A mística dos anos 1930 em The Group, de Sidney Lumet

Dentro dos frequentes debates sobre a figura da mulher na sociedade, um filme desperta a atenção – talvez pelo fato de ter sua direção assinada por Sidney Lumet, mas ser raramente lembrado. O Grupo (The Group), lançado em 1966, é uma adaptação do romance escrito por Mary McCarthy e publicado em 1963. Ambientado na América dos anos 1930, somos apresentados ao mundo de oito jovens recém graduadas e às suas perspectivas sobre a vida.

Num primeiro momento, O Grupo salta aos olhos ao trazer determinadas temáticas que dificilmente seriam vistas de forma crua no cenário pós-Grande Depressão – embora tenha sido realizado trinta anos depois, é singular ver tais assuntos serem abordados no seio daquele contexto. O filme se passa ao longo de quase dez anos, iniciando em 1933 e terminando na época da Segunda Guerra Mundial, em 1940. As jovens encontram-se em um mesmo ponto de partida e seguem suas jornadas individuais ao longo desse período, algumas focam suas vidas no trabalho enquanto outras na vida pessoal – casamento e filhos. 

A cena inicial é composta por uma montagem de diversos momentos vividos pelas personagens na Universidade de Vassar – uma instituição localizada a alguns quilômetros da cidade de Nova Iorque e que, até o ano de 1969, só aceitava meninas. A sequência culmina na formatura, quando é proferido um discurso por Helena (Kathleen Widdoes), na qual ela afirma: And we believe, as we take our separate roles, that it is only in achieving the highest personal fulfillment, the goal of our education, that each will make the greatest contribution to our emergent America.

É praticamente impossível não lembrarmos de algumas ideias trazidas em A Mística Feminina ao ouvirmos essa fala e vermos o filme. Lançado em 1963, o livro de Betty Friedan reflete sobre o comportamento e o papel das mulheres nos anos 1950 e 1960, que culminou no conhecido “O Problema Sem Nome”. Na obra, ela coloca em pauta a problemática da figura feminina como alguém limitada a ser esposa, mãe e dona de casa. Em teoria, essas deveriam ser as únicas obrigações de uma mulher e ela deveria se sentir completa e realizada por isso. Assim, embora elas tivessem alcançado o tão desejado “sucesso”, a sensação de vazio crescia cada vez mais. 

The Group, de Sidney Lumet ©

Friedan retrocede no tempo até os anos 1930 – época em que ocorre a narrativa de The Group – e nota que a função da mulher nesta altura era bastante diferente daquela vista anos depois. Eram heroínas independentes, “profissionais felizes, orgulhosas, aventureiras e atraentes – que amavam os homens e eram amadas por eles. E o espírito, a coragem, a independência, a determinação – a firmeza de caráter que demonstraram no trabalho como enfermeiras, professoras, artistas, atrizes, redatoras, vendedoras – era parte do seu charme.” (p. 41). Além disso, nos anos 1930 elas “estavam caminhando na direção de um objetivo ou visão própria, enfrentando algum problema do trabalho ou do mundo, quando encontravam seu homem” (p. 41).

O que vemos aqui é um retrato da cena inicial e do discurso de Helena, as garotas almejam fazer a diferença a partir da educação que receberam em Vassar. Assim, nota-se a estranheza das demais ao verem Kay (Joanna Pettet) casando-se logo após a saída da universidade – uma vez que o esperado seria seguir a carreira profissional.

Também podemos perceber ao longo do filme outros momentos que trazem à tona as questões postas por Friedan. O arco narrativo de Polly (Shirley Knight) ilustra a ideia de que o homem entraria em suas vidas quando o foco estivesse voltado para o trabalho, ou seja, não haveria uma busca desesperada por alguém para se sentirem completas.

Entretanto, nota-se também o começo da mudança para aquilo que viria a resultar no “Problema Sem Nome”. Priss (Elizabeth Hartman) sofre com o facto de se ver obrigada pelo seu marido a amamentar o filho, quando na verdade ela não consegue fazê-lo – ele inclusive a culpa porque os enfermeiros alimentaram a criança com fórmula. A devoção de Kay ao marido que a trai, a vida dedicada à família de Priss e as questões amorosas de Dottie (Joan Hackett) – ela tem seu coração dividido ao se ver em meio a uma proposta de casamento quando na verdade ama outro homem – contrastam com a vida de Libby (Jessica Walters).

A personagem de Libby e sua jornada são complexas. Ela desvia-se do caminho do casamento e filhos, não porque não queira, mas porque não consegue se relacionar sexualmente com homens. Em paralelo, sua esperteza a ajuda a crescer cada vez mais na carreira profissional e faz com que seja uma das mais bem sucedidas entre as amigas. Em termos visuais, percebemos sua profundidade nas cenas em que está no seu quarto, onde a decoração é composta por tons de roxo e muitas bonecas espalhadas por prateleiras e pelas camas.

The Group, de Sidney Lumet ©

Além disso, o que encontramos na obra de McCarthy/Lumet é uma série de temas como relações lésbicas, aborto, controle de natalidade… É difícil imaginarmos estas pautas, por exemplo, em um filme da RKO, dentro de uma mise-en-scène art decó ou sendo debatidas por Katherine Hepburn – especialmente após a instauração do Código Hays. The Group carrega a possibilidade de vermos tais questões sendo discutidas num cenário visual diferente do que estamos habituados.

A força de The Group reside na história. A realização de Lumet é arrastada e cansativa em determinados momentos, assemelha-se, por vezes, a um filme feito para a televisão. Entretanto, algumas planificações chamam à atenção, como na cena em que as amigas estão sentadas numa mesa redonda e a câmera gira ao redor delas, uma escolha livre de problemas técnicos e de pós-produção.

The Group merece ser visto pelas reflexões históricas e se torna ainda mais rico junto da leitura de A Mística Feminina. Não é a obra mais interessante em termos visuais, mas conta uma história que merece ser conhecida se quisermos pensar mais sobre onde a figura da mulher esteve, para onde ela vai e quais são as possibilidades futuras. Em uma época de polarização, estamos inclinados a voltarmos para as ideias dos anos 1950 ou para Vassar da década de 1930?

Lílian Lopes

[La mécanique des fluids

  1. Área da física destinada ao estudo do comportamento físico de fluidos em movimento ou em repouso. 

As entradas de dicionário sugerem diferentes possibilidades de significação: [x] significa/corresponde a isto ou àquilo. Neste caso, a definição de ´Mecânica dos Fluidos´ parece ter os seus contornos perfeitamente definidos. Diz respeito a uma área científica e é intrincado figurar a sua associação com o cinema. No entanto, a curta-metragem documental La mécanique des fluids, realizada por Gala Hernández López, em 2022, constitui um momento de disrupção com estas convenções lexicais: Serão os fluidos necessariamente líquidos e gases? Será o cinema um exercício artístico longínquo da ciência e da disciplina? Dando gradualmente resposta a estas questões, este é um jogo de significações e uma recontextualização da arte cinematográfica.  

Complexa e hipnótica, esta curta-metragem tem como ponto de partida a carta de suicídio de Anathematic Anarchist publicada no Reddit a 20.02.2018. Intitulada “America is responsible for my death”, esta carta desperta em Gala Hernández a necessidade de navegar pela pegada digital deste jovem. Deste trabalho de investigação resulta La mécanique des fluids. Note-se, contudo, que esta narrativa não é mais do que um pretexto para desafiar o totalitarismo digital. Anathematic Anarchist não é relevante enquanto pseudónimo de uma identidade corpórea. É, antes, uma entidade fantasmagórica, um interlocutor impossível que representa a não comunicação e o isolamento online. Diferente daquela que o jovem havia experienciado, aqui, a impossibilidade de comunicar inaugura uma série de possibilidades. É precisamente porque ninguém vem reclamar o seu lugar que as lacunas informativas podem ser exploradas e preenchidas pela imaginação. Como um mártir daquilo que se procura problematizar, este fantasma do cinema principia uma conturbada análise da cultura incel.  

Esta palavra, resultante da fusão entre as palavras ‘involuntary’ e ‘celibates’, refere-se a uma subcultura virtual de celibatários involuntários (homens – maioritariamente heterossexuais – que se consideram incapazes de desenvolver relações amorosas e/ou sexuais). Profundamente essencialistas e misóginos, os incels reúnem-se em fóruns de discussão, onde ruminam sobre o seu fracasso e o seu ódio às mulheres. Durante os 38 minutos de La mécanique des fluids, embarcamos numa viagem digital pelos lugares online onde esta comunidade se reúne para comungar a sua solidão. 

