Deborah Stratman: a ambiguidade ou o inexpugnável lirismo das máquinas

Subsiste a tendência para, sem tardar, procurar legitimar os objectos artísticos com que nos defrontamos. Legitimação política, social, ética, moral, etc. É – não só, mas também -, a uma tal urgência de integração (e regulamentação) da arte, que a obra de Deborah Stratman diz respeito, criticando-a, justamente, pela resistência que apresenta a uma categorização linear. Deborah Stratman, artista destacada na 31ª edição do Curtas Vila do Conde – International Film Festival, com a projecção de curtas-metragens de sua autoria, a atribuição de uma carte blanche, e a exposição Unexpected Guests, patente na galeria Solar: presença motivadora de um ensaio reflexivo acerca de uma obra inscrita num tempo histórico particularmente ruidoso, cuja impermeabilidade (a uma voz singular, a uma crítica justa, a uma dissensão por mais ponderada), como aparência, como imagem, corpo a modelar, a penetrar, a adulterar, mas igualmente a escutar, a recolher silenciosamente na sua novidade mais ou menos monstruosa, mais ou menos maravilhosa; impermeabilidade, dizíamos, que constitui a matéria-prima do mais refinado posicionamento crítico. Neste sentido, poder-se-á falar de uma poética, ou até, de uma linguagem, da incomunicabilidade. Uma linguagem que trabalha com a imagem que se recusa, que é escuridão, silêncio, sem, todavia, obrigar senão ao mais rico encontro, nesse plano em que imaginação antecipatória e construção se tocam, entre mutismo e diálogo.

Stratman trabalha o problema da legitimação artística, muito embora não na medida em que procura alinhar com um qualquer alfabeto vigente e de alta eficiência mediática, isto é, não ambicionando para si essa legitimidade – a oscilação do espaço de exposição dos seus trabalhos é, de resto, sintomática de uma presença marginal e, daí, potencialmente panorâmica e crítica. À artista norte-americana parece afigurar-se-lhe de maior interesse o exercício de explorar os efeitos que a sua obra visual – cinematográfica e/ou plástica – comporta e pode comportar no espectador, independentemente da sua proveniência social, política ou cultural. Fazer a tábua rasa como o projecto imenso e fresco (Maria Filomena Molder adverte, em Palavras Aladas (2022), para o gesto da tábua rasa como próprio da juventude) do acto (desde logo, político) de olhar um mundo (o nosso), cujo crescimento e expansão correspondem igualmente a um imenso trabalho de destruição e declínio. O que vem complexificar a relação umbilical e perfeitamente mútua entre crescer e destruir, entre prometer e findar, é o gesto concomitante, a que corresponde esse jogo duplo, da assinatura do homem nesse mesmo mundo, e que vem inscrever o poder como o âmbito tão rizomático quanto dissimulado (e, com efeito, dramático) em que o homem se move e por que se constitui. Chegamos a um impasse, tanto de ordem epocal quanto de natureza filosófica; indecidibilidade que se forma precisamente no território flutuante que os seus limites (e, sobretudo, uma certa ideia de limite) encerram por sobre um tempo indeterminado, potencialmente excedente do período histórico em que se anunciam e de que se valorizam simbolicamente. Recuperemos algumas palavras de Bernard Stiegler em States of Shock, a propósito do pensamento invariável e repetidamente (em loop, como Hacked Circuit, exposto na Solar) esgotado e, dessa feita, inconcluso, acerca da economia sistémica pensada por Stratman: “In particular, one cannot fail to notice here that what is said about the system seems to leave no room for the question of the limits of the system, for the fact that any dynamic system has limits, and that a time will inevitably come when these limits are reached, philosophy consisting perhaps always and firstly in thinking such passages to the limit.” (Stiegler, 2015: 93). O plano em que os limites se jogam, antecipando a sua própria refutação, isto é, consistindo no fantasma da sua forma póstuma, é o plano da técnica, à qual Stratman, pela realização de filmes-observatório, cede pela articulação com um lirismo especulativo, gerado no olhar compassivo (assim o imaginamos) do espectador. Assim, o que de puro pode existir é essa articulação técnica, prestes a perder para outra proposta mais refinada numa história técnica universal, lançada, e igualada, no mesmo terreno virtual que a designada história natural: “the pursuit of the evolution of the living by other means than life – which is what the history of technics consists in (…)” (Stiegler, 1998: 135).

Pensemos num filme como Second Sighted (2014), cujo título sugere imediatamente o gesto de voltar a olhar, rever, testemunhar, ou melhor, testemunhar uma testemunha (que se julga, presentemente) passada, sabendo de antemão que um tal exercício comporta o lance no território falsário da ficção – joguete que a artista ajuda a desconstruir, servindo-se, como pedra-de-toque, do registo documental como presença desestabilizadora da fronteira entre fantasia e real, sob mediação do papel do arquivo (como espécie de excedente, destinação entrópica, da História). As primeiras imagens do filme situam-no num registo cindido entre a imagem surreal(ista) – é difícil resistir a sobrepor à imagem inicial, dos olhos incendiados, essa outra de Un Chien Andalou (1929), também a abrir o filme, da sutura do olho – e a mera captação técnica de imagens de uma cidade, no caso, de uma senhora idosa no cais de uma estação de comboios. Partículas brancas em gradativa concentração (lembrando-nos dessa afirmação de Carl Sagan, de que o homem é nada mais que poeira de estrelas), um par de olhos em chamas, prédios incendiados, na iminência do desabamento, tratam-se dos planos iniciais do filme, seguidos de um zoom na figura da tal transeunte, sequência que aponta para a hipótese da identificação de uma agência, pela ligação causal entre o fogo e o rosto humano. Há, todavia, uma força que persiste e que inibe a um encadeamento narrativo que dessa figura humana constituísse o agente de um crime (por fogo posto, nomeadamente), pela atribuição de uma autoria (a culpa seria uma consequência possível, de todo o modo incerta). E, de facto, dessa primeira hiper-sugestão por via de uma vigilância que também nos cabe a nós, espectadores, não há seguimento nem evolução narrativa alguma. A deriva persiste, como essa força enigmática que tudo traga, tudo aparentemente igualando, manifestando-se não só paralelamente ao desenho de directrizes traçadas por cima de imagens de paisagens variadas, como por esses mesmos desenhos instigada. 

Second Sighted (2014), Deborah Stratman ©
Second Sighted (2014), Deborah Stratman ©
Second Sighted (2014), Deborah Stratman ©

Parece haver tão-só circuitos a repetir e matéria a captar, infinitamente. E essa repetição, e a eventualidade da captura e do registo sensíveis, dão-se através de uma data de recursos técnicos. Lembre-se Vever, filme composto de imagens de uma viagem que Barbara Hammer faz à Guatemala em 1975, com textos – a servir de marcação temporal – de Maya Deren, sobre o trabalho artístico, o nascimento da arte, o fracasso, a composição criativa. Estruturalmente o filme é também uma second sight, e é-o nos termos em que repete um determinado circuito, reciclando material imagético e literário, não obstante revitalizado numa montagem singular, pelas mãos de Stratman. A repetição do fracasso, um modo aperfeiçoado de errar, valendo sobretudo a formação de uma imagem inconsciente do corpo, da matéria, memória sensível independente do esquema corporal que a cada um cabe transportar, e que nos une numa língua universal, instigante, muito embora jamais passível de ser articulada. É sob o signo da incomunicação, da opacidade, do que resiste a ser significado sob a suposição de que assim se encontra desconstruído, caso encerrado, que os filmes de Stratman se realizam.

Vever (2019), Deborah Stratman ©
Optimism (2018), Deborah Stratman ©
Optimism (2018), Deborah Stratman ©

Há um retrato que fica sempre por acabar: no caso de Vever (2019), o do modo de viver das comunidades na Guatemala, bem como da intenção (termo assaz referido durante o filme, seja em palavra escrita e inscrita na película, seja pela voz off) que verdadeiramente motivou aquela viagem e, posteriormente, aquele filme, que é, não nos esqueçamos, a marca do abandono de um outro filme (de Hammer). É precisamente com essa impossibilidade de acabar – que o termo (empiricamente necessário) de um objecto fílmico exerce – que o dispositivo técnico dialoga, no sentido de tornar mutáveis as posições de criador e criação, ao ponto de se tornar indistinguível quem filmou e quem foi filmado ou, seguindo as palavras do filme, de quem, de que parte e qual a intenção subjacente: do real prévio à filmagem, do real que a película revelou, do real resultante da montagem de Stratman? O sem termos do acto de olhar, e dos estímulos a que a realidade nos expõe, inviabiliza a definição clara de fronteiras, e apresenta como o porto mais seguro a asserção da ambiguidade: “It was only after I had conceded my defeat as an artist, My inability to master the material in the image of my own intention, That I became aware of the ambiguous consequences of that failure”. Tudo o mais serão traços na areia, deslizamentos de terra, um barco à deriva no mar, vogando sobre as ondas, rimando, de resto, com a imagem particularmente impressionante, imóvel, de um navio num mar congelado, em Optimism (2018)filme que toma, como problema central, o território de Dawson City, no extremo norte do Canada: território gelado, inóspito, no qual toda a forma de vida surge como uma incontornável manifestação, conquanto sóbria, do desejo. Também aí parece operar-se a tentativa de fazer uma razia de sentido, em grande parte sugerida pelo título que denota, quase comicamente, a disponibilidade – e a inteligência – para a confiança, a boa-fé, ainda que acabe por destacar a desolação das primeiras imagens do filme. A paisagem de neve é imensa, qualquer corpo que a atravesse é um pormenor de cuja passagem não se acreditam vestígios. Neste sentido, o ecrã dá-nos os traços de um desenho breve, à partida extinto, de que nada restará senão a sua passagem. Funde-se ouro, bailarinas dançam num bar, que assombrosamente se assemelha a um estaleiro, a um local onde se pára, estando em viagem, mas onde não se fica, onde nada nos diz que fiquemos. Os locais que habitamos são aqueles que nos despertam o desejo de neles reconhecer um motivo para permanecer, tratando-se primeiramente de um desejo de leitura: o lugar diz-me, pede, que o leia e que nele encontre um motivo desejável. Apesar desses elementos de vida breve – um homem a trabalhar o ouro, mulheres a dançar num palco – tudo nos reafirma a estranheza de estar ali. Um recorte circular de espelho surge, ofuscante, no meio da paisagem. Espelho que não deixa ver nada. Imagem abstracta que interliga metonicamente sol e ouro, configurando o primeiro como a matéria fabricada pelos residentes-resistentes da montanha, e o segundo como matéria-prima, o corpo trabalhado e o rosto identitário de quem ali viva, visto por aqueles que se limitam a chegar (para partir): nós próprios, espectadores. Mas, sublinhe-se, em Dawson City os espelhos não compreendem reflexos e/ou estes não devolvem nada.

