DOC’S KINGDOM 2022: Gestos e Fragmentos

Não soube nunca onde entrava, 

mas eu quando ali me vi, 

sem saber onde parava,

grandes coisas entendi;

não direi o que senti,

que fiquei não o sabendo,

toda a ciência transcendendo.

Coplas feitas sobre um êxtase de elevada contemplação in Poesias Completas de S. João da Cruz

Só por palavras um tanto toscas, de ambição poética, mas sem os gestos de lirismo próprios ao poeta, pode um participante do Doc’s Kingdom, ou, mais precisamente, esta participante, descrever a sua experiência. Na ausência de qualquer motivo que não o do limite da expressão linguística, apropriei-me do poema de S. João da Cruz, que o acaso quis que lesse nas primeiras horas de envolvimento com a paisagem circundante ao Rio Vez.

Amarante Abramovici, co-directora artística e programadora do Doc’s Kingdom © Magdalena Kielbiowska

Gestos e Fragmentos (1982), filme de Alberto Seixas Santos, dá título à cúpula temática da edição deste ano do Doc’s Kingdom, convidando-nos ao mesmo exercício a que se propôs Seixas Santos aquando da realização do filme, lembrado por José Manuel Costa no texto de 2016 sobre o realizador, que se pode ler no jornal do seminário: “Gestos, fragmentos e grupo zero: o que este cinema dá a ver é também a sua própria matéria, sublinhando o concreto e a materialidade dos gestos tanto quanto do ato de filmá-los – sendo portanto coerente que, na altura em que o contexto pediu ao autor, como a todos, um ainda maior comprometimento social e político, este lhe tenha respondido interrogando os fundamentos e as relações éticas do acto de filmar.” Por outras palavras, à indagação sobre a natureza ontológica, que marca o cinema desde o seu nascimento e a cada momento da sua historiografia, e que parece insinuar-se mais e mais nas nossas preocupações, impôs-se, em cada um dos debates, uma outra pergunta – o que é a práxis cinematográfica? 

O que está em jogo é somente uma interrogação “dos fundamentos e das relações éticas do acto de filmar”, usando as palavras de José Manuel Costa. Contudo, quem participou naqueles debates superou pelo diálogo a rigidez da singularidade do acto de filmar, durante décadas totalitária e totalizante. O que ali se discutiu, sobretudo à luz dos filmes de Alexandra Cuesta e João Vieira Torres, foi a possibilidade de outros actos de filmar a partir dos quais se geram uma multiplicidade de outros olhares e de outros sentidos, dos quais a práxis cinematográfica e, em última instância, o próprio cinema per se, podem ser o gesto por excelência.

Nanook of the North (1922), de Robert Flaherty

A propósito do centenário de Nanook of the North (1922), de Robert Flaherty, já o seminário ia no quarto dia quando o filme foi exibido na Casa das Artes de Arcos de Valdevez, um movimento inesperado que anunciou uma mudança de tom na programação despertou um outro modo de questionar a nossa relação com o cinema e, através dele, com o mundo. Deixemos de parte a discussão em torno da verosimilhança e veracidade da representação do povo Inuit no documentário de Flaherty, pois há muito se sabe que já então não viviam do modo como o filme sugeria. Mas não esqueçamos o motivo pelo qual a crença do espectador está colocada no centro do debate da representação no cinema documental desde os seus primórdios até à contemporaneidade, como a sinopse de Toré (2015) de João Vieira Torres anuncia: “Filmar um ritual de uma tribo da Amazónia aberto a forasteiros é aceitar que apenas vemos o que nos mostram e o que somos capazes de ver. Assim é Toré.” No que somos capazes de ver, reside a nossa crença e uma certa gramática do olhar. Mas pensemos, antes, naquilo que verdadeiramente continua a fazer de Nanook of the North um solo de reflexão contemporâneo sobre as possibilidades éticas do olhar e os limites da relação, ou, como foi referido durante um debate, da obsessão pelo outro.

