Landscape in the Mist – o filme que mostra o não visto

Landscape in the Mist é um filme que se olha a si próprio. É um filme que, para além de observado, tem de ser visto. É um filme que, num profundo exercício de contemplação, convoca a visualidade em seu redor e transfigura-a como sua. E à sua maneira singular e singela, Theodoros Angelopoulos fixa uma dimensão ponderada sobre o cinema e sobre a condição humana, dando a conhecer a dureza que pode significar viver.

Subsequente a Voyage to Cythera (1984) e a The Beekeeper (1986), esta obra é o fim de Trilogy of Silence, uma trilogia de filmes que pensam por si mesmos, filmes ponderados a nível técnico e narrativo. Interdependentes, contudo vinculados por leitmotivs que nos transportam para dimensões simbólicas de jornadas pessoais que contam com um visualismo pulsante.

No caso de Landscape in the Mist, segue-se o percurso de duas crianças na sua desorientação ontológica desprovidas de figura paternal, mas à procura de uma. Com a crença de que o seu pai se encontra na Alemanha, os dois irmãos, Aleksander, interpretado por Michalis Zeke, e Voula, encenado por Tania Palaiologou, guiados pelo discernimento natural de vidas que se iniciam no percurso existencial, lançam-se num caminho de busca, acompanhados meramente pelos seus corpos e pelos seus silêncios. 

O exercício de contemplação imanente ao filme é evidenciado pelo uso de uma quietude ressonante, realçada pela preferência da comunicação com o olhar em detrimento da comunicação com recurso à linguagem. Assim, o silêncio dá rigidez à evolução da narrativa, querendo impor a sua pesada e estridente presença entre as personagens, como se fosse mais uma que atua perante os espectadores. 

Landscape in the Mist, de Theodoros Angelopoulos – © Giorgos Arvanitis

A ponderação e reflexão catalisadas pela névoa, que gravita em volta da obra, são quase hipnóticas, pelo que ganham consistência à medida que a jornada se estende. Tendo início num fundo escuro com iluminação fosca, é estabelecido o alicerce mítico do filme, que se irá figurar num movimento de fuga da escuridão inicial para a luz final, revelando que a vida e a morte passam a ser possibilidades dignas de plausibilidade, numa vida que ainda agora se iniciou e pode findar a qualquer instante.

Os planos estáticos, demorados e afastados concebidos por Angelopoulos, que enformam e conferem densidade à narrativa, admitem um duplo movimento no espectador: o de imersão e o de distanciamento. Imersão, uma vez que é concedida uma possibilidade de conexão com as personagens, impondo um autêntico enternecimento ao espectador, por apelar à união de um laço familiar de irmãos, bem como através da banda sonora da autoria de Eleni Karaindrou, que constantemente se repete, apresentando-se como um grito romântico, melódico e idílico, acessível à vinculação por parte de quem vê. Distanciamento, porque consegue, concomitantemente, mostrar de forma crua e inusitada a inclemência que a transição forçada para a vida adulta pode representar. Forçado a assistir à perda de inocência, à crueldade e injustiça sofridas por ambas as crianças no decorrer do percurso, o espectador experimenta um certo desconforto.

Lamentavelmente, nesta jornada é patente a aflição de um movimento de rotura estonteante que faz cair as crianças num penhasco de eternidade, muitas vezes salvas por Orestis. Interpretado por Stratos Tzortzoglou, um jovem cujo percurso se cruza com o das crianças, vai atuar como um anjo da guarda, quase como a figura parental procurada na viagem. No entanto, a luz que traz consigo desfaz-se em fragmentos na presença destas formas de inocência e pequenez, confrontadas com o poder absoluto e engrandecedor da mesma luz. Por essa razão, a névoa, na sua natureza transcendental, prevalece não raras vezes, acabando por consumir qualquer suspiro que se afigura à sua frente, não permitindo a respiração exuberante das crianças, de ninguém, a não ser a da própria. As formas de vida dissipam-se perante ela – a única que permanece para contar a história. 

Irrefutavelmente, esta produção de Theodoros Angelopoulos apresenta-se-nos como a personificação da rispidez, sendo um filme áspero, extremamente visual, porque mostra o visível e, acima de tudo, o que não pode ser visto. O que a neblina torna denso, a arte cinematográfica acaba por desvendar. Para trás, fica apenas uma paisagem na névoa.