La mécanique des fluids, de Gala Hernández López ©

Apesar de tudo, esta viagem é indissociável de uma abordagem empática. Os membros desta cultura não representam uma encarnação do mal absoluto ou uma mera alteridade radical. São o espelho da nossa sociedade, o resultado da educação patriarcal e da misoginia histórica e coletiva. Coloca-se em causa uma certa identificação: também nós, espectadores, experienciamos a dor do isolamento num mundo tão conectado. 

A representação do sentimento de solidão associado à experiência digital é acompanhada de um tom profundamente poético. Entre a sequencialidade mecânica desta curta-metragem, Gala Hernández encontra espaço para o diálogo com a poesia – como uma ode à humanidade, ou àquilo que dela resta. Ora, se a mecânica dos fluidos permite prever com precisão o seu comportamento e simplificar a realidade para que esta se torne manipulável e compreensível, também os perfis e as aplicações de namoro seguem esta lógica. Afinal, o amor, a emoção e tudo aquilo que é fluido exatamente por ser humano, é reduzido a um número – evento disruptivo na natureza, impossibilidade que culmina no fracasso.  

É através de recursos estéticos que o discurso fílmico se liberta da lógica sequencial do relato e constitui a expressão poética do sentimento. Vejamos: temos, por exemplo, a ilustração de um avatar perdido numa paisagem agressivamente vazia e artificial. A par desta surge a representação do mar, o único elemento efetivamente filmado além das capturas de ecrã. Repetidamente símbolo daquilo que aprisiona e isola, a imagem do mar – enquanto elemento natural – materializa, neste caso, uma forma de escape à solidão, uma descontinuidade com a lógica mecânica artificial. O mar representa o sonho: visão utópica rapidamente dissolvida em pixéis. 

Composta quase unicamente por imagens de arquivo de redes sociais, esta curta-metragem destaca-se pela estética e pelos motivos da cultura online. É um exemplo das estratégias plásticas e sensoriais do cinema ao serviço da reprodução dos efeitos que experienciamos enquanto utilizadores da internet. Através de uma sequência visual crescentemente complexa e hipnótica, alternamos entre várias aplicações e conteúdos e somos interpelados pelo pop up constante de notificações. 

La mécanique des fluids, de Gala Hernández López ©

La mécanique des fluids segue um formato digital que a aproxima do ‘desktop documentary’, um estilo de cinema pós-internet que se sustenta na captura de ecrã. Mas a que se deve a ausência de imagem captada pela câmara? Por um lado, esta parece uma escolha estética que acompanha a capacidade de o cinema apreender e documentar o fenómeno de privação do mundo real. Por outro lado, deve-se à inserção desta produção numa tese de pesquisa-criação sobre a captura de tela no cinema. 

Compreendemos que o cinema não tem necessariamente de ser distante da disciplina e da pesquisa académica. O trabalho criativo de Gala Hernández é, na verdade, uma forma de desafiar a pesquisa clássica e de materializar o conhecimento numa espécie de pensamento audio-visualizado. Esta curta-metragem revela que a pesquisa e a produção artística podem caminhar lado a lado; que a arte – cinematográfica, ou não – pode acompanhar a realidade. E é porque o processo de documentação e de realização se fundem num só que daqui resulta uma verdadeira experiência de deriva virtual. Marcada pela errância discursiva, esta emerge como um exercício de experimentação em tempo real. 

Este é um filme que nasce da ação de produzir imagem sobre a imagem e, por isso, levanta questões relativamente às práticas cinematográficas contemporâneas: 

– ‘Estará o cinema morto?’ 

– Não. Pois se a sétima arte é o cinema, talvez a oitava seja a capacidade de reinventar a anterior. 

Este gesto aparentemente redundante e supérfluo parece ser um gesto necessário de reinvenção. A captura de ecrã, que aqui substitui a imagem captada pela câmara, não representa a morte do cinema, mas sim o diálogo com o digital e a possibilidade de narrativização da experiência mediática. La mécanique des fluids não se insere, portanto, na categoria de pós-cinema. É um exemplo da arte na sua potência de renovação. É ritmo frenético, montagem cuidada e ausência de rodagem tradicional. É cinema que, num jogo de significações, se reveste de uma fluidez sui generis (como se a mecânica dos fluidos passasse a dizer respeito a si mesmo). 

Maria Mendes

Deborah Stratman: a ambiguidade ou o inexpugnável lirismo das máquinas

Subsiste a tendência para, sem tardar, procurar legitimar os objectos artísticos com que nos defrontamos. Legitimação política, social, ética, moral, etc. É – não só, mas também -, a uma tal urgência de integração (e regulamentação) da arte, que a obra de Deborah Stratman diz respeito, criticando-a, justamente, pela resistência que apresenta a uma categorização linear. Deborah Stratman, artista destacada na 31ª edição do Curtas Vila do Conde – International Film Festival, com a projecção de curtas-metragens de sua autoria, a atribuição de uma carte blanche, e a exposição Unexpected Guests, patente na galeria Solar: presença motivadora de um ensaio reflexivo acerca de uma obra inscrita num tempo histórico particularmente ruidoso, cuja impermeabilidade (a uma voz singular, a uma crítica justa, a uma dissensão por mais ponderada), como aparência, como imagem, corpo a modelar, a penetrar, a adulterar, mas igualmente a escutar, a recolher silenciosamente na sua novidade mais ou menos monstruosa, mais ou menos maravilhosa; impermeabilidade, dizíamos, que constitui a matéria-prima do mais refinado posicionamento crítico. Neste sentido, poder-se-á falar de uma poética, ou até, de uma linguagem, da incomunicabilidade. Uma linguagem que trabalha com a imagem que se recusa, que é escuridão, silêncio, sem, todavia, obrigar senão ao mais rico encontro, nesse plano em que imaginação antecipatória e construção se tocam, entre mutismo e diálogo.

Stratman trabalha o problema da legitimação artística, muito embora não na medida em que procura alinhar com um qualquer alfabeto vigente e de alta eficiência mediática, isto é, não ambicionando para si essa legitimidade – a oscilação do espaço de exposição dos seus trabalhos é, de resto, sintomática de uma presença marginal e, daí, potencialmente panorâmica e crítica. À artista norte-americana parece afigurar-se-lhe de maior interesse o exercício de explorar os efeitos que a sua obra visual – cinematográfica e/ou plástica – comporta e pode comportar no espectador, independentemente da sua proveniência social, política ou cultural. Fazer a tábua rasa como o projecto imenso e fresco (Maria Filomena Molder adverte, em Palavras Aladas (2022), para o gesto da tábua rasa como próprio da juventude) do acto (desde logo, político) de olhar um mundo (o nosso), cujo crescimento e expansão correspondem igualmente a um imenso trabalho de destruição e declínio. O que vem complexificar a relação umbilical e perfeitamente mútua entre crescer e destruir, entre prometer e findar, é o gesto concomitante, a que corresponde esse jogo duplo, da assinatura do homem nesse mesmo mundo, e que vem inscrever o poder como o âmbito tão rizomático quanto dissimulado (e, com efeito, dramático) em que o homem se move e por que se constitui. Chegamos a um impasse, tanto de ordem epocal quanto de natureza filosófica; indecidibilidade que se forma precisamente no território flutuante que os seus limites (e, sobretudo, uma certa ideia de limite) encerram por sobre um tempo indeterminado, potencialmente excedente do período histórico em que se anunciam e de que se valorizam simbolicamente. Recuperemos algumas palavras de Bernard Stiegler em States of Shock, a propósito do pensamento invariável e repetidamente (em loop, como Hacked Circuit, exposto na Solar) esgotado e, dessa feita, inconcluso, acerca da economia sistémica pensada por Stratman: “In particular, one cannot fail to notice here that what is said about the system seems to leave no room for the question of the limits of the system, for the fact that any dynamic system has limits, and that a time will inevitably come when these limits are reached, philosophy consisting perhaps always and firstly in thinking such passages to the limit.” (Stiegler, 2015: 93). O plano em que os limites se jogam, antecipando a sua própria refutação, isto é, consistindo no fantasma da sua forma póstuma, é o plano da técnica, à qual Stratman, pela realização de filmes-observatório, cede pela articulação com um lirismo especulativo, gerado no olhar compassivo (assim o imaginamos) do espectador. Assim, o que de puro pode existir é essa articulação técnica, prestes a perder para outra proposta mais refinada numa história técnica universal, lançada, e igualada, no mesmo terreno virtual que a designada história natural: “the pursuit of the evolution of the living by other means than life – which is what the history of technics consists in (…)” (Stiegler, 1998: 135).

