MOTELX – Final Cut: o remake quase falhado que glorifica o cinema

Final Cut (2022), de Michel Hazanavicius (conhecido pelo premiado The Artist), é o remake do sucesso de culto japonês One Cut Of The Dead (2017), co-escrito e realizado por Shin’ichirô Ueda. Final Cut, ou como no título original, Coupez!, foi o filme de abertura da última edição do Festival de Cannes, que já em 2019 decidiu abrir com The Dead Don’t Die, uma comédia de terror sobre zombies de Jim Jarmusch. E é da tela de Cannes que salta para a tela do Cinema São Jorge, com uma sessão quase esgotada que contou com uma plateia muito bem humorada.

Final Cut, de Michel Hazanavicius – © Getaway Films, La Classe Américaine, SK Global e Blue Light

Rémi, interpretado por Romain Duris, é um realizador falhado que decide aceitar uma proposta para fazer um filme de zombies em direto, num único plano sequência. A proposta é feita pela atriz japonesa Yoshiko Takehara, único elemento do elenco que se repete do original para este. O filme começa, precisamente, dentro deste outro “pequeno filme” que lhe ocupa os primeiros 30 minutos, abrindo com o que parece ser uma cena final, e é, precisamente, aí que ouvimos o primeiro “Corta!” (em referência ao título) e percebemos estar perante um set de filmagens. Mais tarde no filme são nos dadas as três camadas que o compõem, um filme encomendado no qual a narrativa é sobre uma equipa de filmagem que filma um outro filme, portanto, filme dentro do filme dentro do filme. A estrutura é um dos pontos fortes de Final Cut, contudo não o podemos premiar pela originalidade já que esta tinha sido igualmente adotada na versão de Shin’ichirô Ueda, que Hazanavicius copia quase plano por plano.

O filme funciona para quem não viu o original, já os fãs do clássico japonês tecem duras críticas à versão francesa, caracterizando-a como vazia e pouco engraçada. É muito difícil quando temos em mãos refazer um êxito tão acarinhado pelo público e que se compromete mais verdadeiramente com a sua missão. One Cut Of The Dead é o filme que se esperava ser, um filme independente low-budget, com um distinto contorno caseiro e de improviso. Já Final Cut é feito visivelmente com um orçamento superior a tentar parecer low-budget, tornando-se pouco credível e forçado. Até mesmo o espaço em que se filma contrasta radicalmente com o deslavado edifício abandonado de filtração de água utilizado como set do original, que contribui mais uma vez para o aspecto homemade do mesmo. 

Final Cut, de Michel Hazanavicius – © Getaway Films, La Classe Américaine, SK Global e Blue Light

Contudo, não podemos deixar de notar a quantidade de gargalhadas que a versão francesa recebeu no Cinema São Jorge. A verdade é que o seu elenco é competente, composto por caras conhecidas, como Bérénice Bejo, e outras menos conhecidas, como é o caso de Jean-Pascal Zadi, que interpreta o compositor musical deste plano sequência sobre zombies. Zadi é talvez a personagem mais marcante deste Final Cut, primeiro, por ser das poucas adições face ao original, e segundo, por ser uma adição extremamente divertida, é ele que rouba a maioria destas gargalhadas dos espectadores. Há ainda uma inovação no que toca à cinematografia do filme, sendo este muito mais vivo e colorido, relembrando os primeiros filmes de Quentin Tarantino, que é ainda “citado” numa peça de roupa de uma das personagens, numa homenagem direta ao seu trabalho. Final Cut tem a intensidade de Death Proof e heroínas que fazem lembrar Beatrix Kiddo, todavia quando uma das suas personagens nos diz “It’s a japanese script, they know more than we do about zombies.” percebemos que o filme é consciente das suas próprias fraquezas.

