The Murder of Mr. Devil: profecia de uma cultura progressiva no Leste 

Produzida sob o mote “No Happy Ever After”, a 6ª edição do BEAST IFF – festival dedicado ao cinema da Europa do Leste – é criadora de um diálogo entre o cinema e a situação política destes países. “Não há finais felizes?” é a pergunta que paira nas ruas do Porto durante os dias do festival. Há uma ideia romântica da dor como criadora de uma imensa potência artística que, até certa medida, o BEAST parece confirmar. Isto porque a programação dedicada à emergente cultura progressiva e às inúmeras narrativas de resistência deixa pouco espaço para contos de fadas e utopias. Os finais não são necessariamente felizes e não precisam de o ser. Afinal, há ainda um longo caminho a percorrer e é relevante explorar fórmulas alternativas aos finais felizes.  

Num festival onde a maior parte dos filmes exibidos são bastante recentes, The Murder of Mr. Devil (1970) rompe com este padrão, transportando-nos para os anos de ouro da produção cinematográfica checoslovaca. Este é o único filme dirigido individualmente por Ester Krumbachová, grande responsável pela estética da nova onda de cinema checo. Inserido neste movimento de vanguarda, o filme opera um jogo entre o real e o surreal; uma desconstrução sarcástica do comportamento masculino e dos cânones da comédia romântica.  

Imprevisível e erótico, The Murder of Mr. Devil desenvolve-se exclusivamente no interior do apartamento de uma mulher solitária que convida o Diabo (Bohouš Čert) para sua casa. À semelhança de Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman, também este filme nos convida para a esfera privada da mulher. Aqui, atividades ordinárias recebem uma relevância que é inusitada no cinema. Entre móveis e talheres antigos, plantas tropicais, tons alaranjados e acinzentados, assistimos a requintados banquetes e às inúteis tentativas desta mulher conquistar um homem guloso e indelicado.  

The Murder of Mr. Devil, Ester Krumbachová © Direitos reservados

Jeanne Dielman, Chantal Akerman © Direitos reservados

No BEAST, este filme surge integrado num programa chamado “The Raisin Prophecy”, constituído por The Murder of Mr. Devil e In Search of Ester, um documentário de Věra Chytilová que procura compreender quem foi Ester Krumbachová. Este programa é uma tentativa de recuperação de uma personalidade outrora esquecida. Ester Krumbachová (1923-1996), um nome central da vida artística em Praga, nos anos 60, foi colocada numa lista negra com a alteração do clima político da Checoslováquia na década de 1970. Os seus filmes foram banidos e só nos anos 90 se iniciou uma redescoberta do seu trabalho. Torna-se pertinente incluí-la na programação do festival quando a entendemos como uma encarnação desta tensão política. Ainda assim, a sua relevância vai além deste vínculo biográfico. Vejamos o título do programa:  

“The Raisin Phophecy”, passível de ser traduzido para ‘A Profecia da Passa’, remete para a predição de um futuro de inspiração divina. Numa primeira análise, a profecia corresponde à própria narrativa do filme. Há uma cartomante que prevê um misterioso saco de passas nas suas cartas. No final do filme, como uma profecia que se cumpre, o Diabo, homem glutão, é capturado num saco e ironicamente transformado em passas. A par disto, parece haver também uma associação à mulher. Como uma predestinação incontornável, esta sente-se atraída pelo Diabo, o fruto proibido. The Murder of Mr. Devil é, neste sentido, uma profecia herética; uma evocação alegórica e crítica do pecado bíblico original. 

Mas será a narrativa o único aspeto a considerar quando referimos ‘profecia’? Certamente que não. Reconhecido como o primeiro filme feminista checo, The Murder of Mr. Devil prende em si uma fascinante atualidade. Profundamente político, audaz e experimental, este filme descreve a vontade de romper com as diretrizes do realismo socialista. É o cinema da expressão individual e da emancipação daqueles que desejavam reconhecer-se nos ecrãs. E, por isso, refletir sobre este conceito implica pensá-lo enquanto precursor de uma cultura progressiva na Europa do Leste. Ester Krumbachová veio semear raízes daquilo que décadas mais tarde voltaria a ganhar um novo impulso. Retomar este filme, na 6ª edição do BEAST IFF, é encontrar-lhe um final diferente: não necessariamente feliz, mas certamente um pouco mais livre.

