DocLisboa: The Nothingness Club – Não Sou Nada (2023)

O DocLisboa tem como intuito a exploração de representações únicas da realidade. Quer seja por meio de um experimentalismo ou pelo desafio das conceções do passado, promove filmes que ofereçam novas maneiras de percecionar o mundo. The Nothingness Club – Não Sou Nada (2023) de Edgar Pêra é um deles, afigurando-se como um documentário mental sobre a entrada nos modos de pensamento de Pessoa.

Embrenhado no efeito nebuloso de uma mente patologicamente manchada, é oferecida ao espectador a oportunidade de inserção na realidade deturpada do mais enigmático poeta português: Fernando Pessoa. Baseada nos seus poemas, assiste-se à costura de uma narrativa própria, porque não se trata do real, mas sim de uma distorção onírica do mesmo.

Poder-se-ia afirmar que este filme era mais um ao lado dos demais que basearam as suas linhas orientadoras nos poemas deste grande escritor – e ainda bem que há tantos assim –, mas seria insensato declará-lo de facto, porque não se apresenta como um Filme do Desassossego (2010) ou um La gentilezza del tocco (1987). Pelo contrário, esta obra, escrita de forma perspicaz por Edgar Pêra e Luísa Costa Gomes, constitui-se, de forma anacrónica, como uma perspetiva refrescante (apesar de alucinante), com um ritmo fílmico muito particular, um Pessoa entre todos os outros.

O barulho gritante da sinfonia das máquinas de escrever, esta musicalidade intrínseca ao ato de escrever mestrada por ele próprio, constitui a personificação dos acessos de loucura febril de uma alma perturbada por esta multiplicidade de imaginários labirínticos. Uma agitação do sonoro de tal ordem, impele o espectador para um quarto coberto por espelhos quebrados, onde se instala um clima de terror psicológico, onde são refletidas imagens pertencentes à ordem do não-real.

The Nothingness Club – Não Sou Nada, de Edgar Pêra – © Direitos reservados

A fragmentação do “eu”, os dramas íntimos e a dimensão fantasiosa presentes nos poemas de Pessoa são de tal modo vinculados pela técnica. Quer seja pela câmara lenta e pela voz-off, que adensam o teor psicológico das personagens, quer seja pela banda sonora habilmente trabalhada por Artur Cyanetto e Jorge Prendas, quer seja pela sobreposição e justaposição de imagens, construída na montagem de Tomás Baltazar e Cláudio Vasques, nota-se, aqui, um cinema criador de dimensões imaginárias a partir de dimensões técnicas, usando a técnica para estabelecer esse imaginário estranho e labiríntico, através de um movimento de embriaguez alucinogénica. 

Sente-se o ambiente caótico, o contraste entre o espaço ficcional e o real (o escritório e o hospício), espaços que se contaminam, se devoram e se iluminam. Observa-se Lisboa numa distorção delirante através do cinema – e assumimos o papel de um dos muitos heterónimos, sentido o que ele sente, mas à nossa maneira singular e subjetiva. Constatam-se as fascinantes performances de Miguel Borges, atuando como Fernando Pessoa, um espectador de si mesmo que se procura a si e à sua essência; de Victoria Guerra como Ofélia, um elemento sedutor no meio dos cenários, um indício de cedência da racionalidade ao sentir inerente à condição humana; e de Albano Jerónimo, que é Álvaro de Campos, o corroer de várias personalidades que vão morrendo aos poucos com ele.

Aqui, vê-se o gesto e o grito. Aqui, experimenta-se o cinema, que tem o poder de elevar quem vê à condição de quem sente, num delírio estonteante, numa visão múltipla e deturpada do mundo, que só Pessoa poderia conceber.

Catarina Gerardo

QueerLisboa:  I Can See the Sun but I Can’t Feel It Yet (2023)

O QueerLisboa é para muitos uma oportunidade de sentir o encontro pulsante da diferença. Não só um ponto de chegada, como acima de tudo um ponto de partida, este festival de cinema, verdadeiramente inclusivo, volta a Lisboa para a sua 27ª edição. Um evento que, através da exibição de obras cinematográficas inseridas na esfera LGBTQI+, da promoção de atividades paralelas, como discussões abertas e exposições, tem conseguido celebrar a diversidade, contribuindo desta maneira para a consciencialização em assuntos não tão convencionais geralmente marginalizados noutros contextos. 