Há claramente uma tentativa forçada por parte do filme de se encaixar na categoria de filmes de Série B e do Trash Cinema, como aquele que fazia o cineasta Ed Wood, e no qual One Cut Of The Dead encaixava perfeitamente. No entanto, há também uma vontade de tornar o filme mainstream, coisa que parece fazer melhor. A nota, apesar de tudo, não é negativa, tanto o original como a versão francesa são filmes que falam sobre fazer filmes e sobre o companheirismo que se sente neste tipo de trabalho. A cena final da “grua humana”, em ambos, é exemplo do sangue, suor e lágrimas que fazer cinema acarreta, porque também o próprio cinema parece ser uma “grua humana”

Inês Moreira

[Foto em destaque: Final Cut, de Michel Hazanavicius – © Getaway Films, La Classe Américaine, SK Global e Blue Light]

MOTELX: Destaques da Competição Nacional de Curtas

A sala 2 do Cinema São Jorge encheu-se para duas sessões de competição para o Prémio SCML MOTELX – Melhor Curta Portuguesa, seguida de uma pequena conversa com os realizadores moderada pelo Shortcutz Lisboa. Marcada por obras muito distintas, ficou notório que o cinema de terror em Portugal tem dificuldade em se libertar de ideias já vistas e alcançar algo de verdadeiramente novo face à pouca aposta das produtoras de maior renome e ao pouco orçamento de várias destas produções. Ainda assim, alguns trabalhos destacam-se.

É o caso de Cemitério Vermelho, um dos filmes mais conseguidos vistos na competição pela fidelidade ao género com que o realizador Francisco Lacerda se lança nos seus projetos. Este western spaghetti passado nos Açores, mais concretamente no Barreiro da Faneca, traz-nos a história de dois fora-de-lei que lutam por “um punhado de trocos”. Através do pastiche e do lado burlesco das personagens, o filme resulta numa boa comédia e em 9 minutos de bom entretenimento para os mais admiradores do género. Percebemos que algo se passou naquele dia e que o cowboy regressa para pedir justificações. As voltas e reviravoltas finais culminam num final empolgante.

Cemitério Vermelho, Francisco Lacerda © Cactus Sessões

Quando a Terra Sangra de João Morgado é tecnicamente o mais espantoso e prometedor dos filmes em competição. A praga que ameaça uma aldeia traz a loucura e o medo ao seio daquela comunidade. Com momentos de intenso mistério e tecnicamente surpreendente, o filme tem sequências de grande qualidade, como no caso dos sonhos surrealistas que invadem a mente deste “Homem”. Descrito como um filme sobre o desespero, Quando a Terra Sangra funciona bem na forma como constrói o terror ao redor das personagens e da aldeia. Ainda assim, o argumento acaba por não ser suficientemente poderoso face à qualidade da imagem e ao desempenho dos atores, ficando a ideia de que teria potencial para muito mais.
O Caso Coutinho de Luís Alves toma o ecrã. Vítor Norte, que interpreta a personagem principal, assume perfeitamente a essência de um idoso solitário e angustiado que é perseguido por uma força misteriosa em sua casa. O uso do preto e branco (à semelhança de Misericórdia, uma outra curta em competição) dá um ar ainda mais misterioso e aflitivo ao espaço em que o personagem principal se encontra. Também o som do filme é muito bem trabalhado, com o barulho de máquinas, da campainha e de um constante bater à porta. Tudo parece acontecer ao mesmo tempo, desnorteando ainda mais tanto a personagem principal como os que o observam.

