Wetsuit e Aos Dezasseis no Curtas Vila do Conde

Wetsuit, de João Salgado, é, para todos os efeitos, um excelente filme de escola. Tendo sido realizado num contexto de produção exterior a Portugal, para (ou pela) London Film School, o receio de um filme desvirtuado ou “pouco português” era grande, no entanto, e felizmente, verifica-se o contrário. Talvez sejam as saudades do bom ar e mar português.

O filme apresenta não só uma grande capacidade técnica, mas também um grande, ainda que por vezes desagradável, domínio narrativo. Um dos principais erros de Wetsuit é precisamente a grande certeza e segurança que demonstra em todos os planos do filme, até aqueles que porventura não a pedem. A adolescência passa naturalmente por cometer erros, por hesitações e inconsequências, o que acaba por vezes a saber a pouco quando filtrada por uma estética que lhe é tão oposta. A rudeza, infantilidade e, até violência, é-nos ainda assim transmitida, ainda que de outros modos, principalmente através  de  alguns mecanismos narrativos – que se revelam em momentos como o do “pastel-de-rata”, ou do grupo de rapazes a urinar para cima do fato do rapaz, ou, no final  do filme, com o rapaz a  desaparecer em direção ao mar de prancha na mão. O filme estabelece que algo de mau está ou vai acontecer, no entanto, isso não é suficiente, o incómodo não reside na insinuação, reside no confronto. Com efeito, é nestes três momentos de acção-reação que o filme se foca – três histórias, três rapazes, três fases diferentes da adolescência, três respostas ao confronto. A identidade fílmica gira em torno dessa adolescência surfista, do wetsuit (embora isso sirva mais como cenário/ambiente do que como motor da história, ainda que também o seja, quer isto dizer que o filme funcionaria noutro contexto). Por ser curto e divido em três, os desperdícios são minimizados, não há cenas a mais, nem momentos desnecessários (como a carrinha a arder em Punkada), talvez até se justificassem mais momentos, mais filme – como por exemplo na 3ª parte, quando o rapaz, com dificuldade, veste o fato, momento que talvez justificasse mais demora no plano, para figurar uma maior frustração, mais física e determinada e menos simbólica. O mar joga, obviamente, um grande papel na curta, não só como lugar paisagístico, mas sobretudo como lugar afetivo – uma permanência e uma imanência. Um caos organizado que medeia sempre um antes e um depois, que primeiro separa para depois voltar a juntar.

Aos Dezasseis

Aos Dezasseis, de Carlos Lobo © Olhar de Ulisses

Aos Dezasseis, curta-metragem de Carlos Lobo, vencedora do prémio de Melhor Realizador Kino Sound Studio, acompanha Sara, uma adolescente que busca o seu lugar de pertença na comunidade. O filme inicia-se com um plano expectante e cheio de potencial, que subtilmente transmite o conflito do filme – enquanto um grupo de jovens dança, Sara observa, isolada. Se, no entanto, o filme começa com um excelente plano (que o júri do Curtas revelou ser dos melhores planos de abertura vistos no festival), o restante filme desilude, ficando preso na repetição já estabelecida no primeiro plano, com pouco ou nenhum desenvolvimento narrativo. Engraçado será notar que este não é um filme que se foque na acção, focando-se antes na observação da acção – Sara não age nem reage, apenas observa – embora numa perspectiva teórica esta possa ser uma subversão cheia de potencial. O filme parece nunca chegar a cumprir o seu destino, criando portanto uma personagem à mercê da tirania da realização, para sempre presa num impasse, não por falta de capacidades, mas por falta de tempo. Com efeito, o filme é demasiado curto para nos mostrar uma imagem clara de Sara e do “seu” ambiente, revelando antes um universo insípido e desinteressante, não devido a uma escolha estética com o objectivo de transmitir o desinteresse do mundo em si, mas por aparente negligência cinematográfica. Sara é uma protagonista desinteressante por dois motivos: primeiro, por ser uma personagem passiva, que apenas observa silenciosamente; em segundo lugar, por ser completamente unidimensional, quer isto dizer que Sara parece apenas sentir uma única emoção, a de des-pertença, acompanhada por uma única resposta, ir. A protagonista acaba onde começou, calada no seu canto, no entanto, este não parece ser um problema causado por si, mas antes por uma narrativa fechada a sete chaves, apesar do seu final aberto. Ainda que essa abertura seja ilusória pois não são dados elementos suficientes para o espectador imaginar o que poderá acontecer para lá do filme, encerrando então a narrativa diegética e extradiageticamente. Aos Dezasseis, tal como Wetsuit, também se divide em três, neste caso três cenas de um mesmo dia: a escola, o parque de skates e o concerto. Uma progressão que nos leva desde o início do dia, até ao seu fim, sem que nada mude, sem acasos, sem eventos, sem nada a não ser Sara a observar. Sem subversões de estilos, quer de narrativa, realização, montagem, etc, Aos Dezasseis é um filme que, apesar de um bom inicio, cai por terra.

