[La mécanique des fluids

  1. Área da física destinada ao estudo do comportamento físico de fluidos em movimento ou em repouso. 

As entradas de dicionário sugerem diferentes possibilidades de significação: [x] significa/corresponde a isto ou àquilo. Neste caso, a definição de ´Mecânica dos Fluidos´ parece ter os seus contornos perfeitamente definidos. Diz respeito a uma área científica e é intrincado figurar a sua associação com o cinema. No entanto, a curta-metragem documental La mécanique des fluids, realizada por Gala Hernández López, em 2022, constitui um momento de disrupção com estas convenções lexicais: Serão os fluidos necessariamente líquidos e gases? Será o cinema um exercício artístico longínquo da ciência e da disciplina? Dando gradualmente resposta a estas questões, este é um jogo de significações e uma recontextualização da arte cinematográfica.  

Complexa e hipnótica, esta curta-metragem tem como ponto de partida a carta de suicídio de Anathematic Anarchist publicada no Reddit a 20.02.2018. Intitulada “America is responsible for my death”, esta carta desperta em Gala Hernández a necessidade de navegar pela pegada digital deste jovem. Deste trabalho de investigação resulta La mécanique des fluids. Note-se, contudo, que esta narrativa não é mais do que um pretexto para desafiar o totalitarismo digital. Anathematic Anarchist não é relevante enquanto pseudónimo de uma identidade corpórea. É, antes, uma entidade fantasmagórica, um interlocutor impossível que representa a não comunicação e o isolamento online. Diferente daquela que o jovem havia experienciado, aqui, a impossibilidade de comunicar inaugura uma série de possibilidades. É precisamente porque ninguém vem reclamar o seu lugar que as lacunas informativas podem ser exploradas e preenchidas pela imaginação. Como um mártir daquilo que se procura problematizar, este fantasma do cinema principia uma conturbada análise da cultura incel.  

Esta palavra, resultante da fusão entre as palavras ‘involuntary’ e ‘celibates’, refere-se a uma subcultura virtual de celibatários involuntários (homens – maioritariamente heterossexuais – que se consideram incapazes de desenvolver relações amorosas e/ou sexuais). Profundamente essencialistas e misóginos, os incels reúnem-se em fóruns de discussão, onde ruminam sobre o seu fracasso e o seu ódio às mulheres. Durante os 38 minutos de La mécanique des fluids, embarcamos numa viagem digital pelos lugares online onde esta comunidade se reúne para comungar a sua solidão. 

La mécanique des fluids, de Gala Hernández López ©

Apesar de tudo, esta viagem é indissociável de uma abordagem empática. Os membros desta cultura não representam uma encarnação do mal absoluto ou uma mera alteridade radical. São o espelho da nossa sociedade, o resultado da educação patriarcal e da misoginia histórica e coletiva. Coloca-se em causa uma certa identificação: também nós, espectadores, experienciamos a dor do isolamento num mundo tão conectado. 

A representação do sentimento de solidão associado à experiência digital é acompanhada de um tom profundamente poético. Entre a sequencialidade mecânica desta curta-metragem, Gala Hernández encontra espaço para o diálogo com a poesia – como uma ode à humanidade, ou àquilo que dela resta. Ora, se a mecânica dos fluidos permite prever com precisão o seu comportamento e simplificar a realidade para que esta se torne manipulável e compreensível, também os perfis e as aplicações de namoro seguem esta lógica. Afinal, o amor, a emoção e tudo aquilo que é fluido exatamente por ser humano, é reduzido a um número – evento disruptivo na natureza, impossibilidade que culmina no fracasso.  

É através de recursos estéticos que o discurso fílmico se liberta da lógica sequencial do relato e constitui a expressão poética do sentimento. Vejamos: temos, por exemplo, a ilustração de um avatar perdido numa paisagem agressivamente vazia e artificial. A par desta surge a representação do mar, o único elemento efetivamente filmado além das capturas de ecrã. Repetidamente símbolo daquilo que aprisiona e isola, a imagem do mar – enquanto elemento natural – materializa, neste caso, uma forma de escape à solidão, uma descontinuidade com a lógica mecânica artificial. O mar representa o sonho: visão utópica rapidamente dissolvida em pixéis. 

Composta quase unicamente por imagens de arquivo de redes sociais, esta curta-metragem destaca-se pela estética e pelos motivos da cultura online. É um exemplo das estratégias plásticas e sensoriais do cinema ao serviço da reprodução dos efeitos que experienciamos enquanto utilizadores da internet. Através de uma sequência visual crescentemente complexa e hipnótica, alternamos entre várias aplicações e conteúdos e somos interpelados pelo pop up constante de notificações. 

La mécanique des fluids, de Gala Hernández López ©

La mécanique des fluids segue um formato digital que a aproxima do ‘desktop documentary’, um estilo de cinema pós-internet que se sustenta na captura de ecrã. Mas a que se deve a ausência de imagem captada pela câmara? Por um lado, esta parece uma escolha estética que acompanha a capacidade de o cinema apreender e documentar o fenómeno de privação do mundo real. Por outro lado, deve-se à inserção desta produção numa tese de pesquisa-criação sobre a captura de tela no cinema. 

Compreendemos que o cinema não tem necessariamente de ser distante da disciplina e da pesquisa académica. O trabalho criativo de Gala Hernández é, na verdade, uma forma de desafiar a pesquisa clássica e de materializar o conhecimento numa espécie de pensamento audio-visualizado. Esta curta-metragem revela que a pesquisa e a produção artística podem caminhar lado a lado; que a arte – cinematográfica, ou não – pode acompanhar a realidade. E é porque o processo de documentação e de realização se fundem num só que daqui resulta uma verdadeira experiência de deriva virtual. Marcada pela errância discursiva, esta emerge como um exercício de experimentação em tempo real. 

Este é um filme que nasce da ação de produzir imagem sobre a imagem e, por isso, levanta questões relativamente às práticas cinematográficas contemporâneas: 

– ‘Estará o cinema morto?’ 

– Não. Pois se a sétima arte é o cinema, talvez a oitava seja a capacidade de reinventar a anterior. 

Este gesto aparentemente redundante e supérfluo parece ser um gesto necessário de reinvenção. A captura de ecrã, que aqui substitui a imagem captada pela câmara, não representa a morte do cinema, mas sim o diálogo com o digital e a possibilidade de narrativização da experiência mediática. La mécanique des fluids não se insere, portanto, na categoria de pós-cinema. É um exemplo da arte na sua potência de renovação. É ritmo frenético, montagem cuidada e ausência de rodagem tradicional. É cinema que, num jogo de significações, se reveste de uma fluidez sui generis (como se a mecânica dos fluidos passasse a dizer respeito a si mesmo). 

Maria Mendes

Deborah Stratman: a ambiguidade ou o inexpugnável lirismo das máquinas

Subsiste a tendência para, sem tardar, procurar legitimar os objectos artísticos com que nos defrontamos. Legitimação política, social, ética, moral, etc. É – não só, mas também -, a uma tal urgência de integração (e regulamentação) da arte, que a obra de Deborah Stratman diz respeito, criticando-a, justamente, pela resistência que apresenta a uma categorização linear. Deborah Stratman, artista destacada na 31ª edição do Curtas Vila do Conde – International Film Festival, com a projecção de curtas-metragens de sua autoria, a atribuição de uma carte blanche, e a exposição Unexpected Guests, patente na galeria Solar: presença motivadora de um ensaio reflexivo acerca de uma obra inscrita num tempo histórico particularmente ruidoso, cuja impermeabilidade (a uma voz singular, a uma crítica justa, a uma dissensão por mais ponderada), como aparência, como imagem, corpo a modelar, a penetrar, a adulterar, mas igualmente a escutar, a recolher silenciosamente na sua novidade mais ou menos monstruosa, mais ou menos maravilhosa; impermeabilidade, dizíamos, que constitui a matéria-prima do mais refinado posicionamento crítico. Neste sentido, poder-se-á falar de uma poética, ou até, de uma linguagem, da incomunicabilidade. Uma linguagem que trabalha com a imagem que se recusa, que é escuridão, silêncio, sem, todavia, obrigar senão ao mais rico encontro, nesse plano em que imaginação antecipatória e construção se tocam, entre mutismo e diálogo.