A estranheza que impera das mais diversas formas é explorada, sendo antes de mais contacto com o real, sob recurso a aparelhos técnicos cuja presença não é nunca obliterada – a câmara está sempre presente -, e pela sucessão de imagens que correspondem muito significativamente à inscrição de desenhos no espaço: no espaço da película fílmica e do mundo, ambas constituindo fundos de estranhamento, plataformas de re-significação. Diz Jean Luc-Nancy, em O Prazer no Desenho, a propósito do desenho como traço e projecto, como forma fechada e plano ao aberto: “O desenho é então a Ideia: ele é a forma verdadeira da coisa. Ou, mais exactamente, ele é o gesto que provém do desejo de mostrar esta forma e de a traçar de modo a mostrá-la. Não se trata, contudo, de traçar para mostrar como uma forma já recebida: traçar é aqui encontrar, e para encontrar há que procurar – ou deixar que ela se procure e se encontre – uma forma por vir, que deve ou que pode vir no desenho.” (Nancy, 2022: 17). O desenho, que em Musical Insects (2013) tem um papel estrutural – filme composto a partir de um livro de ilustrações com a exposição paródica de diversas espécies de gafanhoto -, representa um mecanismo de realização cinética e a proposta de um plano de investigação em curso. E aqui desenho é todo e qualquer movimento de intercepção com o meio: seja um amontoado de terra a ser revolvido por uma escavadora, um barco cortando as águas do mar, a sobreposição de setas e sublinhados por cima do plano de uma paisagem, a impressão da ausência de corpos na relva, em The Magician’s House (2007). Neste filme, fotografias, retratos desvanecidos, o posto de correio com a inscrição “ithaca jounal”, as vozes imperceptíveis de duas crianças, uma casa vazia, em que os sinais de vida compreendem uma função mitológica ampliável (lembrada a Odisseia pela referência a Ítaca, um retrato que não parece do tempo da casa, encerrando um arcaismo, temporalidade ilocalizável, conquanto potencialmente redentora).

The Magician’s House (2007), Deborah Stratman ©
The Magician’s House (2007), Deborah Stratman ©
The Magician’s House (2007), Deborah Stratman ©

O mito, na sua dimensão universal, também ela plástica, dispõe tanto a memória como território a desbravar, jamais absolutamente conhecido, como enquanto desolação e abandono de uma forma que, antes de se prestar a constituir o signo identitário de um alguém, é por excelência marca de presenças passadas, irrecuperáveis, tão-só imagináveis. Mas a imaginação é aqui, neste tempo que nos cabe e que parece ter chegado já tarde, matéria para as máquinas talharem. Saberemos, ou não, um dia, com que mãos, e com que guindaste, urdimos o nosso próprio retrato no mundo. E que máquinas habitaram os pontos cegos que nos formam e nos motivam a continuar e aos quis, por facilidade, nos habituámos a designar: universo infinito.

Bibliografia:

Nancy, Jean-Luc (2022). O Prazer do Desenho. Lisboa: Documenta.

Stiegler, Bernard (1998). Technics and Time 1. Stanford: Stanford University Press.

Stiegler, Bernard (2015). States of Shock, Stupidity and Knowledge in the 21th Century. Malden: Polity Press.

Maria Brás Ferreira

A marcha do tempo no laboratório mental de Pedro Maia – Entrevista

É no cruzamento de matérias primas, de suportes analógicos e digitais e na dilatação dos seus limites que se descobre o trabalho de Pedro Maia, realizador português a residir em Berlim há vários anos. O confronto dos materiais, a desfiguração, destruição ou diluição do figurativo e da própria materialidade das imagens, com vista à reificação da abstração, remete para uma ideia de pintura em movimento trabalhada sobretudo em película de 16mm e 8mm. Desde as primeiras experiências em Super 8, passando por um filme criado a partir de “restos” de planos do filme A Zona (2008), de Sandro Aguilar (onde trabalhou como segundo assistente de realização), até à multidisciplinariedade que cruza live cinema, música, livros e instalações, chegamos ao ponto em que já não há (ou nunca houve) imagem real. É o caso de March of Time, que estreou na competição experimental do Curtas Vila do Conde 2023.

O realizador afirma que o filme nasceu do “interesse de explorar a inteligência artificial (AI), porque o que tenho visto é muito mau e muito piroso. Então foi pensar em utilizar isso para voltar atrás. Pegar nesta ideia de regressão da tecnologia, do futuro a olhar para o passado e a recriá-lo. Lembrei-me de pôr a AI a criar imagens destruídas de 16mm. Produzi um algoritmo que concebia uma espécie de terceiro analógico. Portanto, é a inteligência artificial a tentar criar imagens que ela entende serem imagens de 16mm destruídas.”

Partindo de uma reflexão sobre o tempo e a sua influência nos suportes fílmicos, a ideia passou por usar mecanismos de machine learning (um processo tecnológico que permite aos computadores adquirir e desenvolver conhecimento sobre determinado assunto automaticamente) de forma a criar imagens degradadas de 16mm.

Se o conceito nos deixa curiosos, o resultado não é menos interessante. O que vemos é uma sugestão estética daquilo que seria película destruída/desfigurada do ponto de vista da máquina. Nunca saberemos que imagens reais aquela desfiguração esconde, levando a nossa mente a viajar por este filme-fantasma, pleno de cores, formas e texturas, divididas em “capítulos”, de onde a narrativa não está completamente ausente. Há vontade de criar uma estrutura, um desenvolvimento, um ténue fio condutor que, por muito minimal que seja, nos guie pela aventura imagética. Sem deslumbres, – porque há sempre o contacto com a pobreza inerente àquilo que a inteligência artificial é capaz de produzir – o realizador utiliza aquilo que é mais uma ferramenta ao seu serviço, não esquecendo as suas limitações. Neste caso, o trabalho é também a procura das imagens certas. É preciso treinar o computador, domesticá-lo, conduzi-lo através de um caminho atestado de informações e fazê-lo “pensar”, “ensinar-se”. 

March of Time, Pedro Maia ©

À semelhança de alguns projectos como How to Become Nothing (2017) ou Janela do Inferno (2022), onde tem sido feita a articulação entre objectos fílmicos mais tradicionais de montagem fixa e formatos ao vivo, com March of Time acontecerá o mesmo: “Agora estou em conversas com alguns sítios para passar isto para 16mm e mostrar como  instalação. Com o Pedro Vian, que fez a banda sonora, estamos a desenvolver um concerto com base nisto. O filme foi comissariado pelo 25AV que financiava uma peça audiovisual a um duo que concorresse. Agora, quatro desses projectos vão ser selecionados para a vertente ao vivo. Nós ainda não sabemos se vamos ser selecionados, mas já estamos a avançar com o projecto.”

Esse desejo por cruzar diferentes disciplinas artísticas é expresso pelo realizador, que dá o exemplo de vários dos seus outros trabalhos: “Cada vez mais tenho essa necessidade de que o projecto não seja só uma coisa. Especialmente por causa dessa necessidade de deixar um ou vários registos. Por exemplo, a partir do How to Become Nothing fizemos o Fade Into Nothing, porque o Indielisboa estava interessado em mostrar isto em competição. Agora, quando olho para o filme, fico arrependido, porque é muito menos radical. Fizemos uma versão mais contida, menos confusa, onde a montagem é muito mais simples. Ao vivo há muitas coisas que acontecem. Agora arrependo-me de não ter transposto essa radicalidade do live cinema, que para mim foi a melhor forma de mostrar o projecto”.

Também Janela do Inferno, filme comissariado para um concerto do festival Walk&Talk nos Açores, transformou-se numa curta-metragem: “Convidaram-me para fazer o concerto de abertura do festival e decidi convidar a Lucy Railton, que faz música electrónica experimental, para fazermos a residência em conjunto. Depois o Luís Fernandes, que comanda o GNRATION, convidou-nos a fazer uma peça para ficar online, com uma montagem fixa entre 10 a 20 minutos.”

March of Time, Pedro Maia ©

Essa experiência em filmes-concerto e live cinema, levou-o a desenvolver um trabalho muito forte no que toca à articulação com a música e espetáculos ao vivo, algo que é reforçado pela sua visão cinematográfica: “Como eu venho do cinema experimental e não da media art, para mim tudo no ecrã tem que funcionar como um filme. Depois quando pões a banda, as luzes, o público, isso fica muito mais forte. No meu trabalho, apesar de todo o improviso envolvido, há uma estrutura em que sei mais ou menos a música, os tons, e sei que começo num certo ponto e sei onde tenho que estar no momento seguinte. Aquilo tem que continuar a funcionar por si só numa sala de cinema. A narrativa é muito importante também para os músicos e não tem que ser uma coisa óbvia. Nos meus filmes experimentais e concertos abstractos há sempre qualquer coisa que me guia e espero que guie de alguma forma o concerto. Às vezes coisas muito básicas como começar muito escuro e acabar muito claro. Só isso já é importante, porque te ajuda a restringir, a saber que tens que fazer determinada coisa. Como faço isto há muitos anos, já consigo respirar fundo, mas quando estás ao vivo o tempo é muito mais rápido. Se não tens pausas, é difícil. O mais importante para mim é teres uma narrativa, seja lá qual for.”

Sobre voltar a trabalhar filmes mais narrativos ou figurativos como Fade Into Nothing ou Guanche, projecto para o festival ALESTE na Madeira, que voltou a juntá-lo a Paulo Furtado e à actriz Iris Cayatte, o realizador acrescenta: “Apresentamos na Madeira, no Curtas Vila do Conde, no Porto, e é um projecto que é cinema, música e spoken word. Apresentamos no Curtas e tivemos muito bom feedback. É narrativo, mas também muito experimental. Mas a minha tendência é ir sempre para coisas não narrativas, apesar de haver sempre uma estrutura, como no Janela do Inferno: há uma ideia de percurso, uma narrativa, apesar de ser muito experimental, mas acontece mais quando trabalho com outras pessoas. No Guanche escrevemos um guião e acabamos por fazer uma coisa totalmente diferente.”