Boris Lehman, Saguenail, José Manuel Costa, Regina Guimarães, Jacques Lemière © Magdalena Kielbiowska

Seria injusto, como bem o disse José Manuel Costa, tentar desculpar ou justificar Robert Flaherty pelo seu filme, sob pena de pretensiosamente retirar à obra a sua potencialidade expressiva e ao espectador o direito e o dever de exercer o seu pensamento para assim mobilizar o seu conhecimento a partir dela e para ela. Na medida em que existe, em todos os filmes, pelo menos os de natureza documental, uma obsessão pelo outro, também temos a presença da subjectividade daquele que, filmando o outro, se relaciona com ele numa partilha de intimidade e vivências conjuntas. Atentemos às palavras de Flaherty: “A minha necessidade de fazer Nanook vinha do modo como eu sentia esse povo, da minha admiração por ele, era isso que eu queria comunicar.” Não obstante atribuirmos a Flaherty a melhor das intenções no acto de filmar e de considerarmos, em linha com Rohmer e tantos outros, que “Nanook é o mais belo dos filmes”, não devemos esquecer-nos que, à luz dos nossos dias, esse mesmo acto de filmar assentava num modus operandi patriarcal e se concretizava por meio de um aparato técnico com motivos e efeitos colonizadores. Goradas ou não as vontades do realizador, pouco importa, Nanook of the North, cem anos depois, mais do que a aurora do documentário, pode impulsionar o início de uma discussão sobre os limites do modo como o cinema pode e deve olhar, interrogar e relacionar-se com o mundo. 

Foi num gesto de antecipação da sessão de curtas-metragens que aconteceria à noite, após a sessão de celebração do 100º aniversário do filme de Flaherty, seguido de conversa com José Manuel Costa (não fosse este um dos filmes da sua vida) que Nuno Lisboa e Amarante Abramovici, directores e programadores do Doc’s Kingdom, trouxeram o presente e o futuro do cinema para debate. Entre os filmes projectados, dois seriam de maior importância para lançar sobre Nanook of the North tantos olhares e modos de olhar quantos o tempo que os distanciava deixou pluralizar – Beirut 2.14.05 (2008), de Alexandra Cuesta, e Mal di Mare (2021), de João Vieira Torres, assim como todos os outros títulos que constam na filmografia de ambos.

João Vieira Torres e Alexandra Cuesta © Magdalena Kielbiowska

Ambos realizadores naturais da América do Sul, Alexandra Cuesta, do Equador e João Vieira Torres, do Brasil, através de filmes distintos tanto na forma como no conteúdo, reclamam para a sua obra um princípio em comum: como mostrar a subjectividade daquele que filma e daquele que é filmado se, ao contrário do que acontece com o sujeito ocidental, é o Outro no lugar do Eu? As novas perspectivas cinematográficas, e não só, sobre o sujeito e a possibilidade de nos constituirmos sujeito apresentadas nos seus filmes põem em causa o próprio conceito de subjectividade, na sua acepção ontológica ocidental, espalhando fragmentos por outros territórios, corpos, vozes, … Será através do cinema que eles ganharão uma outra forma e novos sentidos, porque, como escreveu Madison Brookshire num texto dedicado à obra da realizadora equatoriana, “(…) an image can be made of many and happens because of the others around it”. É a partir dos outros que cercam João Vieira Torres numa exposição apresentada na Biennale de Veneza, composta por obras de artistas negros, e da pergunta que o realizador coloca aos visitantes brancos: “How many people of color are in this room?”, que nasce assim Mal di Mare. Não seria o primeiro filme político do realizador que vimos no Doc’s Kindgom, mas era, sem dúvida, o seu gesto de mostrar politicamente mais vincado. Por sua vez, todos os seus filmes anteriores, muitos deles sobre amor, como o próprio afirma, e dotados de uma ternura, tantas vezes risível (quem não se rendeu à criança que assiste ao Planeta dos Macacos, o de 2011, no seu quarto em Crianças Fantasma (2016)), exigiam uma gramática do olhar que nela contivesse a vontade e os instrumentos precisos para descortinar a dimensão política a eles subjacente e que Mal di Mare torna visível e inescapável, ainda que sempre distante. 

Nuno Lisboa, co-director artístico e programador do Doc’s Kingdom, e Boris Lehman © Magdalena Kielbiowska