VÓRTICE, Guilherme Branquinho © Take It Easy 2022

Por último, destaca-se o vencedor da competição, Vórtice de Guilherme Branquinho. Com Cristóvão Campos na personagem principal, partilhamos a frustração de uma pessoa que, saindo tarde do trabalho, não consegue encontrar um lugar para estacionar o carro. No entanto, rapidamente a sua frustração transforma-se em paranóia quando se apercebe que esta não é uma simples noite e tem alguém a persegui-lo. O argumento lembra o episódio “The Witness” da série Love, Death, Robots, onde também os personagens ficam presos neste vórtice estranho, numa realidade que parece tão semelhante à que pertenciam, mas que agora foi ligeiramente alterada. Também Guilherme Branquinho consegue transformar uma coisa tão mundana em algo muito maior e sinistro. O argumento está bem escrito, o ambiente segura uma tensão que é quase palpável na sala de cinema e Cristóvão Campos parece ter sido criado para esta personagem. Não é de estranhar que Guilherme Branquinho tenha levado o tão merecido prémio da noite, distinguindo-se como melhor curta portuguesa em competição.

Apesar de altos e baixos, o MOTELX continua a crescer com o sangue novo que lhe tem vindo a ser adicionado e deixa uma esperança positiva no futuro do cinema português.

[Foto em destaque: Quando a Terra Sangra, João Morgado © Lusófona Filmes]

Ricardo Fangueiro e Olena Pikho

Raquel 1:1 e os perigos da fé na 16ª edição do MOTELX

Mariana Bastos estreia-se a solo na realização com Raquel 1:1, depois da sua primeira longa-metragem em correalização com Esmir Filho. Esta longa-metragem sobre os perigos da religiosidade fanática evoca filmes como Carrie, Saint Maud, Midsommar e The Witch, todos eles apresentando uma mulher como protagonista, submetendo já para um motivo qualquer da luta feminista. A princípio, o filme parece-nos nada mais do que um drama coming-of-age, mas a este a realizadora brasileira vai acrescentando elementos sobrenaturais e de body horror, que o fazem encaixar muito bem na secção Serviço de Quarto deste ano do MOTELX.

Raquel 1:1, de Mariana Bastos – © Claraluz Filmes

Depois da morte da sua mãe Vera, Raquel e o pai decidem mudar-se para a terra natal do mesmo, em Monte Megido. Num novo lar e com a vontade natural de qualquer adolescente de se adaptar, Raquel procura fazer novas amizades e junta-se a um grupo de adolescentes da igreja local evangélica, ainda que contra a vontade do seu pai agnóstico. Contudo, ao familiarizar-se com a palavra de Deus, Raquel começa a questionar a forma como esta põe em causa o valor da mulher. Quando constata tal facto para o resto do grupo, Raquel é silenciada por Ana Helena, líder do mesmo, uma figura opressora que acredita apenas nos dogmas da sua igreja. Mais tarde, Raquel percebe que não está sozinha no seu questionamento à palavra divina e serve quase como “messias” para as outras adolescentes do grupo.

Um Brasil rural é o cenário para este filme que explora muito bem esta ruralidade, trazendo ao de cima os tradicionalismos das mentalidades. Raquel é uma força que vem pôr em causa este pensamento tradicional e tal ação é impugnada violentamente pelos habitantes de Monte Megido, os quais perseguem Raquel e o seu pai, invadindo a sua casa e o pequeno negócio desta família, uma mercearia.

Raquel 1:1, de Mariana Bastos – © Claraluz Filmes

Apesar do acting do filme deixar um pouco a desejar e das suas temáticas ligadas ao terror não serem muito exploradas, aparecendo como pequenos apontamentos aqui e ali apenas para efeito de choque do espectador, Raquel 1:1 é um filme com a força militante de outros filmes brasileiros recentes como, por exemplo, Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Há uma mensagem muito urgente a passar: a misoginia ligada à religião não é coisa do passado, esta prevalece. A necessidade que Raquel sentiu parece-nos ser uma necessidade partilhada com o espectador, a da atualização da religião e das crenças. Como é possível em pleno século XXI ainda serem seguidas regras e ideais escritas num livro há mais de vinte séculos atrás, apenas por homens?