Pensemos num filme como Second Sighted (2014), cujo título sugere imediatamente o gesto de voltar a olhar, rever, testemunhar, ou melhor, testemunhar uma testemunha (que se julga, presentemente) passada, sabendo de antemão que um tal exercício comporta o lance no território falsário da ficção – joguete que a artista ajuda a desconstruir, servindo-se, como pedra-de-toque, do registo documental como presença desestabilizadora da fronteira entre fantasia e real, sob mediação do papel do arquivo (como espécie de excedente, destinação entrópica, da História). As primeiras imagens do filme situam-no num registo cindido entre a imagem surreal(ista) – é difícil resistir a sobrepor à imagem inicial, dos olhos incendiados, essa outra de Un Chien Andalou (1929), também a abrir o filme, da sutura do olho – e a mera captação técnica de imagens de uma cidade, no caso, de uma senhora idosa no cais de uma estação de comboios. Partículas brancas em gradativa concentração (lembrando-nos dessa afirmação de Carl Sagan, de que o homem é nada mais que poeira de estrelas), um par de olhos em chamas, prédios incendiados, na iminência do desabamento, tratam-se dos planos iniciais do filme, seguidos de um zoom na figura da tal transeunte, sequência que aponta para a hipótese da identificação de uma agência, pela ligação causal entre o fogo e o rosto humano. Há, todavia, uma força que persiste e que inibe a um encadeamento narrativo que dessa figura humana constituísse o agente de um crime (por fogo posto, nomeadamente), pela atribuição de uma autoria (a culpa seria uma consequência possível, de todo o modo incerta). E, de facto, dessa primeira hiper-sugestão por via de uma vigilância que também nos cabe a nós, espectadores, não há seguimento nem evolução narrativa alguma. A deriva persiste, como essa força enigmática que tudo traga, tudo aparentemente igualando, manifestando-se não só paralelamente ao desenho de directrizes traçadas por cima de imagens de paisagens variadas, como por esses mesmos desenhos instigada. 

Second Sighted (2014), Deborah Stratman ©
Second Sighted (2014), Deborah Stratman ©
Second Sighted (2014), Deborah Stratman ©

Parece haver tão-só circuitos a repetir e matéria a captar, infinitamente. E essa repetição, e a eventualidade da captura e do registo sensíveis, dão-se através de uma data de recursos técnicos. Lembre-se Vever, filme composto de imagens de uma viagem que Barbara Hammer faz à Guatemala em 1975, com textos – a servir de marcação temporal – de Maya Deren, sobre o trabalho artístico, o nascimento da arte, o fracasso, a composição criativa. Estruturalmente o filme é também uma second sight, e é-o nos termos em que repete um determinado circuito, reciclando material imagético e literário, não obstante revitalizado numa montagem singular, pelas mãos de Stratman. A repetição do fracasso, um modo aperfeiçoado de errar, valendo sobretudo a formação de uma imagem inconsciente do corpo, da matéria, memória sensível independente do esquema corporal que a cada um cabe transportar, e que nos une numa língua universal, instigante, muito embora jamais passível de ser articulada. É sob o signo da incomunicação, da opacidade, do que resiste a ser significado sob a suposição de que assim se encontra desconstruído, caso encerrado, que os filmes de Stratman se realizam.

Vever (2019), Deborah Stratman ©
Optimism (2018), Deborah Stratman ©
Optimism (2018), Deborah Stratman ©

Há um retrato que fica sempre por acabar: no caso de Vever (2019), o do modo de viver das comunidades na Guatemala, bem como da intenção (termo assaz referido durante o filme, seja em palavra escrita e inscrita na película, seja pela voz off) que verdadeiramente motivou aquela viagem e, posteriormente, aquele filme, que é, não nos esqueçamos, a marca do abandono de um outro filme (de Hammer). É precisamente com essa impossibilidade de acabar – que o termo (empiricamente necessário) de um objecto fílmico exerce – que o dispositivo técnico dialoga, no sentido de tornar mutáveis as posições de criador e criação, ao ponto de se tornar indistinguível quem filmou e quem foi filmado ou, seguindo as palavras do filme, de quem, de que parte e qual a intenção subjacente: do real prévio à filmagem, do real que a película revelou, do real resultante da montagem de Stratman? O sem termos do acto de olhar, e dos estímulos a que a realidade nos expõe, inviabiliza a definição clara de fronteiras, e apresenta como o porto mais seguro a asserção da ambiguidade: “It was only after I had conceded my defeat as an artist, My inability to master the material in the image of my own intention, That I became aware of the ambiguous consequences of that failure”. Tudo o mais serão traços na areia, deslizamentos de terra, um barco à deriva no mar, vogando sobre as ondas, rimando, de resto, com a imagem particularmente impressionante, imóvel, de um navio num mar congelado, em Optimism (2018)filme que toma, como problema central, o território de Dawson City, no extremo norte do Canada: território gelado, inóspito, no qual toda a forma de vida surge como uma incontornável manifestação, conquanto sóbria, do desejo. Também aí parece operar-se a tentativa de fazer uma razia de sentido, em grande parte sugerida pelo título que denota, quase comicamente, a disponibilidade – e a inteligência – para a confiança, a boa-fé, ainda que acabe por destacar a desolação das primeiras imagens do filme. A paisagem de neve é imensa, qualquer corpo que a atravesse é um pormenor de cuja passagem não se acreditam vestígios. Neste sentido, o ecrã dá-nos os traços de um desenho breve, à partida extinto, de que nada restará senão a sua passagem. Funde-se ouro, bailarinas dançam num bar, que assombrosamente se assemelha a um estaleiro, a um local onde se pára, estando em viagem, mas onde não se fica, onde nada nos diz que fiquemos. Os locais que habitamos são aqueles que nos despertam o desejo de neles reconhecer um motivo para permanecer, tratando-se primeiramente de um desejo de leitura: o lugar diz-me, pede, que o leia e que nele encontre um motivo desejável. Apesar desses elementos de vida breve – um homem a trabalhar o ouro, mulheres a dançar num palco – tudo nos reafirma a estranheza de estar ali. Um recorte circular de espelho surge, ofuscante, no meio da paisagem. Espelho que não deixa ver nada. Imagem abstracta que interliga metonicamente sol e ouro, configurando o primeiro como a matéria fabricada pelos residentes-resistentes da montanha, e o segundo como matéria-prima, o corpo trabalhado e o rosto identitário de quem ali viva, visto por aqueles que se limitam a chegar (para partir): nós próprios, espectadores. Mas, sublinhe-se, em Dawson City os espelhos não compreendem reflexos e/ou estes não devolvem nada.

A estranheza que impera das mais diversas formas é explorada, sendo antes de mais contacto com o real, sob recurso a aparelhos técnicos cuja presença não é nunca obliterada – a câmara está sempre presente -, e pela sucessão de imagens que correspondem muito significativamente à inscrição de desenhos no espaço: no espaço da película fílmica e do mundo, ambas constituindo fundos de estranhamento, plataformas de re-significação. Diz Jean Luc-Nancy, em O Prazer no Desenho, a propósito do desenho como traço e projecto, como forma fechada e plano ao aberto: “O desenho é então a Ideia: ele é a forma verdadeira da coisa. Ou, mais exactamente, ele é o gesto que provém do desejo de mostrar esta forma e de a traçar de modo a mostrá-la. Não se trata, contudo, de traçar para mostrar como uma forma já recebida: traçar é aqui encontrar, e para encontrar há que procurar – ou deixar que ela se procure e se encontre – uma forma por vir, que deve ou que pode vir no desenho.” (Nancy, 2022: 17). O desenho, que em Musical Insects (2013) tem um papel estrutural – filme composto a partir de um livro de ilustrações com a exposição paródica de diversas espécies de gafanhoto -, representa um mecanismo de realização cinética e a proposta de um plano de investigação em curso. E aqui desenho é todo e qualquer movimento de intercepção com o meio: seja um amontoado de terra a ser revolvido por uma escavadora, um barco cortando as águas do mar, a sobreposição de setas e sublinhados por cima do plano de uma paisagem, a impressão da ausência de corpos na relva, em The Magician’s House (2007). Neste filme, fotografias, retratos desvanecidos, o posto de correio com a inscrição “ithaca jounal”, as vozes imperceptíveis de duas crianças, uma casa vazia, em que os sinais de vida compreendem uma função mitológica ampliável (lembrada a Odisseia pela referência a Ítaca, um retrato que não parece do tempo da casa, encerrando um arcaismo, temporalidade ilocalizável, conquanto potencialmente redentora).

