme é Trazos de Silencio, mas nele nunca se “ouve” o silêncio. Porquê?

VA: O silêncio não existe no México. Aliás, o conceito de silêncio não existe em si. O título vem precisamente de traços de memória de um lugar. Há pausas no filme e essas pausas são os seus silêncios. Um exemplo são as imagens do pôr do sol quase no final do filme e a sequência longa e vermelha do pôr do sol no cerro del muerto em Aguascalientes, México. 

No booklet pode ler-se um email do músico Bernardo Feldman, no qual fala de pregnant pauses, como algo que se pode ouvir, mas não ver. Tal e qual como os segredos. Com o Miguel Martins, designer de som, discuti muito o processo de como representar o silêncio ao longo do filme com sons subtis. 

Trazos de Silencio, de Valentina Atilano © Direitos Reservados 

Essa é a abertura do filme, o seu sussurro, com o qual o espectador pode relacionar-se, descobrindo o seu segredo.

O título Trazos de Silencio possui um segundo sentido. É comum prestar-se uma homenagem às pessoas que desapareceram com um minuto de silêncio e foi isso que eu fiz.

CR: Que papel desempenha a paisagem no teu filme? Porquê filmar a paisagem e não, por exemplo, personagens que tornassem visíveis, corpóreas a tua voz e a voz do actor Lázaro Gabino Rodriguez? 

VA: A minha decisão de trabalhar com a paisagem foi muito intuitiva. Antes de começar a fazer cinema, eu vim da pintura, nomeadamente da pintura abstracta. A representação físicade pessoas não me interessa tanto, prefiro os elementos formais, como por exemplo o som e a cor, que é muito importante para mim, que são tão vitais para mim quanto a imagem, como se pode ver na presença do vermelho no filme. Gosto de filmes simples e queria que o meu filme fosse assim. O que há de mais simples e elementar do que a paisagem? A luz é outro aspecto importante. Eu comecei o filme a falar de pirilampos num sítio onde eles não existem até se fazer noite e acabei o filme no mesmo espaço com uma paisagem iluminada por pirilampos, introduzindo o conceito de memória da paisagem. Como é que um sítio é habitado ao longo do tempo? 

Trazos de Silencio, de Valentina Atilano © Direitos Reservados 

Os sons não naturais que ouvimos, como por exemplo as ferraduras dos cavalos, o som do metal das ferrovias, foram sugeridos pelo Miguel Martins quando trabalhávamos juntos durante a montagem, como marcas da evolução do material no tempo, na paisagem, do que desapareceu e do que foi ficando. 

CR: Consideras Trazos de Silencio um filme feminista?

VA: Considero que este filme é um pequeno acto de resistência, porque abrange desde um lugar íntimo a um lugar colectivo, fragmentos de uma realidade onde a opressão patriarcal e a violência de que as mulheres são vítimas é sufocante e, em certo sentido, indissociável da opressão colonial. 

Filmei quase tudo no México, mas editei fora do país, para me afastar do contexto violento que lá se vivia, tendo, no entanto, criado o filme fazendo uso desse mesmo contexto. Na verdade, precisava de alguma distância para conseguir representar a densidade e tensão do México, um país belo, mas ferido. Trazos de Silencio tem essa magia e beleza do México pré-colonização, mas também a violência e fragilidade de hoje, da invasão espanhola e do povo azteca. Escolhi mapear uma complexa constelação de questões e sentimentos passível de ser livremente interpretada pelo espectador.

CR: Por isso é que é tão importante para ti o conceito de paisagem ferida que tão bem se sente e mostra no teu filme?

VA: Sim, paisagem ferida, terra ferida. Outro dos objectivos do filme era contrastar a beleza da paisagem com a ferida aberta do colonialismo e com a fragilidade em que sempre encontramos no filme o próprio Bernal Díaz del Castillo. A presença das borboletas não é senão uma metáfora da fragilidade. Por isso, abri o filme com uma borboleta quase morta, isto é, no momento de passagem da vida para a morte. Num filme marcado por uma presença da morte, a minha voz, o movimento das borboletas são sinais da vida. Mas a parte mais difícil para mim foi descobrir como retratar essa fragilidade através do som, porque eu queria acrescentar uma outra camada, uma outra textura. A presença do som do metal foi uns dos instrumentos importantes para tornar visível essa ideia de terra ferida. 

Trazos de Silencio, de Valentina Atilano © Direitos Reservados 

CR: Dessa noção e da presença da morte forma-se o sentido mítico de Trazos de Silencio? Mítico como uma metáfora que diz respeito tanto à história do México e da sua colonização como também ao actual estado de coisas no país. 