Maria Mendes

PLAY/REPEAT: exploração cinemática da intimidade dos corpos

1+1. Dois corpos. Movem-se ininterruptamente e não parece haver forma de os parar. Em Play/Repeat, curta-metragem de Carlos E. Lesmes, somos cúmplices da intimidade de um casal. Numa atmosfera de profunda vulnerabilidade, assistimos à materialização da sua relação através da sua expressão corporal. As palavras dão lugar ao movimento e ao gesto e a distância entre os corpos adquire uma dimensão corpórea. Ora se quebra uma ligação, ora se fundem num só que é dois. 1+1=1.  

Exibida na competição oficial EXPERIMENTALEAST do BEAST International Film Festival 2023, Play/Repeat é um exercício experimental, uma revelação do cinema enquanto registo dos corpos que se relacionam no espaço. Nada menos. Nada mais. Temos uma câmara enquanto mecanismo de fixação do toque e da emotividade. Dois corpos confinados às várias divisões de um apartamento. E uma repetição contínua do seu movimento que parece ter como palavras de ordem PLAY e REPEAT.  

PLAY/REPEAT, Carlos E. Lesmes, ©Direitos Reservados

PLAY:  

Enquanto evocação da musicalidade que lhe dá origem. Acompanhada por “Untitled (Play it On Repeat)”, esta curta-metragem resulta da diluição das fronteiras entre disciplinas artísticas. É uma obra híbrida; uma fusão do cinema com o teatro, as artes visuais, a música e a dança. Os corpos que vemos na tela não são atores e meros executores daquilo que foi outrora coreografado. São bailarinos, mas também intérpretes-criadores; participantes no processo de construção cénica. Bebem da arte de produzir significado através da sua catarse corporal. Trazem consigo as suas próprias releituras, num duplo e mútuo estado de afetação que concretiza este filme como uma perpétua viagem de experimentação.  

REPEAT: 

Como se aquilo que vemos na tela não fosse senão o mundano, a observação e constatação daquilo que é inevitável. O quê? A aproximação e o afastamento dos corpos. A natureza paradoxal e a complexidade intrínseca das relações humanas marcadas pelo companheirismo e, simultaneamente, pela solidão. Esta curta-metragem é uma repetição das nossas vidas – da própria humanidade, talvez. É, acima de tudo, uma repetição e uma reinterpretação da vida do realizador. Nasce da sua necessidade de expressar e de sentir corporalmente uma relação passada. Play/Repeat é uma continuidade carnal de si mesmo. Um filme que parte do seu corpo, formando um só que jamais deixará de ser dois: Carlos E Lesmes + Rea Lest.

Maria Mendes

[La mécanique des fluids

  1. Área da física destinada ao estudo do comportamento físico de fluidos em movimento ou em repouso. 

As entradas de dicionário sugerem diferentes possibilidades de significação: [x] significa/corresponde a isto ou àquilo. Neste caso, a definição de ´Mecânica dos Fluidos´ parece ter os seus contornos perfeitamente definidos. Diz respeito a uma área científica e é intrincado figurar a sua associação com o cinema. No entanto, a curta-metragem documental La mécanique des fluids, realizada por Gala Hernández López, em 2022, constitui um momento de disrupção com estas convenções lexicais: Serão os fluidos necessariamente líquidos e gases? Será o cinema um exercício artístico longínquo da ciência e da disciplina? Dando gradualmente resposta a estas questões, este é um jogo de significações e uma recontextualização da arte cinematográfica.  