Guanche, Pedro Maia ©

Nesse cruzamento de várias disciplinas artísticas, naturalmente, os projectos acabam por vir de impulsos diferentes. O facto de trabalhar num dos últimos laboratórios da Alemanha a fazer todos os processos analógicos (revelação, cópias de cinema, etc.), onde é responsável pelas digitalizações, fez com que fosse à procura de bobines de nitrato, “porque as cinematecas têm, mas aquilo está sempre muito bem guardado, porque é muito inflamável e é difícil ter acesso. E eles disseram-me que tinham lá umas latas. E aquilo eram imagens de um incêndio para aí de 1930, um filme que está completamente destruído, com imagens de um fogo num suporte que é altamente inflamável. E decidi que tinha que fazer alguma coisa com aquilo, uma coisa de 5 minutos, muito simples.”

Berlin Feuer, Pedro Maia ©

Daí nasceu Berlin Feuer (2021), onde a forma se alia ao conteúdo representado, dando origem, pela sua fenomenologia, a um filme-chave e representativo do seu trabalho: “Digitalizei as imagens e estava a trabalhar com elas, mas achei que fazer uma coisa só com found footage, como o Bill Morrison faz, não era suficiente e decidi intervir na película. Muitos dos projectos que faço em película passam por uma primeira destruição. Digitalizo, faço uma segunda destruição, digitalizo, etc. Até quase o original ser perdido. No Guanche tenho isso: imagem limpa até um nível de destruição em que quase não vês nada. Gosto dessa ideia de o que fazes ser irremediável, de fazer os filmes como faço os concertos, com essa qualidade quase efémera.”

O que também ajuda a tornar o seu trabalho particularmente interessante e único é uma despreocupação com purismos desnecessários. Identificar as qualidades latentes dos materiais e suportes com que se trabalha, desafiando-se a expandir as características inerentes ao seu trabalho através dos mesmos, tem sido receita para os seus filmes: “Gosto de articular o digital com o analógico. Uso muito o digital, faço muita coisa em 4K. Não me interessa aquela ideia nostálgica da película ou do antigo. Isso não me interessa. Eu uso a película pela sua plasticidade e propriedades. E no Guanche isso é fixe, porque consigo no mesmo concerto ir de uma imagem muito limpa em que te focas numa imagem muito bem construída de forma cinematográfica e passar para uma totalmente caótica em que quase não vês imagem. O que tenho feito em alguns projectos como o Janela do Inferno é filmar em digital e passar para película. Destruir o analógico e voltar a passar para digital. Ando sempre entre uma coisa e outra. Acho que é isso que dá força ao meu trabalho, porque no cinema tu tens os puristas da película que fazem as cópias e não percebem nada de digital. Depois há a malta do digital que não percebe nada de película. Eu estou confortável nos dois campos e acho que o meu trabalho explora isso e valoriza-se por causa disso. Não tenho aquela coisa nostálgica, mas antes um interesse em intervir na película, seja pós-revelação ou na revelação com químicos, onde mudo os tempos, o PH da água… ou aplico efeitos de solarização como o Man Ray fazia.”

Para além dos espetáculos onde alia as suas imagens à música de outros, essa relação com a música e os seus atributos é também importante nos seus filmes: “Sim, a música acaba por ser uma paixão mais forte do que o cinema para mim, mas não tenho talento nenhum. Mas é aquela coisa de fazer música com imagens. É um conceito a que eu não gosto de me associar tanto, mas é um bocado visual music.” 

A experiência em sala é a imersão nas qualidades materiais e plásticas das imagens criadas pelo realizador e da música a que se associam, numa fruição visual e sonora que não deixa de apelar a descobertas estruturais e narrativas por parte do espectador. Essa relação com a música é transposta também para a própria criação de vídeos musicais que, mais uma vez, se articulam com outros suportes:  “Fiz um videoclipe para o Vessel que se chama Passion, que tinha tanto bom material de 16mm, de stills e tudo mais, mas o Vessel não queria lançar o disco em vinil, por motivos ecológicos. Então decidimos fazer uma fanzine, limitada a 50 unidades, com base nas imagens a 16mm que não foram usadas no videoclipe, para quem comprar o digital ter a fanzine. Depois o dinheiro era doado a uma instituição de mind charity, porque a música tem também que ver com isso. Portanto, a ideia era construir um livro que fosse uma espécie de filme. Esta dinâmica é uma coisa que me interessa muito. Obviamente que o meu trabalho é mais ao vivo e sobre esta ideia de construir coisas que não se repetem.”

Para além de March of Time, Pedro Maia apresenta ainda o videoclipe “Scotch Rolex and Shackleton – Deliver The Soul, na competição de vídeos musicais do 31º Curtas Vila do Conde.

Ricardo Fangueiro

Trazos de Silencio e uma constelação de borboletas – Entrevista com Valentina Pelayo Atilano no Curtas Vila do Conde

Ouvem-se duas vozes, contam-se duas histórias, mas nenhuma personagem é visível em Trazos de Silencio, de Valentina Pelayo Atilano. Na primeira narrativa, ouve-se a voz de Valentina a descrever uma viagem de Uber pela Cidade do México. Na segunda, o actor Lázaro Gabino Rodriguez lê a crónica True History of the Conquest of New Spain, de Bernal Díaz del Castillo, sobre a conquista espanhola do México. Nenhuma das vozes possui um corpo, no entanto, elas ecoam pelas paisagens do filme como a sua matéria sensível e concreta. Sobrepostas uma na outra, o passado e presente que cada uma narra dialogam no filme numa dimensão atemporal, na qual a experiência sensorial predomina e põe em evidência a história colonial no México ao lado da violência de género. 

Nos silêncios quase inaudíveis que interpelam as duas vozes sente-se subtilmente a sugestão da violência que perpassa os dois eixos narrativos em contraste com a beleza das paisagens de Aguascalientes, Altadena, Bakersfield, Cidade do México, Estado do México, San Luis Potosí, Baja California Sur, Tlaxcala e Zacatecas. À índole naturalista destas imagens, compostas por diferentes elementos paisagísticos, combinam-se os sons não naturalistas da passagem de cavalos, da água, de ferrovias, … e a marca dessa violência toma forma, substância, sempre em silêncio. A alternância entre a impossibilidade de ouvir o que se mostra e de nunca se mostrar o que se ouve gera, dentro do filme, uma alteridade, um espaço e uma dimensão outra que abrem uma fissura entre os conceitos “aqui” e “noutro lugar”, passado e presente, conquistador e conquistado, identificados por Raquel Schefer no texto dedicado ao filme. A imagem dessa fissura é povoada por uma constelação de borboletas que representam as deambulações da própria realizadora entre “um ambiente canibalista e patriarcal”, entre o México descrito em True History of the Conquest of New Spain e o México que ela conhece e vive 450 anos depois. Mais do que as diferenças que a passagem do tempo e a história deixou na terra de Valentina e del Castillo, Trazos de Silencio procura na paisagem ferida, comum à experiência de ambos, algum sinal que se projeta para lá da transitoriedade.

A gradual colonização pela escuridão da fissura atmosférica e do espaço visível de Trazos de Silencio é símbolo da realidade pré-colonial em subducção, do desaparecimento da crença ancestral na reincarnação pela sobreposição de um conceito de morte enquanto facto externo à vida, por contraste com o misticismo da morte enquanto facto interno à vida. O duplo estatuto da morte desdobra-se em duas metáforas: a borboleta que inaugura o filme, num estado de passagem da vida para a morte, e os pirilampos que inundam e se movimentam na escuridão da última paisagem, que, mais do que encerrar o filme, deixam no espectador um traço de continuidade da vida. 

Pela sua natureza experimental, igualmente notável no plano narrativo e no plano formal, Trazos de Silencio propõe um outro olhar, uma outra geografia, onde se esbatem as fronteiras entre o pessoal e político e a experiência individual e colectiva se tornam uma e a mesma. Só assim a experiência de del Castillo se projecta na experiência de Valentina e a fragilidade de um ecoa na fragilidade do outro, pois, independentemente dos seus tempos e histórias pessoais, há algo de avassalador que perpassa pelos dois, que não reconhece nem bem, nem mal, nem passado nem presente, a experiência individual da mortalidade. 

Cátia Rodrigues 

Entrevista com Valentina Pelayo Atilano no Curtas Vila do Conde

Vila do Conde, 17 de Julho de 2022

Cátia Rodrigues (CR): Trazos de Silencio teve a sua estreia nacional aqui no Curtas Vila do Conde. O que é que te levou a escolher Portugal e o Curtas para exibir pela primeira vez o teu filme fora do México? 

Valentina Atilano

Em primeiro lugar, quero agradecer o teu interesse e o espaço para refletir sobre Trazos de Silencio, que, não vamos esquecer, é uma co-produção com Portugal e Espanha e que esta foi a primeira estreia do filme fora do México onde estreou no FICUNAM. Talvez deva mencionar que vivi em Portugal algum tempo durante o desenvolvimento do filme e recebi o apoio tanto do espaço de desenvolvimento Arché do Doclisboa como de Elias Quereta Zine Eskola, tendo tido o privilégio de ter como tutora principal do projecto a Salomé Lamas. 

Foi uma honra e muito importante estrear o meu filme no Curtas Vila do Conde, porque é um festival com uma enorme projecção nacional e internacional e um marco entre os festivais de curta-metragens, do qual ouvi falar tanto e tão bem antes, tendo sido incentivada por amigos a enviar o meu filme. 

Outra razão para o Curtas ser tão especial para mim prende-se com a hospitalidade da equipa talentosa e carinhosa do festival e de todos os que tive oportunidade de conhecer, o que torna a vivência do Curtas uma das mais singulares e extraordinárias. 

CR: O teu filme envolveu muita pesquisa, como é possível ver no booklet que criaste para o acompanhar. O que é que motivou essa pesquisa e como é que chegaste ao livro de Bernal Díaz del Castillo, True History of the Conquest of New Spain?

