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Síntese dos elementos e múltiplas formas de fazer ver – três filmes de Sandro Aguilar

Apesar do percurso discreto, Sandro Aguilar é um dos realizadores mais prolíficos do cinema português dos últimos anos, se contarmos o número de filmes que realizou nas últimas duas décadas e meia, desde a estreia de Estou Perto (1998). Para além do trabalho como realizador e montador, Aguilar é produtor e um dos fundadores da produtora O Som e a Fúria, responsável por vários trabalhos de Miguel Gomes, Salomé Lamas ou Manuel Mozos. Por isso mesmo, esta sessão na Cinemateca Portuguesa, onde foram exibidos Armour (2020), The Detection of Faint Companions (2021), e ainda O Teu Peso em Ouro (2022), não deveria passar despercebida ao público português. Três filmes que, pela diferença de métodos e formas, revelam o que há de variado no seu cinema, mas também aquilo que já faz parte da sua assinatura.

Aguilar tem-se proposto a implodir com várias formas pré-estabelecidas de construção narrativa no cinema, procurando constantemente as múltiplas linguagens que os filmes podem adoptar e todo o potencial artístico dos dispositivos fílmicos. Com um trabalho maioritariamente em formato curta-metragem, o realizador conta com 19 filmes, entre os quais apenas dois obedecem ao formato de longa-metragem. Esta matemática espelha a importância da experimentação na sua obra, pois o formato curto é, muitas vezes, o terreno mais seguro para arriscar. 

Se esse lado experimental fica vincado na concepção das suas ideias, tudo é pensado e calculado ao milímetro no seu habitat natural: a mesa de montagem (o realizador é formado em Montagem pela ESTC e montou vários filmes do cinema português nos últimos anos). É nesse processo que a intuição que leva para a rodagem é substituída por um profundo processo de interligação de imagens, sob uma lógica que visa deixar abertura à visão última do espectador, parte sempre activa no seu trabalho.

O primeiro dos três filmes desta sessão, Armour (2020), é composto de fragmentos (palavra significativa no seu cinema, pois muitas vezes se trata de desfragmentação narrativa, de tirar peças do puzzle), diferentes blocos filmados no contexto de uma residência artística em Rimouski, no leste de Quebec, no Canadá. Nesse processo, o realizador teve carta branca para criar o objecto que assim entendesse. 

Se, maioritariamente, as imagens servem para compor e fazer avançar uma narrativa, neste e noutros casos da sua obra, a narrativa está lá para servir as imagens, para as unir e criar um universo composto de gestos e ações que formam essas histórias quase invisíveis. Em Armour, é através das legendas e intertítulos que vão aparecendo sobre e entre os planos que percebemos onde estamos e quem seguimos: Hector, alcoolizado, inicia a sua marcha decadente pelos subúrbios da cidade canadiana. Pelas informações que nos vão sendo dadas, sabemos que o pai de Hector está gravemente doente, a sua namorada deixou-o por um homem mais velho, levando o seu filho consigo, e que Hector se refugia no álcool. O resto é preenchido pela nossa imaginação e várias são as leituras possíveis, dentro de limites pré-determinados e propostos pelo realizador.

Bastante experimental do ponto de vista narrativo, a cartografia da paisagem que Aguilar foi encontrando dá origem à história que é construída através das palavras e sons adicionados na montagem. E o resultado é cativante. Somos levados, ao longo dos trinta minutos de filme, pelo consciente e pelo inconsciente da personagem. Não é estranho identificar também aqui o que o realizador diz numa entrevista sobre Mariphasa (2017): “os filmes vêm de um lado completamente subterrâneo em mim, uma mistura de memórias, medos, inquietações, que tento traduzir em imagens e sons o melhor que consigo.” Tudo isso parece de extrema importância na hora de compor o seu universo ficcional.

É curioso que esse encontro com a paisagem e a realidade dê origem a filmes tão ficcionais como este, ao invés de representações documentais daquilo que encontra. Acerca disto, Aguilar assume: “Eu não quero ter uma relação com a realidade. Quero construir uma realidade que é a do próprio filme, que se relaciona com a nossa realidade, mas não a representa.” Isto cria uma ligação estimulante entre obra e espectador. Precisamente dessa ligação surge uma beleza enigmática. Os resultados obtidos são sempre distintos, mas adquirem um interesse particular na relação com esse mesmo espectador. A imaginação de quem recebe a obra (essencial na literatura, por exemplo, mas preferivelmente presente em todas as formas de arte) tem aqui um papel semelhante ao do leitor. São as imagens do espectador que completam os espaços em falta. É essencial a sua fantasia.