Complexa e hipnótica, esta curta-metragem tem como ponto de partida a carta de suicídio de Anathematic Anarchist publicada no Reddit a 20.02.2018. Intitulada “America is responsible for my death”, esta carta desperta em Gala Hernández a necessidade de navegar pela pegada digital deste jovem. Deste trabalho de investigação resulta La mécanique des fluids. Note-se, contudo, que esta narrativa não é mais do que um pretexto para desafiar o totalitarismo digital. Anathematic Anarchist não é relevante enquanto pseudónimo de uma identidade corpórea. É, antes, uma entidade fantasmagórica, um interlocutor impossível que representa a não comunicação e o isolamento online. Diferente daquela que o jovem havia experienciado, aqui, a impossibilidade de comunicar inaugura uma série de possibilidades. É precisamente porque ninguém vem reclamar o seu lugar que as lacunas informativas podem ser exploradas e preenchidas pela imaginação. Como um mártir daquilo que se procura problematizar, este fantasma do cinema principia uma conturbada análise da cultura incel.  

Esta palavra, resultante da fusão entre as palavras ‘involuntary’ e ‘celibates’, refere-se a uma subcultura virtual de celibatários involuntários (homens – maioritariamente heterossexuais – que se consideram incapazes de desenvolver relações amorosas e/ou sexuais). Profundamente essencialistas e misóginos, os incels reúnem-se em fóruns de discussão, onde ruminam sobre o seu fracasso e o seu ódio às mulheres. Durante os 38 minutos de La mécanique des fluids, embarcamos numa viagem digital pelos lugares online onde esta comunidade se reúne para comungar a sua solidão. 

La mécanique des fluids, de Gala Hernández López ©

Apesar de tudo, esta viagem é indissociável de uma abordagem empática. Os membros desta cultura não representam uma encarnação do mal absoluto ou uma mera alteridade radical. São o espelho da nossa sociedade, o resultado da educação patriarcal e da misoginia histórica e coletiva. Coloca-se em causa uma certa identificação: também nós, espectadores, experienciamos a dor do isolamento num mundo tão conectado. 

A representação do sentimento de solidão associado à experiência digital é acompanhada de um tom profundamente poético. Entre a sequencialidade mecânica desta curta-metragem, Gala Hernández encontra espaço para o diálogo com a poesia – como uma ode à humanidade, ou àquilo que dela resta. Ora, se a mecânica dos fluidos permite prever com precisão o seu comportamento e simplificar a realidade para que esta se torne manipulável e compreensível, também os perfis e as aplicações de namoro seguem esta lógica. Afinal, o amor, a emoção e tudo aquilo que é fluido exatamente por ser humano, é reduzido a um número – evento disruptivo na natureza, impossibilidade que culmina no fracasso.  

É através de recursos estéticos que o discurso fílmico se liberta da lógica sequencial do relato e constitui a expressão poética do sentimento. Vejamos: temos, por exemplo, a ilustração de um avatar perdido numa paisagem agressivamente vazia e artificial. A par desta surge a representação do mar, o único elemento efetivamente filmado além das capturas de ecrã. Repetidamente símbolo daquilo que aprisiona e isola, a imagem do mar – enquanto elemento natural – materializa, neste caso, uma forma de escape à solidão, uma descontinuidade com a lógica mecânica artificial. O mar representa o sonho: visão utópica rapidamente dissolvida em pixéis. 

Composta quase unicamente por imagens de arquivo de redes sociais, esta curta-metragem destaca-se pela estética e pelos motivos da cultura online. É um exemplo das estratégias plásticas e sensoriais do cinema ao serviço da reprodução dos efeitos que experienciamos enquanto utilizadores da internet. Através de uma sequência visual crescentemente complexa e hipnótica, alternamos entre várias aplicações e conteúdos e somos interpelados pelo pop up constante de notificações. 

La mécanique des fluids, de Gala Hernández López ©

La mécanique des fluids segue um formato digital que a aproxima do ‘desktop documentary’, um estilo de cinema pós-internet que se sustenta na captura de ecrã. Mas a que se deve a ausência de imagem captada pela câmara? Por um lado, esta parece uma escolha estética que acompanha a capacidade de o cinema apreender e documentar o fenómeno de privação do mundo real. Por outro lado, deve-se à inserção desta produção numa tese de pesquisa-criação sobre a captura de tela no cinema. 