Catarina Gerardo

Creuse, onde o som se presentifica

Creuse (2022) é um constante trabalho de presentificação do som. O baque surdo que dele emana torna possível a emergência de um exercício necessário à não-existência de uma vida. Por levar ao extremo a sinestesia da experiência cinematográfica é uma curta-metragem que se distende. Por pedir um tipo de compreensão anormal, é exibido numa maratona noturna, em Boca do Inferno, no Indie Lisboa.

Guillaume Scaillet, autor de En pleine Lulu (2020), Jouvencelle (2021) e de Extra Flavour (2021), presentifica-nos, desta vez, com uma obra marcadamente sua, uma ficção que se estende numa realidade de horror, mostrando uma rotina polvilhada de gritos interiores e de imagem decepadas onde o silêncio dá lugar aos limites da destruição. Aqui, o trabalho sonoro de Pierre-Louis Clairin, Adrien Cannepin, e Mikhael Kurc, impõe-se sobre a restante produção, conferindo um peso avassalador à presença do som e do silêncio, a sons que não devem ou não podem ser ouvidos, e à preponderância que a audição constitui em relação à perceção de um mundo e de um corpo.

O espectador entra na narrativa através do silêncio, que é fácil de aceder, ficando depois prisioneiro dela, mesmo quando este silêncio se transforma em ruído inusitado, desagradável e ensurdecedor. Só há um movimento de libertação possível, através da paragem do tempo, de uma fuga do desespero, de um abrandamento progressivo do batimento cardíaco – cujos atributos consoladores poderão fazer desaparecer a angústia terrível de ter de ouvir o interior de si.

O agenciamento de décors simples fazem focar a atenção no único personagem da narrativa, Marc, interpretado por Raphaël Quenard, cujo papel é certamente de difícil digestão. O desconforto que faz sentir ao espectador transfigurado por cada fração das suas expressões faciais afigura-se igualmente como um elemento de extrema importância na compreensão das relações entre o eu e o outro, o eu e o mundo, o eu e o seu interior. 

Creuse, de Guillaume Scaillet – © Direitos reservados

As paredes frias e sem veios são cobertas por placas de silêncio devastador, afirmando o horizonte gélido sem limites que circunda o protagonista. Marc, numa fase inicial, rodeia-se de um esforço atento às práticas saudáveis que nutrem o seu corpo. Mas, de súbito, os seus olhos retêm fixamente o vazio ou talvez a esperança do regresso próximo de Louise, a sua namorada. Num movimento estático, os ponteiros do relógio dão-lhe uma leve noção de tarde. Durante alguns instantes ainda tem tempo para respirar, antes que o sangue lhe sacuda a cabeça, antes que as fogueiras ininterruptas comecem a incendiar o interior da sua consciência. A ausência desta figura feminina é um catalisador da sensação do vórtice anguloso de agonia, pelo que junto do seu ventre desmaiam bofes de vísceras, mais do que os da respiração ou do cansaço. Abre-se por dentro dos gritos num movimento que só cessa quando o batimento acelerado de um coração ansioso dá lugar ao silêncio que se quis impor na escuridão do dia.

Creuse dá uma significância aos sons ensurdecidos pelo invólucro que é o corpo, sendo um filme que dá a ouvir o que não é ouvido. Estar dentro do próprio ser na eternidade da escravatura da rotina pode ser um fardo exaustivo. Conseguir ouvir um tendão a distender ou o pulsar de uma veia pode ser intolerável ao ponto de ser necessário ser exterior ao seu corpo, independentemente de todo o cuidado e atenção prestados a si mesmo.

Numa dialética contraditória que se vai estabelecendo ao longo do filme tem-se a passagem de um silêncio ao barulho, de uma presença a uma ausência, de planos calmos a esdrúxulos. A respiração funda e final fazem sentir que o dia findava e teria de findar naquele momento. O esboçar de um sorriso indecidido como o de uma criança só poderiam existir se houvesse uma entrega do corpo delirante à própria dor sôfrega. A audição que se intensificava teria inevitavelmente de dar lugar a pingos azulados de sangue vermelho. A vida teria inexoravelmente de esvair-se para dar lugar ao chilrear dos pássaros.

Catarina Gerardo

Numéro Deux e a composição da matéria fílmica

Até que ponto é que um filme se afirma como filme?