É muito fácil, não olhando para os pormenores sobrenaturais e sangrentos do filme, perceber de onde vem o terror que o coloca nesta categoria. Não há nada mais aterrorizador do que ver um mundo desenvolvido debruçado numa misoginia que parece não ter fim. A crueldade com a qual se olha a mulher e o seu papel na história, mesmo pelas próprias mulheres (noto que Ana Helena e a sua mãe são a força contrária a Raquel neste filme, sendo elas também duas mulheres), provoca medo, dor e tensão, sem necessitarmos de elementos gore adicionais. Raquel 1:1 é um murro no estômago para os espectadores, e é quase desesperante a sensação com que ficamos, e com que fica também Raquel, desta quase impossibilidade de mostrar a estas pessoas o quão os seus ideais são baseados em injustiça e discriminação profunda.

Raquel 1:1, de Mariana Bastos – © Claraluz Filmes

O filme fecha com chave de ouro numa alegoria à pintura do Renascimento, também ele tempo de mudança e de progresso, ambos tão necessários também no nosso tempo. Raquel posa de forma quase estática com uma túnica amarela em frente a um cenário a imitar um céu azul cheio de nuvens brancas. Enquanto este plano, o visualmente mais interessante do filme, acontece, ouvimos uma enumeração de nomes de mulheres, vítimas mortais da opressão masculina, e parece haver uma espécie de libertação destas vítimas. Como se Raquel tivesse tornado agora pública a história destas mulheres e de certa forma as tivesse libertado, e a si mesma, dos seus demónios.

Inês Moreira

[Foto em destaque: Raquel 1:1, de Mariana Bastos – © Claraluz Filmes]

MOTELX: Something In The Dirt e o lançamento do livro “O Quarto Perdido do Motelx”

A dupla de realizadores Aaron Moorhead e Justin Benson não é desconhecida para o público português, há menos de cinco anos estreavam no MOTELX a sua terceira longa-metragem The Endless (2017). Este ano voltaram em grande com a comédia de terror e ficção científica Something In The Dirt e a sua presença em duas sessões contou com a sala quase cheia. O filme tem dois protagonistas: John e Levi, dois vizinhos interpretados pela própria dupla de realizadores. Quando John e Levi testemunham algo sobrenatural no apartamento de Levi, os dois decidem começar um documentário sobre estes acontecimentos.

O mais curioso, na mais recente longa-metragem da dupla de realizadores americanos, é a fórmula caseira segundo a qual foi feita. Com um orçamento baixíssimo e uma equipa muito pequena, os próprios realizadores comentam que, muitas vezes, se encontravam os dois sozinhos no décor e se filmavam um ao outro.  Assim, o filme chega-nos com essa aura independente agregada que joga a favor de si mesmo. A história, por outro lado, parece ser desvalorizada no processo. A premissa do filme é a seguinte: dois estranhos percepcionam acontecimentos paranormais. No entanto, a causa destes acontecimentos nunca é realmente explorada, o que dá a sensação que o filme perde um pouco o foco e se estende sem razão aparente. Os próprios realizadores afirmam que não é tanto a causa daquilo tudo que lhes interessa, mas o processo e as proporções que estes acontecimentos acabam por ter naquelas  duas personagens.

Apesar de se antecipar entusiasmante, o filme acaba por cair um pouco no vazio ao escolher não explorar nem este lado sobrenatural, aparentemente o seu tema principal, nem as motivações e o passado das suas duas personagens. É certo que a interação entre os dois é fulcral e visível, sendo que ambos são levados ao extremo a nível emocional, contudo, continua a existir uma certa distância entre o espectador e John e Levi. No final do filme o sentimento é ligeiramente agridoce.