Stratman trabalha o problema da legitimação artística, muito embora não na medida em que procura alinhar com um qualquer alfabeto vigente e de alta eficiência mediática, isto é, não ambicionando para si essa legitimidade – a oscilação do espaço de exposição dos seus trabalhos é, de resto, sintomática de uma presença marginal e, daí, potencialmente panorâmica e crítica. À artista norte-americana parece afigurar-se-lhe de maior interesse o exercício de explorar os efeitos que a sua obra visual – cinematográfica e/ou plástica – comporta e pode comportar no espectador, independentemente da sua proveniência social, política ou cultural. Fazer a tábua rasa como o projecto imenso e fresco (Maria Filomena Molder adverte, em Palavras Aladas (2022), para o gesto da tábua rasa como próprio da juventude) do acto (desde logo, político) de olhar um mundo (o nosso), cujo crescimento e expansão correspondem igualmente a um imenso trabalho de destruição e declínio. O que vem complexificar a relação umbilical e perfeitamente mútua entre crescer e destruir, entre prometer e findar, é o gesto concomitante, a que corresponde esse jogo duplo, da assinatura do homem nesse mesmo mundo, e que vem inscrever o poder como o âmbito tão rizomático quanto dissimulado (e, com efeito, dramático) em que o homem se move e por que se constitui. Chegamos a um impasse, tanto de ordem epocal quanto de natureza filosófica; indecidibilidade que se forma precisamente no território flutuante que os seus limites (e, sobretudo, uma certa ideia de limite) encerram por sobre um tempo indeterminado, potencialmente excedente do período histórico em que se anunciam e de que se valorizam simbolicamente. Recuperemos algumas palavras de Bernard Stiegler em States of Shock, a propósito do pensamento invariável e repetidamente (em loop, como Hacked Circuit, exposto na Solar) esgotado e, dessa feita, inconcluso, acerca da economia sistémica pensada por Stratman: “In particular, one cannot fail to notice here that what is said about the system seems to leave no room for the question of the limits of the system, for the fact that any dynamic system has limits, and that a time will inevitably come when these limits are reached, philosophy consisting perhaps always and firstly in thinking such passages to the limit.” (Stiegler, 2015: 93). O plano em que os limites se jogam, antecipando a sua própria refutação, isto é, consistindo no fantasma da sua forma póstuma, é o plano da técnica, à qual Stratman, pela realização de filmes-observatório, cede pela articulação com um lirismo especulativo, gerado no olhar compassivo (assim o imaginamos) do espectador. Assim, o que de puro pode existir é essa articulação técnica, prestes a perder para outra proposta mais refinada numa história técnica universal, lançada, e igualada, no mesmo terreno virtual que a designada história natural: “the pursuit of the evolution of the living by other means than life – which is what the history of technics consists in (…)” (Stiegler, 1998: 135).

Pensemos num filme como Second Sighted (2014), cujo título sugere imediatamente o gesto de voltar a olhar, rever, testemunhar, ou melhor, testemunhar uma testemunha (que se julga, presentemente) passada, sabendo de antemão que um tal exercício comporta o lance no território falsário da ficção – joguete que a artista ajuda a desconstruir, servindo-se, como pedra-de-toque, do registo documental como presença desestabilizadora da fronteira entre fantasia e real, sob mediação do papel do arquivo (como espécie de excedente, destinação entrópica, da História). As primeiras imagens do filme situam-no num registo cindido entre a imagem surreal(ista) – é difícil resistir a sobrepor à imagem inicial, dos olhos incendiados, essa outra de Un Chien Andalou (1929), também a abrir o filme, da sutura do olho – e a mera captação técnica de imagens de uma cidade, no caso, de uma senhora idosa no cais de uma estação de comboios. Partículas brancas em gradativa concentração (lembrando-nos dessa afirmação de Carl Sagan, de que o homem é nada mais que poeira de estrelas), um par de olhos em chamas, prédios incendiados, na iminência do desabamento, tratam-se dos planos iniciais do filme, seguidos de um zoom na figura da tal transeunte, sequência que aponta para a hipótese da identificação de uma agência, pela ligação causal entre o fogo e o rosto humano. Há, todavia, uma força que persiste e que inibe a um encadeamento narrativo que dessa figura humana constituísse o agente de um crime (por fogo posto, nomeadamente), pela atribuição de uma autoria (a culpa seria uma consequência possível, de todo o modo incerta). E, de facto, dessa primeira hiper-sugestão por via de uma vigilância que também nos cabe a nós, espectadores, não há seguimento nem evolução narrativa alguma. A deriva persiste, como essa força enigmática que tudo traga, tudo aparentemente igualando, manifestando-se não só paralelamente ao desenho de directrizes traçadas por cima de imagens de paisagens variadas, como por esses mesmos desenhos instigada. 

Second Sighted (2014), Deborah Stratman ©
Second Sighted (2014), Deborah Stratman ©
Second Sighted (2014), Deborah Stratman ©

Parece haver tão-só circuitos a repetir e matéria a captar, infinitamente. E essa repetição, e a eventualidade da captura e do registo sensíveis, dão-se através de uma data de recursos técnicos. Lembre-se Vever, filme composto de imagens de uma viagem que Barbara Hammer faz à Guatemala em 1975, com textos – a servir de marcação temporal – de Maya Deren, sobre o trabalho artístico, o nascimento da arte, o fracasso, a composição criativa. Estruturalmente o filme é também uma second sight, e é-o nos termos em que repete um determinado circuito, reciclando material imagético e literário, não obstante revitalizado numa montagem singular, pelas mãos de Stratman. A repetição do fracasso, um modo aperfeiçoado de errar, valendo sobretudo a formação de uma imagem inconsciente do corpo, da matéria, memória sensível independente do esquema corporal que a cada um cabe transportar, e que nos une numa língua universal, instigante, muito embora jamais passível de ser articulada. É sob o signo da incomunicação, da opacidade, do que resiste a ser significado sob a suposição de que assim se encontra desconstruído, caso encerrado, que os filmes de Stratman se realizam.

Vever (2019), Deborah Stratman ©
Optimism (2018), Deborah Stratman ©
Optimism (2018), Deborah Stratman ©

Há um retrato que fica sempre por acabar: no caso de Vever (2019), o do modo de viver das comunidades na Guatemala, bem como da intenção (termo assaz referido durante o filme, seja em palavra escrita e inscrita na película, seja pela voz off) que verdadeiramente motivou aquela viagem e, posteriormente, aquele filme, que é, não nos esqueçamos, a marca do abandono de um outro filme (de Hammer). É precisamente com essa impossibilidade de acabar – que o termo (empiricamente necessário) de um objecto fílmico exerce – que o dispositivo técnico dialoga, no sentido de tornar mutáveis as posições de criador e criação, ao ponto de se tornar indistinguível quem filmou e quem foi filmado ou, seguindo as palavras do filme, de quem, de que parte e qual a intenção subjacente: do real prévio à filmagem, do real que a película revelou, do real resultante da montagem de Stratman? O sem termos do acto de olhar, e dos estímulos a que a realidade nos expõe, inviabiliza a definição clara de fronteiras, e apresenta como o porto mais seguro a asserção da ambiguidade: “It was only after I had conceded my defeat as an artist, My inability to master the material in the image of my own intention, That I became aware of the ambiguous consequences of that failure”. Tudo o mais serão traços na areia, deslizamentos de terra, um barco à deriva no mar, vogando sobre as ondas, rimando, de resto, com a imagem particularmente impressionante, imóvel, de um navio num mar congelado, em Optimism (2018)filme que toma, como problema central, o território de Dawson City, no extremo norte do Canada: território gelado, inóspito, no qual toda a forma de vida surge como uma incontornável manifestação, conquanto sóbria, do desejo. Também aí parece operar-se a tentativa de fazer uma razia de sentido, em grande parte sugerida pelo título que denota, quase comicamente, a disponibilidade – e a inteligência – para a confiança, a boa-fé, ainda que acabe por destacar a desolação das primeiras imagens do filme. A paisagem de neve é imensa, qualquer corpo que a atravesse é um pormenor de cuja passagem não se acreditam vestígios. Neste sentido, o ecrã dá-nos os traços de um desenho breve, à partida extinto, de que nada restará senão a sua passagem. Funde-se ouro, bailarinas dançam num bar, que assombrosamente se assemelha a um estaleiro, a um local onde se pára, estando em viagem, mas onde não se fica, onde nada nos diz que fiquemos. Os locais que habitamos são aqueles que nos despertam o desejo de neles reconhecer um motivo para permanecer, tratando-se primeiramente de um desejo de leitura: o lugar diz-me, pede, que o leia e que nele encontre um motivo desejável. Apesar desses elementos de vida breve – um homem a trabalhar o ouro, mulheres a dançar num palco – tudo nos reafirma a estranheza de estar ali. Um recorte circular de espelho surge, ofuscante, no meio da paisagem. Espelho que não deixa ver nada. Imagem abstracta que interliga metonicamente sol e ouro, configurando o primeiro como a matéria fabricada pelos residentes-resistentes da montanha, e o segundo como matéria-prima, o corpo trabalhado e o rosto identitário de quem ali viva, visto por aqueles que se limitam a chegar (para partir): nós próprios, espectadores. Mas, sublinhe-se, em Dawson City os espelhos não compreendem reflexos e/ou estes não devolvem nada.

