A marcha do tempo no laboratório mental de Pedro Maia – Entrevista

É no cruzamento de matérias primas, de suportes analógicos e digitais e na dilatação dos seus limites que se descobre o trabalho de Pedro Maia, realizador português a residir em Berlim há vários anos. O confronto dos materiais, a desfiguração, destruição ou diluição do figurativo e da própria materialidade das imagens, com vista à reificação da abstração, remete para uma ideia de pintura em movimento trabalhada sobretudo em película de 16mm e 8mm. Desde as primeiras experiências em Super 8, passando por um filme criado a partir de “restos” de planos do filme A Zona (2008), de Sandro Aguilar (onde trabalhou como segundo assistente de realização), até à multidisciplinariedade que cruza live cinema, música, livros e instalações, chegamos ao ponto em que já não há (ou nunca houve) imagem real. É o caso de March of Time, que estreou na competição experimental do Curtas Vila do Conde 2023.

O realizador afirma que o filme nasceu do “interesse de explorar a inteligência artificial (AI), porque o que tenho visto é muito mau e muito piroso. Então foi pensar em utilizar isso para voltar atrás. Pegar nesta ideia de regressão da tecnologia, do futuro a olhar para o passado e a recriá-lo. Lembrei-me de pôr a AI a criar imagens destruídas de 16mm. Produzi um algoritmo que concebia uma espécie de terceiro analógico. Portanto, é a inteligência artificial a tentar criar imagens que ela entende serem imagens de 16mm destruídas.”

Partindo de uma reflexão sobre o tempo e a sua influência nos suportes fílmicos, a ideia passou por usar mecanismos de machine learning (um processo tecnológico que permite aos computadores adquirir e desenvolver conhecimento sobre determinado assunto automaticamente) de forma a criar imagens degradadas de 16mm.

Se o conceito nos deixa curiosos, o resultado não é menos interessante. O que vemos é uma sugestão estética daquilo que seria película destruída/desfigurada do ponto de vista da máquina. Nunca saberemos que imagens reais aquela desfiguração esconde, levando a nossa mente a viajar por este filme-fantasma, pleno de cores, formas e texturas, divididas em “capítulos”, de onde a narrativa não está completamente ausente. Há vontade de criar uma estrutura, um desenvolvimento, um ténue fio condutor que, por muito minimal que seja, nos guie pela aventura imagética. Sem deslumbres, – porque há sempre o contacto com a pobreza inerente àquilo que a inteligência artificial é capaz de produzir – o realizador utiliza aquilo que é mais uma ferramenta ao seu serviço, não esquecendo as suas limitações. Neste caso, o trabalho é também a procura das imagens certas. É preciso treinar o computador, domesticá-lo, conduzi-lo através de um caminho atestado de informações e fazê-lo “pensar”, “ensinar-se”. 

March of Time, Pedro Maia ©

À semelhança de alguns projectos como How to Become Nothing (2017) ou Janela do Inferno (2022), onde tem sido feita a articulação entre objectos fílmicos mais tradicionais de montagem fixa e formatos ao vivo, com March of Time acontecerá o mesmo: “Agora estou em conversas com alguns sítios para passar isto para 16mm e mostrar como  instalação. Com o Pedro Vian, que fez a banda sonora, estamos a desenvolver um concerto com base nisto. O filme foi comissariado pelo 25AV que financiava uma peça audiovisual a um duo que concorresse. Agora, quatro desses projectos vão ser selecionados para a vertente ao vivo. Nós ainda não sabemos se vamos ser selecionados, mas já estamos a avançar com o projecto.”

Esse desejo por cruzar diferentes disciplinas artísticas é expresso pelo realizador, que dá o exemplo de vários dos seus outros trabalhos: “Cada vez mais tenho essa necessidade de que o projecto não seja só uma coisa. Especialmente por causa dessa necessidade de deixar um ou vários registos. Por exemplo, a partir do How to Become Nothing fizemos o Fade Into Nothing, porque o Indielisboa estava interessado em mostrar isto em competição. Agora, quando olho para o filme, fico arrependido, porque é muito menos radical. Fizemos uma versão mais contida, menos confusa, onde a montagem é muito mais simples. Ao vivo há muitas coisas que acontecem. Agora arrependo-me de não ter transposto essa radicalidade do live cinema, que para mim foi a melhor forma de mostrar o projecto”.

Também Janela do Inferno, filme comissariado para um concerto do festival Walk&Talk nos Açores, transformou-se numa curta-metragem: “Convidaram-me para fazer o concerto de abertura do festival e decidi convidar a Lucy Railton, que faz música electrónica experimental, para fazermos a residência em conjunto. Depois o Luís Fernandes, que comanda o GNRATION, convidou-nos a fazer uma peça para ficar online, com uma montagem fixa entre 10 a 20 minutos.”

March of Time, Pedro Maia ©

Essa experiência em filmes-concerto e live cinema, levou-o a desenvolver um trabalho muito forte no que toca à articulação com a música e espetáculos ao vivo, algo que é reforçado pela sua visão cinematográfica: “Como eu venho do cinema experimental e não da media art, para mim tudo no ecrã tem que funcionar como um filme. Depois quando pões a banda, as luzes, o público, isso fica muito mais forte. No meu trabalho, apesar de todo o improviso envolvido, há uma estrutura em que sei mais ou menos a música, os tons, e sei que começo num certo ponto e sei onde tenho que estar no momento seguinte. Aquilo tem que continuar a funcionar por si só numa sala de cinema. A narrativa é muito importante também para os músicos e não tem que ser uma coisa óbvia. Nos meus filmes experimentais e concertos abstractos há sempre qualquer coisa que me guia e espero que guie de alguma forma o concerto. Às vezes coisas muito básicas como começar muito escuro e acabar muito claro. Só isso já é importante, porque te ajuda a restringir, a saber que tens que fazer determinada coisa. Como faço isto há muitos anos, já consigo respirar fundo, mas quando estás ao vivo o tempo é muito mais rápido. Se não tens pausas, é difícil. O mais importante para mim é teres uma narrativa, seja lá qual for.”