Something In The Dirt, de Aaron Moorhead e Justin Benson – © Rustic Films

Ainda assim, esta edição do MOTELX continua a surpreender e, neste mesmo dia, um passo grande na historiografia do cinema em Portugal foi dado. Na sala 2 do Cinema São Jorge, ocorreu o lançamento do tão aguardado livro “O Quarto Perdido do MOTELX”, um livro que se dedica à investigação do cinema de terror português antes mesmo de este existir como género (noto que se acreditava que o primeiro filme de terror português seria Coisa Ruim (2006), de Frederico Serra e Tiago Guedes, filme que esteve também em exibição nesta edição do MOTELX). Com textos de vários investigadores conhecidos da academia, o livro conta com uma recolha de filmes desde 1911 a 2006, ano do suposto “primeiro filme de terror português”, e ano em que nasceu o MOTELX. Em 2009, na 3ª edição do festival, é inaugurada uma secção intitulada Quarto Perdido na qual se exploram estes filmes e autores. O livro acaba por retomar esta proposta baseando-se numa lista de filmes do historiador de cinema José de Matos-Cruz que foi cedida pelo realizador António Macedo, “um autêntico mapa de um tesouro desconhecido, um inventário de cinema fantástico”, como é descrito nas primeiras páginas do livro.

Na sessão, estiveram presentes os dois coordenadores do livro, João Monteiro e Filipa Rosário, e ainda José Manuel Costa, diretor da Cinemateca Portuguesa, que deu ao público uma autêntica aula sobre cinema e historiografia do cinema, cinema de terror em Portugal, e explorou ainda a questão da dificuldade em definir géneros no cinema português. A ideia com que ficamos no final desta sessão e que Filipa Rosário sumariza bem quando nos diz “o mais extraordinário é o que a academia pode ser quando não se fecha sobre si mesma” é a de que, desde que haja entusiasmo e paixão, há sempre mais para investigar nesta arte imensa que é o cinema.

O Quarto Perdido do MOTELX – © Direitos Reservados

Inês Moreira

[Foto em destaque: Something In The Dirt, de Aaron Moorhead e Justin Benson – © Rustic Films]

Dark Glasses : o novo filme do mestre do terror italiano no MOTELX

Dark Glasses marca o regresso do mestre do cinema de terror italiano: Dario Argento. O realizador, que conta com sucessos como Suspiria, Deep Red e Inferno, esteve cerca de uma década longe da realização e o seu retorno ao cinema tornou-se muito aguardado pelo público. Com sala cheia no Cinema São Jorge, a sessão de Dark Glasses marcou a 16ª edição do MOTELX, na passada quinta-feira, e contou com a presença da protagonista, Ilenia Pastorelli. 

Dark Glasses é um filme que evoca outros filmes, em particular os mais antigos do realizador. Desde sempre que o cinema de Argento se revela como um cinema muito próprio e de fácil identificação. Dark Glasses encaixa muito bem neste universo, sendo também ele marcado pelos apontamentos avermelhados da cinematografia e pela banda sonora arrepiante, incapaz de deixar o espectador indiferente. Se nos dissessem que Dark Glasses era uma cópia restaurada de um filme de Argento dos anos 80, tal não nos pareceria estranho, pois há no filme uma função de revisitação deste passado do cinema, recheando de nostalgia o regresso do mestre.

Dark Glasses, de Dario Argento – © Urania Pictures S.r.l., Getaway Films

Elena Pastorelli interpreta Diana, uma prostituta que é perseguida por um serial killer. A premissa do filme é simples, encaixando-se no género literário e cinematográfico italiano giallo, muito popular entre as décadas de 60 e 80. O filme abre com um eclipse solar e, no momento em que Diana olha para este, parece ficar momentaneamente cega. A esta cena segue-se a morte de uma prostituta que teria acabado de estar com um cliente num quarto de hotel. O que esta personagem sobre a qual nunca chegamos a saber sequer o nome e Diana parecem ter em comum, para além de ambas serem mulheres, é a profissão. Desta forma, percebemos o que motiva o assassino e que Diana será o próximo alvo a perseguir. Uma dessas perseguições resulta num acidente de viação grave, no qual Diana perde a visão e provoca a morte involuntária dos pais de uma criança chinesa, Chin. A cena inicial funcionou então como cena chave para o desenrolar dos eventos do filme, premeditando esta cegueira da personagem principal.

