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Chelsea Girls: Entre Vanitas 

Chelsea Girls é uma obra incontornável dentro da numerosa produção cinematográfica de Andy Warhol. O filme de 1966, corealizado por Paul Morrissey, nome sagrado no milieu do cinema underground nova-iorquino (a partir das suas colaborações com Warhol na The Factory) é um díptico de três horas e catorze minutos, no qual não existe qualquer linha narrativa, para além de um terreno comum, o famigerado Chelsea Hotel.

Este lugar, emblemático no rastreamento de uma constelação quase infinita de artistas, representa uma Nova Iorque heterogénea na sua fauna e flora, pós-moderna, fraturante, matriz da obra plástica de Warhol. A sua expressão cinematográfica, atinge uma sublimação obscura (presumivelmente na senda das suas Death and Disaster series de 1962) pelo retrato da mesma sociedade de ícones populares e de uma contracultura mundividente, sem que nada tenha de simples ou belo. 

Chelsea Girls, Andy Warhol, Paul Morrissey © Direitos reservados

O filme estabelece com o espectador uma relação física, extenuante e mútua, entre o olhar da câmara e o olhar que cada um constrói. A partir do duplo ecrã, a duração da cena respeita o tempo real da filmagem, reproduzindo o que Jean Louis Comolli define no seu livro Voir et Pouvoir como a “combinação sempre incerta do tempo da projeção na sala e no ecrã mental do espectador”. Esta tensão estende-se desde a expressão física dos corpos numa simbiose lânguida com discursos frívolos, até ao gesto experimental caótico da operação de câmara através do qual Warhol, também se insere naquele(s) lugar(es). Filmado num plano único, sem edição ou montagem, no qual o som direto é alternado entre as duas telas, Chelsea Girls é uma documentação cândida de protagonistas que simultaneamente são estrelas, promovidas pelo próprio Warhol, e vítimas, num universo de culto apresentado como janela aberta, através do qual o processo mental da montagem é estendido ao espectador. 

O filme, bem como, grosso modo, o cinema de Warhol, revela uma densidade impressionante na forma como convoca o mesmo imaginário da sua obra plástica, invertendo-o, despindo-o, tornando-o num objeto duro, sujo e trágico que não se pode traduzir, apenas aceitar (muito menos projetar como um sucesso comercial). As conversas sobre experiências sexuais detalhadas, as dramatizações de índole confessional, imoral, intrusivo, visitadas pelos fantasmas da igreja católica romana e pelo mediatismo presidencial americano, a cultura da televisão, a emoção da heroína, compõem a mise-en-scène de uma vanitas decadente, num prolongamento do tempo que contrapõe o vazio com o vital. Em Chelsea Girls, o realismo é uma construção temporal documentada no próprio ato de filmar o real, que começa apenas quando é posta do lado do espectador. 

Sebastião Casanova

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