Sobre voltar a trabalhar filmes mais narrativos ou figurativos como Fade Into Nothing ou Guanche, projecto para o festival ALESTE na Madeira, que voltou a juntá-lo a Paulo Furtado e à actriz Iris Cayatte, o realizador acrescenta: “Apresentamos na Madeira, no Curtas Vila do Conde, no Porto, e é um projecto que é cinema, música e spoken word. Apresentamos no Curtas e tivemos muito bom feedback. É narrativo, mas também muito experimental. Mas a minha tendência é ir sempre para coisas não narrativas, apesar de haver sempre uma estrutura, como no Janela do Inferno: há uma ideia de percurso, uma narrativa, apesar de ser muito experimental, mas acontece mais quando trabalho com outras pessoas. No Guanche escrevemos um guião e acabamos por fazer uma coisa totalmente diferente.”

Guanche, Pedro Maia ©

Nesse cruzamento de várias disciplinas artísticas, naturalmente, os projectos acabam por vir de impulsos diferentes. O facto de trabalhar num dos últimos laboratórios da Alemanha a fazer todos os processos analógicos (revelação, cópias de cinema, etc.), onde é responsável pelas digitalizações, fez com que fosse à procura de bobines de nitrato, “porque as cinematecas têm, mas aquilo está sempre muito bem guardado, porque é muito inflamável e é difícil ter acesso. E eles disseram-me que tinham lá umas latas. E aquilo eram imagens de um incêndio para aí de 1930, um filme que está completamente destruído, com imagens de um fogo num suporte que é altamente inflamável. E decidi que tinha que fazer alguma coisa com aquilo, uma coisa de 5 minutos, muito simples.”

Berlin Feuer, Pedro Maia ©

Daí nasceu Berlin Feuer (2021), onde a forma se alia ao conteúdo representado, dando origem, pela sua fenomenologia, a um filme-chave e representativo do seu trabalho: “Digitalizei as imagens e estava a trabalhar com elas, mas achei que fazer uma coisa só com found footage, como o Bill Morrison faz, não era suficiente e decidi intervir na película. Muitos dos projectos que faço em película passam por uma primeira destruição. Digitalizo, faço uma segunda destruição, digitalizo, etc. Até quase o original ser perdido. No Guanche tenho isso: imagem limpa até um nível de destruição em que quase não vês nada. Gosto dessa ideia de o que fazes ser irremediável, de fazer os filmes como faço os concertos, com essa qualidade quase efémera.”

O que também ajuda a tornar o seu trabalho particularmente interessante e único é uma despreocupação com purismos desnecessários. Identificar as qualidades latentes dos materiais e suportes com que se trabalha, desafiando-se a expandir as características inerentes ao seu trabalho através dos mesmos, tem sido receita para os seus filmes: “Gosto de articular o digital com o analógico. Uso muito o digital, faço muita coisa em 4K. Não me interessa aquela ideia nostálgica da película ou do antigo. Isso não me interessa. Eu uso a película pela sua plasticidade e propriedades. E no Guanche isso é fixe, porque consigo no mesmo concerto ir de uma imagem muito limpa em que te focas numa imagem muito bem construída de forma cinematográfica e passar para uma totalmente caótica em que quase não vês imagem. O que tenho feito em alguns projectos como o Janela do Inferno é filmar em digital e passar para película. Destruir o analógico e voltar a passar para digital. Ando sempre entre uma coisa e outra. Acho que é isso que dá força ao meu trabalho, porque no cinema tu tens os puristas da película que fazem as cópias e não percebem nada de digital. Depois há a malta do digital que não percebe nada de película. Eu estou confortável nos dois campos e acho que o meu trabalho explora isso e valoriza-se por causa disso. Não tenho aquela coisa nostálgica, mas antes um interesse em intervir na película, seja pós-revelação ou na revelação com químicos, onde mudo os tempos, o PH da água… ou aplico efeitos de solarização como o Man Ray fazia.”

Para além dos espetáculos onde alia as suas imagens à música de outros, essa relação com a música e os seus atributos é também importante nos seus filmes: “Sim, a música acaba por ser uma paixão mais forte do que o cinema para mim, mas não tenho talento nenhum. Mas é aquela coisa de fazer música com imagens. É um conceito a que eu não gosto de me associar tanto, mas é um bocado visual music.” 

A experiência em sala é a imersão nas qualidades materiais e plásticas das imagens criadas pelo realizador e da música a que se associam, numa fruição visual e sonora que não deixa de apelar a descobertas estruturais e narrativas por parte do espectador. Essa relação com a música é transposta também para a própria criação de vídeos musicais que, mais uma vez, se articulam com outros suportes:  “Fiz um videoclipe para o Vessel que se chama Passion, que tinha tanto bom material de 16mm, de stills e tudo mais, mas o Vessel não queria lançar o disco em vinil, por motivos ecológicos. Então decidimos fazer uma fanzine, limitada a 50 unidades, com base nas imagens a 16mm que não foram usadas no videoclipe, para quem comprar o digital ter a fanzine. Depois o dinheiro era doado a uma instituição de mind charity, porque a música tem também que ver com isso. Portanto, a ideia era construir um livro que fosse uma espécie de filme. Esta dinâmica é uma coisa que me interessa muito. Obviamente que o meu trabalho é mais ao vivo e sobre esta ideia de construir coisas que não se repetem.”

Para além de March of Time, Pedro Maia apresenta ainda o videoclipe “Scotch Rolex and Shackleton – Deliver The Soul, na competição de vídeos musicais do 31º Curtas Vila do Conde.

Ricardo Fangueiro

Síntese dos elementos e múltiplas formas de fazer ver – três filmes de Sandro Aguilar

Apesar do percurso discreto, Sandro Aguilar é um dos realizadores mais prolíficos do cinema português dos últimos anos, se contarmos o número de filmes que realizou nas últimas duas décadas e meia, desde a estreia de Estou Perto (1998). Para além do trabalho como realizador e montador, Aguilar é produtor e um dos fundadores da produtora O Som e a Fúria, responsável por vários trabalhos de Miguel Gomes, Salomé Lamas ou Manuel Mozos. Por isso mesmo, esta sessão na Cinemateca Portuguesa, onde foram exibidos Armour (2020), The Detection of Faint Companions (2021), e ainda O Teu Peso em Ouro (2022), não deveria passar despercebida ao público português. Três filmes que, pela diferença de métodos e formas, revelam o que há de variado no seu cinema, mas também aquilo que já faz parte da sua assinatura.