A estranheza que impera das mais diversas formas é explorada, sendo antes de mais contacto com o real, sob recurso a aparelhos técnicos cuja presença não é nunca obliterada – a câmara está sempre presente -, e pela sucessão de imagens que correspondem muito significativamente à inscrição de desenhos no espaço: no espaço da película fílmica e do mundo, ambas constituindo fundos de estranhamento, plataformas de re-significação. Diz Jean Luc-Nancy, em O Prazer no Desenho, a propósito do desenho como traço e projecto, como forma fechada e plano ao aberto: “O desenho é então a Ideia: ele é a forma verdadeira da coisa. Ou, mais exactamente, ele é o gesto que provém do desejo de mostrar esta forma e de a traçar de modo a mostrá-la. Não se trata, contudo, de traçar para mostrar como uma forma já recebida: traçar é aqui encontrar, e para encontrar há que procurar – ou deixar que ela se procure e se encontre – uma forma por vir, que deve ou que pode vir no desenho.” (Nancy, 2022: 17). O desenho, que em Musical Insects (2013) tem um papel estrutural – filme composto a partir de um livro de ilustrações com a exposição paródica de diversas espécies de gafanhoto -, representa um mecanismo de realização cinética e a proposta de um plano de investigação em curso. E aqui desenho é todo e qualquer movimento de intercepção com o meio: seja um amontoado de terra a ser revolvido por uma escavadora, um barco cortando as águas do mar, a sobreposição de setas e sublinhados por cima do plano de uma paisagem, a impressão da ausência de corpos na relva, em The Magician’s House (2007). Neste filme, fotografias, retratos desvanecidos, o posto de correio com a inscrição “ithaca jounal”, as vozes imperceptíveis de duas crianças, uma casa vazia, em que os sinais de vida compreendem uma função mitológica ampliável (lembrada a Odisseia pela referência a Ítaca, um retrato que não parece do tempo da casa, encerrando um arcaismo, temporalidade ilocalizável, conquanto potencialmente redentora).

The Magician’s House (2007), Deborah Stratman ©
The Magician’s House (2007), Deborah Stratman ©
The Magician’s House (2007), Deborah Stratman ©

O mito, na sua dimensão universal, também ela plástica, dispõe tanto a memória como território a desbravar, jamais absolutamente conhecido, como enquanto desolação e abandono de uma forma que, antes de se prestar a constituir o signo identitário de um alguém, é por excelência marca de presenças passadas, irrecuperáveis, tão-só imagináveis. Mas a imaginação é aqui, neste tempo que nos cabe e que parece ter chegado já tarde, matéria para as máquinas talharem. Saberemos, ou não, um dia, com que mãos, e com que guindaste, urdimos o nosso próprio retrato no mundo. E que máquinas habitaram os pontos cegos que nos formam e nos motivam a continuar e aos quis, por facilidade, nos habituámos a designar: universo infinito.

Bibliografia:

Nancy, Jean-Luc (2022). O Prazer do Desenho. Lisboa: Documenta.

Stiegler, Bernard (1998). Technics and Time 1. Stanford: Stanford University Press.

Stiegler, Bernard (2015). States of Shock, Stupidity and Knowledge in the 21th Century. Malden: Polity Press.

Maria Brás Ferreira

Karen e Alice: Como o Cinema aproxima/distância a marioneta da Uncanny Valley

Quando estamos num museu de figuras de cera, não é apenas a célebre e infame câmara dos horrores tão discutida que incita em nós sentimentos negativos. Pelos longos corredores nunca nos sentimos seguros com os olhares daquelas figuras miméticas em cima de nós: nem humanas, nem objetos. Várias razões verificam-no (sentimo-nos observados, temos medo que ganhem vida, etc…), mas independente destas, é uma verdade universal. Esta história não acaba com as figuras de cera, isto é observável com qualquer objeto ou coisa que se tenta aproximar duma aparência humana através da mimese. Foram mencionadas figuras de cera, mas podiam também ter sido certos tipos de robôs, esculturas, bonecos e o que é o foco deste ensaio: marionetes, fantoches e outros objetos de espetáculo.

Um termo é crucial: Uncanny. Normalmente é traduzido para “estranho”, mas na realidade é uma palavra com um significado mais específico, tendo um contexto histórico, psicológico, social e cultural muito preciso. O termo, de forma mais concreta, está ligado, não a algo simplesmente misterioso, mas à experiência psicológica de percecionar algo estranhamente familiar. O termo é usado para ilustrar o sentimento ou processo psicológico do ser humano quando se depara com algo que se encontra delicadamente equilibrado na linha ténue entre completamente alienígena e estranhamente demasiado familiar. Uncanny foi pela primeira vez utilizado por Ernst Jentsch num ensaio chamado Das Unheimliche. Neste ensaio Jentsch foca-se no conto Der Sandmann de E. T. A. Hoffman, famoso pela sua personagem Olympia: uma boneca exatamente igual a um ser humano (que mais tarde acaba por ganhar vida). Já neste texto, o uncanny começa a ser ligado a figuras como bonecas e marionetas, objetos miméticos de algo vivo (aqui também já ligado a medos racionalizados, como o de “ganharem vida”).

A doll which closes and opens its eyes by itself, or a small automatic toy, will cause no notable sensation of this kind, while on the other hand, for example, the life-size machines that perform complicated tasks, blow trumpets, dance and so forth, very easily give one a feeling of unease. (Jentsch, 1906)

Outro autor, e provavelmente o mais célebre, a trabalhar o uncanny foi Sigmund Freud no seu ensaio homónimo. Freud vai desenvolver esta definição como encontrar “o estranho no aparentemente normal”, algo que não só reforça entendimento prévio do termo, como lhe acrescenta novas conotações.

I will say at once that both courses lead to the same result: the “uncanny” is that class of the terrifying which leads back to something long known to us, once very familiar. (Freud, 1919)

Na segunda metade do século XX, este termo evolui para a sua fase final célebre. Masahiro Mori, um pioneiro no campo da robótica, cunha, na década de 1970, a expressão “uncanny valley” (nesta altura ainda só aplicado ao seu campo de trabalho). Este conceito tem referência a um vale físico numa representação gráfica da teoria de que robôs com base na figura humana vão ser cada vez mais aceites pelo ser humano, quanto mais corretamente se assemelharem. Todavia, o que Mori mostra com a sua representação gráfica é que esta não é uma curva em subida permanente, ou seja, existe um “vale”, ou uma descida na aceitação em relação à semelhança. Este vale representa a descida drástica de aceitação quando estas máquinas se começam a assemelhar de forma demasiado apurada e realista ao seu objeto (sem serem ainda absolutamente perfeitas). Isto incita no ser humano um sentimento muito forte de uncanny, uma certa inquietante estranheza. O termo, como pode ser visto, é muito específico a uma certa situação, mas o termo de uncanny valley em uso neste ensaio está mais ligado à sua apropriação mais expansiva que se encontra na nossa cultura geral. Este conceito foi estabelecido nos anos 1970 e até hoje verifica-se uma lenta entrada do termo no zeitgeist cultural em que nos inserimos. Isto deu-se em dois passos. Inicialmente o tema foi expandido para se referir a qualquer coisa que se assemelha a um humano e se encontre nesse ponto específico do vale hipotético; mais tarde, o termo começou a ser usado para se referir a qualquer coisa de característica mimética que se aproxima demasiado do objeto da sua mimese (sem esta ser perfeita). Para exemplificar melhor esta segunda evolução, seria interessante estudar a reação à tendência viral que se popularizou na internet, em 2020, da criação de bolos miméticos hiper-realistas. Pode parecer estranho, no entanto, por alguma razão, nesse ano, vídeos de bolos que imitam muito realisticamente objetos ou coisas (sapatos, garrafas, latas e até bebés…) a serem cortados, revelando que não eram a coisa que imitavam, mas sim um bolo, tornaram-se extremamente populares (principalmente no Instagram). Como estes bolos eram feitos não interessa muito para esta discussão, o que é fascinante é a forma como as pessoas reagiram. Em reação a esta tendência ganhar uma popularidade absurda, desenvolveu-se uma piada que se espalhou mundialmente, maioritariamente através do Twitter. Esta piada tinha diversas variações, sendo a sua base um medo jocoso de um futuro distópico ou cenário aterrorizante onde nada é o que parece: tudo é bolo (num momento de abraço a alguém querido, essa pessoa desfaz-se: a sua pele em pasta de açúcar, as suas entranhas em recheio de chocolate…). Pode parecer completamente ridículo, não obstante, mostra perfeitamente como a experiência psicológica do uncanny valley ultrapassa a robótica e até a mimese humana, sendo uma experiência universal que se liga a qualquer objeto camaleónico (e simultaneamente mostra também as justificações do medo do uncanny: algo não é o que parece, etc). 

Antes de abordar o tópico principal, uma rápida ligação tem ainda de ser feita: a das marionetas com o uncanny. As marionetas (neste caso referindo-se a qualquer objeto usado num espetáculo ao qual seja dado vida e movimento) podem, então, ser vistas provavelmente como o exemplo perfeito do uncanny, pois não só têm quase sempre uma característica de imitação (seja ela de um ser humano ou não), como também lhes é “dada vida” através de movimentos controlados (aproximando-se dos robôs aos quais Mori se referia). As marionetas são normalmente utilizadas em artes do espetáculo, mas este texto apenas se focará na sua relação intermedial com o cinema: num filme, a que nível e de que modo é que a técnica e as convenções próprias deste meio artístico afetam e interagem com estes objetos (principalmente no que toca à sua relação com o uncanny e a uncanny valley). Esta exploração será feita a partir do contraste entre dois filmes muito diferentes: Neco z Alenky de Jan Švankmajer (traduzido como Alice, sendo esse o nome pelo qual irá ser referido) e Superstar: The Karen Carpenter Story de Todd Haynes (que será tratado apenas como Superstar no resto do ensaio, por uma questão de brevidade e melhor compreensão).