O acidente, de um dramatismo a la Argento, acaba por dar espaço a que Diana e Chin se unam e formem uma dupla que se entreajuda, algo que se torna símbolo da perda em comum. Este lado mais emocional do filme acaba por ganhar destaque face à investigação policial que se mostra, de certa forma, irrelevante. O filme foge, assim, ao género policial e deixa um pouco de parte o dispositivo da “investigação”. Não importa tanto a identidade do assassino, mas a forma como a protagonista feminina reage à sua perseguição. É um filme que se preocupa sobretudo com as questões de género e que coloca masculino versus feminino em destaque, trazendo um pouco a ideia de “donzela em apuros” de volta ao grande ecrã. Contudo, o nível de gore a que Dario Argento sempre nos habituou é mantido também aqui, e é de tirar o chapéu a Sergio Stivaletti pela forma como levou a cabo as cenas mais sensíveis para os espectadores. Quanto à cinematografia, é interessante perceber algumas semelhanças com as cores de Pedro Almodóvar, não deixando de haver referências a Brian de Palma e Quentin Tarantino. Todavia, a maior referência parece-nos ser o próprio cinema de Dario Argento, o que acaba por jogar um pouco contra o próprio filme que não prima pela originalidade.

Dark Glasses, de Dario Argento – © Urania Pictures S.r.l., Getaway Films

Não foi apenas a ausência do realizador na sessão que pareceu desapontar os espectadores, o próprio filme perdeu-se um bocadinho, quer em cenas carentes de sentido, como é o caso das serpentes na água, quer em performances não muito cativantes dos atores, com uma exceção de destaque para Asia Argento, a filha do realizador, que interpreta, e bem, a doce e calma Rita que ajuda Diana a adaptar-se à nova vida, agora cega. O ritmo do filme é confuso e o público acaba por rir em momentos de suposta tensão que, de tão previsíveis, se revelam quase “patetas”. 

Em suma, mesmo não sendo o regresso triunfante que se esperava, Dario Argento não deixou de receber uma enorme salva de palmas de um público fiel que continuará a ansiar os seus próximos filmes. E que sejam ainda muitos!

Dark Glasses, de Dario Argento – © Urania Pictures S.r.l., Getaway Films

Inês Moreira

[Foto em destaque: Dark Glasses, de Dario Argento – © Urania Pictures S.r.l., Getaway Films]

MOTELX: Os Crimes de Diogo Alves nos primórdios do Cinema de Terror

Partindo de uma partitura original de Bernardo Sassetti, os espectadores do MOTELX puderam assistir à sonorização ao vivo do filme de 1911, Os Crimes de Diogo Alves, interpretada sob a direção musical de Desidério Lázaro em plena sala Luís Miguel Cintra no Teatro São Luiz. Ingredientes apetecíveis para qualquer cinéfilo. Com um ensemble de músicos composto por Desidério Lázaro (saxofone), Moisés Fernandes (trompete), Luís Barrigas (piano), Juliana Mendonça (contrabaixo), António Carvalho (bateria), a música ao vivo, suficientemente presente, mas não invasiva, cumpriu o seu papel e deixou que o filme fizesse o seu trabalho. 

Os Crimes de Diogo Alves, João Tavares © Companhia Cinematográfica de Portugal

Aquele que é apontado como um dos primeiros filmes de ficção português, e certamente o primeiro que se pode encaixar na categoria de Terror, conta a história do famoso facínora galego que apoquentou a cidade de Lisboa no século XIX. O filme de João Tavares, podemos afirmá-lo com convicção, é um deleite para qualquer entusiasta do cinema. A personagem de Diogo Alves, interpretada por Alfredo de Sousa, é histriónica e revestida de comédia física pelos gestos exagerados com que tenta explicar as suas ações. Tal acontece, não só pelo facto de o filme ser mudo, mas também porque neste caso não há a presença de diálogos nos intertítulos, o que torna a missão dos atores mais desafiante (em certas ocasiões o filme era mesmo exibido com os diálogos ditos por atores atrás da tela).