VA: Eu saí do México com nove anos para viver nos Estados Unidos e, por isso, não aprendi na escola a história do meu país. Quando regressei ao México com 26 anos, tudo o que sabia tinha-me sido contado pelos meus pais. Mas não era suficiente para compreender o país onde nasci e para o qual regressei e o porquê de as coisas lá serem como são. Porque seria impossível estudar toda a história do México, decidi começar pelo início e procurar textos e livros pré-hispânicos e aztecas, um povo dizimado pelos espanhóis aquando da conquista do México.  Um dos poucos textos que restavam e retratavam o México como ele era antes da colonização é o de Bernal Díaz del Castillo. Há rumores de que del Castillo era o próprio Cortez, o conquistador espanhol do México, o qual, porque não queria revelar a sua verdadeira identidade, escreveu True History of the Conquest of New Spain sob o pseudónimo Bernal Díaz del Castillo.

O que me atraiu neste livro, apesar de ser uma crónica sobre a conquista espanhola, não foi apenas um “olhar de fora para um território desconhecido”, mas também foi a sensibilidade das descrições de del Castillo, muito sensoriais. Num espanhol antigo, difícil de ler até, o que tornava a experiência ainda mais desafiante e fascinante, ele falava muito do espaço que o rodeava e de como se sentia nele, deixando transparecer uma fragilidade. Por isso, usei-o como bode expiatório da minha própria fragilidade, como se na experiência dele se pudesse revelar a minha. Outros dos motivos que me levou a escolher True History of the Conquest of New Spain foi a diferença da terra que eu e del Castillo partilhamos. O México que estava a redescobrir e que via é completamente diferente do México que encontramos no livro. Perguntava-me – como pode este lugar idílico de então ter desaparecido completamente? Atualmente, o México é um lugar de tensão e fragilidade, especialmente para as mulheres. Neste sentido, fui motivada por colegas e consultores que trabalhavam comigo no filme a juntar à experiência de Bernal Díaz del Castillo, a minha voz, elemento essencial da minha fragilidade.

CR: Foi daí, dessa tensão e fragilidade que encontras agora no país, que surgiu a ideia de acrescentar uma segunda narrativa a Trazos de Silencio sobre uma viagem de Uber na Cidade do México?

VA: Quando regressei ao México vivia-se um contexto de grande violência no país. O desaparecimento de mulheres e violações, algo que era comum noutras partes do México, começava a acontecer com maior frequência na Cidade do México e afectava também a classe média alta. Havia sempre uma amiga, uma amiga de uma amiga, de quem se conheciam histórias por terem sido vítimas de violência de género. Eu não sabia bem como lidar e aguentar esta realidade, tinha medo de que um dia pudessem acontecer-me alguma dessas coisas e acabou mesmo por acontecer a viagem de Uber que eu conto no filme. Penso que terá sido a primeira vez que esse medo ganhou forma na minha vida e fiquei profundamente desiludida por viver numa cidade onde isso poderia acontecer. Pela primeira vez na minha vida sentia-me frágil e essa fragilidade abriu a minha sensibilidade e motivou-me a usar o meu conhecimento, a minha voz. O objectivo do filme é precisamente transmitir estes sentimentos e experiências de fragilidade e medo, mas sempre através da beleza. Não bastava para mim, contudo, ter apenas imagens belas, eu queria poder questionar, através e com elas, o porquê de eu poder usar a minha voz. Eu queria fazer um filme que refletisse a realidade de outras mulheres, no qual esses sentimentos e experiências se tornam, através do cinema, numa experiência colectiva, com a qual, infelizmente, todas mulheres se relacionam em maior ou menor grau. Enquanto artista, acho que é da maior importância discutir estes assuntos e abordá-los no nosso trabalho. Não obstante, a verdade é que me sinto privilegiada por ter tempo e os meios para fazer um filme.

CR: O título do teu filme é Trazos de Silencio, mas nele nunca se “ouve” o silêncio. Porquê?

VA: O silêncio não existe no México. Aliás, o conceito de silêncio não existe em si. O título vem precisamente de traços de memória de um lugar. Há pausas no filme e essas pausas são os seus silêncios. Um exemplo são as imagens do pôr do sol quase no final do filme e a sequência longa e vermelha do pôr do sol no cerro del muerto em Aguascalientes, México. 

No booklet pode ler-se um email do músico Bernardo Feldman, no qual fala de pregnant pauses, como algo que se pode ouvir, mas não ver. Tal e qual como os segredos. Com o Miguel Martins, designer de som, discuti muito o processo de como representar o silêncio ao longo do filme com sons subtis. 

Trazos de Silencio, de Valentina Atilano © Direitos Reservados 

Essa é a abertura do filme, o seu sussurro, com o qual o espectador pode relacionar-se, descobrindo o seu segredo.

O título Trazos de Silencio possui um segundo sentido. É comum prestar-se uma homenagem às pessoas que desapareceram com um minuto de silêncio e foi isso que eu fiz.

CR: Que papel desempenha a paisagem no teu filme? Porquê filmar a paisagem e não, por exemplo, personagens que tornassem visíveis, corpóreas a tua voz e a voz do actor Lázaro Gabino Rodriguez? 

VA: A minha decisão de trabalhar com a paisagem foi muito intuitiva. Antes de começar a fazer cinema, eu vim da pintura, nomeadamente da pintura abstracta. A representação físicade pessoas não me interessa tanto, prefiro os elementos formais, como por exemplo o som e a cor, que é muito importante para mim, que são tão vitais para mim quanto a imagem, como se pode ver na presença do vermelho no filme. Gosto de filmes simples e queria que o meu filme fosse assim. O que há de mais simples e elementar do que a paisagem? A luz é outro aspecto importante. Eu comecei o filme a falar de pirilampos num sítio onde eles não existem até se fazer noite e acabei o filme no mesmo espaço com uma paisagem iluminada por pirilampos, introduzindo o conceito de memória da paisagem. Como é que um sítio é habitado ao longo do tempo? 

Trazos de Silencio, de Valentina Atilano © Direitos Reservados 

Os sons não naturais que ouvimos, como por exemplo as ferraduras dos cavalos, o som do metal das ferrovias, foram sugeridos pelo Miguel Martins quando trabalhávamos juntos durante a montagem, como marcas da evolução do material no tempo, na paisagem, do que desapareceu e do que foi ficando. 

CR: Consideras Trazos de Silencio um filme feminista?

VA: Considero que este filme é um pequeno acto de resistência, porque abrange desde um lugar íntimo a um lugar colectivo, fragmentos de uma realidade onde a opressão patriarcal e a violência de que as mulheres são vítimas é sufocante e, em certo sentido, indissociável da opressão colonial. 

Filmei quase tudo no México, mas editei fora do país, para me afastar do contexto violento que lá se vivia, tendo, no entanto, criado o filme fazendo uso desse mesmo contexto. Na verdade, precisava de alguma distância para conseguir representar a densidade e tensão do México, um país belo, mas ferido. Trazos de Silencio tem essa magia e beleza do México pré-colonização, mas também a violência e fragilidade de hoje, da invasão espanhola e do povo azteca. Escolhi mapear uma complexa constelação de questões e sentimentos passível de ser livremente interpretada pelo espectador.

CR: Por isso é que é tão importante para ti o conceito de paisagem ferida que tão bem se sente e mostra no teu filme?

VA: Sim, paisagem ferida, terra ferida. Outro dos objectivos do filme era contrastar a beleza da paisagem com a ferida aberta do colonialismo e com a fragilidade em que sempre encontramos no filme o próprio Bernal Díaz del Castillo. A presença das borboletas não é senão uma metáfora da fragilidade. Por isso, abri o filme com uma borboleta quase morta, isto é, no momento de passagem da vida para a morte. Num filme marcado por uma presença da morte, a minha voz, o movimento das borboletas são sinais da vida. Mas a parte mais difícil para mim foi descobrir como retratar essa fragilidade através do som, porque eu queria acrescentar uma outra camada, uma outra textura. A presença do som do metal foi uns dos instrumentos importantes para tornar visível essa ideia de terra ferida. 

Trazos de Silencio, de Valentina Atilano © Direitos Reservados 

CR: Dessa noção e da presença da morte forma-se o sentido mítico de Trazos de Silencio? Mítico como uma metáfora que diz respeito tanto à história do México e da sua colonização como também ao actual estado de coisas no país. 

VA: A dimensão mítica serve como uma ponte entre o passado e o presente do México. Antes da colonização, o povo azteca fazia sacrifícios, desmembrando e ingerindo pessoas como uma oferenda aos deuses. Mais do que representar a violência que já existia antes da colonização, no filme manifesta-se, metaforicamente, claro, o canibalismo que ainda pauta a sociedade mexicana contemporânea. Atrás de um país vibrante e incrível, pleno de celebrações, sons e cores, o México foi e continua a ser um país mutilado, e isso faz parte do seu ADN. 

CR: Qual é a razão para teres filmado em três formatos diferentes, 16mm, 35mm e digital?

VA: Vem do acto de preservação, dos limites no momento do filmar em película e do mistério que esse momento encerra. Existe um certo mistério e surpresa associado aos formatos analógicos. Gosto de não ver o que estou a filmar no momento, porque isso me leva a tomar decisões de enquadramento mais emotivas e intuitivas, isto é, o facto de filmar em película ser muito caro, coloca limites que me obrigam a estar segura em relação à intuição do que quero filmar.

Quanto ao digital, a razão foi puramente económica. Filmar em película é muito caro e em algumas situações bastante difícil e demorado. Por exemplo, os timelapses do pôr do sol eram muito longos, tinha mesmo de filmar em digital, assim como os pirilampos, impossíveis de filmar em analógico. Além disso, o cruzamento de diferentes formatos foi uma forma de questionar as fronteiras e ultrapassar barreiras do próprio meio cinematográfico, rejeitando o pressuposto de que para cada filme apenas um formato é adequado. O cinema experimental dá-me essa liberdade. 

Trazos de Silencio, de Valentina Atilano © Direitos Reservados 

CR: Mais do que questionar as fronteiras do meio cinematográfico, em Trazos de Silencio também encontramos uma reflexão sobre o conceito de fronteira, num sentido geográfico, e de terras fronteiriças, que coloca em causa as divisões políticas e territoriais. Consideras que este aspecto é uma consequência da tua geografia pessoal, composta por mais do que um país?