No sentido de provocar uma reação impactante relativamente à contradição da norma, I Can See the Sun but I Can’t Feel It Yet (2023), realizado por Joseph Wilson e escrito por Evan Francis Jones, esteve presente na competição de curtas-metragens, na edição do Queer de 2023. Indo de encontro ao tema do festival, este filme contém em si bem presente a realidade imanente da imiscuição em ambientes que submetem pessoas a terapias de conversão. 

O estilo simulado e experimental desta produção, bem como o dramatismo sonoro associado ao trabalho de som de Rick Smith, conseguem tratar as terapias de conversão como uma realidade distópica, algo da ordem do surreal, muito distante de todos nós. A verdade é que estas práticas altamente problemáticas ainda têm presença no mundo atual. Produções como esta pretendem elucidar especialmente a gravidade da sujeição de pessoas queer a processos de mutilação emocional, tendo como pretexto a patologização das diferentes orientações sexuais e identidades de género. Num mundo altamente avançado como o que vivemos, parece insensato e completamente descabida a existência destas práticas, sendo que a sua desacreditação é extremamente preponderante nos dias de hoje – e o modo como são retratadas nesta curta, é talvez, o único aceitável, no sentido de trabalhar para a exclusão permanente destes processos de desumanização.

I Can See the Sun but I Can’t Feel It Yet, de Joseph Wilson – © Direitos reservados

O rigor formal dos planos, apesar da experimentalidade em que estão embebidos, quer seja pela desvitalização viva que dá aos cenários, quer seja pelo contraste de cores nos décors, levanta de modo perspicaz as preocupações necessárias associadas a este problema e que, inegavelmente, precisam de ser alvo de debate. Direitos humanos como a liberdade de autodeterminação e a orientação sexual e identidade de género são violados nestes procedimentos, sendo que o filme, pelo clima de suspense que cria – pela expectativa e espera, pela caracterização das personagens e pelo dinamismo dos movimentos da câmara, com planos estáticos ou com zoom in/zoom out – tem a perfeita capacidade de fazer transparecer a amargura aflitiva sentida aquando da imiscuição neste género de ambientes marcadamente penosos, que submetem sujeitos a processos de brainwashing por meio de métodos pseudocientíficos ou religiosos – oferecendo-lhes um lugar de fala.

Não obstante, o filme não quer apenas ser um retrato desta atmosfera pesada de mutilação emocional. Pelo contrário, deve ser visto como um apelo a que se procurem formas de performatividade de género não baseadas em [qualquer forma de] violência. É sabível que os media são elementos fundamentais da repetição dos atos estilizados, existindo uma complicitude por parte do sistema social na produção e reprodução de género. Mesmo assim, para haver uma proliferação de gestos subversivos é necessário operar por dentro da própria matriz de modo a atualizá-la. E é através de filmes que mostrem o sentir-se parte da periferia que se pode almejar em direção à aceitação da autoexpressão livre das orientações sexuais e identidades de género, promovendo a recetividade, a complacência e tolerância para com os indivíduos queer – que, ao longo das suas vidas, atravessam períodos conturbados de autodescoberta e autoaceitação. Podemos ver o sol, mas não senti-lo. Por isso, se em detrimento da mutilação e violência emocionais for promovido um apoio exterior por parte dos pares, será sempre facilitado o processo de estar em paz consigo mesmo e com a sua identidade – e aí conseguiríamos, por fim, sentir o calor reconfortante do sol sobre o qual apenas tínhamos lançado o olhar. Tratar a periferia com a convencionalidade que se trata a norma é dar um passo no sentido de atingir a sensibilização para a luta pela aceitação e igualdade. E o Queer, com a criação de uma plataforma de inclusão, fá-lo de maneira extraordinária, configurando-se como um evento cultural seminal em Lisboa. 

I Can See the Sun but I Can’t Feel It Yet, de Joseph Wilson – © Direitos reservados

Catarina Gerardo

O desenlace em direção ao futuro tem necessariamente de ser pintado em tons escuros de solidão? 

Wild Strawberries (1957), da realização de Ingmar Bergman, carrega consigo o peso de uma narrativa de afirmação do passado sobre o presente. Contando com uma produção de Allan Ekelund, assevera-se como um veículo para pensar a inexorabilidade do envelhecimento e efemeridade da juventude. 