A obra foi um projeto de João Freire Correia, fundador da Portugália Film, que, após a suspensão de uma primeira rodagem com Lino Ferreira, contrata João Tavares para realizar a versão de 1911. A história de Diogo Alves, muito popular no final do século XIX, era a ideal para avançar com aquele que pode ser considerado o primeiro filme de terror português. Atualmente, a sua fama deve-se também muito ao facto de a sua cabeça estar, ainda hoje, preservada em formol, podendo ser vista na Faculdade de Medicina de Lisboa.

Fazendo jus ao seu título, o filme não passa disso, uma série de episódios sobre os vários crimes cometidos por Diogo Alves. Ora a roubar,  ora a atirar pessoas do Aqueduto das Águas Livres, ora a roubar e a matar. O ladrão e assassino terá matado mais de 70 pessoas ao longo de poucos meses e os crimes no aqueduto começaram por ser associados a uma vaga de suicídios e só quando assassinou o médio Pedro de Andrade e a sua família é que foram, finalmente, descobertos os seus crimes. No fim do filme, a justiça é feita e Diogo Alves condenado à morte. A versão exibida na sessão rondava os 20 minutos de filme e incluía ainda uns planos não utilizados pelo realizador. 

Os Crimes de Diogo Alves, João Tavares © Companhia Cinematográfica de Portugal

Longe de ter toques de brilhantismo, o filme é uma primeira abordagem à representação do crime no cinema português e, por isso mesmo, de valorizar. A cena mais inquietante e que facilmente se destaca do resto, é mesmo a cena em que Diogo Alves atira uma criança do aqueduto. Como é referido num dos intertítulos, esse foi o único crime de que ele se terá arrependido devido ao riso da criança no momento em que Diogo a atirava do aqueduto abaixo, que terá achado graça à brincadeira. Provavelmente um riso que o terá perseguido toda a vida, mas que nem por isso o impediu de cometer mais crimes. Até que ponto o riso da criança pode ter sido baseado na realidade ou um simples ‘erro’ na rodagem que se tentou disfarçar com a descrição no intertítulo é algo que não é conclusivo.

A sessão foi ainda composta por uma conversa final sobre a composição para cinema mudo em Portugal, moderada pela investigadora Érica Rodrigues e contou com a presença de Tó Trips, que juntamente com Pedro Gonçalves nos Dead Combo, teve várias participações na sonorização de filmes de vários realizadores portugueses como Edgar Pêra ou Rodrigo Areias; Filipe Raposo, pianista e compositor e colaborador regulador da cinemateca; Margarida Cardoso, cineasta que trabalhou com Bernardo Sassetti em A Costa dos Murmúrios; e ainda o responsável pela direção musical da sessão, Desidério Lázaro. Pelo pouco tempo que é sempre dedicado a este tipo de debate, o mesmo ficou-se por uma abordagem superficial ao tema, com meia dúzia de exemplos do trabalho de cada um e sem se perceber bem qual a direção que se pretendia dar à conversa. No fim, ficou retida a experiência única de assistir a um filme de 1911 sonorizado ao vivo numa sala que fez jus ao momento. Um filme que é sempre importante revisitar pela relevância que tem na história do cinema português e que é verdadeiramente uma preciosidade a ser vista.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Os Crimes de Diogo Alves, João Tavares © Companhia Cinematográfica de Portugal]

MOTELX: Bodies Bodies Bodies e a estupidez cómica da geração Z

Foi com a estreia nacional do novo filme da A24, Bodies Bodies Bodies, que decorreu a sessão de abertura oficial da 16ª edição do MOTELX, Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa, no Cinema São Jorge. O slasher da geração Z, segunda longa-metragem da atriz e realizadora holandesa Halina Reijn, foca-se num grupo de jovens ricos que planeiam uma festa durante uma tempestade na mansão de família de um deles. Ao jogarem Bodies Bodies Bodies, jogo que dá título ao filme, algo corre mal e o pânico instala-se.