Jan Švankmajer é um realizador checo surrealista, mundialmente famoso nos círculos de cinema de animação e arthouse devido às suas numerosas e inovadoras curtas e às suas menos numerosas, igualmente fantásticas (no verdadeiro sentido da palavra), longas-metragens. Švankmajer é um surrealista na verdadeira definição do termo enquanto movimento artístico, e não no sentido lato da palavra: um artista que explora uma realidade muito ligada ao inconsciente e que se baseia numa realidade que não é nem a nossa realidade absoluta, nem a realidade do sonho, uma “surrealidade” (como dizia o “fundador” do movimento surrealista, André Breton). Švankmajer é conhecido no seu cinema, não só pela sua vertente surrealista, mas também devido ao uso recorrente de duas artes diferentes que incorporava sempre na sua obra: o teatro de marionetas e o stop-motion (ou animação de volumes). Enquanto aqui são mencionadas marionetas, estas não se limitam à definição de dicionário, algo restritiva, de “Boneco manipulável, geralmente através de cordéis e engonços ou através da mão introduzida numa espécie de luva que constitui o corpo do boneco”. É proposta uma expansão que Švankmajer tentava atingir. No seu cinema, quando se fala de marionetas, o referente de “boneco manipulável controlado por um titereiro” está sempre em questão, no entanto, este não se restringe às limitações mecânicas desta definição. Pode ser qualquer objeto (figurativo) que é manipulado pelo realizador. Muitas vezes é já introduzida a animação de volumes, permitindo uma manipulação destas marionetas sem qualquer visível elemento mecânico da mesma (com raras exceções como o Chapeleiro Louco de Alice a ser abordado). Em segundo lugar, para continuar a falar da animação de volumes, esta não se restringe só ao controlo das marionetas, é também uma técnica utilizada para controlar pontualmente alguns objetos aos quais não são dados “vida” (como às marionetas), e também de forma estilística para criar um novo ritmo de movimento (um movimento quebrado, fluido que habita praticamente todos os seus filmes). Alice, tal como o nome indica, é um filme baseado no seminal livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Este livro trata a história de uma rapariga nova que se depara, depois de seguir um  coelho por um buraco no chão, com um mundo fantástico onde a lógica humana não se aplica. Esta obra está inserida dentro do género do non-sense, sendo as características mais marcantes da mesa a subversão da lógica comum e a estranheza não justificada (e não justificável). Face a estas características, pode-se facilmente classificar esta obra como proto-surrealista (tendo sido escrita praticamente um século antes do surgimento do movimento artístico). Sabendo isto, é de fácil compreensão a escolha de Švankmajer na obra a adaptar para o cinema. Mas existe outro aspeto que vai ao encontro direto com o tema aqui a ser explorado. No livro original, embora se trate do tema de non-sense, nem tudo é completamente abstrato. O que Lewis Carroll pega em referentes do mundo em que vivemos (maioritariamente ligados à infância) e subverte-os de forma a provocar uma assoberbante estranheza. Será uma inquietante estranheza? Não. Carroll podia muito facilmente ter deixado a sua obra cair no reino do uncanny.  Tal não acontece. O essencial a entender é a forma em relação à dupla face do conteúdo. O conteúdo estranho, mesmo dentro da sua estranheza, tem uma certa neutralidade. O conteúdo é a matéria prima a ser trabalhada,  não causa ela em si mesma este efeito no espetador. O que acontece, então, é que a escrita vai ser o elemento que empurra ou afasta este conteúdo estranho do uncanny. A forma influencia o conteúdo. Não só verificamos isto na obra de Carroll, mas também no filme de Švankmajer. A técnica e forma do cinema e da arte das marionetas é que vai influenciar o conteúdo, neste caso empurrando completamente a história até cair no fundo do abismo da uncanny valley. Sabe-se de imediato que Švankmajer não está interessado na história de Lewis Carroll como um simples exemplo de maravilha infantil:

A atração temática de Švankmajer pela infância portanto representa, não uma ânsia por uma prévia inocência, mas a articulação de um perdido conjunto de hábitos, princípios de pensamento e lógicas. De facto, “inocência”, segundo Michael Richardson, “não existe [nos seus filmes],” porque “os terrores [do amadurecimento] nunca são superados.” O perigo real vem, não do enfrentar esses terrores, mas em fingir que já não existem ou que talvez nunca tenham existido (Keith Leslie Johnson, 2017)*

Ao analisar o Uncanny deste filme, a primeira coisa que chama à atenção são as marionetas. As marionetas dividem-se em quatro categorias que devem ser analisadas individualmente. A primeira é a categoria dos objetos apropriados. Švankmajer não se limita apenas a construir as suas marionetas de forma tradicional, optando por remover objectos (normalmente utilitários) do seu propósito de existência, criando uma mistura de objetos que se assemelha à personagem em causa e à qual depois lhes dá uma nova vida. Švankmajer, no seu famoso decálogo onde dita os seus princípios para cinema de animação, afirma: 

Animation isn’t about making inanimate objects move, it is about bringing them to life. Before you bring an object to life, try to understand it first. Not its utilitarian function, but its inner life. (Švankmajer, 1999)

Este “mandamento” demonstra a forma como Švankmajer perceciona estes objetos que usa. Ele não os usa para contar as suas histórias, ele conta as histórias desses objetos (o que é ainda mais fascinante se se pensar na forma como o objeto está a representar um referente diferente: o objeto conta uma história exterior a ele, mas que só ele pode contar). Mas como é que isto promove o ambiente uncanny? Ao criar estas marionetas dá-se uma cisão dupla do referente. Pode-se olhar para a marioneta de duas formas, mas nenhuma delas vai ser reconfortante. Em primeiro lugar, a marioneta como o que ela está a tentar representar, o que incita um sentimento bizarro devido ao reconhecimento pelo espetador da representação, em contraste ao reconhecimento da sua estranheza formal (construída por outros objetos). Em segundo lugar, a marioneta como um conjunto dos objetos que a constituem, também bizarro devido à forma como, mesmo sendo os objetos coisas reconhecíveis do mundo humano, a sua mistura e a forma como são conjugados vão encaminhá-los da zona do objeto mundano reconhecível para o da representação de algo exterior e fantasioso. Isto pode ser visto, por exemplo, na personagem da Lagarta, uma personagem amigável (embora misteriosa) e reconhecível do livro de Carroll, aqui representada por uma meia com uma dentadura e dois olhos de vidro. Estes objetos não são só causadores do uncanny devido à sua aproximação do não-humano ao humano, mas também por serem símbolos da morte, não estando só presentes neste tipo de marionetas.

Isto acabaria na segunda categoria, marionetas da morte, uma categoria de marionetas muito presente na obra de Švankmajer, que se destaca principalmente neste filme. O que se entende com marionetas da morte, são marionetas feitas a partir de animais mortos, sejam estas taxidermias ou apenas esqueletos modificados. 

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

O interessante nesta categoria de marioneta é a subversão completa do uncanny. Em vez de ser uma aparência viva de algo morto, é um processo com mais etapas. Na história já mencionada de E.T.A. Hoffman, Olympia, a boneca, é reconhecida como um dos grandes elementos do fenómeno no conto, devido a ser uma figura estática sem vida que é animada (sendo o animismo um dos grandes causadores do uncanny, segundo Freud). Nestas marionetas, o processo passa por três passos. Estes crânios, ossos e taxidermias são reais: já tiveram vida, sendo essa a primeira etapa. Depois disso, estes animais foram mortos e transformados em taxidermias, a segunda etapa deste processo e também  o primeiro passo para alcançar o uncanny: taxidermias em si, mesmo as que não são marionetas, são normalmente acusadas de incitar este fenómeno no observador (seja isto pela ideia de que algo está morto enquanto devia estar vivo, então existindo a possibilidade de ganhar vida a qualquer momento, seja pela sua atitude fantasmagórica perante a  morte). A terceira etapa é a da animação das marionetas, a criação derradeira do uncanny nestes objetos: algo que já foi vivo, devendo estar morto, e que mesmo assim vive, confirmando o medo (este movimento é natural, mas não devia ser nestas circunstâncias: mais normal que o normal). Outro grande elemento nestas marionetas é o de muitas delas estarem ligadas ao conceito de amputação, sendo por exemplo, só crânios, dando a ideia de um animismo mórbido, macabro e impossível. 

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

O terceiro e o quarto tipo de marionetas são menos comuns: as marionetas clássicas e a boneca. A marioneta clássica não se encontra muito presente no filme, mas o momento em que aparece é dos mais marcantes. O principal exemplo desta categoria de marioneta é o do chapeleiro louco: uma marioneta no sentido mais clássico da palavra, controlada por fios visíveis que sobem até céus desconhecidos (seria importante ler The Clown Puppet de Thomas Ligotti, um escritor eternamente fascinado com o horror das marionetas e o animismo desse vazio). 