Ao longo dos devaneantes noventa minutos do filme é percorrida uma distância entre a morte e a vida. É feita uma dupla viagem. A primeira enquanto o protagonista Isak Borg – magnificamente interpretado por Victor Sjöström – se desloca de Estocolmo a Lund para receber um diploma universitário honorário. A segunda, uma jornada de autodescoberta, onde revive, nas suas memórias, a sua infância e a dor de um romance corrompido. Através de imagens oníricas, fantasias e flashbacks, sonhos e pesadelos, Wild Strawberries dramatiza a ilustre caminhada deste professor de 78 anos. É, por isso, aclamado como um dos filmes mais influentes de Bergman, precisamente por fazer uso de técnicas de narrativa não linear para estabelecer um vínculo emocional com o espectador. A utilização magistral de metáforas ou imagens simbólicas que vão sendo inseridas na linguagem cinematográfica aprimora acentuadamente a experiência visual, denunciando um nível de alta qualidade no que toca à direção e ao argumento do filme.

Destaca-se na sua singularidade e profundidade, por se revestir de uma camada simbólica que procura tratar assuntos ao nível da delicadeza da condição humana. Começando pelo título, em sueco Smultronstället, um lugar com morangos selvagens, apela a um sítio oculto e sentimental, conhecido por alguém em particular. No decorrer da história, Dr. Isak refugia-se neste seu esconderijo secreto, onde é inundado por memórias da vida jovem. Por seu turno, o seu Smultronställetd é o seu paraíso, a sua escapatória do mundo, que emana o perfume de morangos recém colhidos na natureza, envolvendo-o em recordações do seu primeiro amor, Sara, que os apanhava. Os morangos silvestres assumem, portanto, a função de símbolo permanente da continuidade, renovação e alegria da vida.

Quando Isak toma consciência dos poucos anos que lhe restam, o tempo começa a assumir um novo significado para si. Uma marca da temporalidade são os relógios que aparecem ao longo do filme. Quer nos seus sonhos, quer na realidade, nenhum dos relógios tem ponteiros. Esta ausência indicia um tempo corrompido, uma inconstância do objeto na imagem temporal, uma evidência de um espaço sem horas, desprovido de temporalidade. A fluidez aparece como intrínseca à noção de tempo, fluidez esta que está presente em todos os conceitos abstratos que são abordados na história do filme, como a vida, a morte, a eternidade, a juventude, a nostalgia e a reconciliação. Este signo ilustra antagonicamente a presença e ausência da temporalidade na vida de Isak. Assim, ilumina o próprio reconhecimento do protagonista de que está a chegar ao fim da vida, mas também pode representar a diluição de fronteiras entre a realidade e os sonhos, o passado e o presente, acentuando de maneira sublime este contraste.

Wild Strawberries, de Ingmar Bergman – ©

Com planos demorados que emanam uma qualidade estética admirável, os fragmentos cinematográficos exibidos ao espectador evidenciam uma mestria na arte de fazer cinema.  Mas não só a narrativa e a cinematografia contribuem para uma asseveração desta produção como ímpar e produtora de impacto no mundo do cinema. De igual modo, o perspicaz agenciamento da iluminação também se constitui como um elemento distintivo que eleva este filme à condição de obra de arte. Assiste-se à transfiguração de processos técnicos de iluminação, que se elevam ao estatuto de processos emocionais, construindo significado de forma a apontar o confronto com o passado e a aceitação da dor. Aqui, ilumina-se as personagens para denotar as divergências e convergências existentes entre o mundo virtual e o real. O passado de Isak é caracterizado por iluminações brilhantes e cores claras, enquanto o presente é eivado de dramáticos contrastes entre preto e branco, tomando o ecrã uma negritude que faz transparecer a solidão sentida pela personagem principal. Nas cenas onde Isak tem de confrontar o passado, são dissolvidas as linhas entre estes mundos através de configurações de iluminação para aumentar o peso do movimento. 

O contexto de criação do filme, produto do final da década de 1950, está intimamente ligado à vida pessoal do diretor, cujo trabalho artístico já era admirado no seu país de origem. Wild Strawberries foi criado durante um período conturbado de reflexão para Bergman, em que enfrentava uma crise que colocou em dúvida a sua própria existência – acabando por se espelhar na sua criação. Esta obra-prima ricamente humana, inserida num cinema profundamente reflexivo, oferece uma ponderação sobre os temas recorrentes no seu trabalho, como a busca de significado, a angústia existencial e a exploração da condição humana ou mortalidade. Carregando consigo um legado para uma valorização estética e artística no contexto das produções cinematográficas, ajudou, desta forma, a solidificar o estatuto de Bergman, aclamando-o como um dos diretores mais influentes e respeitados da história do cinema.