Aguilar tem-se proposto a implodir com várias formas pré-estabelecidas de construção narrativa no cinema, procurando constantemente as múltiplas linguagens que os filmes podem adoptar e todo o potencial artístico dos dispositivos fílmicos. Com um trabalho maioritariamente em formato curta-metragem, o realizador conta com 19 filmes, entre os quais apenas dois obedecem ao formato de longa-metragem. Esta matemática espelha a importância da experimentação na sua obra, pois o formato curto é, muitas vezes, o terreno mais seguro para arriscar. 

Se esse lado experimental fica vincado na concepção das suas ideias, tudo é pensado e calculado ao milímetro no seu habitat natural: a mesa de montagem (o realizador é formado em Montagem pela ESTC e montou vários filmes do cinema português nos últimos anos). É nesse processo que a intuição que leva para a rodagem é substituída por um profundo processo de interligação de imagens, sob uma lógica que visa deixar abertura à visão última do espectador, parte sempre activa no seu trabalho.

O primeiro dos três filmes desta sessão, Armour (2020), é composto de fragmentos (palavra significativa no seu cinema, pois muitas vezes se trata de desfragmentação narrativa, de tirar peças do puzzle), diferentes blocos filmados no contexto de uma residência artística em Rimouski, no leste de Quebec, no Canadá. Nesse processo, o realizador teve carta branca para criar o objecto que assim entendesse. 

Se, maioritariamente, as imagens servem para compor e fazer avançar uma narrativa, neste e noutros casos da sua obra, a narrativa está lá para servir as imagens, para as unir e criar um universo composto de gestos e ações que formam essas histórias quase invisíveis. Em Armour, é através das legendas e intertítulos que vão aparecendo sobre e entre os planos que percebemos onde estamos e quem seguimos: Hector, alcoolizado, inicia a sua marcha decadente pelos subúrbios da cidade canadiana. Pelas informações que nos vão sendo dadas, sabemos que o pai de Hector está gravemente doente, a sua namorada deixou-o por um homem mais velho, levando o seu filho consigo, e que Hector se refugia no álcool. O resto é preenchido pela nossa imaginação e várias são as leituras possíveis, dentro de limites pré-determinados e propostos pelo realizador.

Bastante experimental do ponto de vista narrativo, a cartografia da paisagem que Aguilar foi encontrando dá origem à história que é construída através das palavras e sons adicionados na montagem. E o resultado é cativante. Somos levados, ao longo dos trinta minutos de filme, pelo consciente e pelo inconsciente da personagem. Não é estranho identificar também aqui o que o realizador diz numa entrevista sobre Mariphasa (2017): “os filmes vêm de um lado completamente subterrâneo em mim, uma mistura de memórias, medos, inquietações, que tento traduzir em imagens e sons o melhor que consigo.” Tudo isso parece de extrema importância na hora de compor o seu universo ficcional.

É curioso que esse encontro com a paisagem e a realidade dê origem a filmes tão ficcionais como este, ao invés de representações documentais daquilo que encontra. Acerca disto, Aguilar assume: “Eu não quero ter uma relação com a realidade. Quero construir uma realidade que é a do próprio filme, que se relaciona com a nossa realidade, mas não a representa.” Isto cria uma ligação estimulante entre obra e espectador. Precisamente dessa ligação surge uma beleza enigmática. Os resultados obtidos são sempre distintos, mas adquirem um interesse particular na relação com esse mesmo espectador. A imaginação de quem recebe a obra (essencial na literatura, por exemplo, mas preferivelmente presente em todas as formas de arte) tem aqui um papel semelhante ao do leitor. São as imagens do espectador que completam os espaços em falta. É essencial a sua fantasia.

Armour, Sandro Aguilar © O Som e a Fúria

O que foi dito anteriormente serve igualmente a outros dos seus trabalhos. Se considerarmos Sandro Aguilar um realizador experimental, The Detections of Faint Companions (2021) é sem dúvida o seu filme mais experimental e abstrato. A começar pela sinopse que nos dá alguns elementos indecifráveis: “Lua Cheia. Dentro. Talvez não sozinho.” A obra é o culminar de um minimalismo que sempre procurou – na tradição de Stan Brackhage ou Nathaniel Dorsky – a partir de imagens de uma instalação visual criada para um espetáculo teatral inspirado em Ping, de Samuel Beckett. Contudo, se não nos surpreendemos por este “desvio” na sua obra, é curiosa a motivação que teve para a construção do filme, uma vez que este terá surgido do seu preconceito relativamente à utilização do vídeo no contexto teatral. Isto porque é importante para si não dissipar esse lado que o texto esconde através daquilo que a concretização da imagem pode comprometer. Por isso, aquilo que vemos dilui-se; aquilo que detectamos desmorona-se; aquilo que damos como certo, desaparece. Depois, é deixarmo-nos imergir no resultado hipnótico daquela conjugação entre imagem e som ao longo de 9 minutos. 

Pois justamente de hipnose se trata O Teu Peso em Ouro (2022). Naquele que é o seu mais recente trabalho, o cineasta procurou recuperar um método mais clássico de fazer cinema de ficção. Um certo tipo de cinema que o realizador “reaprendeu a gostar”. Os “monólogos dialogados”, o uso da música, o método clássico associado à escrita, o campo/contra-campo, dão aqui origem a uma história algo melancólica que parece retratar uma ressaca física e emocional depois de uma sessão de hipnose. No entanto, encontramos as personagens alienadas, a narrativa obscura e o desenlace hermético com que já nos tínhamos deparado em outros dos seus filmes.