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

O quarto tipo de marioneta toma a forma de Alice quando diminui de tamanho. Ambas estas marionetas funcionam no nível básico do uncanny já explorado anteriormente, o qual uma boneca ou marioneta tradicional apresentam.  A grande diferença entre elas é o facto de uma ser animada e a outra não (o que vai dar de encontro ao próximo tópico onde isto será explorado de forma mais desenvolvida: a animação).

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

A animação é das partes mais importantes de qualquer filme do Švankmajer. Durante muito tempo, o cineasta fez curtas-metragens que a ela se restringiam, mas a mistura entre live-action com este meio começou a ser mais explorada pelo autor nas suas longas-metragens. As últimas têm sempre um nível variante de live-action (algumas até tomando o ator humano como papel principal), contudo, contêm sempre, sem exceção, o uso fulcral da animação. Esta é utilizada em duas grandes vertentes: a animação de marionetas e a “hiper-animação”.

A animação de marionetas já foi de certa forma explorada em parágrafos anteriores, mas não o suficiente para chegar ao seu núcleo. Esta expressão artística é dos elementos mais importantes e responsáveis pelo ambiente uncanny do filme, podendo até ser estudada em separação da marioneta. O referente que dela existe é o de algo que tem um titereiro, alguém que a controla. O que a animação neste caso efetua é retirar “as cordas” ao objeto, ou seja, o elemento que permite o espetador criar uma ligação entre ele e o seu titereiro. A marioneta já é considerada um dos grandes exemplos do uncanny, devido à semelhança ao seu referente e ao animismo que implica. Todavia o titereiro e as suas cordas funcionam como um cobertor reconfortante que garante que esta não passa de um objeto. Švankmajer aumenta o desconforto ao retirar este cobertor de segurança, deixando o espetador a sós com o uncanny.  O cineasta escolhe então estrategicamente também mostrar os fios de uma marioneta: a do chapeleiro louco. O seu artifício fica em completa evidência, ou seja, em vez de ser só um objeto que é suposto tomar o lugar de outra coisa, é uma marioneta. O espetador reconhece a marioneta, como o que ela representa e agora também como marioneta em si. Vê que está a ser controlada, mas não sabe pelo quê. Isto amplifica o horroroso mistério, mas agora para outro campo: o titereiro invisível. 

O outro tipo de animação usada é a “hiper-animação”. Este termo é aqui usado em referência à animação do real, ou seja, das filmagens live action. Esta divide-se em duas grandes categorias, a do possível e a do impossível. A do impossível, contrariamente ao que o nome diz, é a mais “normal”. Esta designação refere-se a quando Švankmajer anima objetos ou pessoas (não marionetas) de forma a conseguirem realizar ações que não conseguiriam no mundo real (tomemos como exemplo a transformação de Alice na boneca, sendo este momento já um crossover entre a hiper-animação e a animação de marionetas, ou até o momento em que a Alice entra dentro da gaveta).

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

Embora isto seja bizarro, obriga-nos a aceitar uma realidade alienígena à nossa. A hiper-animação do possível é mais bizarra. O realizador pega em ações de pessoas ou objetos que poderiam ser simplesmente filmadas e quebra-as em fotogramas, animando-as em vez de as filmar “normalmente”. Esta técnica encontra-se muito presente nos filmes deste realizador, sendo o exemplo mais notório provavelmente o da curta-metragem Food. O efeito que ela tem no espetador é a de este estar a ver uma ação normal na qual algo está ligeiramente errado: o espetador perceciona o movimento, mas este está diferente o suficiente do seu referente real para causar um sentimento uncanny. O oposto disto seria, no cinema digital, a utilização de 60 frames por segundo ou outro tipo de FPS elevado: enquanto neste filme a estranheza vem do movimento ter “frames a menos”, aproximando-se do real sem chegar lá, nestes exemplos do cinema digital a estranheza vem de um sentimento de a imagem ser “mais real que o real”, aproximando-se demasiado da nossa perceção do movimento fora do cinema (algo à qual não estamos habituados).

Seria impossível dar como terminada uma análise de Alice sem mencionar a sua realização. A realização de Švankmajer é interessante devido à sua forma de aproximar o conteúdo da estranheza e do uncanny. Este efeito é alcançado através de uma linguagem maioritariamente clássica e linear no que toca à realização e apresentação da narrativa, ocasionalmente quebrada por chamadas de atenção à sua presença. O que esta linguagem atinge é o embalar do espetador numa consciência narrativa no qual se sente imerso (mesmo com o seu bizarro conteúdo) até ser completamente quebrado por momentos muito artificiais e pouco naturais, como os planos de pormenor da boca de Alice.

Em contraste, é possível concluir este estudo com uma análise do filme Superstar: The Karen Carpenter Story, filme realizado por Todd Haynes, em 1988, que conta a história de vida de Karen Carpenter (a célebre vocalista da banda The Carpenters), focando-se principalmente na luta com o seu distúrbio alimentar (anorexia nervosa). O que esta obra prova é que a técnica cinematográfica, embora seja normalmente usada para exacerbar o sentimento de uncanny causado pelas marionetas, pode também servir para o amenizar.

Neste caso, encontram-se em jogo vários elementos que contribuem para este efeito. Um dos principais é o seu contexto. Este filme usa bonecas e bonecos barbie que modifica e manipula.

Superstar: The Karen Carpenter Story, Todd Haynes ©

Estes objetos, tirados de contexto, muitas vezes seriam ligados ao sentimento de uncanny (brinquedos como bonecas são elementos recorrentes no cinema de terror), mas o que Todd Haynes faz é explorar meta textualmente o contexto sociocultural em que se inserem. Acima de tudo, Haynes quer criar uma identificação com estes bonecos, ou seja, quer estabelecer pathos:

Bem, a ideia de fazer um filme com bonecas na verdade veio antes de qualquer outra coisa. Eu vi um pequeno trailer promocional a preto e branco na televisão – um excerto vintage de TV dos anos 50, que introduzia a Barbie ao público Americano. E tinha uma pequena cena interior em miniatura com a boneca sentada pela sala de estar, e depois a barbie entrava e mostrava o seu novo vestido à Midge e também era intercalado com cenas live action- uma rapariga jovem a abrir a caixa de correio, filmada de dentro da caixa de correio, a receber o seu correio do clube de fãs da Barbie. E eu fiquei muito intrigado com a ideia de fazer uma narrativa bastante direta a beber de formas populares pré-existentes, mas simplesmente substituindo atores reais com objetos inanimados, com bonecos. E sendo muito cuidadoso e detalhado de forma a provocar o mesmo tipo de identificação e investimento na narrativa como um filme real conseguiria. (Haynes, 1989)**

Estes bonecos estão ligados à nossa infância, reconhecemo-los por os termos usado como brinquedos, tendo nós sido os seus manipuladores (ou os titereiros). A primeira escolha importante que Haynes faz é a de não usar animação stop motion, mas sim manipular os objetos como marionetes clássicas. Mesmo tendo o titereiro fora de campo, isto aproxima os objetos à nossa realidade, não de uma forma estranha, mas de uma forma familiar que nos permite estabelecer com eles uma ligação emocional (a experiência de ver o filme é semelhante à de vermos alguém a brincar com uma casa de bonecas, criando narrativas das quais são o seu “Deus”). Outro relevante aspecto do contexto sociocultural é a iconografia da Barbie em si. Esta é uma boneca ligada muitas vezes a estereótipos de “perfeição” que a sociedade impunha no papel da mulher (mesmo que a marca se tenha afastado disso ao longo dos anos, na época em que a história se passa esta era a sua conotação). Por esta razão, faz todo o sentido usar estas bonecas para contar uma história sobre distúrbios alimentares, criando imediatamente uma ligação de forte de pathos do espectador com os objetos, reconhecendo a sua conotação e ligando-a à história real que está a ser recontada.

O outro aspecto a mencionar é o da realização. Todd Haynes é um realizador intimamente ligado ao cinema clássico norte-americano, principalmente ao género do melodrama, sendo quase todos os seus filmes um comentário ou apropriação da linguagem deste género para uma sensibilidade moderna/contemporânea. O melodrama é o género mais intimamente ligado aos sentimentos, sendo a sua base as emoções fortes (no que mostram e no que incitam no espectador). O que Todd Haynes tenta atingir com esta atualização contemporânea desta linguagem é conseguir incitar nos espectadores sentimentos fortes, um grande pathos e um grande nível de identificação com a narrativa, de forma a que o espetador fique completamente imerso (sem nunca deixar cair o filme numa simples revisão histórica do melodrama, misturando linguagem contemporânea que retira o espetador também do referente absoluto desta linguagem clássica).

Mesmo face a um único objeto ou conteúdo (marionetas), o cinema consegue completamente mudar o efeito que este tem no espectador. A câmara ajuda o conteúdo a subir o vale do uncanny, ou empurra-o para a sua falésia, mas nunca é inocente. O cinema de marionetas nunca será igual ao teatro em que se baseia.