Catarina Gerardo

Landscape in the Mist – o filme que mostra o não visto

Landscape in the Mist é um filme que se olha a si próprio. É um filme que, para além de observado, tem de ser visto. É um filme que, num profundo exercício de contemplação, convoca a visualidade em seu redor e transfigura-a como sua. E à sua maneira singular e singela, Theodoros Angelopoulos fixa uma dimensão ponderada sobre o cinema e sobre a condição humana, dando a conhecer a dureza que pode significar viver.

Subsequente a Voyage to Cythera (1984) e a The Beekeeper (1986), esta obra é o fim de Trilogy of Silence, uma trilogia de filmes que pensam por si mesmos, filmes ponderados a nível técnico e narrativo. Interdependentes, contudo vinculados por leitmotivs que nos transportam para dimensões simbólicas de jornadas pessoais que contam com um visualismo pulsante.

No caso de Landscape in the Mist, segue-se o percurso de duas crianças na sua desorientação ontológica desprovidas de figura paternal, mas à procura de uma. Com a crença de que o seu pai se encontra na Alemanha, os dois irmãos, Aleksander, interpretado por Michalis Zeke, e Voula, encenado por Tania Palaiologou, guiados pelo discernimento natural de vidas que se iniciam no percurso existencial, lançam-se num caminho de busca, acompanhados meramente pelos seus corpos e pelos seus silêncios. 

O exercício de contemplação imanente ao filme é evidenciado pelo uso de uma quietude ressonante, realçada pela preferência da comunicação com o olhar em detrimento da comunicação com recurso à linguagem. Assim, o silêncio dá rigidez à evolução da narrativa, querendo impor a sua pesada e estridente presença entre as personagens, como se fosse mais uma que atua perante os espectadores. 

Landscape in the Mist, de Theodoros Angelopoulos – © Giorgos Arvanitis

A ponderação e reflexão catalisadas pela névoa, que gravita em volta da obra, são quase hipnóticas, pelo que ganham consistência à medida que a jornada se estende. Tendo início num fundo escuro com iluminação fosca, é estabelecido o alicerce mítico do filme, que se irá figurar num movimento de fuga da escuridão inicial para a luz final, revelando que a vida e a morte passam a ser possibilidades dignas de plausibilidade, numa vida que ainda agora se iniciou e pode findar a qualquer instante.

Os planos estáticos, demorados e afastados concebidos por Angelopoulos, que enformam e conferem densidade à narrativa, admitem um duplo movimento no espectador: o de imersão e o de distanciamento. Imersão, uma vez que é concedida uma possibilidade de conexão com as personagens, impondo um autêntico enternecimento ao espectador, por apelar à união de um laço familiar de irmãos, bem como através da banda sonora da autoria de Eleni Karaindrou, que constantemente se repete, apresentando-se como um grito romântico, melódico e idílico, acessível à vinculação por parte de quem vê. Distanciamento, porque consegue, concomitantemente, mostrar de forma crua e inusitada a inclemência que a transição forçada para a vida adulta pode representar. Forçado a assistir à perda de inocência, à crueldade e injustiça sofridas por ambas as crianças no decorrer do percurso, o espectador experimenta um certo desconforto.

Lamentavelmente, nesta jornada é patente a aflição de um movimento de rotura estonteante que faz cair as crianças num penhasco de eternidade, muitas vezes salvas por Orestis. Interpretado por Stratos Tzortzoglou, um jovem cujo percurso se cruza com o das crianças, vai atuar como um anjo da guarda, quase como a figura parental procurada na viagem. No entanto, a luz que traz consigo desfaz-se em fragmentos na presença destas formas de inocência e pequenez, confrontadas com o poder absoluto e engrandecedor da mesma luz. Por essa razão, a névoa, na sua natureza transcendental, prevalece não raras vezes, acabando por consumir qualquer suspiro que se afigura à sua frente, não permitindo a respiração exuberante das crianças, de ninguém, a não ser a da própria. As formas de vida dissipam-se perante ela – a única que permanece para contar a história. 