Mais uma vez, todo o conteúdo do filme é associado à forma. Se pensarmos no processo da hipnose em que somos guiados por alguém que inspira imagens a serem criadas no nosso cérebro, o jogo que aqui se propõe é idêntico. Ao ver o filme somos convidados para esse transe. A voz da personagem de Oscar, interpretada por Marcello Urgeghe, é verdadeiramente capaz de nos enfeitiçar e é admirável a cena protagonizada por ele e João Pedro Bénard, em que este discorre sobre os acontecimentos do dia anterior e se deixa levar pelo encanto do clamor daquele. “Agora já não vês este quarto”, diz Oscar antes de apagar o isqueiro. Depois, o seu rosto na penumbra.

Há algo de profundamente atraente naquelas vozes, no jogo de luz e sombra ao cuidado da composição fotográfica de Rui Xavier, companheiro de longa data do realizador, que dá a O Teu Peso em Ouro, o cariz estético que evidencia o lado sobrecarregado das personagens. Essa sobrecarga também se sente na cena na qual Oscar se veste lentamente, com todo um cuidado e formalismo nos gestos pausados sob a luz solar reflectida no seu corpo e rosto. Tudo é orquestrado de forma a criar um dos objetos mais sedutores do seu cinema. 

O Teu Peso em Ouro, Sandro Aguilar © O Som e a Fúria

Assumidamente, há um ímpeto experimental cada vez que Sandro Aguilar se lança para um novo projecto. Isso também explicará um percurso mais obscuro e a aura de uma obra difícil e emaranhada. É também isso que é preciso repensar. O seu cinema joga com certos códigos para os quais, enquanto espectadores e críticos, devemos estar disponíveis de forma a alcançar todo o potencial estético-narrativo dos seus filmes. Como já dito anteriormente, interessa-lhe o espectador activo que se encontra no teatro e na literatura: “No teatro basta apontar na direcção do vazio e dizer que naquele instante passam cinquenta cavalos na estrada de terra batida para que o nosso imaginário preencha esse intervalo com a nossa forma particular de visualizar o que é invocado pela palavra”, escreve o realizador na folha de sala desta sessão. Foi também isso que procurou fazer em O Teu Peso em Ouro, deixando espaços vazios para nos questionarmos sobre se as personagens vêem realmente o que estão a ver.

Apesar de apontar sempre para caminhos diferentes, Aguilar vem aprimorando fórmulas que trabalham para lá das configurações clássicas e da evidência de determinados métodos. Esta sessão foi exemplo disso: três objectos particulares, não só no cinema em geral, como na própria obra do realizador que procura reinventar o cinema a cada filme. Aguardemos o próximo (em produção) e logo veremos por que aliciantes caminhos esta obra em construção nos levará.

Ricardo Fangueiro

Pátio do Carrasco: Mitos lusitanos e assombrações kafkianas

Através de um rigor formal e um modo clássico de fazer cinema, André Gil Mata propõe-se neste Pátio do Carrasco, a contar um episódio da história do último carrasco português, Luís Alves. A média-metragem, presente na competição nacional do Indielisboa, começa com um narrador que nos dá conta da figura deste homem, cuja vida foi trespassada por peripécias e vários crimes. Por esses delitos viria a ser condenado à morte ou, como alternativa, ser condenado à tarefa de carrasco do reino. A decisão era, aparentemente, simples: morrer ou matar.

A exposição inicial da vida do algoz Luís Alves não nos prepara para o que aí vem. Um filme com poucos diálogos e um tratamento de som importantíssimo para o seguimento do que nos é mostrado ou escondido. Através dos gestos e rotinas das quatro personagens, damos conta do mistério que se adensa. A inspiração kafkiana (o filme baseia-se no conto Um Fratricídio, de Franz Kafka) faz-se perceber na temática e na fotografia do filme, mas não estaremos a exagerar se também dissermos que faz lembrar algumas obras do cinema português, de Manoel de Oliveira a António de Macedo. André Gil Mata deixa-se mesmo influenciar pelos melhores e é hábil na conceção das suas ideias. Porém, o filme parece também nunca conseguir soltar-se do formalismo da sua composição notável, não se permitindo ser invadido por outras descobertas cinematográficas.

Filmado em estúdio e contado em vários capítulos, a obra estabelece um jogo de perspetivas sobre a noite de um crime. Por vezes expressionista na fotografia e em determinados gestos técnicos – os constantes travellings e zooms contribuem para a sensação de prenúncio sobre o mal que irá ocorrer -, o filme conserva uma herança teatral devido à prestação dos atores e da misé-en-scene. Assombrado, melancólico e com laivos de terror, este pátio é filmado de maneira exímia, com cenas longas e silenciosas, que dão ideia do tempo real daquela noite e aumentam a tensão antes do crime.

Pátio do Carrasco, André Gil Mata © Rua Escura, Agente A Noite, Primeira Idade

Também de janelas se faz este filme, onde o início de cada capítulo começa justamente com o enquadramento de uma, seguido de um travelling para o interior de casa. A janela é um elemento central na arquitetura deste espaço, que permite testemunhar o que ocorreu noutro lugar (à semelhança de Janela Indiscreta, 1954), fortalecendo a ideia da visão subjetiva de cada um, desta feita através da sua janela. 

Talvez este filme faça um percurso discreto por festivais. Público e programadores estarão interessados em filmes que pensem mais o presente e as dinâmicas atuais, fazendo com que filmes de grande inspiração literária e de construção tão precisa como este, não sejam o prato forte dos festivais neste momento. Contudo, é bom saber que também se encontra vitalidade nas formas mais clássicas de fazer cinema.

Ricardo Fangueiro

Entre a Luz e o Nada: uma rave cósmica sem sair do sítio

Um conto de ficção científica alucinado ou o retrato fiel de uma esfera queer lisboeta, caracterizada por um desejo de emancipação e apreço aos apetites corporais. Uma viagem, poderíamos dizer, INTRA-galáctica, pelos planetas do nosso inconsciente, pois os sonhos, visões e delírios, formam o núcleo da narrativa. À primeira vista, parece que Entre a Luz e o Nada, de Joana de Sousa, vem na sequência de uma nova vaga do cinema português, que traz consigo muita cor, adereços e décors excêntricos, drogas e raves. Isto, à semelhança de dois dos vários exemplos dessa corrente: Verão Danado (2017) ou Frágil (2022).