VA: A dimensão mítica serve como uma ponte entre o passado e o presente do México. Antes da colonização, o povo azteca fazia sacrifícios, desmembrando e ingerindo pessoas como uma oferenda aos deuses. Mais do que representar a violência que já existia antes da colonização, no filme manifesta-se, metaforicamente, claro, o canibalismo que ainda pauta a sociedade mexicana contemporânea. Atrás de um país vibrante e incrível, pleno de celebrações, sons e cores, o México foi e continua a ser um país mutilado, e isso faz parte do seu ADN. 

CR: Qual é a razão para teres filmado em três formatos diferentes, 16mm, 35mm e digital?

VA: Vem do acto de preservação, dos limites no momento do filmar em película e do mistério que esse momento encerra. Existe um certo mistério e surpresa associado aos formatos analógicos. Gosto de não ver o que estou a filmar no momento, porque isso me leva a tomar decisões de enquadramento mais emotivas e intuitivas, isto é, o facto de filmar em película ser muito caro, coloca limites que me obrigam a estar segura em relação à intuição do que quero filmar.

Quanto ao digital, a razão foi puramente económica. Filmar em película é muito caro e em algumas situações bastante difícil e demorado. Por exemplo, os timelapses do pôr do sol eram muito longos, tinha mesmo de filmar em digital, assim como os pirilampos, impossíveis de filmar em analógico. Além disso, o cruzamento de diferentes formatos foi uma forma de questionar as fronteiras e ultrapassar barreiras do próprio meio cinematográfico, rejeitando o pressuposto de que para cada filme apenas um formato é adequado. O cinema experimental dá-me essa liberdade. 

Trazos de Silencio, de Valentina Atilano © Direitos Reservados 

CR: Mais do que questionar as fronteiras do meio cinematográfico, em Trazos de Silencio também encontramos uma reflexão sobre o conceito de fronteira, num sentido geográfico, e de terras fronteiriças, que coloca em causa as divisões políticas e territoriais. Consideras que este aspecto é uma consequência da tua geografia pessoal, composta por mais do que um país?

VA: Eu cresci perto das montanhas de Sierra Madre em Pasadena, Califórnia, um subúrbio de Los Angeles, depois da minha família ter deixado a Cidade do México. A diversidade paisagística e geográfica faz parte do meu crescimento. Quando penso nas fronteiras como algo que delimitam um país, lembro-me que a Califórnia fazia parte do México, quando o país ainda era uma colónia espanhola. Além da relação que tenho com ambas as terras, essa foi uma das razões que me levou a filmar parte de Trazos de Silencio na Califórnia. Sentia-me como se não pertencesse a lugar algum, uma imigrante sem terra, navegando numa esfera liminar, como as borboletas, que migram do Canadá para o México. Tudo isto são texturas do meu filme, que, no fundo, é um acto de encontrar solo, pertença, de me enraizar em algo. Como eu o penso, o meio de cinema é universal, e, por isso, o processo de filmagem foi para mim uma forma de me enraizar, não a um lugar, mas em mim mesma, para lá de qualquer território ou fronteira. 

CR: Outra das principais características de Trazos de Silencio é a abertura tanto formal quanto narrativa. O teu filme contém segredos, sugestões, mas nunca um olhar último e definitivo sobre os assuntos que nele abordas, deixando espaço para que o espectador possa construir o seu próprio olhar sobre ele, a sua interpretação. 

VA: Todas as pessoas que vieram falar comigo sobre o filme tinham a sua interpretação, sempre diferente da anterior e, muitas vezes, davam-lhe significados nos quais não tinha pensado ao fazer o filme. O mais importante para mim foi sempre deixar uma impressão em quem vê o filme, de modo a que ele passe a pertencer ao mundo. Trazos de silencio é uma espécie de semente que cresce no olhar do espectador, ele é colectivo e não apenas o meu filme. Neste sentido, a criação transforma-se num perpétuo diálogo, uma conversa entre mim e quem vê o filme, que completa a minha interpretação do mesmo. Inconscientemente, quando falo do filme, como estou a fazer agora, partilho contigo não só a minha experiência de o criar e de lhe dar significado, mas também todas as interpretações e experiências que foram partilhadas comigo. Isto é maravilhoso, pois são elas que mantêm o filme vivo, o tornam, de certo modo, imortal. 

[Foto em destaque: Trazos de Silencio, de Valentina Atilano © Direitos Reservados]