Compreendemos que o cinema não tem necessariamente de ser distante da disciplina e da pesquisa académica. O trabalho criativo de Gala Hernández é, na verdade, uma forma de desafiar a pesquisa clássica e de materializar o conhecimento numa espécie de pensamento audio-visualizado. Esta curta-metragem revela que a pesquisa e a produção artística podem caminhar lado a lado; que a arte – cinematográfica, ou não – pode acompanhar a realidade. E é porque o processo de documentação e de realização se fundem num só que daqui resulta uma verdadeira experiência de deriva virtual. Marcada pela errância discursiva, esta emerge como um exercício de experimentação em tempo real. 

Este é um filme que nasce da ação de produzir imagem sobre a imagem e, por isso, levanta questões relativamente às práticas cinematográficas contemporâneas: 

– ‘Estará o cinema morto?’ 

– Não. Pois se a sétima arte é o cinema, talvez a oitava seja a capacidade de reinventar a anterior. 

Este gesto aparentemente redundante e supérfluo parece ser um gesto necessário de reinvenção. A captura de ecrã, que aqui substitui a imagem captada pela câmara, não representa a morte do cinema, mas sim o diálogo com o digital e a possibilidade de narrativização da experiência mediática. La mécanique des fluids não se insere, portanto, na categoria de pós-cinema. É um exemplo da arte na sua potência de renovação. É ritmo frenético, montagem cuidada e ausência de rodagem tradicional. É cinema que, num jogo de significações, se reveste de uma fluidez sui generis (como se a mecânica dos fluidos passasse a dizer respeito a si mesmo). 

Maria Mendes

Ikiru, uma meditação febril sobre a efemeridade da vida

Ikiru, de Akira Kurosawa,  poderia ser apenas um cliché melodramático – mas não o é. Num tom quase neorrealista, este filme transporta-nos para a cidade de Tokyo em 1952, período em que o Japão conheceu um boom socioeconómico. Afinal, se o ponto de partida para a história não é propriamente ímpar, as escolhas estéticas, o comentário satírico e a performance emotiva fazem deste um marco na história do cinema.  

Habitualmente traduzido para “To Live”, Ikiru constitui, acima de tudo, uma febril meditação sobre o significado da vida. É através de Kanji Watanabe (protagonizado por Takashi Shimura), um irrepreensível funcionário municipal, que somos convidados a refletir sobre o valor da existência. Apresentando-se ao serviço sem uma única falta nos últimos 30 anos, o ‘nosso protagonista’ – como a voz off o apresenta – é uma encarnação do sistema burocrático japonês; um retrato da ocidentalização do Oriente. 

Enterrado em folhas de papel que carimba monotonamente, Kanji toma consciência da sua condição de morto-vivo após ser diagnosticado com cancro no estômago. Depois do seu diagnóstico, deambula pela vida à qual já não pertencia, num estado de flutuação sugerido pelo jogo de transparências e de sobreposições entre planos. Apesar de tudo, a morte não assume contornos tétricos. É, antes, uma inevitabilidade e um veículo para uma epifania de significado.  

Ikiru, de Akira Kurosawa ©

Na primeira parte do filme, acompanhamos a ação do protagonista na primeira pessoa. Diga-se ação, mas adicione-se-lhe tempo. Porque Ikiru resulta de uma forma pausada de fazer cinema, de um ritmo monocórdico que se funde harmoniosamente com o trabalho fotográfico a preto e branco. Assistimos à sua tentativa inicial de autodestruição: beber era simultaneamente horrível e prazeroso, uma forma de se castigar pelas escolhas passadas. Consumido pelo arrependimento, Kanji Watanabe embarca num exercício de rememoração, onde o nome do seu filho – Mitsuo – ecoa fantasmagoricamente. É ao som de “Happy Birthday” que emerge a sua vontade de encontrar sentido e de desafiar a máquina burocrática que o aprisionou. Como se de um (re)nascimento se tratasse, este é um exemplo da indissociabilidade do cinema e do som. 