Vasco Muralha

Bibliografia

-Bell, John. Puppets, Masks and Performing Objects. Cambridge: The MIT Press 2001

-Bingham, Adam. Directory of World Cinema East Europe. Bristol: Intellect Books 2011.

-Freud, Sigmund. The Uncanny, E-book: Penguin Books Ltd 2003

-Jentsch, Ernst. Zur Psychologie des Unheimlichen: 1906

-Johnson, Keith Leslie. Contemporary Film Directors Jan Švankmajer. Illinois: University of Illinois Press 2017

-Leyda, Julia. Todd Haynes Interviews. Mississippi: The University Press of Mississippi 2014

– Švankmajer, Jan. “Decalogue” In Vertigo, Volume 3, Issue 1. London: Closeup Film Centre 2006

-White, Rob. Contemporary Film Directors Todd Haynes. Illinois: University of Illinois Press 2013

DOC’S KINGDOM 2022: Gestos e Fragmentos

Não soube nunca onde entrava, 

mas eu quando ali me vi, 

sem saber onde parava,

grandes coisas entendi;

não direi o que senti,

que fiquei não o sabendo,

toda a ciência transcendendo.

Coplas feitas sobre um êxtase de elevada contemplação in Poesias Completas de S. João da Cruz

Só por palavras um tanto toscas, de ambição poética, mas sem os gestos de lirismo próprios ao poeta, pode um participante do Doc’s Kingdom, ou, mais precisamente, esta participante, descrever a sua experiência. Na ausência de qualquer motivo que não o do limite da expressão linguística, apropriei-me do poema de S. João da Cruz, que o acaso quis que lesse nas primeiras horas de envolvimento com a paisagem circundante ao Rio Vez.

Amarante Abramovici, co-directora artística e programadora do Doc’s Kingdom © Magdalena Kielbiowska

Gestos e Fragmentos (1982), filme de Alberto Seixas Santos, dá título à cúpula temática da edição deste ano do Doc’s Kingdom, convidando-nos ao mesmo exercício a que se propôs Seixas Santos aquando da realização do filme, lembrado por José Manuel Costa no texto de 2016 sobre o realizador, que se pode ler no jornal do seminário: “Gestos, fragmentos e grupo zero: o que este cinema dá a ver é também a sua própria matéria, sublinhando o concreto e a materialidade dos gestos tanto quanto do ato de filmá-los – sendo portanto coerente que, na altura em que o contexto pediu ao autor, como a todos, um ainda maior comprometimento social e político, este lhe tenha respondido interrogando os fundamentos e as relações éticas do acto de filmar.” Por outras palavras, à indagação sobre a natureza ontológica, que marca o cinema desde o seu nascimento e a cada momento da sua historiografia, e que parece insinuar-se mais e mais nas nossas preocupações, impôs-se, em cada um dos debates, uma outra pergunta – o que é a práxis cinematográfica? 

O que está em jogo é somente uma interrogação “dos fundamentos e das relações éticas do acto de filmar”, usando as palavras de José Manuel Costa. Contudo, quem participou naqueles debates superou pelo diálogo a rigidez da singularidade do acto de filmar, durante décadas totalitária e totalizante. O que ali se discutiu, sobretudo à luz dos filmes de Alexandra Cuesta e João Vieira Torres, foi a possibilidade de outros actos de filmar a partir dos quais se geram uma multiplicidade de outros olhares e de outros sentidos, dos quais a práxis cinematográfica e, em última instância, o próprio cinema per se, podem ser o gesto por excelência.

Nanook of the North (1922), de Robert Flaherty

A propósito do centenário de Nanook of the North (1922), de Robert Flaherty, já o seminário ia no quarto dia quando o filme foi exibido na Casa das Artes de Arcos de Valdevez, um movimento inesperado que anunciou uma mudança de tom na programação despertou um outro modo de questionar a nossa relação com o cinema e, através dele, com o mundo. Deixemos de parte a discussão em torno da verosimilhança e veracidade da representação do povo Inuit no documentário de Flaherty, pois há muito se sabe que já então não viviam do modo como o filme sugeria. Mas não esqueçamos o motivo pelo qual a crença do espectador está colocada no centro do debate da representação no cinema documental desde os seus primórdios até à contemporaneidade, como a sinopse de Toré (2015) de João Vieira Torres anuncia: “Filmar um ritual de uma tribo da Amazónia aberto a forasteiros é aceitar que apenas vemos o que nos mostram e o que somos capazes de ver. Assim é Toré.” No que somos capazes de ver, reside a nossa crença e uma certa gramática do olhar. Mas pensemos, antes, naquilo que verdadeiramente continua a fazer de Nanook of the North um solo de reflexão contemporâneo sobre as possibilidades éticas do olhar e os limites da relação, ou, como foi referido durante um debate, da obsessão pelo outro.

Boris Lehman, Saguenail, José Manuel Costa, Regina Guimarães, Jacques Lemière © Magdalena Kielbiowska

Seria injusto, como bem o disse José Manuel Costa, tentar desculpar ou justificar Robert Flaherty pelo seu filme, sob pena de pretensiosamente retirar à obra a sua potencialidade expressiva e ao espectador o direito e o dever de exercer o seu pensamento para assim mobilizar o seu conhecimento a partir dela e para ela. Na medida em que existe, em todos os filmes, pelo menos os de natureza documental, uma obsessão pelo outro, também temos a presença da subjectividade daquele que, filmando o outro, se relaciona com ele numa partilha de intimidade e vivências conjuntas. Atentemos às palavras de Flaherty: “A minha necessidade de fazer Nanook vinha do modo como eu sentia esse povo, da minha admiração por ele, era isso que eu queria comunicar.” Não obstante atribuirmos a Flaherty a melhor das intenções no acto de filmar e de considerarmos, em linha com Rohmer e tantos outros, que “Nanook é o mais belo dos filmes”, não devemos esquecer-nos que, à luz dos nossos dias, esse mesmo acto de filmar assentava num modus operandi patriarcal e se concretizava por meio de um aparato técnico com motivos e efeitos colonizadores. Goradas ou não as vontades do realizador, pouco importa, Nanook of the North, cem anos depois, mais do que a aurora do documentário, pode impulsionar o início de uma discussão sobre os limites do modo como o cinema pode e deve olhar, interrogar e relacionar-se com o mundo. 

Foi num gesto de antecipação da sessão de curtas-metragens que aconteceria à noite, após a sessão de celebração do 100º aniversário do filme de Flaherty, seguido de conversa com José Manuel Costa (não fosse este um dos filmes da sua vida) que Nuno Lisboa e Amarante Abramovici, directores e programadores do Doc’s Kingdom, trouxeram o presente e o futuro do cinema para debate. Entre os filmes projectados, dois seriam de maior importância para lançar sobre Nanook of the North tantos olhares e modos de olhar quantos o tempo que os distanciava deixou pluralizar – Beirut 2.14.05 (2008), de Alexandra Cuesta, e Mal di Mare (2021), de João Vieira Torres, assim como todos os outros títulos que constam na filmografia de ambos.

João Vieira Torres e Alexandra Cuesta © Magdalena Kielbiowska

Ambos realizadores naturais da América do Sul, Alexandra Cuesta, do Equador e João Vieira Torres, do Brasil, através de filmes distintos tanto na forma como no conteúdo, reclamam para a sua obra um princípio em comum: como mostrar a subjectividade daquele que filma e daquele que é filmado se, ao contrário do que acontece com o sujeito ocidental, é o Outro no lugar do Eu? As novas perspectivas cinematográficas, e não só, sobre o sujeito e a possibilidade de nos constituirmos sujeito apresentadas nos seus filmes põem em causa o próprio conceito de subjectividade, na sua acepção ontológica ocidental, espalhando fragmentos por outros territórios, corpos, vozes, … Será através do cinema que eles ganharão uma outra forma e novos sentidos, porque, como escreveu Madison Brookshire num texto dedicado à obra da realizadora equatoriana, “(…) an image can be made of many and happens because of the others around it”. É a partir dos outros que cercam João Vieira Torres numa exposição apresentada na Biennale de Veneza, composta por obras de artistas negros, e da pergunta que o realizador coloca aos visitantes brancos: “How many people of color are in this room?”, que nasce assim Mal di Mare. Não seria o primeiro filme político do realizador que vimos no Doc’s Kindgom, mas era, sem dúvida, o seu gesto de mostrar politicamente mais vincado. Por sua vez, todos os seus filmes anteriores, muitos deles sobre amor, como o próprio afirma, e dotados de uma ternura, tantas vezes risível (quem não se rendeu à criança que assiste ao Planeta dos Macacos, o de 2011, no seu quarto em Crianças Fantasma (2016)), exigiam uma gramática do olhar que nela contivesse a vontade e os instrumentos precisos para descortinar a dimensão política a eles subjacente e que Mal di Mare torna visível e inescapável, ainda que sempre distante. 