VA: Eu cresci perto das montanhas de Sierra Madre em Pasadena, Califórnia, um subúrbio de Los Angeles, depois da minha família ter deixado a Cidade do México. A diversidade paisagística e geográfica faz parte do meu crescimento. Quando penso nas fronteiras como algo que delimitam um país, lembro-me que a Califórnia fazia parte do México, quando o país ainda era uma colónia espanhola. Além da relação que tenho com ambas as terras, essa foi uma das razões que me levou a filmar parte de Trazos de Silencio na Califórnia. Sentia-me como se não pertencesse a lugar algum, uma imigrante sem terra, navegando numa esfera liminar, como as borboletas, que migram do Canadá para o México. Tudo isto são texturas do meu filme, que, no fundo, é um acto de encontrar solo, pertença, de me enraizar em algo. Como eu o penso, o meio de cinema é universal, e, por isso, o processo de filmagem foi para mim uma forma de me enraizar, não a um lugar, mas em mim mesma, para lá de qualquer território ou fronteira. 

CR: Outra das principais características de Trazos de Silencio é a abertura tanto formal quanto narrativa. O teu filme contém segredos, sugestões, mas nunca um olhar último e definitivo sobre os assuntos que nele abordas, deixando espaço para que o espectador possa construir o seu próprio olhar sobre ele, a sua interpretação. 

VA: Todas as pessoas que vieram falar comigo sobre o filme tinham a sua interpretação, sempre diferente da anterior e, muitas vezes, davam-lhe significados nos quais não tinha pensado ao fazer o filme. O mais importante para mim foi sempre deixar uma impressão em quem vê o filme, de modo a que ele passe a pertencer ao mundo. Trazos de silencio é uma espécie de semente que cresce no olhar do espectador, ele é colectivo e não apenas o meu filme. Neste sentido, a criação transforma-se num perpétuo diálogo, uma conversa entre mim e quem vê o filme, que completa a minha interpretação do mesmo. Inconscientemente, quando falo do filme, como estou a fazer agora, partilho contigo não só a minha experiência de o criar e de lhe dar significado, mas também todas as interpretações e experiências que foram partilhadas comigo. Isto é maravilhoso, pois são elas que mantêm o filme vivo, o tornam, de certo modo, imortal. 

[Foto em destaque: Trazos de Silencio, de Valentina Atilano © Direitos Reservados]

Wetsuit e Aos Dezasseis no Curtas Vila do Conde

Wetsuit, de João Salgado, é, para todos os efeitos, um excelente filme de escola. Tendo sido realizado num contexto de produção exterior a Portugal, para (ou pela) London Film School, o receio de um filme desvirtuado ou “pouco português” era grande, no entanto, e felizmente, verifica-se o contrário. Talvez sejam as saudades do bom ar e mar português.

O filme apresenta não só uma grande capacidade técnica, mas também um grande, ainda que por vezes desagradável, domínio narrativo. Um dos principais erros de Wetsuit é precisamente a grande certeza e segurança que demonstra em todos os planos do filme, até aqueles que porventura não a pedem. A adolescência passa naturalmente por cometer erros, por hesitações e inconsequências, o que acaba por vezes a saber a pouco quando filtrada por uma estética que lhe é tão oposta. A rudeza, infantilidade e, até violência, é-nos ainda assim transmitida, ainda que de outros modos, principalmente através  de  alguns mecanismos narrativos – que se revelam em momentos como o do “pastel-de-rata”, ou do grupo de rapazes a urinar para cima do fato do rapaz, ou, no final  do filme, com o rapaz a  desaparecer em direção ao mar de prancha na mão. O filme estabelece que algo de mau está ou vai acontecer, no entanto, isso não é suficiente, o incómodo não reside na insinuação, reside no confronto. Com efeito, é nestes três momentos de acção-reação que o filme se foca – três histórias, três rapazes, três fases diferentes da adolescência, três respostas ao confronto. A identidade fílmica gira em torno dessa adolescência surfista, do wetsuit (embora isso sirva mais como cenário/ambiente do que como motor da história, ainda que também o seja, quer isto dizer que o filme funcionaria noutro contexto). Por ser curto e divido em três, os desperdícios são minimizados, não há cenas a mais, nem momentos desnecessários (como a carrinha a arder em Punkada), talvez até se justificassem mais momentos, mais filme – como por exemplo na 3ª parte, quando o rapaz, com dificuldade, veste o fato, momento que talvez justificasse mais demora no plano, para figurar uma maior frustração, mais física e determinada e menos simbólica. O mar joga, obviamente, um grande papel na curta, não só como lugar paisagístico, mas sobretudo como lugar afetivo – uma permanência e uma imanência. Um caos organizado que medeia sempre um antes e um depois, que primeiro separa para depois voltar a juntar.

Aos Dezasseis

Aos Dezasseis, de Carlos Lobo © Olhar de Ulisses

Aos Dezasseis, curta-metragem de Carlos Lobo, vencedora do prémio de Melhor Realizador Kino Sound Studio, acompanha Sara, uma adolescente que busca o seu lugar de pertença na comunidade. O filme inicia-se com um plano expectante e cheio de potencial, que subtilmente transmite o conflito do filme – enquanto um grupo de jovens dança, Sara observa, isolada. Se, no entanto, o filme começa com um excelente plano (que o júri do Curtas revelou ser dos melhores planos de abertura vistos no festival), o restante filme desilude, ficando preso na repetição já estabelecida no primeiro plano, com pouco ou nenhum desenvolvimento narrativo. Engraçado será notar que este não é um filme que se foque na acção, focando-se antes na observação da acção – Sara não age nem reage, apenas observa – embora numa perspectiva teórica esta possa ser uma subversão cheia de potencial. O filme parece nunca chegar a cumprir o seu destino, criando portanto uma personagem à mercê da tirania da realização, para sempre presa num impasse, não por falta de capacidades, mas por falta de tempo. Com efeito, o filme é demasiado curto para nos mostrar uma imagem clara de Sara e do “seu” ambiente, revelando antes um universo insípido e desinteressante, não devido a uma escolha estética com o objectivo de transmitir o desinteresse do mundo em si, mas por aparente negligência cinematográfica. Sara é uma protagonista desinteressante por dois motivos: primeiro, por ser uma personagem passiva, que apenas observa silenciosamente; em segundo lugar, por ser completamente unidimensional, quer isto dizer que Sara parece apenas sentir uma única emoção, a de des-pertença, acompanhada por uma única resposta, ir. A protagonista acaba onde começou, calada no seu canto, no entanto, este não parece ser um problema causado por si, mas antes por uma narrativa fechada a sete chaves, apesar do seu final aberto. Ainda que essa abertura seja ilusória pois não são dados elementos suficientes para o espectador imaginar o que poderá acontecer para lá do filme, encerrando então a narrativa diegética e extradiageticamente. Aos Dezasseis, tal como Wetsuit, também se divide em três, neste caso três cenas de um mesmo dia: a escola, o parque de skates e o concerto. Uma progressão que nos leva desde o início do dia, até ao seu fim, sem que nada mude, sem acasos, sem eventos, sem nada a não ser Sara a observar. Sem subversões de estilos, quer de narrativa, realização, montagem, etc, Aos Dezasseis é um filme que, apesar de um bom inicio, cai por terra.

Diogo Albarran

[Foto em destaque:  Wetsuit, de João Salgado © Direitos Reservados]

Fogo-Fátuo: Fantasia e Sátira para Abalar Mitos

Era um dos momentos mais aguardados do festival e Fogo-Fátuo não desiludiu na hora da sua estreia nacional no encerramento do 30º Curtas Vila do Conde. Como comédia que se assume, o filme cumpre eficazmente o seu propósito se o barómetro são as gargalhadas ouvidas na sala. Arrojado em todos os sentidos, Fogo-Fátuo é mais um passo na vontade de João Pedro Rodrigues avançar naquele que é o cinema em que acredita: um cinema despojado de barreiras e fórmulas gastas, selvagem, lascivo e arriscado.

Esta “fantasia musical” do realizador de Fantasma (2000), Morrer Como um Homem (2009) ou O Ornitólogo (2016), conta a história de um rei no seu leito de morte, no longínquo e, quiçá, erótico ano de 2069, onde aquele recorda a sua juventude, época em que se voluntariou para ser bombeiro e conheceu Afonso. Memórias essas que são desencadeadas por um carrinho de bombeiros esquecido com que o seu sobrinho-neto brincava no quarto.

Fogo-Fátuo, João Pedro Rodrigues © Terratreme Filmes, House On Fire, Filmes Fantasma

Divertido e docemente satírico, a leveza do filme deve-se, não à ligeireza da sua narrativa, mas à forma descomprometida com que olha as várias temáticas que apresenta. Seja o lado monárquico da família de Alfredo; os traumas da história colonial; a classe, cor e sexualidade dos protagonistas; ou os mitos fundadores da portugalidade e todos os preconceitos inerentes, o filme aborda tudo isso com um humor agridoce, limitando-se a expor as singularidades da cultura portuguesa. Sem medo de pôr o dedo na ferida, fá-lo (passe o trocadilho) de forma suficientemente subtil e satírica para o fazer adquirir essa delicadeza. Para além do riso provocado, que numa comédia deverá ser o elemento central à experiência do espectador, há esse subtexto sobre toda a relação que temos com a nossa cultura e as nossas referências. 

É num momento cerimonioso de refeição, perante os elementos da sua família vergada à ideologia monárquica, que Alfredo, com as notícias dos incêndios em Portugal a ouvir-se na televisão, partilha a sua vontade de ser bombeiro, levando à gargalhada desenfreada da sua mãe. Contudo, o príncipe leva a sua decisão a sério e já no quartel mostra toda a sua ingenuidade na entrevista com a comandante que acaba por lhe apresentar Afonso. É este que o leva até aos balneários dos bombeiros onde, desnudados depois do serviço, interpretam e reconstituem pinturas, supostamente famosas, para testar o conhecimento de Alfredo, também estudante de história de arte, numa sequência de planos eróticos em que os corpos masculinos se entrelaçam em poses sexuais e viris. De grande efeito cómico pelo absurdo daquele jogo, a cena prepara-nos para a diversão descomprometida, mas comovente da história daquele casal. O desejo e a liberdade dos dois bombeiros contrastam com a pose empedernida da burguesia representada no filme.