Por sua vez, na segunda parte do filme, o diálogo e a memória sobrepõem-se à ação propriamente dita. À semelhança de 12 Angry Men, também aqui a história do protagonista é apresentada e desconstruída através de terceiros. Interessados em compreender a sua súbita mudança de comportamento e a causa da sua morte, os vários burocratas debatem em torno do seu altar. Ora, se em 12 Angry Men, os jurados se reúnem para decidir a sentença do réu, neste filme o tempo do julgamento é diferente. Tecem-se juízos sobre um morto e, consequentemente, nasce uma atmosfera de compunção profunda irreparável. Ikiru culmina numa memorável cena final – sentado num baloiço, Kanji Watanabe entoa serena e pausadamente “Gondola no Uta” de Daisuke Abe (“Life is brief / fall in love, maidens”). A neve forma uma cobertura nas suas costas curvadas. A sua expressão revela o contentamento de quem cumpriu o seu propósito e já não teme a proximidade da morte. 

É esta performance poética que consolida o detalhe psicológico da personagem. Através desta, o filme reveste-se de uma aura de inocência e humanidade. No entanto, e ainda que dotado de um dramatismo cinematográfico incomparável, não prescinde da abordagem satírica à sociedade moderna. Numa montagem sequencial de planos rápidos, vemos os problemas serem encaminhados de departamento em departamento, sem nunca serem resolvidos. Compreendemos que a genialidade do filme reside (pelo menos em parte) na atualidade da crítica tecida e refletimos sobre a nossa passagem pela vida: sempre amenizados, sedados e automatizados. 

E porque viver é diferente de estar vivo, talvez precisemos deste filme, onde os contrastes de luz e o trabalho de câmara enfatizam a efemeridade da vida. Considerado por alguns como a obra-prima do mestre japonês, Ikiru poderia ser apenas um cliché melodramático – mas não o é. 

Maria Mendes

Peeping Tom,um vídeo-ensaio sobre o mórbido prazer de olhar 

What paper are u from? The observer. 

Tudo começa com a imagem de um olho: aproximado, anónimo e fechado. O olho abre-se ao som de música experimental. Cresce o ambiente de tensão a par das questões relativamente àquilo que vemos. Inegavelmente enigmático, este início é representativo da essência de Peeping Tom. Realizado por Michael Powell, este filme é, acima de tudo, uma reflexão sobre o olhar, um ensaio sobre os impulsos e tendências voyeuristas humanas.  

Peeping Tom dá-nos a conhecer a história de Mark Lewis (protagonizado por Karlheinz Böhm), um jovem discreto que trabalha num estúdio de cinema britânico. Nós, espectadores, com acesso privilegiado ao seu ponto de vista, sabemos que nem tudo aquilo que aparenta ser, o é. Interessa-nos especialmente a sua vida oculta, marcada por um voyeurismo obsessivo e uma profunda deterioração interior.  

Aparentemente apaixonado pela fotografia, ele tem, afinal, uma perturbadora obsessão por registar o terror na cara das suas vítimas antes de as matar. São elas exclusivamente mulheres, prostitutas e aspirantes a atrizes, filmadas e entregues à morte pela mesma arma: a câmara. O lento processo de aterrorização é sempre acompanhado pelo (re)visitar das imagens. Mark torna-se espectador do terror que provoca: todas as noites, no seu quarto e em nome da sua gratificação sexual. Isto porque, para si, a imagem em movimento, o sexo, a dor e o medo são elementos indissociáveis.  