Armour, Sandro Aguilar © O Som e a Fúria

O que foi dito anteriormente serve igualmente a outros dos seus trabalhos. Se considerarmos Sandro Aguilar um realizador experimental, The Detections of Faint Companions (2021) é sem dúvida o seu filme mais experimental e abstrato. A começar pela sinopse que nos dá alguns elementos indecifráveis: “Lua Cheia. Dentro. Talvez não sozinho.” A obra é o culminar de um minimalismo que sempre procurou – na tradição de Stan Brackhage ou Nathaniel Dorsky – a partir de imagens de uma instalação visual criada para um espetáculo teatral inspirado em Ping, de Samuel Beckett. Contudo, se não nos surpreendemos por este “desvio” na sua obra, é curiosa a motivação que teve para a construção do filme, uma vez que este terá surgido do seu preconceito relativamente à utilização do vídeo no contexto teatral. Isto porque é importante para si não dissipar esse lado que o texto esconde através daquilo que a concretização da imagem pode comprometer. Por isso, aquilo que vemos dilui-se; aquilo que detectamos desmorona-se; aquilo que damos como certo, desaparece. Depois, é deixarmo-nos imergir no resultado hipnótico daquela conjugação entre imagem e som ao longo de 9 minutos. 

Pois justamente de hipnose se trata O Teu Peso em Ouro (2022). Naquele que é o seu mais recente trabalho, o cineasta procurou recuperar um método mais clássico de fazer cinema de ficção. Um certo tipo de cinema que o realizador “reaprendeu a gostar”. Os “monólogos dialogados”, o uso da música, o método clássico associado à escrita, o campo/contra-campo, dão aqui origem a uma história algo melancólica que parece retratar uma ressaca física e emocional depois de uma sessão de hipnose. No entanto, encontramos as personagens alienadas, a narrativa obscura e o desenlace hermético com que já nos tínhamos deparado em outros dos seus filmes.

Mais uma vez, todo o conteúdo do filme é associado à forma. Se pensarmos no processo da hipnose em que somos guiados por alguém que inspira imagens a serem criadas no nosso cérebro, o jogo que aqui se propõe é idêntico. Ao ver o filme somos convidados para esse transe. A voz da personagem de Oscar, interpretada por Marcello Urgeghe, é verdadeiramente capaz de nos enfeitiçar e é admirável a cena protagonizada por ele e João Pedro Bénard, em que este discorre sobre os acontecimentos do dia anterior e se deixa levar pelo encanto do clamor daquele. “Agora já não vês este quarto”, diz Oscar antes de apagar o isqueiro. Depois, o seu rosto na penumbra.

Há algo de profundamente atraente naquelas vozes, no jogo de luz e sombra ao cuidado da composição fotográfica de Rui Xavier, companheiro de longa data do realizador, que dá a O Teu Peso em Ouro, o cariz estético que evidencia o lado sobrecarregado das personagens. Essa sobrecarga também se sente na cena na qual Oscar se veste lentamente, com todo um cuidado e formalismo nos gestos pausados sob a luz solar reflectida no seu corpo e rosto. Tudo é orquestrado de forma a criar um dos objetos mais sedutores do seu cinema. 

O Teu Peso em Ouro, Sandro Aguilar © O Som e a Fúria

Assumidamente, há um ímpeto experimental cada vez que Sandro Aguilar se lança para um novo projecto. Isso também explicará um percurso mais obscuro e a aura de uma obra difícil e emaranhada. É também isso que é preciso repensar. O seu cinema joga com certos códigos para os quais, enquanto espectadores e críticos, devemos estar disponíveis de forma a alcançar todo o potencial estético-narrativo dos seus filmes. Como já dito anteriormente, interessa-lhe o espectador activo que se encontra no teatro e na literatura: “No teatro basta apontar na direcção do vazio e dizer que naquele instante passam cinquenta cavalos na estrada de terra batida para que o nosso imaginário preencha esse intervalo com a nossa forma particular de visualizar o que é invocado pela palavra”, escreve o realizador na folha de sala desta sessão. Foi também isso que procurou fazer em O Teu Peso em Ouro, deixando espaços vazios para nos questionarmos sobre se as personagens vêem realmente o que estão a ver.

Apesar de apontar sempre para caminhos diferentes, Aguilar vem aprimorando fórmulas que trabalham para lá das configurações clássicas e da evidência de determinados métodos. Esta sessão foi exemplo disso: três objectos particulares, não só no cinema em geral, como na própria obra do realizador que procura reinventar o cinema a cada filme. Aguardemos o próximo (em produção) e logo veremos por que aliciantes caminhos esta obra em construção nos levará.

Ricardo Fangueiro

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