The Magician’s House (2007), Deborah Stratman ©
The Magician’s House (2007), Deborah Stratman ©
The Magician’s House (2007), Deborah Stratman ©

O mito, na sua dimensão universal, também ela plástica, dispõe tanto a memória como território a desbravar, jamais absolutamente conhecido, como enquanto desolação e abandono de uma forma que, antes de se prestar a constituir o signo identitário de um alguém, é por excelência marca de presenças passadas, irrecuperáveis, tão-só imagináveis. Mas a imaginação é aqui, neste tempo que nos cabe e que parece ter chegado já tarde, matéria para as máquinas talharem. Saberemos, ou não, um dia, com que mãos, e com que guindaste, urdimos o nosso próprio retrato no mundo. E que máquinas habitaram os pontos cegos que nos formam e nos motivam a continuar e aos quis, por facilidade, nos habituámos a designar: universo infinito.

Bibliografia:

Nancy, Jean-Luc (2022). O Prazer do Desenho. Lisboa: Documenta.

Stiegler, Bernard (1998). Technics and Time 1. Stanford: Stanford University Press.

Stiegler, Bernard (2015). States of Shock, Stupidity and Knowledge in the 21th Century. Malden: Polity Press.

Maria Brás Ferreira

As pulsações ancestrais e contemporâneas de Légua

Há recantos em Portugal que parecem ter sido esquecidos pelo tempo. Aldeias e vilas que persistem, erguidas como monumentos de uma certa maneira de viver, já praticamente extinta, como Manuela Serra teria previsto no fatídico plano final do seu O Movimento das Coisas. Cerca de 40 anos depois, estes mesmos lugares tornaram-se millieux onde diferentes energias geracionais convivem. Aqui, a resistência ancestral dos mais velhos contrasta com a inquietude dos mais jovens, motivados pelo impulso de explorar o que há “lá fora” e o espaço que ainda têm para sonhar.

Légua, de Filipa Reis e João Miller Guerra, que teve estreia na mais recente Quinzena dos Realizadores, em Cannes, tem no seu núcleo este mesmo conflito, enraizado na aldeia homónima em Marco de Canaveses e as personagens que lá habitam. Em particular, Ana e a idosa Emília, carinhosamente apelidada de “Milinha”, caseiras de uma antiga moradia senhorial com o nome de Casa da Botica. Juntas, rotineiramente mudam os lençóis das camas (cada conjunto devidamente organizado e etiquetado), tratam das plantas do jardim, limpam o pó e pulem a prata dos talheres. Tudo para melhor receber os donos-fantasma que porventura nunca voltarão a pisar o chão que as duas mulheres tanto cuidam e que apenas chegará a ser palco de um Manuel Mozos em vestes irónicas de padre. Este, irmão da Senhora, tanto deixa as compras por pagar, como se esforça para retirar o “triste crocodilo” do seu novo polo, não hão de os compadres jesuítas julgar.

Não obstante, Milinha parece encarar o trabalho como a sua missão de vida. É, no sentido mais literal, a sua casa, embora durma num quarto mais modesto na cave, cujo acesso obstruído por degraus traduz-se numa batalha para o seu corpo frágil. Apesar de não considerar a moradia sua, é claramente lá que sente pertencer, regendo-se, no entanto, sempre perante a hierarquia da sua empregabilidade. Não desafia esta condição e lastima Ana, quando esta demonstra sinais de contestação perante o sistema segundo os quais regem os dias de trabalho. Será punida, se deixar o quadro torto? Sim, mas apenas por Milinha.

Na dinâmica entre ambas, e ainda Mónica, filha de Ana, que estuda engenharia no Porto, presenciamos uma linha contínua da relação geracional com o meio. A mais nova e a mais velha, representando opostos, e Ana, suspensa no limbo entre ir e ficar, o novo e o velho. Inicialmente, descobre-se que planeia emigrar com o marido para França, na esperança de melhores salários, que os ajudarão a acabar a construção de uma casa própria. Contudo, decide ficar, quando descobre que a colega está doente. Sabe que Milinha, dada a escolha, preferia ver a sua vida concluída na única casa que conhece, junto das várias caras familiares, emolduradas em fila nas prateleiras. Desta forma, o cuidado da casa converte-se no cuidado de Milinha e um testemunho dos ritmos da morte, encenada aqui por uma não-atriz, cujo sóbrio poder se manifesta na vulnerabilidade da sua entrega.

Légua, Filipa Reis e João Miller Guerra © Uma Pedra no Sapato

Perante este exercício, o tempo permanece aquilo que pontua o filme. Acompanhando as várias repetições que compõem os nossos dias, e os transformam em meses e anos, Filipa Reis e João Miller Guerra fazem questão de sublinhar continuamente a passagem das estações e o crescimento das plantas como forma de espelhar o ciclo vital. No centro destas flutuações intermináveis, a Casa da Botica perdura enquanto monstro estanque, microcosmo que aloja transições, aparentemente sob a condição que estas não o afetem. 

Em contrapartida, Ana parece curvar-se perante a mudança, adaptando-se às suas mais variadas facetas, como mais um passo no fluxo natural do mundo. É uma personagem que Légua rapidamente nos apresenta em consonância com a sensibilidade das coisas. Uma mulher aberta à sensualidade e às emoções que podem surgir, até no simples ato de pôr creme enquanto se canta “Amor de Água Fresca”. Entregando-se ao prazer dos pequenos momentos, reconhecemos nela a poética do ato de regar as plantas, de estender lençóis lavados, apanhar sol num dia ameno e mergulhar nas águas frias do norte de Portugal. Atendemos aos pormenores e às nuances de cada sentido – o toque, o olhar, o cheiro, o sabor -, despertados pela atenção da câmara e pela humilde magia da presença de Carla Maciel. 

Mas para além destes atos facilmente romantizados, desaceleramos com ela, numa entrega mais dura. Fala-se aqui de mudar a fralda de Milinha, de ajudá-la a tomar banho e tão carinhosamente servi-la caralhinhos de São Gonçalo, acompanhados de chá servido na mais fina loiça, que a colega de outro modo provavelmente nunca teria tocado. Vislumbramos o que parece vir a ser o último instante prazeroso, uma espécie de canto do cisne da sua devota servidão, agradecida em contrapartida pela visita de uma agente imobiliária. 

Dando um passo para trás, vemos como a relação de Milinha com a casa e os seus objetos em muito espelha o seu estado de saúde, que deteriora à medida que a mesma se insere gradualmente, e apenas por necessidade, nesses espaços e gestos proibidos aos serviçais. Quando a conhecemos, desempenha as suas tarefas com brio, retirando-se ao fim do dia para o seu quarto no andar de baixo. Contudo, à medida que se torna progressivamente mais debilitada, vemo-la, contrariada, mudar-se para um quarto de hóspedes e, mais tarde, para a própria sala de estar, onde a sua cama articulada ocupa proeminentemente o centro da divisão e ela dificilmente limpa os copos de cristal. 

Uma imagem com pessoa, vestuário, Cara humana, interior

Descrição gerada automaticamente
Légua, Filipa Reis e João Miller Guerra © Uma Pedra no Sapato

Paralelamente, virgulando a rotina sóbria das duas mulheres, surgem impulsos de um certo desejo experimentalista que evoca o tal confronto geracional no cerne da narrativa. São instantes estes que se revelam em quebras, sejam estas visuais ou musicais, por vezes sublimes e por outras disruptivas. Neste último caso, uma prática de certo modo inclinada à mais jovem Mónica, no que parece ser uma tentativa de porventura destacar a personagem, posicionada num patamar em desequilíbrio com as demais. Não deixa de ser, contudo, interessante testemunhar o choque entre a contenção inerente ao 4:3 em que Légua nos chega, os granulosos 16mm, e essa quebra temporal e  visual, que a certo ponto até ataca os sentidos que o próprio filme despertou.  