Uma outra dimensão da (inevitável) obsessão pelo outro interpela-nos em Babel: Letter To My Friends Who Stayed In Belgium (1991) quando, pela voz de Boris Lehman, se ouve o realizador a questionar-se (e a devolver-nos as questões) sobre o quão justo seria contar a sua história usando os outros (e os seus corpos) e não exclusivamente as suas vivências através da sua figura. Trata-se de um filme que gravita em torno do realizador, cujo constante adiamento do fim revela o quão difícil é, senão mesmo impossível, dar uma obra por terminada, sobretudo quando sofre de uma depressão e, consequentemente, se atira para uma incessante procura por uma reunião com a vida e o presente, numa luta contra a melancolia. Por isso, afirma que filma as coisas que estão a desaparecer, “(…) uma frase que ilustra o próprio acto de filmar: o registo de imagens e sons de uma realidade que está sempre a escapar-nos, e que, por isso, como que desaparece quando é filmada.” Neste sentido, encontramos na natureza do próprio acto de filmar um impulso melancólico que antecipa, intencionalmente ou não, a perda do objecto ou realidade filmada ou, como diria Agamben em Notas sobre o Gesto, “In the cinema, a society that has lost its gestures tries at once to reclaim what it has lost and to record its loss.” (Agamben, 2000: 53).

Em nenhum outro filme o peso do desaparecimento a que o futuro tudo veta se fez sentir como em Notes, Imprints (On Love): Parte I e Notes, Imprints (On Love): Parte II, Carmela (2020), de Alexandra Cuesta, nos quais cada gesto filmado corresponde depois a um gesto total ao qual a possibilidade de perda dá sentido. Existe nestes dois filmes, como noutros da realizadora, a capacidade fantasmática de tornar visível uma atmosfera de luto que envolve e se aproxima, através do olhar cinematográfico, dos gestos, corpos, cidades e casas por onde passou o seu quotidiano. Da melancolia do acto de filmar desponta o sujeito melancólico, para quem o vínculo afectivo apenas a memória, infalivelmente falível como ela é, pode reter. 

Doc’s Kindgom 2022 © Magdalena Kielbiowska

Findo o Doc’s Kingdom de 2022, mais do que as imagens que a memória pôde cristalizar, são os gestos que ainda nos olham e ecoam por estas palavras. Se podemos culpar o cinema por fazer de nós um sujeito melancólico, ao Doc’s Kingdom cabe a culpa, e que bela culpa, desse sujeito que nos tornamos não poder continuar a não se exprimir nas dimensões ética e política – e não só estética ou ontológica. Um dever ético de sempre questionarmos qual a nossa relação com o mundo e de compreendermos que o nosso olhar deve constituir uma atitude ética e politicamente envolvida, dever esse ao qual o Doc’s Kingdom nos parece inteiramente devotado. Por isso, quando ali me vi pela primeira vez, na leitura dos versos que principiaram a experiência do seminário, um compromisso com ele nascia, um onde, de forma consequente, grandes coisas, daí a poucas horas, poucos dias, entenderia e sentia.

Lisboa, Outubro de 2022

Cátia Rodrigues

[Foto em destaque: Gestos e Fragmentos, de Alberto Seixas Santos]

MIXING MEMORY WITH DESIRE | FILMES DE JOÃO MARIA GUSMÃO E PEDRO PAIVA | APROPRIAÇÃO, MANIPULAÇÃO

Onde está o barulho levemente ensurdecedor do ruminar das máquinas analógicas? Esses brinquedos de um cinema do passado. Objetos curiosos que nos fazem questionar para onde devemos olhar. Assumimos as projeções enquanto imagens bidimensionais ou instalações de cariz escultórico? Todo aquele aparato revela uma ligação ao real, inerente ao médium, que contraditoriamente nos procura mostrar movimentos e formas talvez imperceptíveis a olho nu, nas quais apenas reconhecemos as origens. As máquinas que nos dão a ver este teatro do absurdo – e digo teatro porque tudo é encenado pela dupla – escondem também a apurada técnica que o torna possível. Mas nem as máquinas nem o barulho que projetam estão, neste caso, ao nosso alcance. Esta é uma experiência diferente

Estamos na Cinemateca, local onde a dupla – que iniciou a sua colaboração em 2001 e a terminou há pouquíssimo tempo – mostrou, a 30 de agosto, os seus filmes pela primeira vez. Foram nove filmes inseridos na primeira parte de uma sessão no âmbito do ciclo Do outro lado do espelho dedicado precisamente aos espelhos no cinema. A segunda parte, intitulada Apropriação, Manipulação apresenta um conjunto de filmes dedicados a práticas experimentais. 

Dream of a Ray Fish, João Maria Gusmão e Pedro Paiva © MUBI

João Maria Gusmão e Pedro Paiva dão a ver os seus filmes no seu suporte original em película de 16mm. A confusão, essa vertigem incessante que as caóticas instalações por norma nos proporcionam, não têm um lugar central: Somos voyeurs. Observamos de fora e em silêncio, numa escuridão quase total em que certos filmes nos mergulham. O ruminar é substituído pela mudez; um certo incómodo instala-se. Não estamos rodeados de imagens que aparecem não sabemos de onde, com filmes que passam em simultâneo, que apanhamos a meio – se é que existe aqui um início e um fim – e esperamos que o Loop se repita. Estamos fora desse universo. 