Bodies Bodies Bodies, de Halina Reijn – © 2AM, A24

Reijn inspira-se nos clássicos do sub-género slasher e transporta o espírito de sucessos como Scream (1996) para uma geração de jovens tik-tokers que usam e abusam de palavras como “toxic” e “gaslighting”. O humor do filme está precisamente na forma como reflete esta geração e os preconceitos que existem sobre ela, e é, precisamente, nos diálogos que o filme atinge a sua inteligência e perspicácia máximas. A trama conta com sete personagens principais: Sophie e Bee (Amandla Stenberg e Maria Bakalova), David, o dono da mansão e a sua namorada Emma (Pete Davidson e Chase Sui Wonders), Alice (Rachel Sennott) e o seu namorado mais velho, Greg (Lee Pace) e Jordan (Myha’la Herrold), praticamente todos eles estrelas jovens em ascensão. E, portanto, à escrita inteligente aliam-se performances certeiras, com destaque para Rachel Sennott (a protagonista de Shiva Baby), que aqui interpreta a dramática Alice e que arrecadou quase todos os aplausos e gargalhadas dos espectadores.

O dispositivo da “procura por um assassino” (quase como um Cluedo ao vivo) entre aqueles que constituem o grupo faz com que o mesmo se desmorone e os segredos de cada um venham ao de cima porque, na verdade, esta é a sociedade dos likes e da superficialidade, onde tudo parece ser vazio e desprovido de emoções sinceras. Quando o medo e o pânico se instalam, os filtros das redes sociais deixam de ser suficientes para mascarar a mesquinhez desta juventude invejosa e psicologicamente afetada que exagera no álcool, nas drogas e nos antidepressivos.

Bodies Bodies Bodies, de Halina Reijn – © 2AM, A24

O mais interessante neste tipo de filmes é a interatividade que a câmara nos proporciona. O próprio espectador faz parte do processo de descoberta do assassino e a câmara “brinca” com ele, entrando num jogo de mostrar o que quer e escolher o que esconder. Faz-se sentir quase uma claustrofobia vinda da escolha de planos, na qual parece sempre escapar-nos alguma coisa em volta. Dessa forma, Bodies Bodies Bodies relembra-nos as adaptações de Agatha Christie, como And Then There Were None, e o mais recente Knives Out, com um contorno moderno, pop e excêntrico. A banda sonora é exemplo disso, contando com o êxito “Hot Girl” de Charlie XCX que colocou os espectadores do Cinema São Jorge com vontade de saltar fora da cadeira.

Bodies Bodies Bodies é um exemplo evidente de como o casamento entre o humor e o terror pode ser um dos mais felizes. Esta união valeu-lhe múltiplos aplausos vindos de uma sala de cinema lotada e cheia de entusiasmo para o início deste festival que é tão aguardado pelos portugueses. São mais de 100 filmes que compõem esta edição do MOTELX. Com aguardadas estreias nacionais e internacionais, o festival dedica-se a uma revisitação da história do terror português, ao lançamento de um livro e de muitas sessões especiais, cine-concertos e masterclasses. Para além do novo filme do mestre do terror italiano Dario Argento, Dark Glasses, filmes como o filme de zoombies francês Final Cut (2022), a comédia de ficção científica que conta com a presença dos realizadores, Something in the Dirt (2022), e ainda o filme de animação português, Os Demónios do Meu Avô (2022) aparecem-nos como alguns dos nomes sonantes desta edição que termina no dia 12 de setembro, próxima segunda-feira, no Cinema São Jorge.

Inês Moreira

[Foto em destaque: Bodies Bodies Bodies, de Halina Reijn – © 2AM, A24]