Irrefutavelmente, esta produção de Theodoros Angelopoulos apresenta-se-nos como a personificação da rispidez, sendo um filme áspero, extremamente visual, porque mostra o visível e, acima de tudo, o que não pode ser visto. O que a neblina torna denso, a arte cinematográfica acaba por desvendar. Para trás, fica apenas uma paisagem na névoa.

Catarina Gerardo

Creuse, onde o som se presentifica

Creuse (2022) é um constante trabalho de presentificação do som. O baque surdo que dele emana torna possível a emergência de um exercício necessário à não-existência de uma vida. Por levar ao extremo a sinestesia da experiência cinematográfica é uma curta-metragem que se distende. Por pedir um tipo de compreensão anormal, é exibido numa maratona noturna, em Boca do Inferno, no Indie Lisboa.

Guillaume Scaillet, autor de En pleine Lulu (2020), Jouvencelle (2021) e de Extra Flavour (2021), presentifica-nos, desta vez, com uma obra marcadamente sua, uma ficção que se estende numa realidade de horror, mostrando uma rotina polvilhada de gritos interiores e de imagem decepadas onde o silêncio dá lugar aos limites da destruição. Aqui, o trabalho sonoro de Pierre-Louis Clairin, Adrien Cannepin, e Mikhael Kurc, impõe-se sobre a restante produção, conferindo um peso avassalador à presença do som e do silêncio, a sons que não devem ou não podem ser ouvidos, e à preponderância que a audição constitui em relação à perceção de um mundo e de um corpo.

O espectador entra na narrativa através do silêncio, que é fácil de aceder, ficando depois prisioneiro dela, mesmo quando este silêncio se transforma em ruído inusitado, desagradável e ensurdecedor. Só há um movimento de libertação possível, através da paragem do tempo, de uma fuga do desespero, de um abrandamento progressivo do batimento cardíaco – cujos atributos consoladores poderão fazer desaparecer a angústia terrível de ter de ouvir o interior de si.

O agenciamento de décors simples fazem focar a atenção no único personagem da narrativa, Marc, interpretado por Raphaël Quenard, cujo papel é certamente de difícil digestão. O desconforto que faz sentir ao espectador transfigurado por cada fração das suas expressões faciais afigura-se igualmente como um elemento de extrema importância na compreensão das relações entre o eu e o outro, o eu e o mundo, o eu e o seu interior. 

Creuse, de Guillaume Scaillet – © Direitos reservados

As paredes frias e sem veios são cobertas por placas de silêncio devastador, afirmando o horizonte gélido sem limites que circunda o protagonista. Marc, numa fase inicial, rodeia-se de um esforço atento às práticas saudáveis que nutrem o seu corpo. Mas, de súbito, os seus olhos retêm fixamente o vazio ou talvez a esperança do regresso próximo de Louise, a sua namorada. Num movimento estático, os ponteiros do relógio dão-lhe uma leve noção de tarde. Durante alguns instantes ainda tem tempo para respirar, antes que o sangue lhe sacuda a cabeça, antes que as fogueiras ininterruptas comecem a incendiar o interior da sua consciência. A ausência desta figura feminina é um catalisador da sensação do vórtice anguloso de agonia, pelo que junto do seu ventre desmaiam bofes de vísceras, mais do que os da respiração ou do cansaço. Abre-se por dentro dos gritos num movimento que só cessa quando o batimento acelerado de um coração ansioso dá lugar ao silêncio que se quis impor na escuridão do dia.

Creuse dá uma significância aos sons ensurdecidos pelo invólucro que é o corpo, sendo um filme que dá a ouvir o que não é ouvido. Estar dentro do próprio ser na eternidade da escravatura da rotina pode ser um fardo exaustivo. Conseguir ouvir um tendão a distender ou o pulsar de uma veia pode ser intolerável ao ponto de ser necessário ser exterior ao seu corpo, independentemente de todo o cuidado e atenção prestados a si mesmo.

Numa dialética contraditória que se vai estabelecendo ao longo do filme tem-se a passagem de um silêncio ao barulho, de uma presença a uma ausência, de planos calmos a esdrúxulos. A respiração funda e final fazem sentir que o dia findava e teria de findar naquele momento. O esboçar de um sorriso indecidido como o de uma criança só poderiam existir se houvesse uma entrega do corpo delirante à própria dor sôfrega. A audição que se intensificava teria inevitavelmente de dar lugar a pingos azulados de sangue vermelho. A vida teria inexoravelmente de esvair-se para dar lugar ao chilrear dos pássaros.