Entre a Luz e o Nada, Joana de Sousa © Primeira Idade

As primeiras imagens do filme pertencem à curta-metragem Universe (1976), de Lester Novros, que relata os mistérios espaciais pela célebre voz de William Shatner, e que serve de prólogo para o foco num grupo de jovens que se prepara para uma rave num edifício abandonado. A dada altura, o narrador pergunta: “Is space travel to these planets possible?”. O filme parece dar a sua resposta. Como é dito pelo mesmo narrador, tudo à nossa volta é feito de poeira de estrelas muito distantes, reforçando a ideia do lugar dos seres humanos no imenso cosmos e a nossa pertença ao mesmo. Além dessa pertença, há uma intenção de criar um olhar alienígena sobre estas pessoas e em particular sobre Shade, a protagonista que sofre de insónias devido a umas luzes que aparecem no céu.

Depois de sermos apresentados a este espaço, Entre a Luz e o Nada é um devaneio colorido de pessoas assombradas por visitas siderais. O filme acaba por ser uma caderneta de símbolos, como se pode perceber pela sinopse: “Cosmos, golfinhos, techno e solidão. Borboletas, amor e raves. Fechamos os olhos, e atravessamos todo o universo numa única noite.” Tal delírio pertence às fantasias comuns de uma geração, que serve de dispositivo para a criação do universo do filme. Também daí vem a frescura de Entre a Luz e o Nada, cheio de fórmulas onde se encontram latentes as capacidades de, quem sabe, trazer algo de mais interessante do que este resultado, no futuro. Fica o prenúncio: quando seres de outros planetas nos visitarem, encontrar-nos-ão num edifício em ruínas a dançar ao som de techno.

Entre a Luz e o Nada, Joana de Sousa © Primeira Idade

Note-se que este é um registo muito diferente do seu anterior Bétail (2014) e que pode significar um desvio curioso na obra da realizadora. Entre a Luz e o Nada revela-se inspirado pelos mistérios de visitas alienígenas ao nosso planeta, de memórias de infância ou sonhos lúcidos, projetando-se num cruzamento estético dos anos 80 e 90. É uma procura por novos corpos, novos animais, novas formas de ser, e que deixa subjacente uma questão curiosa: porque procuramos vida noutros planetas se continuamos a encobrir tantas vidas neste?

Ricardo Fangueiro

Mal Viver: a secura das almas num hotel assombrado

O díptico ambicioso de João Canijo foi um dos objectos que mais curiosidade suscitou, à partida para a competição oficial da Berlinale. Mal Viver é, de facto, um filme imponente e violento, difícil de suportar, que nos faz mergulhar na sofreguidão intensíssima desta família. Quando voltamos à tona, falta-nos o ar.

É conhecido o interesse de Canijo pelo trabalho prolongado com os actores. O realizador tem um método muito característico de composição da história e construção das personagens junto das actrizes, que participam activamente no processo de escrita e preparação do filme. A profundidade desse método fá-las viver as cenas com uma energia feroz. 

Mal Viver, João Canijo © Midas Filme

O início de Mal Viver mostra-nos Piedade (Anabela Moreira) deitada junto à piscina com a sua cadela, Alma, ao colo. Na piscina e na companhia de Alma, Piedade encontra o conforto necessário para conseguir suportar o estado depressivo em que se encontra mergulhada. Contudo, o regresso inesperado da sua filha Salomé (Madalena Almeida) vem abalar definitivamente essa condição. Sara (Rita Blanco) é a matriarca da família que tenta gerir o hotel ao mesmo tempo que a tensão familiar. 

O realizador é hábil no jogo do campo, contra-campo e fora-de-campo – transformando a obra num ensaio sobre o acto de enquadrar, de escolher o que se mostra e o que não se mostra. Isso está, obviamente, presente na própria proposta de fazer dois filmes no mesmo intervalo espácio-temporal, mas acompanhando diferentes personagens. É como se, neste caso, houvesse mais do que um sítio em que a câmara pudesse estar, e isso dá origem aos dois pontos de vista – Mal Viver, que segue as donas do hotel; e Viver Mal, que nos mostra os hóspedes desse mesmo hotel.

Não há dúvida que Canijo domina a linguagem do cinema narrativo e que se tornou um mestre do seu cinema. Cada centímetro é trabalhado com minúcia e isso nota-se. Mal Viver é fabulosamente envolvente ao fazer-nos acompanhar de perto o drama familiar daquelas mulheres. Nos encontros e no fora-de-campo, vamos desvendando as histórias e as personagens de Viver Mal. O facto do filme ter sido rodado num hotel durante o período de confinamento possibilitou um controlo total que o torna fechado, claustrofóbico, e onde as personagens sufocam na angústia e no desespero. No entanto, esse controlo teatral também afasta o espectador de uma relação mais emocional com o filme. 

As constantes conversas cruzadas, que já fazem parte do cinema de João Canijo (algo que em Sangue do Meu Sangue resulta muito bem), criam em Mal Viver alguns momentos absurdos, principalmente nas cenas em que as responsáveis do hotel atendem os clientes à mesa, durante o jantar. Na altura de apresentar as suas sugestões do que têm no menu, as empregadas de mesa falam por cima das conversas dos clientes distraídos. Completamente ignoradas por eles, continuam a falar de forma irreflectida para o ar. Esse cruzamento de vozes é embaraçoso e nada acrescenta ao filme.

Mal Viver, João Canijo © Midas Filmes

Sôfrego e tocante, o filme deixa-nos exaustos pela experiência poderosa que nos provoca, mas o resultado não é totalmente convincente. O seu lado demasiado cerimonioso e presumido afasta-nos do lado humano das personagens, deixando-nos com a secura das suas almas perdidas pelo hotel.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Mal Viver, João Canijo © Midas Filmes]

Ingeborg Bachmann: Journey into the desert: o sonho da paisagem sem obstáculos

“Tu és o meu assassino”, diz Ingeborg Bachmann (Vicky Krieps) a Max Frisch (Ronald Zehrfeld), o seu companheiro controlador, ciente da influência negativa daquele homem que a impede de se tornar a escritora independente e livre que pretende ser. Ingeborg Bachmann: Journey into the desert, de Margarethe von Trotta, é o filme biográfico da escritora e poeta austríaca, Ingeborg Bachmann. A realizadora alemã volta a um género que conhece bem, tendo já assinado, anteriormente, biografias como Hannah Arendt (2012) ou Searching for Ingmar Bergman (2018), entre várias outras ao longo da sua carreira.