Serão estas as pulsações do coração complexo que é Portugal – um país que, tal como Ana, se encontra no limbo entre os gestos ancestrais e a ambição contemporânea que o percorre? Independentemente da resposta e da incerteza do futuro, enquanto espectadores observamos a tesoura de Átropos corroer o fio de Milinha, e o que ela representa, linha a linha.

Margarida Nabais

Ikiru, uma meditação febril sobre a efemeridade da vida

Ikiru, de Akira Kurosawa,  poderia ser apenas um cliché melodramático – mas não o é. Num tom quase neorrealista, este filme transporta-nos para a cidade de Tokyo em 1952, período em que o Japão conheceu um boom socioeconómico. Afinal, se o ponto de partida para a história não é propriamente ímpar, as escolhas estéticas, o comentário satírico e a performance emotiva fazem deste um marco na história do cinema.  

Habitualmente traduzido para “To Live”, Ikiru constitui, acima de tudo, uma febril meditação sobre o significado da vida. É através de Kanji Watanabe (protagonizado por Takashi Shimura), um irrepreensível funcionário municipal, que somos convidados a refletir sobre o valor da existência. Apresentando-se ao serviço sem uma única falta nos últimos 30 anos, o ‘nosso protagonista’ – como a voz off o apresenta – é uma encarnação do sistema burocrático japonês; um retrato da ocidentalização do Oriente. 

Enterrado em folhas de papel que carimba monotonamente, Kanji toma consciência da sua condição de morto-vivo após ser diagnosticado com cancro no estômago. Depois do seu diagnóstico, deambula pela vida à qual já não pertencia, num estado de flutuação sugerido pelo jogo de transparências e de sobreposições entre planos. Apesar de tudo, a morte não assume contornos tétricos. É, antes, uma inevitabilidade e um veículo para uma epifania de significado.  

Ikiru, de Akira Kurosawa ©

Na primeira parte do filme, acompanhamos a ação do protagonista na primeira pessoa. Diga-se ação, mas adicione-se-lhe tempo. Porque Ikiru resulta de uma forma pausada de fazer cinema, de um ritmo monocórdico que se funde harmoniosamente com o trabalho fotográfico a preto e branco. Assistimos à sua tentativa inicial de autodestruição: beber era simultaneamente horrível e prazeroso, uma forma de se castigar pelas escolhas passadas. Consumido pelo arrependimento, Kanji Watanabe embarca num exercício de rememoração, onde o nome do seu filho – Mitsuo – ecoa fantasmagoricamente. É ao som de “Happy Birthday” que emerge a sua vontade de encontrar sentido e de desafiar a máquina burocrática que o aprisionou. Como se de um (re)nascimento se tratasse, este é um exemplo da indissociabilidade do cinema e do som. 

Por sua vez, na segunda parte do filme, o diálogo e a memória sobrepõem-se à ação propriamente dita. À semelhança de 12 Angry Men, também aqui a história do protagonista é apresentada e desconstruída através de terceiros. Interessados em compreender a sua súbita mudança de comportamento e a causa da sua morte, os vários burocratas debatem em torno do seu altar. Ora, se em 12 Angry Men, os jurados se reúnem para decidir a sentença do réu, neste filme o tempo do julgamento é diferente. Tecem-se juízos sobre um morto e, consequentemente, nasce uma atmosfera de compunção profunda irreparável. Ikiru culmina numa memorável cena final – sentado num baloiço, Kanji Watanabe entoa serena e pausadamente “Gondola no Uta” de Daisuke Abe (“Life is brief / fall in love, maidens”). A neve forma uma cobertura nas suas costas curvadas. A sua expressão revela o contentamento de quem cumpriu o seu propósito e já não teme a proximidade da morte. 

É esta performance poética que consolida o detalhe psicológico da personagem. Através desta, o filme reveste-se de uma aura de inocência e humanidade. No entanto, e ainda que dotado de um dramatismo cinematográfico incomparável, não prescinde da abordagem satírica à sociedade moderna. Numa montagem sequencial de planos rápidos, vemos os problemas serem encaminhados de departamento em departamento, sem nunca serem resolvidos. Compreendemos que a genialidade do filme reside (pelo menos em parte) na atualidade da crítica tecida e refletimos sobre a nossa passagem pela vida: sempre amenizados, sedados e automatizados. 

E porque viver é diferente de estar vivo, talvez precisemos deste filme, onde os contrastes de luz e o trabalho de câmara enfatizam a efemeridade da vida. Considerado por alguns como a obra-prima do mestre japonês, Ikiru poderia ser apenas um cliché melodramático – mas não o é. 

Maria Mendes

A marcha do tempo no laboratório mental de Pedro Maia – Entrevista

É no cruzamento de matérias primas, de suportes analógicos e digitais e na dilatação dos seus limites que se descobre o trabalho de Pedro Maia, realizador português a residir em Berlim há vários anos. O confronto dos materiais, a desfiguração, destruição ou diluição do figurativo e da própria materialidade das imagens, com vista à reificação da abstração, remete para uma ideia de pintura em movimento trabalhada sobretudo em película de 16mm e 8mm. Desde as primeiras experiências em Super 8, passando por um filme criado a partir de “restos” de planos do filme A Zona (2008), de Sandro Aguilar (onde trabalhou como segundo assistente de realização), até à multidisciplinariedade que cruza live cinema, música, livros e instalações, chegamos ao ponto em que já não há (ou nunca houve) imagem real. É o caso de March of Time, que estreou na competição experimental do Curtas Vila do Conde 2023.

O realizador afirma que o filme nasceu do “interesse de explorar a inteligência artificial (AI), porque o que tenho visto é muito mau e muito piroso. Então foi pensar em utilizar isso para voltar atrás. Pegar nesta ideia de regressão da tecnologia, do futuro a olhar para o passado e a recriá-lo. Lembrei-me de pôr a AI a criar imagens destruídas de 16mm. Produzi um algoritmo que concebia uma espécie de terceiro analógico. Portanto, é a inteligência artificial a tentar criar imagens que ela entende serem imagens de 16mm destruídas.”

Partindo de uma reflexão sobre o tempo e a sua influência nos suportes fílmicos, a ideia passou por usar mecanismos de machine learning (um processo tecnológico que permite aos computadores adquirir e desenvolver conhecimento sobre determinado assunto automaticamente) de forma a criar imagens degradadas de 16mm.

Se o conceito nos deixa curiosos, o resultado não é menos interessante. O que vemos é uma sugestão estética daquilo que seria película destruída/desfigurada do ponto de vista da máquina. Nunca saberemos que imagens reais aquela desfiguração esconde, levando a nossa mente a viajar por este filme-fantasma, pleno de cores, formas e texturas, divididas em “capítulos”, de onde a narrativa não está completamente ausente. Há vontade de criar uma estrutura, um desenvolvimento, um ténue fio condutor que, por muito minimal que seja, nos guie pela aventura imagética. Sem deslumbres, – porque há sempre o contacto com a pobreza inerente àquilo que a inteligência artificial é capaz de produzir – o realizador utiliza aquilo que é mais uma ferramenta ao seu serviço, não esquecendo as suas limitações. Neste caso, o trabalho é também a procura das imagens certas. É preciso treinar o computador, domesticá-lo, conduzi-lo através de um caminho atestado de informações e fazê-lo “pensar”, “ensinar-se”. 

March of Time, Pedro Maia ©

À semelhança de alguns projectos como How to Become Nothing (2017) ou Janela do Inferno (2022), onde tem sido feita a articulação entre objectos fílmicos mais tradicionais de montagem fixa e formatos ao vivo, com March of Time acontecerá o mesmo: “Agora estou em conversas com alguns sítios para passar isto para 16mm e mostrar como  instalação. Com o Pedro Vian, que fez a banda sonora, estamos a desenvolver um concerto com base nisto. O filme foi comissariado pelo 25AV que financiava uma peça audiovisual a um duo que concorresse. Agora, quatro desses projectos vão ser selecionados para a vertente ao vivo. Nós ainda não sabemos se vamos ser selecionados, mas já estamos a avançar com o projecto.”