Catarina Gerardo

Numéro Deux e a composição da matéria fílmica

Até que ponto é que um filme se afirma como filme?

Numéro Deux (1975) pode compreender um esforço de abstração maior do que o vulgar, já que não roça nenhum género delineado, mas sim se afirma como um exercício de experimentação de Jean-Luc Godard realizado em colaboração com Anne-Marie Miéville. Um filme, se é que o pode ser considerado, com o seu próprio estilo, que inventa a sua exclusiva maneira de existir.

Subsequente a Ici et Ailleurs (1974) e antecedente a Six Fois Deux (1976) ou a Comment Ça Va? (1976), esta obra pertence ao período do coletivo Dziga Vertov, um tempo de militância, que, no seu âmago, queria gerar confusão, perguntas, ação política, e, acima de tudo, a conquista de quem o visse de se poder afirmar como um indivíduo com uma posição crítica definida em relação ao mundo. Pretendiam, portanto, fazer os espectadores pensarem sobre si e em si próprios, bem como na natureza à sua volta e nos sistemas em que se incluem. Daí o seu intuito ser também questionar-se sobre a condição fílmica e cinematográfica, pensando até que ponto seria efetivamente considerado como uma peça de cinema e não uma sobreposição de várias textualidades.

A miscigenação de textos num movimento de libertação da própria condição de filme eleva a substância do signo fílmico a um limiar de grande originalidade. Isto pelo menos para os anos de 1975 e 1976, quando esta sinestesia de inscrições surge diante de espectadores que não esperavam uma projeção como esta se abrisse da maneira que se abriu.

Uma abertura não só ao estilo, mas também à(s) história(s) que nos vai contando, ao longo de uma textura heterogénea composta por fragmentos escritos, sons sobrepostos, imagens simultâneas em dois ecrãs e algumas personagens que constroem uma narrativa fracionada à medida que os 88 minutos perpassam. Fala-se de palavras que se inscrevem num fundo preto, mas igualmente se mostra o exercício que é fazer cinema, o trabalho que esta arte exerce e requer, evidenciando a qualidade do artista que tem de estar nos bastidores de tal produção cinematográfica. Mas pode uma projeção como esta, composta por uma hibridização de elementos e uma pluralidade de matérias, adquirir o estatuto de filme, ou não será apenas uma manifestação de um sincretismo pretensioso que se quer imiscuir com todos os que já conseguiram alcançar este estatuto?

Numéro Deux, de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville – © William Lubtchansky

Afirmando-se como filme ou não, coloca-nos questões de uma elevada pertinência, almejando o olhar crítico de quem vê. Apesar da sua estrutura formal causadora de desorientação ou confusão, maioritariamente devido ao trabalho de montagem, Numéro Deux apresenta-se, a nível de conteúdo, como um convite ao pensamento analítico sobre como o género e as suas construções inerentes influenciam e têm um papel preponderante nas dinâmicas de poder na nossa sociedade, usando o conceito de paisagem como metáfora para o sexo feminino e a noção de fábrica como símbolo do sexo masculino.

Explora, por isso, as relações entre homens e mulheres, sendo estruturado à volta de várias conversas entre uma família, onde a mãe, interpretada por Sandrine Battistella, e o pai, desempenhado por Pierre Oudrey, buscam discussões tanto superficiais e sem importância, como aprofundadas e acerca de assuntos relevantes, como a construção da identidade ou o sistema capitalista. Sendo também um experimento em parte erótico, este filme pensa a sexualidade como distração à existência metálica de latão que se constrói e edifica ao nosso redor, pelo que o entorpecimento e o amorfismo inalado pelos sexos é alavanca para a máquina da fábrica que se ocupará da criação de um de dois produtos finais: uma criança ou uma casualidade.

Inegavelmente, a variedade que Godard mais uma vez nos ostenta é de um exercício de criatividade tal que em vez de um ecrã, foram precisos dois, seguindo uma binariedade de lógicas que não se esgotam só neste aspeto. Aqui patentes – dois ecrãs, dois sexos – talvez serão necessários mais no futuro. Por via das dúvidas, este movimento de introdução de um elemento gerador de ambiguidade foi extremamente relevante para a construção de uma identidade de autor inigualável, que o põem num pedestal, evidenciando a originalidade da sua vasta obra. 

Catarina Gerardo

[Foto em destaque: Numéro Deux, de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville – © William Lubtchansky]