Nuno Lisboa, co-director artístico e programador do Doc’s Kingdom, e Boris Lehman © Magdalena Kielbiowska

Uma outra dimensão da (inevitável) obsessão pelo outro interpela-nos em Babel: Letter To My Friends Who Stayed In Belgium (1991) quando, pela voz de Boris Lehman, se ouve o realizador a questionar-se (e a devolver-nos as questões) sobre o quão justo seria contar a sua história usando os outros (e os seus corpos) e não exclusivamente as suas vivências através da sua figura. Trata-se de um filme que gravita em torno do realizador, cujo constante adiamento do fim revela o quão difícil é, senão mesmo impossível, dar uma obra por terminada, sobretudo quando sofre de uma depressão e, consequentemente, se atira para uma incessante procura por uma reunião com a vida e o presente, numa luta contra a melancolia. Por isso, afirma que filma as coisas que estão a desaparecer, “(…) uma frase que ilustra o próprio acto de filmar: o registo de imagens e sons de uma realidade que está sempre a escapar-nos, e que, por isso, como que desaparece quando é filmada.” Neste sentido, encontramos na natureza do próprio acto de filmar um impulso melancólico que antecipa, intencionalmente ou não, a perda do objecto ou realidade filmada ou, como diria Agamben em Notas sobre o Gesto, “In the cinema, a society that has lost its gestures tries at once to reclaim what it has lost and to record its loss.” (Agamben, 2000: 53).

Em nenhum outro filme o peso do desaparecimento a que o futuro tudo veta se fez sentir como em Notes, Imprints (On Love): Parte I e Notes, Imprints (On Love): Parte II, Carmela (2020), de Alexandra Cuesta, nos quais cada gesto filmado corresponde depois a um gesto total ao qual a possibilidade de perda dá sentido. Existe nestes dois filmes, como noutros da realizadora, a capacidade fantasmática de tornar visível uma atmosfera de luto que envolve e se aproxima, através do olhar cinematográfico, dos gestos, corpos, cidades e casas por onde passou o seu quotidiano. Da melancolia do acto de filmar desponta o sujeito melancólico, para quem o vínculo afectivo apenas a memória, infalivelmente falível como ela é, pode reter. 

Doc’s Kindgom 2022 © Magdalena Kielbiowska

Findo o Doc’s Kingdom de 2022, mais do que as imagens que a memória pôde cristalizar, são os gestos que ainda nos olham e ecoam por estas palavras. Se podemos culpar o cinema por fazer de nós um sujeito melancólico, ao Doc’s Kingdom cabe a culpa, e que bela culpa, desse sujeito que nos tornamos não poder continuar a não se exprimir nas dimensões ética e política – e não só estética ou ontológica. Um dever ético de sempre questionarmos qual a nossa relação com o mundo e de compreendermos que o nosso olhar deve constituir uma atitude ética e politicamente envolvida, dever esse ao qual o Doc’s Kingdom nos parece inteiramente devotado. Por isso, quando ali me vi pela primeira vez, na leitura dos versos que principiaram a experiência do seminário, um compromisso com ele nascia, um onde, de forma consequente, grandes coisas, daí a poucas horas, poucos dias, entenderia e sentia.

Lisboa, Outubro de 2022

Cátia Rodrigues

[Foto em destaque: Gestos e Fragmentos, de Alberto Seixas Santos]

MIXING MEMORY WITH DESIRE | FILMES DE JOÃO MARIA GUSMÃO E PEDRO PAIVA | APROPRIAÇÃO, MANIPULAÇÃO

Onde está o barulho levemente ensurdecedor do ruminar das máquinas analógicas? Esses brinquedos de um cinema do passado. Objetos curiosos que nos fazem questionar para onde devemos olhar. Assumimos as projeções enquanto imagens bidimensionais ou instalações de cariz escultórico? Todo aquele aparato revela uma ligação ao real, inerente ao médium, que contraditoriamente nos procura mostrar movimentos e formas talvez imperceptíveis a olho nu, nas quais apenas reconhecemos as origens. As máquinas que nos dão a ver este teatro do absurdo – e digo teatro porque tudo é encenado pela dupla – escondem também a apurada técnica que o torna possível. Mas nem as máquinas nem o barulho que projetam estão, neste caso, ao nosso alcance. Esta é uma experiência diferente

Estamos na Cinemateca, local onde a dupla – que iniciou a sua colaboração em 2001 e a terminou há pouquíssimo tempo – mostrou, a 30 de agosto, os seus filmes pela primeira vez. Foram nove filmes inseridos na primeira parte de uma sessão no âmbito do ciclo Do outro lado do espelho dedicado precisamente aos espelhos no cinema. A segunda parte, intitulada Apropriação, Manipulação apresenta um conjunto de filmes dedicados a práticas experimentais. 

Dream of a Ray Fish, João Maria Gusmão e Pedro Paiva © MUBI

João Maria Gusmão e Pedro Paiva dão a ver os seus filmes no seu suporte original em película de 16mm. A confusão, essa vertigem incessante que as caóticas instalações por norma nos proporcionam, não têm um lugar central: Somos voyeurs. Observamos de fora e em silêncio, numa escuridão quase total em que certos filmes nos mergulham. O ruminar é substituído pela mudez; um certo incómodo instala-se. Não estamos rodeados de imagens que aparecem não sabemos de onde, com filmes que passam em simultâneo, que apanhamos a meio – se é que existe aqui um início e um fim – e esperamos que o Loop se repita. Estamos fora desse universo. 

Vemos os filmes um a um. Toda a sala procura uma compreensão racional destas “ficções poético-filosóficas”. Não se trata de uma experiência imersiva, não se suprime, como é habitual, o pensamento no momento da sua aparência.

 Onde se perde a veemência da experiência sensorial acrescenta-se um apelo à reflexão, apenas contrariado por não estarmos a falar da mesma experiência temporal. Só se repetem os filmes uma vez e quando cada um termina a plateia espreita a folha de sala para saber o que acabou de ver ou informar-se sobre o que a espera.

É, no entanto, inegável que nos são apresentados novos mundos, primeiros olhares, onde a gravidade não tem tanta importância, onde os reflexos são protagonistas e o absurdo se torna familiar. Como? Através de reflexos solares – talvez estilhaços – que se projetam sobre uma tela e unidos quase a destroem; reflexos de água; metáforas implícitas; “truques” técnicos; e situações mais ou menos quotidianas que encontram aqui uma experiência sensorial diferente. 

Georgetown Loop, Ken Jacobs © MUBI

A segunda parte mantém a tendência do privilégio da imagem bidimensional, apropriando-se de imagens captadas do real para nos apresentarem novas visões só possíveis através do cinema, e, tal como o título diz, manipuladas. Ambas as secções desta sessão parecem prestar homenagem a um cinema que ainda não se tinha deixado encantar pela poética da narrativa, encontrando a sua própria poética no movimento das formas e nas reflexões que propõe.

Tiago Leonardo

[Foto em destaque: 3 suns, João Maria Gusmão e Pedro Paiva © MUBI]

Trabalho feminino e cinema brasileiro: entre o trauma e o sonho de uma nação

Pouco mais de dois meses atrás, a Cinemateca Brasileira abria novamente as suas portas, depois de quase dois anos com as atividades interrompidas. A instituição, que preserva o maior acervo audiovisual da América Latina, sofreu o quinto incêndio da sua história em 2021, no seguimento de uma série de desmontes que, embora agravados durante o (des)governo de Jair Bolsonaro, remontam a um projeto de sucateamento cultural muito mais antigo no país. Ontem, ganhou repercussão um caso judicial no estado de Santa Catarina, sul do Brasil, de uma menina de 11 anos, vítima de estupro, impedida de interromper a sua gravidez. Embora a gestação decorrente de violação sexual seja uma dos únicas circunstâncias em que a legislação brasileira permite a realização do aborto, a juíza Joana Ribeiro Zimmer, acompanhada da promotora Mirela Dutra Alberton, tentaram induzir a criança a manter o bebê. Dois relatos que parecem apenas exemplos isolados do absurdo que impera no país, em todas as esferas. Filmes como Creche-Lar (1978), de Maria Luiza d’Aboim, Trabalhadoras Metalúrgicas (1978), de Olga Futemma e Renato Tapajós, Mulheres da Boca (1982), de Inês Castilho e Cida Aidar, Mulheres: Uma outra história (1988) e Amores de Rua (1994), de Eunice Gutman, podem, contudo, provar uma relação mais íntima entre estes dois infelizes acontecimentos, e entre o passado e o presente.

Creche-Lar (1978), de Maria Luiza d’Aboim © Direitos Reservados.

O programa Uma outra história – Cinco filmes sobre o trabalho feminino no Brasil – a ser exibido no Museu do Aljube, em Lisboa, no dia 25 de junho, e fruto de uma parceria entre a plataforma feminista Another Screen e a estrutura Cinelimite – estampa as realidades de mulheres mães, mulheres metalúrgicas, mulheres prostitutas e mulheres políticas, tão distintas como semelhantes. A partir de montagens objetivas, que não ultrapassam 35 minutos cada, as curta-metragens miram no contar de histórias e acertam no recontar da História. Três camadas de leitura são possíveis: aquela que privilegia a dimensão arquivística destes filmes, muitos deles perdidos ou colocados à margem da grande narrativa da Sétima Arte; aquela que destaca a dimensão documental destas imagens, enquanto retratos mais ou menos fidedignos de uma época e de um contexto social; e, por fim, aquela que elege a dimensão afetiva, no que toca à experiência de escuta e de proximidade pelas mulheres atrás das câmeras para com as mulheres em frente a elas.