Esse desejo por cruzar diferentes disciplinas artísticas é expresso pelo realizador, que dá o exemplo de vários dos seus outros trabalhos: “Cada vez mais tenho essa necessidade de que o projecto não seja só uma coisa. Especialmente por causa dessa necessidade de deixar um ou vários registos. Por exemplo, a partir do How to Become Nothing fizemos o Fade Into Nothing, porque o Indielisboa estava interessado em mostrar isto em competição. Agora, quando olho para o filme, fico arrependido, porque é muito menos radical. Fizemos uma versão mais contida, menos confusa, onde a montagem é muito mais simples. Ao vivo há muitas coisas que acontecem. Agora arrependo-me de não ter transposto essa radicalidade do live cinema, que para mim foi a melhor forma de mostrar o projecto”.

Também Janela do Inferno, filme comissariado para um concerto do festival Walk&Talk nos Açores, transformou-se numa curta-metragem: “Convidaram-me para fazer o concerto de abertura do festival e decidi convidar a Lucy Railton, que faz música electrónica experimental, para fazermos a residência em conjunto. Depois o Luís Fernandes, que comanda o GNRATION, convidou-nos a fazer uma peça para ficar online, com uma montagem fixa entre 10 a 20 minutos.”

March of Time, Pedro Maia ©

Essa experiência em filmes-concerto e live cinema, levou-o a desenvolver um trabalho muito forte no que toca à articulação com a música e espetáculos ao vivo, algo que é reforçado pela sua visão cinematográfica: “Como eu venho do cinema experimental e não da media art, para mim tudo no ecrã tem que funcionar como um filme. Depois quando pões a banda, as luzes, o público, isso fica muito mais forte. No meu trabalho, apesar de todo o improviso envolvido, há uma estrutura em que sei mais ou menos a música, os tons, e sei que começo num certo ponto e sei onde tenho que estar no momento seguinte. Aquilo tem que continuar a funcionar por si só numa sala de cinema. A narrativa é muito importante também para os músicos e não tem que ser uma coisa óbvia. Nos meus filmes experimentais e concertos abstractos há sempre qualquer coisa que me guia e espero que guie de alguma forma o concerto. Às vezes coisas muito básicas como começar muito escuro e acabar muito claro. Só isso já é importante, porque te ajuda a restringir, a saber que tens que fazer determinada coisa. Como faço isto há muitos anos, já consigo respirar fundo, mas quando estás ao vivo o tempo é muito mais rápido. Se não tens pausas, é difícil. O mais importante para mim é teres uma narrativa, seja lá qual for.”

Sobre voltar a trabalhar filmes mais narrativos ou figurativos como Fade Into Nothing ou Guanche, projecto para o festival ALESTE na Madeira, que voltou a juntá-lo a Paulo Furtado e à actriz Iris Cayatte, o realizador acrescenta: “Apresentamos na Madeira, no Curtas Vila do Conde, no Porto, e é um projecto que é cinema, música e spoken word. Apresentamos no Curtas e tivemos muito bom feedback. É narrativo, mas também muito experimental. Mas a minha tendência é ir sempre para coisas não narrativas, apesar de haver sempre uma estrutura, como no Janela do Inferno: há uma ideia de percurso, uma narrativa, apesar de ser muito experimental, mas acontece mais quando trabalho com outras pessoas. No Guanche escrevemos um guião e acabamos por fazer uma coisa totalmente diferente.”

Guanche, Pedro Maia ©

Nesse cruzamento de várias disciplinas artísticas, naturalmente, os projectos acabam por vir de impulsos diferentes. O facto de trabalhar num dos últimos laboratórios da Alemanha a fazer todos os processos analógicos (revelação, cópias de cinema, etc.), onde é responsável pelas digitalizações, fez com que fosse à procura de bobines de nitrato, “porque as cinematecas têm, mas aquilo está sempre muito bem guardado, porque é muito inflamável e é difícil ter acesso. E eles disseram-me que tinham lá umas latas. E aquilo eram imagens de um incêndio para aí de 1930, um filme que está completamente destruído, com imagens de um fogo num suporte que é altamente inflamável. E decidi que tinha que fazer alguma coisa com aquilo, uma coisa de 5 minutos, muito simples.”

Berlin Feuer, Pedro Maia ©

Daí nasceu Berlin Feuer (2021), onde a forma se alia ao conteúdo representado, dando origem, pela sua fenomenologia, a um filme-chave e representativo do seu trabalho: “Digitalizei as imagens e estava a trabalhar com elas, mas achei que fazer uma coisa só com found footage, como o Bill Morrison faz, não era suficiente e decidi intervir na película. Muitos dos projectos que faço em película passam por uma primeira destruição. Digitalizo, faço uma segunda destruição, digitalizo, etc. Até quase o original ser perdido. No Guanche tenho isso: imagem limpa até um nível de destruição em que quase não vês nada. Gosto dessa ideia de o que fazes ser irremediável, de fazer os filmes como faço os concertos, com essa qualidade quase efémera.”

O que também ajuda a tornar o seu trabalho particularmente interessante e único é uma despreocupação com purismos desnecessários. Identificar as qualidades latentes dos materiais e suportes com que se trabalha, desafiando-se a expandir as características inerentes ao seu trabalho através dos mesmos, tem sido receita para os seus filmes: “Gosto de articular o digital com o analógico. Uso muito o digital, faço muita coisa em 4K. Não me interessa aquela ideia nostálgica da película ou do antigo. Isso não me interessa. Eu uso a película pela sua plasticidade e propriedades. E no Guanche isso é fixe, porque consigo no mesmo concerto ir de uma imagem muito limpa em que te focas numa imagem muito bem construída de forma cinematográfica e passar para uma totalmente caótica em que quase não vês imagem. O que tenho feito em alguns projectos como o Janela do Inferno é filmar em digital e passar para película. Destruir o analógico e voltar a passar para digital. Ando sempre entre uma coisa e outra. Acho que é isso que dá força ao meu trabalho, porque no cinema tu tens os puristas da película que fazem as cópias e não percebem nada de digital. Depois há a malta do digital que não percebe nada de película. Eu estou confortável nos dois campos e acho que o meu trabalho explora isso e valoriza-se por causa disso. Não tenho aquela coisa nostálgica, mas antes um interesse em intervir na película, seja pós-revelação ou na revelação com químicos, onde mudo os tempos, o PH da água… ou aplico efeitos de solarização como o Man Ray fazia.”

Para além dos espetáculos onde alia as suas imagens à música de outros, essa relação com a música e os seus atributos é também importante nos seus filmes: “Sim, a música acaba por ser uma paixão mais forte do que o cinema para mim, mas não tenho talento nenhum. Mas é aquela coisa de fazer música com imagens. É um conceito a que eu não gosto de me associar tanto, mas é um bocado visual music.” 

A experiência em sala é a imersão nas qualidades materiais e plásticas das imagens criadas pelo realizador e da música a que se associam, numa fruição visual e sonora que não deixa de apelar a descobertas estruturais e narrativas por parte do espectador. Essa relação com a música é transposta também para a própria criação de vídeos musicais que, mais uma vez, se articulam com outros suportes:  “Fiz um videoclipe para o Vessel que se chama Passion, que tinha tanto bom material de 16mm, de stills e tudo mais, mas o Vessel não queria lançar o disco em vinil, por motivos ecológicos. Então decidimos fazer uma fanzine, limitada a 50 unidades, com base nas imagens a 16mm que não foram usadas no videoclipe, para quem comprar o digital ter a fanzine. Depois o dinheiro era doado a uma instituição de mind charity, porque a música tem também que ver com isso. Portanto, a ideia era construir um livro que fosse uma espécie de filme. Esta dinâmica é uma coisa que me interessa muito. Obviamente que o meu trabalho é mais ao vivo e sobre esta ideia de construir coisas que não se repetem.”

Para além de March of Time, Pedro Maia apresenta ainda o videoclipe “Scotch Rolex and Shackleton – Deliver The Soul, na competição de vídeos musicais do 31º Curtas Vila do Conde.

Ricardo Fangueiro

O desenlace em direção ao futuro tem necessariamente de ser pintado em tons escuros de solidão? 

Wild Strawberries (1957), da realização de Ingmar Bergman, carrega consigo o peso de uma narrativa de afirmação do passado sobre o presente. Contando com uma produção de Allan Ekelund, assevera-se como um veículo para pensar a inexorabilidade do envelhecimento e efemeridade da juventude. 