Apesar de algo insípido e formalmente preso a um cinema convencional e comum, o filme também tem momentos de grande primor estético e surrealista. É justamente quando o filme se permite a isso, que a energia emancipadora de Ingeborg vem à tona e ficamos mais agarrados à sua história.

A proposta da realizadora alemã é contar em paralelo duas alturas distintas da vida da escritora: a primeira, quando vive com o escritor suíço Max Frisch; a outra, quando viaja pelo deserto com o seu novo amante Adolf Opel (Tobias Resch). O título do filme remete para essa viagem que, além de literal, é também metafórica. O deserto pode ser visto como símbolo de um caminho infinito e sem obstáculos pelo qual a escritora tenciona correr. Essa corrida acaba mesmo por acontecer. A dada altura Ingeborg confidencia a Adolf  que sempre teve o sonho de “ter relações com vários homens, jovens e bonitos, ao mesmo tempo”. Quando esse desejo se realiza e consegue “vingar-se” da clausura onde o universo masculino a pretende encerrar, acontece mesmo essa correria livre pela paisagem deserta, da qual emana a sua alegria.

Ingeborg Bachmann: Journey into the desert, Margarethe von Trotta © Wolfgang Ennenbach 

Talvez pouco conhecida fora da Alemanha, Ingeborg Bachmann é retratada neste filme como uma mulher brilhante de fulgor desafiante e corajoso, rumo à expectativa da sua total emancipação. Procurando libertar-se de um marido controlador e de feitio machista, que teima em intrometer-se na sua vida, o casamento é entendido por si como um impedimento da liberdade feminina. Entre a convenção do casamento e da vida doméstica, e a energia criativa que guarda, Ingeborg não consegue encontrar o equilíbrio, pelo que o único caminho é despojar-se dessas convenções. Ingeborg Bachmann: Journey into the desert é hábil a mostrar o exemplo de uma mulher que faz uso da sua coragem para conseguir a independência individual e criativa num mundo, como constatamos em muitas cenas, ocupado por homens. A notável interpretação de Vicky Krieps oferece momentos de enorme emoção e, apesar de, como foi dito anteriormente, o filme estar demasiado formatado na sua conceção, a realização de von Trotta é exímia e pouco há a apontar nesse sentido. Faltou apenas ser mais como Ingeborg Bachmann e desembaraçar-se corajosamente das amarras que restringem a sua força cinematográfica.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Ingeborg Bachmann: Journey into the desert, Margarethe von Trotta © Wolfgang Ennenbach]

Manodrome: os homens a libertarem-se (violentamente) de si próprios

Os códigos da masculinidade e as ficções em torno da identidade pessoal que adotamos em sociedade são uma presença constante na personagem de Ralphie, protagonista deste Manodrome, do realizador sul-africano John Trengove. Com Jesse Eisenberg (Ralphie) e Adrien Brody (Dad Dan) nos principais papéis, o filme centra-se em Ralphie, um homem confuso do princípio ao fim do filme, que parece já não saber onde pertence nem que regras sociais é suposto seguir enquanto homem.

Com um trabalho precário como condutor de Uber, prestes a ser pai com a sua companheira Sal (Odessa Young), tudo o que acontece ao seu redor transforma-se num desafio à sua frágil masculinidade. Ralphie observa tudo com uma intensidade perscrutante, o que faz com que vista uma “cara de parvo” durante todo o filme, sendo retratado como um homem ingénuo e infantil, que cobre a cara com fita-cola por estar aborrecido em casa. No ginásio onde passa o seu tempo livre, esforçando-se para tonificar o seu corpo, a tensão homo erótica que se estabelece entre ele e os outros homens, põe-no, com esse olhar idiota, a observar os corpos de um grupo de homens negros.

É justamente essa cortina de virilidade que o filme pretende abrir, expondo a inocência de tais comportamentos. Essa confusão em que Ralphie se encontra vai fazer despertar a sua homossexualidade reprimida e fazê-lo “sair do armário” da pior das formas: cheio de fúria e raiva pelo que sente, espelhando-se no comportamento dos outros. Mais tarde, percebemos que Ralphie foi abandonado pelo seu pai e que isso terá deixado marcas fortes, abrindo espaço para uma apreciação mais psicanalítica.

Manodrome, John Trengrove © Wyatt Garfield

Tudo isto se intensifica quando o seu amigo Jason o arrasta para uma “família de homens”, cuja figura de Dad Dan surge como guia espiritual da masculinidade. Juntos, têm reuniões onde gritam frases de empoderamento (“Eu inventei o fogo e vou tirá-lo de volta. Eu inventei o sol e vou tirá-lo de volta.”), com a intenção de os libertar das amarras da sociedade e, em particular, do sexo feminino, fazendo com que vivam em abstinência sexual.

Trengove, que se assume como realizador queer, toca nestes assuntos de forma inteligente e sensível, o que permite uma análise cuidada das várias camadas de que somos feitos, nunca julgando a sua personagem e mostrando-a um pouco como vítima de todo um sistema que nos ultrapassa e perverte as escolhas individuais. A cena final é reflexo disso mesmo, mostrando a fragilidade de Ralphie, que surge como uma criança vulnerável nos braços de um gigante, mostrando-o quase como mártir da masculinidade tóxica.

Há vários momentos que nos agarram e que vão acentuando o conflito interior e a espiral de destruição em que aquele se encontra. Por exemplo, a tensão que se cria entre Ralphie e o Pai Natal do supermercado (o realizador assume que o filme foi propositadamente filmado na época natalícia, para sublinhar a ironia do enredo) ou as cenas com os vários clientes que entram no seu Uber, incluindo uma mulher a amamentar, uma criança a quem Ralphie “rouba” o telemóvel, e um casal homossexual.