Vemos os filmes um a um. Toda a sala procura uma compreensão racional destas “ficções poético-filosóficas”. Não se trata de uma experiência imersiva, não se suprime, como é habitual, o pensamento no momento da sua aparência.

 Onde se perde a veemência da experiência sensorial acrescenta-se um apelo à reflexão, apenas contrariado por não estarmos a falar da mesma experiência temporal. Só se repetem os filmes uma vez e quando cada um termina a plateia espreita a folha de sala para saber o que acabou de ver ou informar-se sobre o que a espera.

É, no entanto, inegável que nos são apresentados novos mundos, primeiros olhares, onde a gravidade não tem tanta importância, onde os reflexos são protagonistas e o absurdo se torna familiar. Como? Através de reflexos solares – talvez estilhaços – que se projetam sobre uma tela e unidos quase a destroem; reflexos de água; metáforas implícitas; “truques” técnicos; e situações mais ou menos quotidianas que encontram aqui uma experiência sensorial diferente. 

Georgetown Loop, Ken Jacobs © MUBI

A segunda parte mantém a tendência do privilégio da imagem bidimensional, apropriando-se de imagens captadas do real para nos apresentarem novas visões só possíveis através do cinema, e, tal como o título diz, manipuladas. Ambas as secções desta sessão parecem prestar homenagem a um cinema que ainda não se tinha deixado encantar pela poética da narrativa, encontrando a sua própria poética no movimento das formas e nas reflexões que propõe.

Tiago Leonardo

[Foto em destaque: 3 suns, João Maria Gusmão e Pedro Paiva © MUBI]

Trabalho feminino e cinema brasileiro: entre o trauma e o sonho de uma nação

Pouco mais de dois meses atrás, a Cinemateca Brasileira abria novamente as suas portas, depois de quase dois anos com as atividades interrompidas. A instituição, que preserva o maior acervo audiovisual da América Latina, sofreu o quinto incêndio da sua história em 2021, no seguimento de uma série de desmontes que, embora agravados durante o (des)governo de Jair Bolsonaro, remontam a um projeto de sucateamento cultural muito mais antigo no país. Ontem, ganhou repercussão um caso judicial no estado de Santa Catarina, sul do Brasil, de uma menina de 11 anos, vítima de estupro, impedida de interromper a sua gravidez. Embora a gestação decorrente de violação sexual seja uma dos únicas circunstâncias em que a legislação brasileira permite a realização do aborto, a juíza Joana Ribeiro Zimmer, acompanhada da promotora Mirela Dutra Alberton, tentaram induzir a criança a manter o bebê. Dois relatos que parecem apenas exemplos isolados do absurdo que impera no país, em todas as esferas. Filmes como Creche-Lar (1978), de Maria Luiza d’Aboim, Trabalhadoras Metalúrgicas (1978), de Olga Futemma e Renato Tapajós, Mulheres da Boca (1982), de Inês Castilho e Cida Aidar, Mulheres: Uma outra história (1988) e Amores de Rua (1994), de Eunice Gutman, podem, contudo, provar uma relação mais íntima entre estes dois infelizes acontecimentos, e entre o passado e o presente.

Creche-Lar (1978), de Maria Luiza d’Aboim © Direitos Reservados.

O programa Uma outra história – Cinco filmes sobre o trabalho feminino no Brasil – a ser exibido no Museu do Aljube, em Lisboa, no dia 25 de junho, e fruto de uma parceria entre a plataforma feminista Another Screen e a estrutura Cinelimite – estampa as realidades de mulheres mães, mulheres metalúrgicas, mulheres prostitutas e mulheres políticas, tão distintas como semelhantes. A partir de montagens objetivas, que não ultrapassam 35 minutos cada, as curta-metragens miram no contar de histórias e acertam no recontar da História. Três camadas de leitura são possíveis: aquela que privilegia a dimensão arquivística destes filmes, muitos deles perdidos ou colocados à margem da grande narrativa da Sétima Arte; aquela que destaca a dimensão documental destas imagens, enquanto retratos mais ou menos fidedignos de uma época e de um contexto social; e, por fim, aquela que elege a dimensão afetiva, no que toca à experiência de escuta e de proximidade pelas mulheres atrás das câmeras para com as mulheres em frente a elas.