Diogo Albarran

[Foto em destaque:  Wetsuit, de João Salgado © Direitos Reservados]

Take One! and… Action

A segunda sessão da competição Take One! arranca com o filme 61-63, de Ricardo Santos, um filme-correspondência, composto por fotografias e cartas que um soldado na Guerra do Ultramar envia para Portugal. Por entre as típicas fotografias de guerra vai-se instaurando o trauma, o punctum deste filme, um assombro a negro que divide os fotogramas/fotografias, que os trespassa e impõe o ritmo ao filme.

O segundo filme, PUNKADA, de Gonçalo Ferreira, vencedor do prémio Sophia Estudante-Cinema na categoria de melhor curta-metragem de ficção, acompanha Xico, um músico punk, e a sua banda, os Biqueira d’Aço, num típico caminho de sexo, drogas e rock&roll, que eventualmente leva à autodestruição da banda. Caótico, devasso e decadente, PUNKADA é um vislumbre sobre a ruína e ressaca de uma “qualquer” banda punk.REMINISCÊNCIAS DE UMA PAISAGEM DE INVERNO, de Lucas Tavares, é a última, e a mais longa, das três curtas-metragens. É o segundo projecto de cinema de paisagem do realizador – que em conjunto com o primeiro, Cores de Outono, sugere uma possível série sobre as quatro estações. Onírico, amplo e sereno, traz-nos a serra da Freita através de uma lente que não procura, mas antes espera, pela imagem.

61-63, de Ricardo G. Santos © Direitos Reservados

61-63, realizado em âmbito académico para a Escola Superior de Teatro e Cinema, é uma experimentação sobre o filme de arquivo, recolhendo fotografias e cartas trocadas por um casal durante a guerra do Ultramar. O filme pretende aproximar o papel do espectador ao do destinatário, tendo para isso que arranjar um modo de superar o privilégio da montagem (enquanto os destinatário tinham por vezes que esperar semanas ou meses entre correspondências, a montagem permite condensar essa espera). Neste sentido,  compensa a ausência dessa ansiedade provocada pela espera, com outras ausências, como, por exemplo, da linearidade. A cronologia de fotografias e cartas é, por esse motivo, remontada num esquema de desterritorialização e reterritorialização, que pretende reaproveitar os materiais não com um foco narrativo/cronológico, mas com um foco afectivo. Fragmentário, quer em imagem, quer em som, apresenta uma coleção de fotografias, descrições dessas mesmas fotografias e leituras da correspondência de guerra entre um casal. Acompanhamos então os fragmentos, os interstícios de uma guerra, os momentos possíveis para fotos e cartas. A guerra existe só nas sombras, só a vemos, porque não a vemos, sendo, por isso, remetida para um espaço fantasmático, de assombro, que se manifesta no filme através da narração e do desenvolvimento do trauma – quem vai, não é quem volta. O trauma é então figurado no negro, que rompe as imagens, umas vezes acompanhado por silencio, outras por narração e outras ainda por sons de bombardeamentos e tiros. Esta rutura serve um propósito duplo: o primeiro, como já mencionei, é a figuração do trauma, o segundo é a exploração dos potenciais da montagem de filmes de arquivo fotográficos.  Para além do negro, na estrutura também se revelam outras qualidades oníricas, a partir dos fades, que servem como compressão atemporal (sintoma da alienação); dos cortes diretos, porventura momentos de maior claridade por entre o caos da guerra, onde se torna possível relacionar, por exemplo, uma fotografia com a mensagem escrita no seu verso (contextualizações simultaneamente necessárias e desnecessárias); e do overlapping, que, ao misturar as imagens, nos permite melhor compreender a alienação temporal dos soldados na guerra, que começam a ter dificuldades em singularizar os momentos, tornando-os mutantes, misturas entre o sonho e o real. A guerra só entra “directamente” em palavras, em mensagens de desespero, onde transparece (também pelo trabalho de voz do próprio realizador), a culpa de quem estava só a “seguir ordens”.