Manodrome, John Trengrove © Wyatt Garfield

Manodrome acaba por ser frágil na sua resolução. Os melhores momentos do filme são mesmo aqueles em que a simples contemplação idiota de Ralphie sobre o mundo à sua volta cria uma tensão dramática que nos põe na sua  perspetiva, permitindo ao espectador adivinhar o que aquela mente poderá estar a pensar acerca do que vê. Isso é algo que funciona muito bem no filme. Trengove consegue, de forma inventiva, apresentar-nos uma visão curiosa sobre essa forma tóxica de masculinidade, assim como sobre os perigos do narcisismo bacoco por trás de homens que não se permitem mostrar a sua vulnerabilidade.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Manodrome, John Trengrove © Wyatt Garfield]

Blackberry e a crueldade da velocidade tecnológica

No final da projeção, Matt Johnson e a sua equipa subiram ao palco da sala principal do Berlinale Palast para serem aplaudidos por uma plateia divertida e convencida pelo resultado que viu na tela. O realizador canadiano acabou mesmo por confidenciar que só tinha estado na Berlinale como espectador, e que lhe diziam que nunca conseguiria ter um filme seu no festival, por estes serem demasiado divertidos e lhes faltar alguma profundidade. Em jeito de brincadeira, disse: “finalmente aconteceu, talvez porque faltavam filmes em competição e precisavam de um filme canadiano”. 

Nesta atitude reflete-se a ausência de pretensiosismo do filme, que não possui nenhuma intenção de ser mais do que aquilo que é: um filme divertido que pretende contar a ascensão e queda do blackberry de uma forma leve e engraçada.

Matt Johnson inspirou-se no livro Losing the Signal (2015), de Jacquie Mcnish,  para filmar este Blackberry, que conta, justamente, a criação deste dispositivo que revolucionou o mercado das comunicações no fim do século XX e início do século XXI. Acompanhamos os dois fundadores da Research In Motion (RIM), Mike Lazaridis e Douglas Fregin no ano de 1996, quando os dois jovens tentam vender a sua ideia, conhecido ainda como pocketlink, a Jim Balsillie. Mais tarde batizado de “blackberry” (não se explica a origem do nome, mas é dado a entender que foi algo improvisado num dos pitchings para tentar vender a um cliente), o smartphone da RIM foi o primeiro dispositivo móvel que permitia fazer chamadas e aceder à internet. 

Centrado na relação entre os dois criadores, vistos no início do filme como duas “crianças” extremamente criativas, que não tinham conhecimento empresarial suficiente para levar a cabo o potencial das suas ideias, o filme mostra-os como “nerds” viciados na cultura pop. São constantes as referências a filmes ou jogos do fim do século XX, seja nas noites de cinema organizadas semanalmente na empresa, como na roupa e acessórios das personagens. Jogos como Red Alert, Doom, Mortal Kombat, Street Fighter ou filmes como Eles Vivem (1988), as sequelas de Indiana Jones, Star Wars ou Star Trek são alusões constantes.

Blackberry, Matt Johnson © Budgie Films Inc.

Fazendo lembrar, por vezes, a série The Office, pela filmagens com câmara à mão e zooms rápidos, o filme conta uma importante parte da história da evolução tecnológica do século XXI. O momento dramático que causa a reviravolta, não só no filme, como na história da Blackberry e da RIM, é o aparecimento do primeiro Iphone em 2007. A partir desse momento, a Blackberry, que controlava cerca de 45% do mercado dos telemóveis, entra numa espiral de declínio, sem ideias suficientemente competitivas para fazer frente à Apple.

Blackberry é bem-disposto e com bons apontamentos de humor, contando de forma eficaz e apelativa a história do gigante caído das telecomunicações. Ao jeito de filmes como Social Network  (2010) (história do Facebook) ou da série The Playlist (2022) (história do Spotify), novamente temos aqui o foco na odisseia empresarial de jovens empreendedores com ideias de sucesso a ascenderem no mundo dos negócios. 

É também o retrato cruel do desmoronar de uma amizade e de um espírito livre e apaixonado que caracterizava os dois jovens. Douglas acaba por ser despedido, por ter sempre mantido o espírito infantil, enquanto Mike se torna um cinzento e carrancudo homem de negócios, apenas preocupado com o futuro da empresa. Na cena em que Douglas chega com uma cassete do filme Tartarugas Ninja (1990) para a noite de cinema e vê que os preparativos foram abandonados e a sessão cancelada, constatamos a tristeza no seu olhar sonhador ao ver que se estavam a tornar “homens sérios”. É também quando essa paixão se esvai que a empresa nunca mais encontra o rumo para se tornar competitiva.

 O que ressalta deste filme é mesmo essa noção da rápida ascensão e igualmente rápida queda a que as empresas estão sujeitas no competitivo mercado tecnológico, sobressaindo a tristeza de ver um sonho e uma amizade desvanecer-se impiedosamente.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Blackberry, Matt Johnson © Budgie Films Inc.]

A homenagem na Berlinale antes do Óscar?

Aquele que é talvez o mais reconhecido realizador de cinema de todo o mundo é o homenageado da edição deste ano do Festival de Berlim. A verdade é que Steven Spielberg fez as delícias de várias gerações ao longo de décadas e qualquer pessoa, mais ou menos interessada em cinema, reconhecerá no mínimo um ou dois nomes da sua cinematografia. 

Rainer Rother, director artístico da Deutsche Kinemathek, e responsável por esta secção de homenagem a grandes nomes do cinema, justifica o Urso de Ouro Honorário ao realizador norte-americano da seguinte forma: “Numa carreira que abrange um período de 50 anos, Steven Spielberg deixou uma marca duradoura e decisiva na arte da narrativa cinematográfica, enquanto continua a abordar assuntos delicados. Gerações inteiras de entusiastas do cinema por todo mundo cresceram com a sua obra. A seleção de filmes da secção Homage exemplifica essa obra multi-facetada”.

Jaws (1975), Steven Spielberg © Universal Studios Licensing LLC

Talvez o momento decisivo da sua carreira, visto por muitos como um ponto de viragem na maneira de se fazer e produzir cinema, dá-se em 1975 com a estreia internacional de Jaws, apenas estreado em Portugal dois anos depois com o título de Tubarão. Este foi o filme que, nas palavras de João Botelho, “engoliu tudo e todos”. Terá sido aí que nasceram aqueles que são hoje conhecidos como blockbusters, filmes que apelam às massas e que são grandes sucessos de bilheteira. Para o bem e para o mal, tal acontecimento veio mudar o paradigma da produção mundial e os critérios das distribuidoras. 