Numéro Deux (1975) pode compreender um esforço de abstração maior do que o vulgar, já que não roça nenhum género delineado, mas sim se afirma como um exercício de experimentação de Jean-Luc Godard realizado em colaboração com Anne-Marie Miéville. Um filme, se é que o pode ser considerado, com o seu próprio estilo, que inventa a sua exclusiva maneira de existir.

Subsequente a Ici et Ailleurs (1974) e antecedente a Six Fois Deux (1976) ou a Comment Ça Va? (1976), esta obra pertence ao período do coletivo Dziga Vertov, um tempo de militância, que, no seu âmago, queria gerar confusão, perguntas, ação política, e, acima de tudo, a conquista de quem o visse de se poder afirmar como um indivíduo com uma posição crítica definida em relação ao mundo. Pretendiam, portanto, fazer os espectadores pensarem sobre si e em si próprios, bem como na natureza à sua volta e nos sistemas em que se incluem. Daí o seu intuito ser também questionar-se sobre a condição fílmica e cinematográfica, pensando até que ponto seria efetivamente considerado como uma peça de cinema e não uma sobreposição de várias textualidades.

A miscigenação de textos num movimento de libertação da própria condição de filme eleva a substância do signo fílmico a um limiar de grande originalidade. Isto pelo menos para os anos de 1975 e 1976, quando esta sinestesia de inscrições surge diante de espectadores que não esperavam uma projeção como esta se abrisse da maneira que se abriu.

Uma abertura não só ao estilo, mas também à(s) história(s) que nos vai contando, ao longo de uma textura heterogénea composta por fragmentos escritos, sons sobrepostos, imagens simultâneas em dois ecrãs e algumas personagens que constroem uma narrativa fracionada à medida que os 88 minutos perpassam. Fala-se de palavras que se inscrevem num fundo preto, mas igualmente se mostra o exercício que é fazer cinema, o trabalho que esta arte exerce e requer, evidenciando a qualidade do artista que tem de estar nos bastidores de tal produção cinematográfica. Mas pode uma projeção como esta, composta por uma hibridização de elementos e uma pluralidade de matérias, adquirir o estatuto de filme, ou não será apenas uma manifestação de um sincretismo pretensioso que se quer imiscuir com todos os que já conseguiram alcançar este estatuto?

Numéro Deux, de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville – © William Lubtchansky

Afirmando-se como filme ou não, coloca-nos questões de uma elevada pertinência, almejando o olhar crítico de quem vê. Apesar da sua estrutura formal causadora de desorientação ou confusão, maioritariamente devido ao trabalho de montagem, Numéro Deux apresenta-se, a nível de conteúdo, como um convite ao pensamento analítico sobre como o género e as suas construções inerentes influenciam e têm um papel preponderante nas dinâmicas de poder na nossa sociedade, usando o conceito de paisagem como metáfora para o sexo feminino e a noção de fábrica como símbolo do sexo masculino.

Explora, por isso, as relações entre homens e mulheres, sendo estruturado à volta de várias conversas entre uma família, onde a mãe, interpretada por Sandrine Battistella, e o pai, desempenhado por Pierre Oudrey, buscam discussões tanto superficiais e sem importância, como aprofundadas e acerca de assuntos relevantes, como a construção da identidade ou o sistema capitalista. Sendo também um experimento em parte erótico, este filme pensa a sexualidade como distração à existência metálica de latão que se constrói e edifica ao nosso redor, pelo que o entorpecimento e o amorfismo inalado pelos sexos é alavanca para a máquina da fábrica que se ocupará da criação de um de dois produtos finais: uma criança ou uma casualidade.

Inegavelmente, a variedade que Godard mais uma vez nos ostenta é de um exercício de criatividade tal que em vez de um ecrã, foram precisos dois, seguindo uma binariedade de lógicas que não se esgotam só neste aspeto. Aqui patentes – dois ecrãs, dois sexos – talvez serão necessários mais no futuro. Por via das dúvidas, este movimento de introdução de um elemento gerador de ambiguidade foi extremamente relevante para a construção de uma identidade de autor inigualável, que o põem num pedestal, evidenciando a originalidade da sua vasta obra. 

Catarina Gerardo

[Foto em destaque: Numéro Deux, de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville – © William Lubtchansky]