Importante assinalar, ainda, que os filmes recortam um momento crucial na história do Brasil, um país que nunca conseguiu, verdadeiramente, livrar-se do fantasma da ditadura militar (1964 – ?). O fim dos “anos de chumbo” foi resultado, na verdade, de uma “abertura lenta, gradual e segura”, slogan instituído em 1975 pelo governo Geisel, no mesmo ano em que o jornalista, professor e dramaturgo brasileiro Vladimir Herzog é assassinado numa das instalações do DOI-CODI – os Centros de Operações de Defesa Interna, ou, em outras palavras, centros de tortura e homicídios. Com uma Lei de Anistia recíproca, que equivocada e estrategicamente equipara a violência institucionalizada pelo Estado e a contra-violência da luta democrática, resta um Brasil, sozinho na América Latina, a empurrar a própria história para debaixo do tapete. 

Mulheres: Uma outra história (1988), de Eunice Gutman. © Direitos Reservados

É nesse sentido que a opção pela palavra “trabalho” no título da sessão parece tão bem ajustada. A sua origem etimológica é dupla. Do latim tripalium (“tri”, três, e “palum”, madeira), o termo designava um instrumento de tortura europeu, formado por três estacas de madeira cruzadas em que os escravos eram acorrentados para ser açoitados. Este sentido original é preservado, por exemplo, no francês travailler, que significa “sentir dor” ou “sofrer”. Mas o trabalho também é labor, laborare, sem o qual não existe o elaborar ou o colaborar. É este o fardo do ser mulher no Brasil: articular todos os traumas de uma nação. Incendiadas, violentadas ou simplesmente esquecidas. Engana-se, contudo, quem pressupõe a paralisia, a autopiedade ou o recalcamento como reações a este trabalho duro. “Se a ideia é que a prostituta é coitada, infeliz, miserável, não esperem isso de mim”, desafia, com um sorriso de ponta à ponta, uma das personagens em Amores de Rua

 Fortalecidas pelo desejo e pelo amor – que devem aqui ser interpretados menos num sentido romântico do que como métodos de sobrevivência –, as mulheres da creche, da fábrica, da Boca, do Congresso e do cinema têm em comum uma profunda vontade de autonomia. Autonomia de corpo, de ritmo, de sexo, de voz e de criação. “Toda ‘mulher direita’ tem a fantasia de ser prostituta e toda prostituta tem a fantasia de ser ‘mulher direita'”, preconiza, ainda, outra personagem em Amores de Rua. Em outras palavras, toda mulher, e todo o Brasil, têm a fantasia de serem livres.

Laila Nuñez

[Foto de destaque: Mulheres: Uma outra história (1988), de Eunice Gutman. © Direitos Reservados]

O ecrã/corpo de Sandra Lahire

A plataforma de streaming de acesso livre Another Screen  – criada e curada pelo jornal de cinema feminista Another Gaze – apresenta, a partir de 18 de abril e durante um mês, um programa composto por uma seleção de filmes de Sandra Lahire. 

A artista britânica foi uma figura de relevo na produção cinematográfica experimental e feminista londrina nas décadas de 80 e 90 do século passado. A sua obra é composta por apenas 10 filmes, todos de curta e média duração, 8 dos quais serão transmitidos online e acompanhados de novos textos críticos, também a ser divulgados pela plataforma. O visionamento deste conjunto de filmes dá-nos a conhecer essa mulher de quem quase não se fala, e a sua obra que dela não se pode desconectar e que é prolongamento de si. Ver os filmes de Lahire é ser convidado a entrar na sua intimidade e a empatizar com o seu corpo e outros tantos que nos mostra. Essa parece ser a característica maior do seu trabalho – a de conjugar tudo e notar a intersecionalidade que conecta os mais diversos aspetos da luta feminista que apoia, e da própria vida humana. O individual e o colectivo não se desligam um do outro, assim como o que é artístico não se desliga do que é pessoal, nem o humano do não-humano, e todos os seus filmes refletem esse raciocínio agregador de supostos opostos. O tratamento das imagens é sempre frenético, no mesmo filme não só tudo cabe como tudo dança em conjunto – uma mescla de documentário, performance, animação e experimentação, como define a apresentação do programa, é construída em cada projeto com uma harmonia muito particular. A própria Lahire incorporava uma panóplia de aspetos: era lésbica, feminista e ativista queer na época de Thatcher, tinha anorexia e apoiava o combate à guerra e à energia nuclear. Todas essas temáticas se refletem nos seus filmes e permitem levantar problemáticas pertinentes ainda hoje, sinal de que Lahire também trespassa os tempos – e sinal também de que os mesmos problemas sistémicos se arrastam ainda…  