Importante assinalar, ainda, que os filmes recortam um momento crucial na história do Brasil, um país que nunca conseguiu, verdadeiramente, livrar-se do fantasma da ditadura militar (1964 – ?). O fim dos “anos de chumbo” foi resultado, na verdade, de uma “abertura lenta, gradual e segura”, slogan instituído em 1975 pelo governo Geisel, no mesmo ano em que o jornalista, professor e dramaturgo brasileiro Vladimir Herzog é assassinado numa das instalações do DOI-CODI – os Centros de Operações de Defesa Interna, ou, em outras palavras, centros de tortura e homicídios. Com uma Lei de Anistia recíproca, que equivocada e estrategicamente equipara a violência institucionalizada pelo Estado e a contra-violência da luta democrática, resta um Brasil, sozinho na América Latina, a empurrar a própria história para debaixo do tapete. 

Mulheres: Uma outra história (1988), de Eunice Gutman. © Direitos Reservados

É nesse sentido que a opção pela palavra “trabalho” no título da sessão parece tão bem ajustada. A sua origem etimológica é dupla. Do latim tripalium (“tri”, três, e “palum”, madeira), o termo designava um instrumento de tortura europeu, formado por três estacas de madeira cruzadas em que os escravos eram acorrentados para ser açoitados. Este sentido original é preservado, por exemplo, no francês travailler, que significa “sentir dor” ou “sofrer”. Mas o trabalho também é labor, laborare, sem o qual não existe o elaborar ou o colaborar. É este o fardo do ser mulher no Brasil: articular todos os traumas de uma nação. Incendiadas, violentadas ou simplesmente esquecidas. Engana-se, contudo, quem pressupõe a paralisia, a autopiedade ou o recalcamento como reações a este trabalho duro. “Se a ideia é que a prostituta é coitada, infeliz, miserável, não esperem isso de mim”, desafia, com um sorriso de ponta à ponta, uma das personagens em Amores de Rua

 Fortalecidas pelo desejo e pelo amor – que devem aqui ser interpretados menos num sentido romântico do que como métodos de sobrevivência –, as mulheres da creche, da fábrica, da Boca, do Congresso e do cinema têm em comum uma profunda vontade de autonomia. Autonomia de corpo, de ritmo, de sexo, de voz e de criação. “Toda ‘mulher direita’ tem a fantasia de ser prostituta e toda prostituta tem a fantasia de ser ‘mulher direita'”, preconiza, ainda, outra personagem em Amores de Rua. Em outras palavras, toda mulher, e todo o Brasil, têm a fantasia de serem livres.

Laila Nuñez

[Foto de destaque: Mulheres: Uma outra história (1988), de Eunice Gutman. © Direitos Reservados]

O ecrã/corpo de Sandra Lahire

A plataforma de streaming de acesso livre Another Screen  – criada e curada pelo jornal de cinema feminista Another Gaze – apresenta, a partir de 18 de abril e durante um mês, um programa composto por uma seleção de filmes de Sandra Lahire. 

A artista britânica foi uma figura de relevo na produção cinematográfica experimental e feminista londrina nas décadas de 80 e 90 do século passado. A sua obra é composta por apenas 10 filmes, todos de curta e média duração, 8 dos quais serão transmitidos online e acompanhados de novos textos críticos, também a ser divulgados pela plataforma. O visionamento deste conjunto de filmes dá-nos a conhecer essa mulher de quem quase não se fala, e a sua obra que dela não se pode desconectar e que é prolongamento de si. Ver os filmes de Lahire é ser convidado a entrar na sua intimidade e a empatizar com o seu corpo e outros tantos que nos mostra. Essa parece ser a característica maior do seu trabalho – a de conjugar tudo e notar a intersecionalidade que conecta os mais diversos aspetos da luta feminista que apoia, e da própria vida humana. O individual e o colectivo não se desligam um do outro, assim como o que é artístico não se desliga do que é pessoal, nem o humano do não-humano, e todos os seus filmes refletem esse raciocínio agregador de supostos opostos. O tratamento das imagens é sempre frenético, no mesmo filme não só tudo cabe como tudo dança em conjunto – uma mescla de documentário, performance, animação e experimentação, como define a apresentação do programa, é construída em cada projeto com uma harmonia muito particular. A própria Lahire incorporava uma panóplia de aspetos: era lésbica, feminista e ativista queer na época de Thatcher, tinha anorexia e apoiava o combate à guerra e à energia nuclear. Todas essas temáticas se refletem nos seus filmes e permitem levantar problemáticas pertinentes ainda hoje, sinal de que Lahire também trespassa os tempos – e sinal também de que os mesmos problemas sistémicos se arrastam ainda…  

Terminals, de Sandra Lahire

Terminals (1986), Plutonium Blonde (1987), Uranium Hex (1987) e Serpent River (1989) são os 4 filmes que a realizadora desenvolveu sobre os efeitos nocivos da produção de energia nuclear. A exploração de minas de urânio prossegue apesar das conhecidas mazelas que se fazem sentir na saúde humana e no meio ambiente envolvente. São as vozes de mulheres trabalhadoras nesta indústria que nos revelam a sua realidade e as suas preocupações. Os filmes entrelaçam essas vozes e corpos com as máquinas e sons colossais com que contactam diariamente, explorando os efeitos devastadores que os avanços industriais capitalistas produzem nos seus corpos e comunidades. Os resultados são amálgamas de sobreposições de imagens e sons, alterações e reversões de velocidade, sempre acompanhadas por narrações, que nos guiam nessas viagens conturbadas pelas mutações que a tecnologia provoca: vemos repetidas vezes radiografias como prova das doenças causadas pela radiação e ouvimos alguém dizer-nos que as águas do rio do local onde vive foram contaminadas, e já não são próprias para consumo. “Não se pode beber a água para salvar a vida” é a conclusão dessa mulher. Tanto os corpos como os recursos naturais carregam feridas abertas provocadas pela exploração desenfreada do mundo. 

Serpent River, de Sandra Lahire

As feridas específicas que a cultura patriarcal rasga no corpo feminino são também alvo de reflexão e crítica na obra desta artista. Em Arrows (1984), por exemplo, Lahire traz à tona certas dinâmicas culturais que contribuem para o surgimento de casos de anorexia, nomeadamente a subjugação histórica da mulher a objeto passivo de desejo e as tentativas de tornar os corpos femininos moldáveis segundo padrões de beleza alucinatórios. Lahire descreve práticas cirúrgicas invasivas de liposucção, anima recortes de revistas de modelos femininos ao som das indicações de uma aula de aeróbica, e recupera a imagem bíblica de Eva como lembrança da simbologia preponderante da mulher como pecadora. Num movimento que conecta estas narrativas coletivas com sentimentos profundamente íntimos, a cineasta contrapõe filmagens do seu corpo anoréxico com as de pássaros engaiolados, aludindo ao sufoco que sente a partir de si própria e que confessa aos espectadores: “Se apenas não estivesse sozinha nesta pele grande e vazia. Se apenas pudesses entrar e confortar-me.” Neste que foi o seu primeiro filme, Lahire demonstra a habilidade de não recear a sua vulnerabilidade e de se expôr em todo o seu sofrimento, talvez como meio de criar vínculos a outros corpos em angústia que com ela, através dos seus filmes, se podem relacionar.  

A filmografia da realizadora britânica destaca-se ainda pelo diálogo próximo com a poeta Sylvia Plath. Em Lady Lazarus (1991) é a voz de Plath que recita alguns dos seus poemas alternados com excertos de uma entrevista que deu pouco antes da sua morte. O uso da linguagem é articulado com o habitual fluxo constante de imagens de Lahire, aqui girando em torno da temática do suícidio, lembrando-nos da mortalidade da qual não escapamos. Encontra-se uma componente poética constante nos paralelos visuais que Lahire traça. Em todos os seus trabalhos, o emaranhado de linguagens está a um passo de se tornar desordenado, contudo surpreende pela lucidez com que alberga aspetos tão diversos da experiência humana. A montagem elaborada de imagem e som parece guiada pelos tormentos sentidos na pele de uma mulher que não se conforma e que encontra afinidades em tudo. As suas sequências de imagens tornam-se um corpo – falam-nos, cantam-nos, choram e riem, levam-nos a voar com os pássaros e encostam-nos à parede também, não nos deixam desviar o olhar enquanto o que têm a dizer não estiver dito. Sandra Lahire criou filmes que são metamorfose constante, tudo se transforma em tudo, e tudo remete para o corpo que, incansável, não se cala. 

[Foto em destaque:  Lady Lazarus, de Sandra Lahire]