Spielberg começou a sua carreira no fim dos anos 50 e foi Tubarão que lançou o seu nome a nível mundial. Desde aí, obras como Encontros Imediatos de Terceiro Grau (1977), Os Salteadores da Arca Perdida (1981) – primeiro filme da série de filmes de Indiana Jones -, E.T. O Extraterrestre (1982), Império do Sol (1987), Parque Jurássico (1993), A Lista de Schindler (1993) ou O Resgate do Soldado Ryan (1998), foram sucessos de popularidade que marcaram a indústria de Hollywood. 

Os Fabelmans (2022), Steven Spielberg © Storyteller Distribution Co., LLC

Steven Spielberg chega a Berlim quando ainda se encontra nas salas o seu mais recente filme, Os Fabelmans (2022), estreado no fim do ano passado. História autobiográfica que acaba por ser uma homenagem ao cinema e que está nomeado ao Óscar de melhor filme. Antes de, possivelmente, receber algumas estatuetas douradas, a Berlinale homenageia o realizador com o Urso de Ouro Honorário.

Capaz de emocionar milhões de espectadores por todo o mundo, mas, por vezes, fora de um circuito mais seletivo de festivais europeus, Spielberg tem aqui um justo tributo num dos festivais de maior renome na Europa. Esta será também uma oportunidade para rever em sala alguns desses êxitos de décadas e aproveitar para pensar sobre o conjunto da sua obra.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Steven Spielberg no set de Raiders of the Lost Ark (1981) © Lucas Film]

Abelhas, smartphones e um hotel: destaques da Competição Oficial da Berlinale

A poucos dias do início da 73ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, é pertinente um breve olhar sobre alguns dos principais destaques da Competição Oficial, onde 19 filmes são candidatos a vencer o Urso de Ouro e restantes Ursos de Prata.

Composta por filmes muitos diversos, numa variedade de formas e conteúdo, a seleção deste ano prevê-se forte, com 19 países representados e 15 estreias mundiais. Das 19 longas-metragens em competição, apenas 6 são realizadas por mulheres. Sendo menos de um terço dos filmes selecionados, a este nível a Berlinale mostra-se pouco mais representativa do que outros festivais da mesma categoria como Veneza ou Cannes.

 Ingeborg Bachmann – Reise in die Wüste © Wolfgang Ennenbach

Um dos principais destaques desta edição é o filme 20.000 especies de Abejas, estreia nas longas-metragens da realizadora espanhola Estibaliz Urresola Solaguren, que conta a história de Lucía, uma criança com disforia de género que aguarda a chegada do verão para se libertar da opressão sofrida na escola. Outros pontos a destacar são os regressos de Philippe Garrel, com Le grand chariot, e da realizadora alemã Margarethe von Trotta, com Ingeborg Bachmann – Reise in die Wüste.

 Blackberry, de Matt Johnson, também desperta curiosidade por contar a história da criação do primeiro smartphone, uma adaptação do livro Losing the Signal (2015), de Jacquie McNish. Manodrome, de John Trengove e Roter Himmel, de Christian Petzold são outros dos filmes mais aguardados. Também Portugal é representado na competição oficial com Mal Viver, de João Canijo.

Blackberry, Matt Johnson © Budgie Films Inc.

O realizador português, autor das obras Noite Escura (2004), Fantasia Lusitana (2010) ou Sangue do Meu Sangue (2011), consegue a proeza de ter dois filmes em duas competições em Berlim. Para além deste Mal Viver – que se foca num fim de semana passado num hotel e se centra na história de uma família de mulheres de várias gerações –, Canijo apresenta ainda a outra face da moeda em Viver Mal – onde acompanhamos o mesmo fim de semana da perspetiva de três grupos de hóspedes do hotel. Mal Viver estará na competição principal, enquanto Viver Mal estará na mais recente secção Encounters.

A variedade de estilos, temáticas e método dos filmes selecionados, deixa antever uma competição com vários motivos de interesse. A atriz norte-americana Kristen Stewart será a presidente do júri composto por Golshifteh Farahani, Valeska Grisebach, Radu Jude, Francine Maisler, Carla Simón (realizadora de Alcarrás, vencedor da competição no ano passado) e Johnnie To, que decidirão o vencedor do Urso de Ouro deste ano.

A 73ª edição da Berlinale decorre entre os dias 16 e 26 de fevereiro.

Abaixo segue a lista dos 19 selecionados:

20.000 especies de Abejas – Estibaliz Urresola Solaguren (Spain, 2023)

Art College 1994 – Liu Jian (China, 2023)

Bai Ta Zhi Guang – Zhang Lu (China, 2023)

Bis ans Ende der Nacht – Christoph Hochhäusler (Alemanha, 2023)

BlackBerry – Matt Johnson (Canadá, 2023)

Disco Boy – Giacomo Abbruzzese (França/Itália/Bélgica/Polónia, 2023)

Le grand chariot – Philippe Garrel (França/Suíça, 2022)

Ingeborg Bachmann – Reise in die Wüste – Margarethe von Trotta (Suíça/Áustria/Alemanha/Luxemburgo, 2023)

Irgendwann werden wir uns alles erzählen – Emily Atef (Alemanha, 2023)

Limbo – Ivan Sen (Austrália, 2023)

Mal Viver – João Canijo (Portugal/França, 2023)

Manodrome – John Trengove (Reino Unido/ EUA, 2023)

Music – Angela Schanelec (Alemanha/França/Sérvia, 2023)

Past Lives – Celine Song (USA, 2022)

Roter Himmel – Christian Petzold (Alemanha, 2023)

Suzume – Makoto Shinkai (Japão, 2022)

Sur L’Adamant – Nicolas Philibert (França/Japão, 2022)

Survival of Kindness – Rolf de Heer (Australia, 2022)

Tótem – Lila Avilés (México/ Dinamarca/ França, 2022)

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Mal Viver, João Canijo © Midas Filmes]