Ao longo dos devaneantes noventa minutos do filme é percorrida uma distância entre a morte e a vida. É feita uma dupla viagem. A primeira enquanto o protagonista Isak Borg – magnificamente interpretado por Victor Sjöström – se desloca de Estocolmo a Lund para receber um diploma universitário honorário. A segunda, uma jornada de autodescoberta, onde revive, nas suas memórias, a sua infância e a dor de um romance corrompido. Através de imagens oníricas, fantasias e flashbacks, sonhos e pesadelos, Wild Strawberries dramatiza a ilustre caminhada deste professor de 78 anos. É, por isso, aclamado como um dos filmes mais influentes de Bergman, precisamente por fazer uso de técnicas de narrativa não linear para estabelecer um vínculo emocional com o espectador. A utilização magistral de metáforas ou imagens simbólicas que vão sendo inseridas na linguagem cinematográfica aprimora acentuadamente a experiência visual, denunciando um nível de alta qualidade no que toca à direção e ao argumento do filme.

Destaca-se na sua singularidade e profundidade, por se revestir de uma camada simbólica que procura tratar assuntos ao nível da delicadeza da condição humana. Começando pelo título, em sueco Smultronstället, um lugar com morangos selvagens, apela a um sítio oculto e sentimental, conhecido por alguém em particular. No decorrer da história, Dr. Isak refugia-se neste seu esconderijo secreto, onde é inundado por memórias da vida jovem. Por seu turno, o seu Smultronställetd é o seu paraíso, a sua escapatória do mundo, que emana o perfume de morangos recém colhidos na natureza, envolvendo-o em recordações do seu primeiro amor, Sara, que os apanhava. Os morangos silvestres assumem, portanto, a função de símbolo permanente da continuidade, renovação e alegria da vida.

Quando Isak toma consciência dos poucos anos que lhe restam, o tempo começa a assumir um novo significado para si. Uma marca da temporalidade são os relógios que aparecem ao longo do filme. Quer nos seus sonhos, quer na realidade, nenhum dos relógios tem ponteiros. Esta ausência indicia um tempo corrompido, uma inconstância do objeto na imagem temporal, uma evidência de um espaço sem horas, desprovido de temporalidade. A fluidez aparece como intrínseca à noção de tempo, fluidez esta que está presente em todos os conceitos abstratos que são abordados na história do filme, como a vida, a morte, a eternidade, a juventude, a nostalgia e a reconciliação. Este signo ilustra antagonicamente a presença e ausência da temporalidade na vida de Isak. Assim, ilumina o próprio reconhecimento do protagonista de que está a chegar ao fim da vida, mas também pode representar a diluição de fronteiras entre a realidade e os sonhos, o passado e o presente, acentuando de maneira sublime este contraste.

Wild Strawberries, de Ingmar Bergman – ©

Com planos demorados que emanam uma qualidade estética admirável, os fragmentos cinematográficos exibidos ao espectador evidenciam uma mestria na arte de fazer cinema.  Mas não só a narrativa e a cinematografia contribuem para uma asseveração desta produção como ímpar e produtora de impacto no mundo do cinema. De igual modo, o perspicaz agenciamento da iluminação também se constitui como um elemento distintivo que eleva este filme à condição de obra de arte. Assiste-se à transfiguração de processos técnicos de iluminação, que se elevam ao estatuto de processos emocionais, construindo significado de forma a apontar o confronto com o passado e a aceitação da dor. Aqui, ilumina-se as personagens para denotar as divergências e convergências existentes entre o mundo virtual e o real. O passado de Isak é caracterizado por iluminações brilhantes e cores claras, enquanto o presente é eivado de dramáticos contrastes entre preto e branco, tomando o ecrã uma negritude que faz transparecer a solidão sentida pela personagem principal. Nas cenas onde Isak tem de confrontar o passado, são dissolvidas as linhas entre estes mundos através de configurações de iluminação para aumentar o peso do movimento. 

O contexto de criação do filme, produto do final da década de 1950, está intimamente ligado à vida pessoal do diretor, cujo trabalho artístico já era admirado no seu país de origem. Wild Strawberries foi criado durante um período conturbado de reflexão para Bergman, em que enfrentava uma crise que colocou em dúvida a sua própria existência – acabando por se espelhar na sua criação. Esta obra-prima ricamente humana, inserida num cinema profundamente reflexivo, oferece uma ponderação sobre os temas recorrentes no seu trabalho, como a busca de significado, a angústia existencial e a exploração da condição humana ou mortalidade. Carregando consigo um legado para uma valorização estética e artística no contexto das produções cinematográficas, ajudou, desta forma, a solidificar o estatuto de Bergman, aclamando-o como um dos diretores mais influentes e respeitados da história do cinema.

Catarina Gerardo

Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, para além da utopia musical

Utopia, cores e sonhos. Esses foram alguns dos elementos-chave que nortearam a produção de filmes musicais norte-americanos até meados da década de 1960 – responsável pela produção de algumas das mais inesquecíveis e singulares obras do gênero. Entretanto, foi na França que a dança e o canto encontraram um final oposto ao júbilo comum até então.

Os Chapéus de Chuva de Cherburgo (Les Parapluies de Cherbourg), lançado em 1964, foi a terceira longa-metragem dirigida pelo francês Jacques Demy, que manteve algumas características do gênero ao mesmo tempo que rompeu com outras – especialmente no que diz respeito à narrativa. Dividido em três partes, que ocorrem entre o final dos anos 1950 e início dos anos 1960, o filme gira em torno da história do relacionamento entre Geneviève (Catherine Deneuve) e Guy (Nino Castelnuovo). Contudo, o amor fica comprometido quando ele é convocado para servir no exército na guerra da Argélia.

O aspecto visual e a narrativa andam em contramão ao mesmo tempo que são indissociáveis. Demy cria uma atmosfera semelhante à já recorrente nos musicais hollywoodianos, composta por uma paleta de cores vibrante e extremamente diversificada. Essa escolha pode ser vista como um mero cumprimento aos preceitos do gênero até à altura, mas uma vez que terminamos o filme, nota-se que seu uso vai muito além desta suposição. 

Deixemos os finais felizes, a terra dos sonhos e a utopia de lado. Em contraposição aos filmes musicais feitos até então, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo carrega uma narrativa dramática e realista. O amor entre os protagonistas não vence, mas sim a razão. Carinho e afeto permanecem, porém, a realidade toma seu lugar e leva Geneviève e Guy a caminhos distintos. Assim, o filme traz temas reais que outrora não seriam vistos no mundo fantástico da cantoria norte-americana. 

Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, de Jacques Demy ©

Demy não se restringe à superfície da desilusão amorosa e mergulha mais fundo em temas complexos. A relação de Geneviève e sua mãe, Madame Emery (Anne Vernon), norteia toda a narrativa e a vida da protagonista também. Ela quer que a filha se case com Roland Cassard (Marc Michel), um homem rico que tem plena condição financeira de manter uma família – ao contrário de Guy, um trabalhador desprovido de poder aquisitivo. Cria-se um impasse na percepção sobre a figura materna que, embora queira o bem para sua filha, acaba influenciando-a em suas decisões e distanciando-a de seu amor. Outra temática vista no filme é a gravidez fora do casamento – uma problemática significativa e complexa para a altura -, que se torna uma questão para a protagonista.

Os Chapéus de Chuva de Cherburgo não apresenta números de dança complexos – planos recorrentes nos musicais são deixados de lado, como aqueles feitos com grua para mostrar a exuberância da coreografia e do cenário – e irreais para o mundo real, mas apresenta todos os diálogos cantados. Assim, a música cumpre umas das convenções vistas no gênero, a de avançar a narrativa. 

Embora tramas dramáticas já tenham aparecido em obras realizadas anteriormente – como em West Side Story – Amor Sem Barreiras – Demy contribuiu para uma nova percepção dentro dos musicais ao mesclar uma atmosfera colorida com uma narrativa realista. Essa oposição torna o filme marcante e é fundamental para nos puxar para realidade. Embora seja um ambiente tão vibrante como Oz, em Cherbourg, os sonhos que você ousa sonhar nem sempre se tornam realidade.

Lílian Lopes

Asteroid City: O espaço infinito entre a história e o narrador

O mais recente filme de Wes Anderson, Asteroid City, submerge o espectador num emaranhado de narrativas, tempo e espaço. Entre cenários e adereços, o realizador cria um universo fictício e altamente estilizado, preenchido por personagens excêntricas, aparentemente tão estáticas como os planos que ocupam. Nesta história, a única coisa real é o próprio ato de a contar.