Ao longo do filme, João Pedro Rodrigues vai cruzando uma série de músicas do imaginário português e apresenta-as em sequências vincadamente cómicas, como é o caso da música Uma Árvore, Um Amigo de Carlos Paião interpretada por Joel Branco (que interpreta o rei em fim de vida) onde se sublinha a preocupação com os incêndios que invadem o país e todos os problemas associados às alterações climáticas, sendo que é essa preocupação que está na origem da vontade de Alfredo ser bombeiro. A dada altura, o príncipe encarna mesmo Greta Thunberg e cita o seu famoso discurso na Conferência das Nações Unidas.

Outra das músicas presentes no filme é o fado de Amália Mané Chiné que ouvimos durante a cena em que as duas personagens principais se envolvem sexualmente. Sequência marcante, tanto pela dança que a câmara faz em redor dos corpos nus como pelo arrojo das representações e humor presente no diálogo. Apesar de neste contexto a música de Amália ganhar uma certa leveza e comicidade tendo em conta as particularidades da sequência, a letra tem tanto de cómico como de problemático. A juntar-se a estas, há ainda ctrl + C ctrl + V dos Ermo na virtuosa coreografia no quartel e um fado final interpretado por Paulo Bragança no funeral do rei.

Fogo-Fátuo, João Pedro Rodrigues © Terratreme Filmes, House On Fire, Filmes Fantasma

Nas danças, na música, na aproximação à caricatura, na fuga ao verosímil nos cenários de 2069 e sob a fotografia de Rui Poças e a direção de arte de João Rui Guerra da Mata, Fogo-Fátuo oferece-nos cenas e diálogos com potencial para se inscreverem na história do cinema português, tornando-o um divertimento ao nível do mais engraçado que o cinema português nos vem dando desde João César Monteiro, Miguel Gomes ou Gabriel Abrantes. Ainda assim, e apesar de se louvar a tentativa de encontrar novas metragens e desconstruir formas, talvez seja inevitável sentir no filme uma certa fragilidade por não ser nem uma curta-metragem nem uma longa consistente e suficientemente densa, deixando a sensação que o filme tinha potencial narrativo para mais. 

Tocando com ironia nos traumas da portugalidade, expondo a sexualidade e o erotismo sem tabus, o filme faz-nos olhar para temas decisivos da atualidade usando a comédia à maneira de Lubitsch: subtil e incisiva. Fogo-Fátuo leva-nos a desejar mais e a pedir que João Pedro Rodrigues volte rapidamente a presentear-nos com o seu cinema.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Fogo-Fátuo, João Pedro Rodrigues © Terratreme Filmes, House On Fire, Filmes Fantasma]

O cinema no nascimento da mundividência de Carla Simón

A obra de Carla Simón, que a 30ª edição do Curtas Vila do Conde dá a ver naquela que será possivelmente a primeira exibição de toda a obra de Carla Simón em Portugal, começa com Mujeres (2009) e com mulheres, acerca de mulheres, pelo olhar de uma mulher se distingue e cria uma mundividência própria. Um olhar que serve de mediação entre o pessoal e político, inscrevendo o primeiro no último através das diferentes faces do seu cinema. As múltiplas formas dessa inscrição, que a cada filme conhecem uma nova história, uma nova exploração imagética, têm em comum a família, como força gravitacional do movimento vital das mulheres que Simón filma, lembra, imagina, preserva, ama. 

Llacunes, de Carla Simón © Direitos Reservados

Entre a ficção e o cinema de cariz experimental, a realizadora deixa sempre entrever algo da sua história pessoal, algo do seu ser mulher no mundo, em relação com o mundo e com outras mulheres, que entrelaça com o seu conhecimento da história do cinema, das possibilidades da linguagem cinematográfica e dos infinitos significados que com ela se pode gerar. Mujeres é o nascimento de um corpo cinematográfico que vai começar pelo solo, como se do corpo da mulher nele deitada nascesse o mundo e o (seu) cinema. A expressar uma ideia de começo, a montagem e a estética do filme fazem lembrar as primeiras vanguardas cinematográficas. Simón irá repetir o exercício experimental em Llacunes (2016) e, mais tarde, em Correspondencia (2020). Llacunes concretiza o pressuposto do cinema como uma possibilidade de materialização da memória, recuperando imagens da mãe biológica, Carla Simón repete as suas viagens lendo as cartas que ela escreveu. Como se o filme pudesse transformar a ausência da mãe numa voz, numa imagem e ocupar a lacuna entre a vida e a morte, unindo-as, aproximando-as, ao som de um saxofone, talvez a única presença tangível do filme. Também dotado de um cunho pessoal é Correspondencia, um objecto de partilha entre Carla Simón e a realizadora chilena Dominga Sottomayor, construído em torno do que contam uma à outra de si próprias, das suas famílias e do ofício de ambas, o cinema. De longe a mais madura das suas curtas-metragens, Correspondencia dá continuidade ao tema mais presente na obra de Simón, a ausência que a morte impõe, ausência essa que assume sempre o rosto da mãe, que voltamos a rever nas mesmas imagens de vídeo inaugurais de Llacunes. No quotidiano que mostram uma à outra e que o filme nos mostra, a dimensão pessoal da sua conversa confronta-se com a situação política do Chile experienciada por Dominga Sottomayor. Neste momento, o filme sofre uma fractura profunda e a harmonia que pautava o início da conversa entre elas transforma-se numa distância intransponível entre a vida e a obra de cada uma. Das imagens de arquivo das suas famílias, das suas casas, das histórias de amor passadas e presentes, só retemos na memória a sua beleza. Mas dos protestos no Chile, com os quais o filme termina, ainda permanece a violência, que nos atira para a consciência da impossibilidade de separar o que é pessoal do que é político, sob o risco de desvincularmos o outro da construção e da expressão da nossa subjetividade.

Las Pequeñas Cosas, de Carla Simón © Direitos Reservados

Do lado da ficção, Simón realizou, antes de Estiu 1993 e Alcarràs, duas longas-metragens também ficcionais, Batom (2013) e Las Pequeñas Cosas (2014). De Batom pouco ou nada há a dizer, para lá daquilo que o filme não excede ou ultrapassa, o estatuto de filme de escola, mesmo que nele a presença da ausência perante a vulnerabilidade da infância, que tanto fascina a realizadora, vá ganhando densidade. Las Pequeñas Cosas, por sua vez, é a primeira das curtas a introduzir o contexto familiar no núcleo do filme, que se irá desenvolver em torno da difícil relação entre uma mãe e filha. A espera de um terceiro filho, cuja notícia da vinda desencadeia um processo de preparação da casa onde ambas vivem para o receber, é o mote narrativo do filme, a partir do qual cresce um jogo de aproximações e distanciamentos entre mãe e filha, à medida que a amargura que cada uma sente em relação à outra se torna evidente. Sem catarse, a interminável espera acaba por culminar numa resignação não só das duas mulheres, mas do próprio filme, algo que se irá repetir no final de Alcarrás (2022). O construir de tensões no qual assenta o desenvolvimento da narrativa do filme parece não conseguir completar-se, como se mais não se pudesse fazer do que assumir que o filme é isto e não pode ser mais nada. 

A infelicidade dos finais de Las Pequeñas Cosas e de Alcarrás, a falta de graça e maturidade das primeiras curtas-metragens, Mujeres e Llacunes, demasiado condicionadas por códigos de género ou regras de estilo da tradição cinematográfica em que se inserem, tornam o conjunto de curtas-metragens de Carla Simón, à excepção de Correspondencia, não por acaso uma co-realização, pouco impressionante. O mesmo não acontece com as suas longas-metragens, que expandem, sobretudo Alcarràs, para terrenos mais férteis, o que até então ainda não tinha conseguido florir – um olhar feminino e feminista que Carla Simón subtilmente e com a medida certa de sensibilidade mostra numa teia de relações nas quais esse olhar ainda é invisível. 


A última sessão do Curtas Vila do Conde dedicada à realizadora acontece no Domingo, às 16H00, com a exibição de Estiu 1993.

Cátia Rodrigues

[Foto em destaque: Correspondencia, de Carla Simón © Direitos Reservados]

Take One! and… Action

A segunda sessão da competição Take One! arranca com o filme 61-63, de Ricardo Santos, um filme-correspondência, composto por fotografias e cartas que um soldado na Guerra do Ultramar envia para Portugal. Por entre as típicas fotografias de guerra vai-se instaurando o trauma, o punctum deste filme, um assombro a negro que divide os fotogramas/fotografias, que os trespassa e impõe o ritmo ao filme.

O segundo filme, PUNKADA, de Gonçalo Ferreira, vencedor do prémio Sophia Estudante-Cinema na categoria de melhor curta-metragem de ficção, acompanha Xico, um músico punk, e a sua banda, os Biqueira d’Aço, num típico caminho de sexo, drogas e rock&roll, que eventualmente leva à autodestruição da banda. Caótico, devasso e decadente, PUNKADA é um vislumbre sobre a ruína e ressaca de uma “qualquer” banda punk.REMINISCÊNCIAS DE UMA PAISAGEM DE INVERNO, de Lucas Tavares, é a última, e a mais longa, das três curtas-metragens. É o segundo projecto de cinema de paisagem do realizador – que em conjunto com o primeiro, Cores de Outono, sugere uma possível série sobre as quatro estações. Onírico, amplo e sereno, traz-nos a serra da Freita através de uma lente que não procura, mas antes espera, pela imagem.