Terminals, de Sandra Lahire

Terminals (1986), Plutonium Blonde (1987), Uranium Hex (1987) e Serpent River (1989) são os 4 filmes que a realizadora desenvolveu sobre os efeitos nocivos da produção de energia nuclear. A exploração de minas de urânio prossegue apesar das conhecidas mazelas que se fazem sentir na saúde humana e no meio ambiente envolvente. São as vozes de mulheres trabalhadoras nesta indústria que nos revelam a sua realidade e as suas preocupações. Os filmes entrelaçam essas vozes e corpos com as máquinas e sons colossais com que contactam diariamente, explorando os efeitos devastadores que os avanços industriais capitalistas produzem nos seus corpos e comunidades. Os resultados são amálgamas de sobreposições de imagens e sons, alterações e reversões de velocidade, sempre acompanhadas por narrações, que nos guiam nessas viagens conturbadas pelas mutações que a tecnologia provoca: vemos repetidas vezes radiografias como prova das doenças causadas pela radiação e ouvimos alguém dizer-nos que as águas do rio do local onde vive foram contaminadas, e já não são próprias para consumo. “Não se pode beber a água para salvar a vida” é a conclusão dessa mulher. Tanto os corpos como os recursos naturais carregam feridas abertas provocadas pela exploração desenfreada do mundo. 

Serpent River, de Sandra Lahire

As feridas específicas que a cultura patriarcal rasga no corpo feminino são também alvo de reflexão e crítica na obra desta artista. Em Arrows (1984), por exemplo, Lahire traz à tona certas dinâmicas culturais que contribuem para o surgimento de casos de anorexia, nomeadamente a subjugação histórica da mulher a objeto passivo de desejo e as tentativas de tornar os corpos femininos moldáveis segundo padrões de beleza alucinatórios. Lahire descreve práticas cirúrgicas invasivas de liposucção, anima recortes de revistas de modelos femininos ao som das indicações de uma aula de aeróbica, e recupera a imagem bíblica de Eva como lembrança da simbologia preponderante da mulher como pecadora. Num movimento que conecta estas narrativas coletivas com sentimentos profundamente íntimos, a cineasta contrapõe filmagens do seu corpo anoréxico com as de pássaros engaiolados, aludindo ao sufoco que sente a partir de si própria e que confessa aos espectadores: “Se apenas não estivesse sozinha nesta pele grande e vazia. Se apenas pudesses entrar e confortar-me.” Neste que foi o seu primeiro filme, Lahire demonstra a habilidade de não recear a sua vulnerabilidade e de se expôr em todo o seu sofrimento, talvez como meio de criar vínculos a outros corpos em angústia que com ela, através dos seus filmes, se podem relacionar.  

A filmografia da realizadora britânica destaca-se ainda pelo diálogo próximo com a poeta Sylvia Plath. Em Lady Lazarus (1991) é a voz de Plath que recita alguns dos seus poemas alternados com excertos de uma entrevista que deu pouco antes da sua morte. O uso da linguagem é articulado com o habitual fluxo constante de imagens de Lahire, aqui girando em torno da temática do suícidio, lembrando-nos da mortalidade da qual não escapamos. Encontra-se uma componente poética constante nos paralelos visuais que Lahire traça. Em todos os seus trabalhos, o emaranhado de linguagens está a um passo de se tornar desordenado, contudo surpreende pela lucidez com que alberga aspetos tão diversos da experiência humana. A montagem elaborada de imagem e som parece guiada pelos tormentos sentidos na pele de uma mulher que não se conforma e que encontra afinidades em tudo. As suas sequências de imagens tornam-se um corpo – falam-nos, cantam-nos, choram e riem, levam-nos a voar com os pássaros e encostam-nos à parede também, não nos deixam desviar o olhar enquanto o que têm a dizer não estiver dito. Sandra Lahire criou filmes que são metamorfose constante, tudo se transforma em tudo, e tudo remete para o corpo que, incansável, não se cala. 

[Foto em destaque:  Lady Lazarus, de Sandra Lahire]