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QueerLisboa:  I Can See the Sun but I Can’t Feel It Yet (2023)

O QueerLisboa é para muitos uma oportunidade de sentir o encontro pulsante da diferença. Não só um ponto de chegada, como acima de tudo um ponto de partida, este festival de cinema, verdadeiramente inclusivo, volta a Lisboa para a sua 27ª edição. Um evento que, através da exibição de obras cinematográficas inseridas na esfera LGBTQI+, da promoção de atividades paralelas, como discussões abertas e exposições, tem conseguido celebrar a diversidade, contribuindo desta maneira para a consciencialização em assuntos não tão convencionais geralmente marginalizados noutros contextos. 

No sentido de provocar uma reação impactante relativamente à contradição da norma, I Can See the Sun but I Can’t Feel It Yet (2023), realizado por Joseph Wilson e escrito por Evan Francis Jones, esteve presente na competição de curtas-metragens, na edição do Queer de 2023. Indo de encontro ao tema do festival, este filme contém em si bem presente a realidade imanente da imiscuição em ambientes que submetem pessoas a terapias de conversão. 

O estilo simulado e experimental desta produção, bem como o dramatismo sonoro associado ao trabalho de som de Rick Smith, conseguem tratar as terapias de conversão como uma realidade distópica, algo da ordem do surreal, muito distante de todos nós. A verdade é que estas práticas altamente problemáticas ainda têm presença no mundo atual. Produções como esta pretendem elucidar especialmente a gravidade da sujeição de pessoas queer a processos de mutilação emocional, tendo como pretexto a patologização das diferentes orientações sexuais e identidades de género. Num mundo altamente avançado como o que vivemos, parece insensato e completamente descabida a existência destas práticas, sendo que a sua desacreditação é extremamente preponderante nos dias de hoje – e o modo como são retratadas nesta curta, é talvez, o único aceitável, no sentido de trabalhar para a exclusão permanente destes processos de desumanização.

I Can See the Sun but I Can’t Feel It Yet, de Joseph Wilson – © Direitos reservados

O rigor formal dos planos, apesar da experimentalidade em que estão embebidos, quer seja pela desvitalização viva que dá aos cenários, quer seja pelo contraste de cores nos décors, levanta de modo perspicaz as preocupações necessárias associadas a este problema e que, inegavelmente, precisam de ser alvo de debate. Direitos humanos como a liberdade de autodeterminação e a orientação sexual e identidade de género são violados nestes procedimentos, sendo que o filme, pelo clima de suspense que cria – pela expectativa e espera, pela caracterização das personagens e pelo dinamismo dos movimentos da câmara, com planos estáticos ou com zoom in/zoom out – tem a perfeita capacidade de fazer transparecer a amargura aflitiva sentida aquando da imiscuição neste género de ambientes marcadamente penosos, que submetem sujeitos a processos de brainwashing por meio de métodos pseudocientíficos ou religiosos – oferecendo-lhes um lugar de fala.

Não obstante, o filme não quer apenas ser um retrato desta atmosfera pesada de mutilação emocional. Pelo contrário, deve ser visto como um apelo a que se procurem formas de performatividade de género não baseadas em [qualquer forma de] violência. É sabível que os media são elementos fundamentais da repetição dos atos estilizados, existindo uma complicitude por parte do sistema social na produção e reprodução de género. Mesmo assim, para haver uma proliferação de gestos subversivos é necessário operar por dentro da própria matriz de modo a atualizá-la. E é através de filmes que mostrem o sentir-se parte da periferia que se pode almejar em direção à aceitação da autoexpressão livre das orientações sexuais e identidades de género, promovendo a recetividade, a complacência e tolerância para com os indivíduos queer – que, ao longo das suas vidas, atravessam períodos conturbados de autodescoberta e autoaceitação. Podemos ver o sol, mas não senti-lo. Por isso, se em detrimento da mutilação e violência emocionais for promovido um apoio exterior por parte dos pares, será sempre facilitado o processo de estar em paz consigo mesmo e com a sua identidade – e aí conseguiríamos, por fim, sentir o calor reconfortante do sol sobre o qual apenas tínhamos lançado o olhar. Tratar a periferia com a convencionalidade que se trata a norma é dar um passo no sentido de atingir a sensibilização para a luta pela aceitação e igualdade. E o Queer, com a criação de uma plataforma de inclusão, fá-lo de maneira extraordinária, configurando-se como um evento cultural seminal em Lisboa. 

I Can See the Sun but I Can’t Feel It Yet, de Joseph Wilson – © Direitos reservados

Catarina Gerardo

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