Wes Anderson é conhecido pelo seu olhar cinematográfico único, que conduz o espectador por planos meticulosamente simétricos e histórias sobre histórias dentro de histórias. Os cenários detalhados e as cores pastéis características de Wes Anderson conferem um aspeto surreal aos seus filmes, o qual é ampliado pelos modos teatrais das personagens, que surgem no ecrã como atores em palco (em alguns casos, literalmente). As particularidades do realizador são evidentes, refinadas a cada novo projeto, mas, apesar da identidade que atravessa toda a sua obra, cada filme de Wes Anderson é uma peça singular e única.

Asteroid City é o culminar do método de Wes Anderson, um novo extremo do seu estilo. Trata-se do seu projeto mais ambicioso até à data, contando com cenários em miniatura construídos em Espanha e uma assembleia de atores de renome, que chega a ocupar metade do cartaz. Contudo, por mais extravagante que seja  a produção, este nível de dedicação não deixa de ser expectável por parte do cineasta, sendo antes o rumo da história que eleva o filme a um novo patamar no catálogo do realizador. 

Asteroid City (2023), de Wes Anderson @ Focus Features

O palco do filme é Asteroid City, uma amostra de cidade que rasga o deserto, com meia dúzia de edifícios perfeitamente alinhados no espaço negativo da paisagem. A sua maior (e única) atração é uma cratera formada pelo impacto de um asteroide, a origem do nome da povoação. O cenário ideal para um conto à Wes Anderson. O elenco é introduzido com uma precisão típica, a caracterização de cada personagem acrescenta detalhes à sua intriga, e cada conversa desvenda uma nova linha narrativa. Augie Steenbeck (Jason Schwartzman) é um fotógrafo de guerra em luto, teimosamente à espera do momento certo para contar aos quatro filhos que a mãe deles morreu. O filho mais velho, Woodrow (Jake Ryan), é um prodígio que foi convidado a exibir a sua invenção científica na convenção que irá decorrer em Asteroid City. O aglomerado de personagens expande-se em torno desta convenção e a cratera torna-se o lugar onde todos se reúnem. É aí, na pegada de um asteroide, que testemunham um evento insondável, o qual resulta na implementação de uma quarentena na pequena cidade.

Proibidas de sair, as personagens são obrigadas a confrontar a sua realidade, perspetiva e crenças no espaço restrito e quase irreal de Asteroid City. A limitação física das personagens reflete a cinematografia de Wes Anderson, que mantém as personagens fixas nos planos em prol da simetria e teatralidade. No entanto, perante o confinamento em Asteroid City, o realizador desdobra a história sobre si, destorcendo o espaço e o tempo, numa tentativa de procurar o significado das várias narrativas que se desenrolam. Apesar da quarentena, o universo de Asteroid City – e, consequentemente, o de Wes Anderson – abre-se perante as personagens e a audiência.

No meio desta espantosa sinfonia de cenários e narrativas, Wes Anderson revela, na voz de uma das personagens, que o propósito da história é simplesmente contá-la. Com as câmaras apontadas para o céu como telescópios, o realizador procura atravessar o espaço infinito entre história e narrador. Neste universo minuciosamente construído, o cineasta liberta as personagens da narrativa, deixando apenas a experiência do filme e a história que conta, como uma cratera deixada por um asteroide.

Margarida Rodrigues

Sexualidade em Les Îles e Hideous, de Yann Gonzalez: uma crítica comparativa

Les Îles, de Yann Gonzalez, é uma reinterpretação erótica de La Ronde, de Arthur Schnitzler. A estrutura desta peça de teatro consiste no conhecimento de um vasto elenco de personagens através dos encontros sexuais em que cada uma se envolve: a+b, b depois encontra c, c encontra d, etc… No fim da peça, a última personagem vai de encontro à primeira, completando o movimento circular do título. Na curta metragem de Gonzalez, o erotismo é elevado ao máximo e a narrativa ao mínimo. Enquanto na peça original a estrutura e temática é orientada principalmente a um comentário social (personagens de diversos estratos sociais que se encontram devido ao desejo sexual), no filme em causa a estrutura é utilizada para abstrata e eroticamente explorar sexualidade e fantasia de forma livre.

Na primeira cena, um casal heterossexual faz sexo até ser interrompido por um “monstro” – homem de latex vermelho (caracterização assumidamente artificial) que estes prontamente aceitam. Há uma beleza profunda no reconhecimento e paixão por esta artificialidade por parte do cineasta, como pode ser visto na imagem em baixo: O orifício da boca não mexe, apenas se vê a língua a aparecer por detrás da máscara rígida. 

Enquanto a peça original é um ácido comentário social, esta curta metragem quase que nega intelectualização fora do seu formalismo, deixando as personagens moverem-se livremente (quase) sem traços narrativos, mesmo que no fim o círculo se complete. A obra parece uma filtração de fantasias e desejo sexual através de fetiches cinematográficos, que, embora não sexuais, parecem igualmente matéria do subconsciente. Gonzalez doma os desejos ctónicos através do seu consciente trabalhar da forma cinematográfica. Esta rejeição de narrativa ou de explicação dos símbolos (ou sequer de tentar atribuir ou explicar qualquer significação óbvia a estes) aproxima o filme a uma tactilidade do desejo, não podendo funcionar de outra forma.

Les Îles, Yann Gonzalez © ECCE Films

Na curta de 2022 do mesmo realizador, Hideous, parece que todos os méritos de Les Îles são invertidos. Em primeiro lugar, é importante mencionar que a obra é de certa forma um “visual álbum”, ilustrando e criando um acompanhamento visual e sonoro para três músicas em sucessão de um álbum de Oliver Sim. No entanto, o filme não se limita a ser um produto publicitário: cria uma narrativa a partir das três músicas e é muito explicitamente “Um Filme de Yann Gonzalez”, a sua tentativa de fazer uma curta-metragem musical. É apresentado como tal e mesmo em festivais foi mostrado como uma obra como qualquer outra do realizador (mesmo que colaborativa). Desta forma, não deve então ser julgado por parâmetros especiais.

Que fique claro: para transmitir a imaterialidade fugaz do desejo, um filme não tem de ser não-narrativo ou abstrato. No entanto, parece que Gonzalez tem dificuldade em conjugar os dois aspetos. O seu capricho pela forma cria uma sucessão fluída de imagens ao ser aplicada ao sub/inconsciente, quando existe uma tentativa de o estruturar, grande parte da sua força é perdida. A primeira obra mencionada vai além da negação de narrativa, há uma negação de mensagem: pura fantasia sensorial. Ao conjugar letras musicais muito explícitas com uma narrativa muito direta e gritante através das imagens e sons que escolhe, há uma obviedade no gesto que causa aversão.

As referências queer usadas são todas maravilhosas, mas para que serve uma boa variedade de referências se não são tratadas com qualquer profundidade ou interesse único? Para mostrar o quão interessante o cineasta é pessoalmente? Em Les Îles a verbalização do subterrâneo é feita pelo movimento fluído de pessoas e identidades, com poucas palavras, apenas o toque. A euforia é transcendental e não verbal. Ao conscientemente filtrar esta euforia não material através de referências, em junção com o quão literais as letras são, o filme pouco tem valor para quem não é já fã ferrenho das músicas.

Les Îles, Yann Gonzalez © ECCE Films

Em último lugar, é importante discutir a polarização da sexualidade nos dois filmes. Enquanto no primeiro esta é definida pelo ato sexual e as poucas referências (exemplo: monstro latex) aparecem como partes de um universo erótico, aqui a sexualidade é transmitida quase só pelas suas referências culturais. Claro que homossexualidade tem uma cultura que ultrapassa o sexo e até o sexual (como David M. Halperin explora extensivamente no seu livro How To Be Gay), mas se a sexualidade é reduzida apenas à cultura estética que a partir dela é construída (principalmente num filme que pretende tratar a experiência universal da homossexualidade), a expressão da mesma acaba por ser pobre. 

A melhor cena do filme é o massacre do monstro, pois aproxima-se de uma certa abstração, mas mesmo assim esta é interessante pelas cativantes tendências estéticas do realizador, que existindo só por si em vácuo têm pouco interesse. Só há um grande (e curtíssimo) momento sexual marcante, uma alusão a fisting, mas devido à sua abstração e ao filme em que se insere, parece pouco mais que uma provocação fraca.

Hideous é dolorosamente óbvio, e isso é o pior que se pode dizer de um filme que está a tentar ser tão único.

Vasco Muralha