61-63, de Ricardo G. Santos © Direitos Reservados

61-63, realizado em âmbito académico para a Escola Superior de Teatro e Cinema, é uma experimentação sobre o filme de arquivo, recolhendo fotografias e cartas trocadas por um casal durante a guerra do Ultramar. O filme pretende aproximar o papel do espectador ao do destinatário, tendo para isso que arranjar um modo de superar o privilégio da montagem (enquanto os destinatário tinham por vezes que esperar semanas ou meses entre correspondências, a montagem permite condensar essa espera). Neste sentido,  compensa a ausência dessa ansiedade provocada pela espera, com outras ausências, como, por exemplo, da linearidade. A cronologia de fotografias e cartas é, por esse motivo, remontada num esquema de desterritorialização e reterritorialização, que pretende reaproveitar os materiais não com um foco narrativo/cronológico, mas com um foco afectivo. Fragmentário, quer em imagem, quer em som, apresenta uma coleção de fotografias, descrições dessas mesmas fotografias e leituras da correspondência de guerra entre um casal. Acompanhamos então os fragmentos, os interstícios de uma guerra, os momentos possíveis para fotos e cartas. A guerra existe só nas sombras, só a vemos, porque não a vemos, sendo, por isso, remetida para um espaço fantasmático, de assombro, que se manifesta no filme através da narração e do desenvolvimento do trauma – quem vai, não é quem volta. O trauma é então figurado no negro, que rompe as imagens, umas vezes acompanhado por silencio, outras por narração e outras ainda por sons de bombardeamentos e tiros. Esta rutura serve um propósito duplo: o primeiro, como já mencionei, é a figuração do trauma, o segundo é a exploração dos potenciais da montagem de filmes de arquivo fotográficos.  Para além do negro, na estrutura também se revelam outras qualidades oníricas, a partir dos fades, que servem como compressão atemporal (sintoma da alienação); dos cortes diretos, porventura momentos de maior claridade por entre o caos da guerra, onde se torna possível relacionar, por exemplo, uma fotografia com a mensagem escrita no seu verso (contextualizações simultaneamente necessárias e desnecessárias); e do overlapping, que, ao misturar as imagens, nos permite melhor compreender a alienação temporal dos soldados na guerra, que começam a ter dificuldades em singularizar os momentos, tornando-os mutantes, misturas entre o sonho e o real. A guerra só entra “directamente” em palavras, em mensagens de desespero, onde transparece (também pelo trabalho de voz do próprio realizador), a culpa de quem estava só a “seguir ordens”.

 Punkada, de Gonçalo Barata Ferreira © Direitos Reservados

Punkada, pouco ou nada acrescentou, em termos de programação, aos outros dois filmes, que em vários aspectos se aproximam (pela utilização do arquivo, de fotografias, da banda sonora onírica, etc). O projecto da Lusófona, tendo em conta as condições de produção e a imagem invejável, ainda por cima filmado a película, Super16, fica muito aquém das expectativas, principalmente depois de receber o prémio Sophia Estudante-Cinema. O filme tenta embrenhar o espectador na espiral de loucura da banda Biqueira d’Aço, presumidademente alimentada por drogas. Ainda que o filme utilize um dispositivo inteligente para o fazer, a atemporalidade das cenas entrecortadas, este acaba por se tornar demasiado desconexo, mostrando apenas fragmentos quase irrelevantes e sem significado – todos os estereótipos que se esperam de uma banda punk . Aqui se encontra o cerne dos problemas de Punkada, que comete o típico erro de quebrar as regras sem as conhecer primeiro. Não só devido à importância teórica, mas também de modo a reduzir custos, maior parte das escolas de cinema em Portugal dão muito valor às técnicas clássicas (pelo menos nos inícios dos cursos), deixando as transgressividades para mais tarde. A Lusófona, porventura por não ter que se preocupar com poupanças, parece ignorar todas as regras da narrativa, o que leva a um filme desmembrado, desinteressante e pouco inteligível – uma oportunidade perdida. Acrescento o desperdício que é trabalhar com atores ótimos só porque se pode, num filme que não só não o requer, mas não dá sequer espaço aos seus atores para brilharem. Com toda a atenção mediática, dinheiro gasto e meios de produção invejados pelas restantes escolas de cinema do país, seria de esperar que a Lusófona conseguisse produzir o cinema de mais alta qualidade. No entanto, e de acordo com as tendências atuais das suas últimas produções, a escola parece continuar a apostar tudo numa boa imagem sem consideração algumas pelos muitos pontos fracos que continuam a ser notados filme após filme. 

Reminiscências de uma paisagem de inverno, de Lucas Tavares © Direitos Reservados

Reminiscências de uma paisagem de inverno é a segunda excursão (literal) de Lucas Tavares no cinema de paisagem. Produzido pela Universidade da Beira Interior, traz-nos um cinema raro para filmes de escola, metódico, narrativamente desinteressado e com um grande pendor experimentalista. A sensação que transparece é a de um trabalho ainda em construção, mais um passo num caminho que Lucas vai desbravando, aprendendo através do contacto, como o camponês sedentário de Benjamin. A beleza visual é impressionante, revelando o ambiente místico e onírico dessas paisagens desabitadas, às quais só acedem os seres errantes ou vagabundos. A câmara, sensível e paciente, não procura a paisagem, espera por ela. Céu, montanha e vento digladiam-se como só nessas paisagens o fazem, longe do olhar humano. Desta vez, no entanto, um espectador quase invisível na enorme amplitude da serra, capta a vagarosa batalha. O trabalho excepcional de Lucas em termos imagéticos não poderia existir, no entanto, sem as suas negligências. A montagem, “narrativa” e trabalho sonoro ficam aquém do que as imagens pedem. Com efeito, o trabalho conceptual do filme-paisagem é colocado numa posição secundária quando comparado com o excelente trabalho técnico. No entanto, Reminiscências de uma paisagem de inverno é, sem dúvida, um passo acertado, tendo provado o domínio técnico no inverno, esperemos por uma primavera mais consciente e intelectualmente arriscada.

Diogo Albarran

[Foto em destaque: Reminiscências de uma paisagem de inverno, de Lucas Tavares © Direitos Reservados]

Curtas Vila do Conde: Panorama Nacional, Um Bom Aperitivo

Fora da chamada Competição surge a possibilidade de ver alguns filmes portugueses que se destacaram já por outros festivais internacionais e que têm aqui a possibilidade rara de, mais uma vez, serem vistos no grande ecrã. Um privilégio para os realizadores e sobretudo para os espectadores que, dessa forma, têm acesso em sala ao cinema de curtas-metragens, bastante limitado pelas suas características de distribuição.

O Homem do Lixo, Laura Gonçalves © Bando à Parte

O  Homem do Lixo de Laura Gonçalves é a história do almoço de uma família portuguesa e das peripécias do “tio Botão”, que esteve emigrado em França na época da ditadura salazarista, onde trabalhou como homem do lixo. Num registo de animação de traços elementares, o filme tem a capacidade de nos agarrar à comicidade e intimidade contidas nas histórias que nos são contadas por aquelas pessoas. Pessoas essas a quem a realizadora fez questão de dar literalmente voz, recorrendo a áudios gravados das conversas de família, partindo desse fascínio que sentia pelas histórias que ia ouvindo dos seus familiares. Ficamos assim a saber das histórias do seu tio na guerra colonial e da mala cheia de abacaxis, única coisa que trouxe da guerra. O cinema de animação continua a mostrar ser um meio único para expressar sentimentos comuns a todos através da força visual dos traços animados que podem simbolizar qualquer família e qualquer lugar. Este é um filme terno, doce, familiar, um importante registo da memória daquelas pessoas e testemunho de uma era socialmente e economicamente conturbada que precisa de ser olhada e pensada.

A curta de Pedro Neves Marques, Tornar-se um Homem na Idade Média, mostra-nos dois casais na casa dos trinta anos: Mirene e André, um casal que procura resolver os seus problemas de infertilidade, e Carl e Vicente, que se submetem a uma técnica experimental para que seja possível a Vicente ter um filho de Carl. Filme arriscado, mas que agarra o espectador logo desde o início pelo dilema moral que é imposto a André, vegetariano, a quem propõem comer um pedaço de carne, feita totalmente em laboratório, desafiando a lógica daquele, pois neste caso nenhum animal foi morto para a produção daquela carne. Contudo, garantem-lhe, aquilo é carne verdadeira. Logo percebemos no filme a sua dimensão de ficção científica, futurista ou nem tanto, em que a ciência e as práticas de laboratório prometem encontrar soluções para muitos dos problemas da sociedade atual, num filme de diálogo e premissas científicas, visualmente apelativo tendo a paisagem lisboeta como pano de fundo. O filme vai revelando a sua força no ritmo sereno e pautado com que nos vai dando a conhecer as angústias e desejos das personagens, e na forma como transporta o espectador para essa sociedade rendida aos milagres da ciência. Tornar-se um Homem na Idade Média prende-nos à sua extensão especulativa e a todo o potencial pensamento provocado pela sua narrativa não normativa.

Azul, Ágata Pinho © Uma Pedra no Sapato

Azul de Ágata Pinho é um filme ambicioso com uma narrativa entre o onírico, o consciente e o inconsciente. Uma obra do corpo, da sua fisicalidade e da sua relação com os elementos. Ara, interpretado pela própria realizadora, acredita que vai desaparecer no dia do seu vigésimo oitavo aniversário e a sua existência física é o centro do filme – obsessão da câmara que a persegue. A partir da crença no seu desaparecimento, o filme é uma busca da personagem pelas “sensações mais elementares da existência na água, no sol e no sublime”, visualmente marcado pela presença da cor azul nos cenários, no guarda-roupa, objetos e elementos. De caráter autobiográfico, mas de “roupagem ficcional”, esta primeira aventura na realização de Ágata Pinho, tem a sua maior força na forma como filma o corpo, fazendo lembrar, por vezes, o body horror do cinema de Julia Ducournau. As particularidades da personagem, que parece ir em busca de apaziguar o seu estado emocional, e a relação que mantém com o seu corpo, fazem deste, um filme a ser sentido e experienciado na sua especificidade.

By Flávio, Pedro Cabeleira © Kometa Films, Primeira Idade

A fechar a sessão esteve a curta de Pedro Cabeleira, By Flávio, que nos mostra Márcia, uma mãe com ambição de ser uma influencer digital que conhece um rapper e marca com este um encontro num shopping. Não conseguindo ninguém para tomar conta do seu filho, vê-se obrigada a levá-lo com ela. Obra audaz, formalmente ousada, que procura novos dispositivos narrativos e sem receio de parecer uma caricatura dos nossos tempos, By Flávio destaca-se pelo seu humor, em particular na cena muito bem conseguida, pelo lado cómico que gera, em que o rapper explica, de forma entusiasmada e elétrica, as suas ideias para o novo videoclip em que ela será a protagonista, mostrando toda a sua excentricidade que mistura Lamborghinis, cenas no Dubai (que na verdade serão filmadas em Xabregas com chroma key), body sushi e shotguns. O que vai parecendo evidente é que o filme de Cabeleira está longe de ser uma caricatura dos nossos tempos em que a vaidade presente nas redes, o lugar do telemóvel enquanto espelho social e a interface de Instagram representada na tela de cinema, parecem cada vez mais um elemento onde nos revemos e conseguimos encontrar fortes doses de realidade.