Ora, a verdade é que, apesar dos crimes que sabemos ter cometido, a relação que estabelecemos com o protagonista não deixa de envolver alguma empatia e proximidade. Filho de um psicanalista, especialista nas reações do sistema nervoso das crianças ao medo, viu a sua infância ser reduzida a uma experiência científica do pai. Constantemente filmado e fotografado, foi apenas quando recebeu uma câmara que os papéis se inverteram. Deixou de ser objeto de observação e conheceu, finalmente, o poder e prazer associados a ser espectador. Compreendemos, portanto, a sua macabra compulsão para colecionar imagens de terror como o reflexo inevitável de uma infância traumática, uma repetição do trauma passado nas suas próprias vítimas.  

O seu voyeurismo traduz-se numa quase identificação com a câmara. Ao longo do filme, são inúmeras as situações que evidenciam esta confusão da sua identidade com a posição de observador. Uma delas – talvez a mais relevante – corresponde à cena em que espelha os movimentos de Helen (Anna Massey), a jovem que vivia num quarto arrendado em sua casa e com a qual se envolve. Enquanto Helen decide onde colocar a peça de joalharia que Mark lhe havia oferecido, este observa e reproduz todos os seus movimentos. Não consegue controlar os seus impulsos e age como se de uma câmara se tratasse. Ainda assim, consciente das consequências da sua perigosa obsessão, pede-lhe: Don ´t let me see you frightened.

Por escopofilia entende-se o prazer e desejo mórbido de observar algo ou alguém. Neste caso, a escopofilia de Mark é levada até às últimas consequências: o seu desejo mórbido torna-se literal quando sente prazer na observação da morte. Em última instância, concretiza-se na cena do seu massacre final. Assistir à sua morte é também para si prazeroso.  

Peeping Tom, de Michael Powell ©

Este massacre encerra um ciclo, é o último e o maior de todos os seus prazeres. Quando o protagonista morre, o nosso próprio voyeurismo é revelado. Olhamos atentamente para o ecrã, simultaneamente fascinados e aterrorizados. A atracção pelo filme vai além da vontade de acompanhar o protagonista e de conhecer os seus crimes. Porque não somos apenas espectadores de um espectador, mas também nós retiramos prazer da observação do medo. Neste sentido, Peeping Tom é mais do que uma narrativa sobre um homem com tendências voyeuristas. É, acima de tudo, uma desconstrução da nossa posição de espectador e uma reflexão sobre a relação que estabelecemos com o cinema. 

A péssima recepção deste filme pela crítica da época contribuiu para o fim precoce da carreira e sucesso do realizador. Mas a que se deveu esta receção? A verdade é que, em Peeping Tom, a audiência não pode observar anonimamente, escondida e protegida pela escuridão da sala de cinema. 

Shut the door, diz a primeira vítima numa das cenas iniciais. A porta fecha-se atrás de nós: somos trazidos para este lugar de intimidade, vemos tudo aquilo que o protagonista vê. O filme acontece na primeira pessoa e, por isso, somos necessariamente implicados na narrativa, tornando-nos cúmplices dos crimes de Mark. Esta cumplicidade torna-se especialmente evidente quando a luz da lanterna, utilizada para procurar o assassino, aponta para nós. Aqui, percebemos que as atrocidades que ele cometeu são, no fundo, as atrocidades de todos nós. E isto é indubitavelmente difícil de assumir. Mas mais difícil do que assumir a cumplicidade com os crimes cometidos, é assumir que dela advém um prazer, associado ao ver algo indevidamente. 

Pensado com atenção ao mais ínfimo detalhe, este filme parece dar vida às ideias desenvolvidas por Laura Mulvey, feminista e crítica cinematográfica britânica. Segundo esta, o cinema narrativo proporciona e satisfaz inúmeros prazeres, nomeadamente o prazer visual, um instinto da sexualidade que implica a objetificação de outrem. Para além disso, defende que o cinema é marcado por uma relação assimétrica de poder e que, consequentemente, o homem e a mulher surgem em extremos opostos da estrutura do olhar. Por um lado, a mulher corresponde a um objeto erótico, imagem passiva cujo propósito existencial é ser olhada (pela câmara, pelas personagens do argumento cinematográfico e pelo espectador). Por outro lado, o homem corresponde ao detentor do olhar, ao elemento ativo que projeta as suas fantasias na figura feminina. 

Peeping Tom, de Michael Powell ©

Esta reflexão crítica sobre a assimetria do olhar está contida no enredo principal. Neste caso, Mark é o detentor do olhar e as suas vítimas, frequentemente enquadradas e aprisionadas pelo campo de visão da câmara, são o objeto erótico olhado. A par do enredo, também os pequenos detalhes vêm enriquecer a discussão. Desde o enquadramento de uma das vítimas debaixo de uma placa onde se lê: STAGE, até à venda de revistas pornográficas, onde a imagem da mulher está à mercê do prazer masculino, são inúmeros os aspetos em concordância com aquilo que Laura Mulvey teorizou. 

Em contraste com as cores vibrantes e saturadas que o caracterizam, Peeping Tom é um ato de brutalidade cinematográfica. Mais do que a violência implícita na temática dark e no terror psicológico, importa considerar o discurso crítico sobre a perversidade e violência associada ao ato de olhar e aos novos media, evidenciada pela utilização da câmara como arma. Afinal, estes parecem tornar-nos ‘Peeping Tom(s)’, alimentando a nossa tendência voyeurista – dentro e fora da sala de cinema. 

Maria Inês Mendes

Índia: uma melancólica tour pelas ruas lisboetas

Lisboa é terra de saudade, cor e melancolia. É palco de revoluções, poesia, de amores e desamores. Índia, a mais recente longa-metragem de Telmo Churro, nasce da necessidade de retratar Lisboa, estabelecendo um diálogo entre a mudança e aquilo que permanece na sua essência.  

Filmado em película de 16mm, este filme transporta-nos para as ruas labirínticas da cidade. Entre subidas, descidas e coloridos cenários pitorescos, conhecemos a intimidade de três gerações de homens portugueses. Tiago (Pedro Inês) é um guia turístico que sofre perdidamente de amor. Foi deixado pela mulher e tem a consciência turva por um profundo delírio existencial. Vive com o seu pai, Raul (José Manuel Mendes), um marinheiro fascinado pela história marítima portuguesa, e com o seu filho, Manuel (João Carvalho), um adolescente que não bebe cerveja, mas está embebido pelos seus sonhos cósmico-eróticos. Em sua casa recebem Karen (Denise Fraga), uma turista brasileira desolada pela recente morte do marido. 

Índia é, acima de tudo, uma história sobre uma viagem turística não convencional, um filme que despreza a ideia de uma cidade gentrificada, entregue às multidões de turistas sedentos. As quatro personagens (e o espectador) embarcam numa cómica tour de melancolia e luto coletivo. Durante alguns dias, navegam por uma Lisboa de heróis suicidas e histórias revolucionárias, onde se cruzam diferentes tempos e narrativas. 


Índia, Telmo Churro © Direitos Reservados

Envoltos em poesia, cartas sobre as deambulações e monólogos interiores, procuram Fernão Lopes, um historiador português renascentista empenhado em registar objetivamente a presença dos portugueses na Índia. A verdade é que a sua obra, desprovida da aura heroica atribuída a este período, parece estabelecer uma correspondência com o olhar crítico do filme. O título deixa de parecer fruto do acaso ou de uma glorificação do passado colonial. Não é disso que se trata. Trata-se, antes, de uma vontade de descrever a essência da experiência lisboeta (tal como Fernão Lopes retratou a da Índia). Como é Lisboa longe da herança salazarista, da política colonialista e do turismo desenfreado? Qual é, afinal, o segredo desta cidade?

Simultaneamente contemplativo e frenético, Índia assume uma enorme liberdade narrativa e estética. É um filme confuso, com uma cadência própria e cujo estranhamento não deixa de ser, no entanto, uma experiência familiar. Lisboa é também deambulação, introspecção e memória de quem já não está cá. É tudo isto que o filme retrata. Como uma carta de amor (de: Telmo Churro, para: Lisboa), este filme traz até ao IndieLisboa um pouco da história da cidade que o acolheu. 

Maria Mendes