Numa amostra diversificada do que se tem feito por cá, não surpreendendo nem desiludindo, o Panorama Nacional mostrou filmes capazes e imprescindíveis, conseguindo deixar água na boca para o resto do festival.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Tornar-se um Homem na Idade Média, Pedro Neves Marques © Foi Bonita a Festa]

Curtas Vila do Conde: Alcarràs, Terra firme, Casa amada

Foi com a estreia nacional do filme Alcarràs de Carla Simón que decorreu a sessão de abertura oficial do 30º Curtas Vila do Conde. A projeção do último trabalho de Simón, premiado na Berlinale com o Urso de Ouro, não só marca o início do festival como do programa In Focus, dedicado este ano à realizadora catalã que, por ter sido mãe há poucos dias, teve presente no festival através de videochamada para uma conversa com o público no final da sessão.

Também à distância na apresentação do filme, a realizadora fez questão de falar sobre o desaparecimento do tipo de agricultura familiar que é apresentado na obra, face ao crescimento da agricultura industrial financiada por grandes empresas que ameaçam engolir todo o mercado e tornar insustentável a forma de subsistência destas famílias. O modelo familiar de trabalho representado em Alcarràs e esse mundo que tende a desaparecer é um ponto central para toda a tensão existente na narrativa e nas relações entre as personagens.

Alcarràs acompanha os Solé, uma família de agricultores e produtores de pêssegos que se deparam com a possibilidade do fim do seu negócio. O atual dono das terras vê ali o lugar ideal para a instalação de painéis solares, o que obriga a família a repensar o seu futuro e a abandonar as terras que estavam sob a sua posse desde a guerra civil espanhola. O facto da tecnologia que se pretende instalar ali ser benéfica e até urgente para o planeta, de forma a combater o avanço das alterações climáticas, torna mais complexo o dilema moral presente no filme. O que parece é que a evolução das tecnologias e das formas de produção provocam certos problemas para os quais nós, enquanto sociedade, teremos que encontrar soluções.

Carla Simón explica que a vontade de fazer este filme nasceu quando o seu padrinho morreu e, querendo ela valorizar o seu legado, percebeu que aquelas plantações de pêssegos não durariam para sempre e daí surge a urgência de filmar aquele lugar e aquelas pessoas. Simón refere que o filme é “um retorno à infância e uma reivindicação de um espaço de encontro familiar”.

Alcarràs, Carla Simón © Avalon PC, Elastica Films, Vilaüt Films

Essa incidência no ponto de vista familiar, através de um trabalho minucioso e eficaz feito com não-atores, habitantes da aldeia que não deixam de nos admirar com as suas atuações, fazem o filme aproximar-se bastante da realidade autobiográfica que a realizadora procurava. O que se destaca, de forma particular, em Alcarràs é essa capacidade para filmar as pequenas histórias e momentos do quotidiano,  a infantilidade dos adultos que pensam ver ovnis, as suas zangas e fúrias, as preocupações corriqueiras do quotidiano até às manifestações daqueles trabalhadores revoltados e às brincadeiras do trio de crianças, que a câmara de Simón vai captando subtil e atentamente, quando aquelas roubam melancias e destroem hortas. É justamente aí que residem os momentos mais belos do filme, pela ternura que emana das suas brincadeiras e fantasias.

Contudo, o filme parece não ter um momento verdadeiramente explosivo, de catarse narrativa, fazendo com que a luta e urgência moral pelo modo de subsistência daquelas pessoas se pareça esvair de forma resignada, devido a essa tal complexidade do problema. Também a sua forma, intimista, de câmara à mão, inspira-se no cinema de maior realismo social com certos vislumbres de neorrealismo italiano, que aqui serve de inspiração visual e ética. 

É justamente a forma como este modelo de agricultura é visto no presente que provoca essa vontade de olhar a memória daquele tipo de vida e trabalho através de episódios entre o cómico e o dramático. Ainda assim, os últimos planos, com a família resignada a ver o monstro-máquina invadir as suas vidas, são suficientemente fortes para nos deixar uma boa sensação final. 

Alcarràs acaba por ser, nas palavras da realizadora, a crónica de uma morte anunciada, uma impossibilidade de lutar contra a evolução difícil, mas necessária, onde deve pousar um olhar atento e responsável para que seja possível encontrar as respostas desejadas face aos problemas de todos. Uma homenagem sentida à “terra firme, casa amada” como se canta a dada altura, e à nossa dependência dela.

O programa In Focus, dedicado à realizadora Carla Simón, continua esta quarta-feira com a exibição das suas curtas-metragens.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Alcarràs, Carla Simón © Avalon PC, Elastica Films, Vilaüt Films]

30º Curtas Vila do Conde: Mar, Fogo e Marshmallows

É já no próximo sábado, dia 9 de julho, que decorre mais uma edição do Curtas Vila do Conde. Depois de dois anos a meio gás, com restrições e máscaras, o festival parece regressar em pleno e cheio de força para celebrar a sua 30ª edição. Num tempo em que os festivais parecem ser, cada vez mais, a principal forma de atrair o público para a esfera do cinema autoral, é preciso reconhecer a importância que esses foram adquirindo no contexto da distribuição de cinema. O Curtas que, desde 1993, vem tendo um lugar de destaque na exibição do que se faz por cá e lá fora a nível de curtas-metragens, chega revitalizado e com um programa prometedor, sendo vários os momentos que devem servir de mote para qualquer cinéfilo se encaminhar a Vila do Conde entre os dias 9 e 17 de julho.

Para celebrar as três décadas de existência, o Curtas desloca-se, de forma simbólica, a 30 locais do concelho de Vila do Conde onde leva centenas de filmes, exposições, conversas, festas e filmes-concerto. Num modelo itinerante, pretende levar à descoberta de lugares como o mercado das Caxinas, onde será projetado o filme Obrigação de João Canijo (encomenda do festival em 2012), ou a casa-museu José Régio, onde decorrerá a exposição Teorema de Laurent Fievet. 

Saudade do Futuro, Anna Azevedo Gomes © Hy brazil filmes, Pixbee

A abrir o festival estará o filme vencedor do Urso de Ouro em Berlim, Alcarrás de Carla Simon, autora a quem é dedicada a secção In Focus deste ano. A cineasta catalã é já um dos nomes a reter do cinema espanhol e europeu, sendo esta é uma oportunidade imperdível para ver as suas curtas-metragens, assim como a sua primeira longa-metragem Verão 1993, curiosamente o verão em que o festival nasceu. 

Como já é habitual o festival aproveita ainda a secção Da Curta à Longa para a estreia nacional de alguns filmes, como é o caso de Saudades do Futuro de Anna Azevedo Gomes ou do filme que marca a sessão de encerramento, Fogo-fátuo de João Pedro Rodrigues. A comédia musical sobre um príncipe que sonha ser bombeiro teve estreia mundial na Quinzena dos Realizadores em Cannes e é mesmo um dos grandes destaques desta edição. Ainda no programa Da Curta à Longa, volta ao festival o cineasta Nadav Lapid com O Joelho de Ahed.

Fogo-Fátuo, João Pedro Rodrigues © Terratreme filmes

Na competição internacional, a mais antiga do festival, destaca-se o regresso de realizadores já conhecidos do Curtas como o romeno Radu Jude, que apresenta The Potemkinists, o francês Yann Gonzalez que mostra Hideous e o malaio Tsai Ming Liang que apresenta no festival Liang ye bu neng liu.

Entre estreias nacionais e mundiais, a competição nacional traz-nos, mais uma vez, uma seleção criteriosa do que se fez em Portugal nos últimos tempos. É o caso, por exemplo, de estreias nacionais como o filme Aos Dezasseis de Carlos Lobo, Ice Merchants de João Gonzalez, a já assídua presença no festival de David Doutel e Vasco Sá que estrearão Garrano, Skola di Tarafe de Sónia Vaz Borges e Filipa César, e ainda See You Later Space Island de Alice dos Reis. Em estreia mundial o Curtas passará O Casaco Rosa de Mónica Santos, O Teu Peso em Ouro de Sandro Aguilar, de Margarida Vila-Nova (atriz que se estreia na realização), Saturno de Luís Costa e André Guiomar, Uma Rapariga Imaterial de André Godinho, As Sacrificadas de Aurélie Oliveira Pernet, Heitor sem Nome de Vasco Saltão, Raticida de João Niza Ribeiro e Segunda Pessoa de Rita Barbosa.

Já a secção Panorama Nacional dará oportunidade àqueles que visitarem o festival vila-condense de ver O Homem do Lixo de Laura Gonçalves, Azul de Ágata Pinto, Tornar-se Um Homem na Idade Média de Pedro Neves Marques, By Flávio de Pedro Cabeleira e Catraias de Tânia Dinis. Na secção New Voices, que dá voz aos nomes mais emergentes do cinema contemporâneo, as honras são dadas ao espanhol Chema García Ibarra e à francesa Céline Devaux. No programa Stereo, entre vastas e apelativas sessões, destaque-se o filme-concerto de Steve Gunn que sonoriza as películas experimentais e irreverentes de Stan Brakhage.

Também não ficará de fora a celebração do centenário do realizador António Campos, com uma conversa imperdível sobre o seu cinema com José Manuel Costa e Catarina Alves Costa, para além das várias sessões onde se poderão ver versões restauradas de vários dos seus filmes. No âmbito do projecto FILMar – programa da Cinemateca para a preservação, digitalização e divulgação do cinema português relacionado com o mar – serão mostrados alguns filmes filmados na zona da cidade nortenha. 

Na já prestigiada Solar – Galeria de Arte Cinemática inaugurar-se-á uma exposição de Marie Losier, que apresenta um trabalho “repleto de comédia marcadamente física (…) acima de tudo, enraizado na performance”, e que aqui se junta ao artista David Legrand para a criação das obras mostradas na Solar.

Marie Losier's exhibition at Curtas Vila do Conde
Excesso Chamalo, Maria Losier, David Legrand © 2022 Curtas Vila do Conde

Entre filmes, concertos, conversas entre realizadores e público, exposições e festas, não faltarão motivos para celebrar o cinema pela 30ª vez por terras vila-condenses.

Consulte o programa completo do Curtas Vila do Conde aqui.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Poster do Curtas de Vila de Conde © 2022 Curtas Vila do Conde]