 Punkada, de Gonçalo Barata Ferreira © Direitos Reservados

Punkada, pouco ou nada acrescentou, em termos de programação, aos outros dois filmes, que em vários aspectos se aproximam (pela utilização do arquivo, de fotografias, da banda sonora onírica, etc). O projecto da Lusófona, tendo em conta as condições de produção e a imagem invejável, ainda por cima filmado a película, Super16, fica muito aquém das expectativas, principalmente depois de receber o prémio Sophia Estudante-Cinema. O filme tenta embrenhar o espectador na espiral de loucura da banda Biqueira d’Aço, presumidademente alimentada por drogas. Ainda que o filme utilize um dispositivo inteligente para o fazer, a atemporalidade das cenas entrecortadas, este acaba por se tornar demasiado desconexo, mostrando apenas fragmentos quase irrelevantes e sem significado – todos os estereótipos que se esperam de uma banda punk . Aqui se encontra o cerne dos problemas de Punkada, que comete o típico erro de quebrar as regras sem as conhecer primeiro. Não só devido à importância teórica, mas também de modo a reduzir custos, maior parte das escolas de cinema em Portugal dão muito valor às técnicas clássicas (pelo menos nos inícios dos cursos), deixando as transgressividades para mais tarde. A Lusófona, porventura por não ter que se preocupar com poupanças, parece ignorar todas as regras da narrativa, o que leva a um filme desmembrado, desinteressante e pouco inteligível – uma oportunidade perdida. Acrescento o desperdício que é trabalhar com atores ótimos só porque se pode, num filme que não só não o requer, mas não dá sequer espaço aos seus atores para brilharem. Com toda a atenção mediática, dinheiro gasto e meios de produção invejados pelas restantes escolas de cinema do país, seria de esperar que a Lusófona conseguisse produzir o cinema de mais alta qualidade. No entanto, e de acordo com as tendências atuais das suas últimas produções, a escola parece continuar a apostar tudo numa boa imagem sem consideração algumas pelos muitos pontos fracos que continuam a ser notados filme após filme. 

Reminiscências de uma paisagem de inverno, de Lucas Tavares © Direitos Reservados

Reminiscências de uma paisagem de inverno é a segunda excursão (literal) de Lucas Tavares no cinema de paisagem. Produzido pela Universidade da Beira Interior, traz-nos um cinema raro para filmes de escola, metódico, narrativamente desinteressado e com um grande pendor experimentalista. A sensação que transparece é a de um trabalho ainda em construção, mais um passo num caminho que Lucas vai desbravando, aprendendo através do contacto, como o camponês sedentário de Benjamin. A beleza visual é impressionante, revelando o ambiente místico e onírico dessas paisagens desabitadas, às quais só acedem os seres errantes ou vagabundos. A câmara, sensível e paciente, não procura a paisagem, espera por ela. Céu, montanha e vento digladiam-se como só nessas paisagens o fazem, longe do olhar humano. Desta vez, no entanto, um espectador quase invisível na enorme amplitude da serra, capta a vagarosa batalha. O trabalho excepcional de Lucas em termos imagéticos não poderia existir, no entanto, sem as suas negligências. A montagem, “narrativa” e trabalho sonoro ficam aquém do que as imagens pedem. Com efeito, o trabalho conceptual do filme-paisagem é colocado numa posição secundária quando comparado com o excelente trabalho técnico. No entanto, Reminiscências de uma paisagem de inverno é, sem dúvida, um passo acertado, tendo provado o domínio técnico no inverno, esperemos por uma primavera mais consciente e intelectualmente arriscada.

Diogo Albarran

[Foto em destaque: Reminiscências de uma paisagem de inverno, de Lucas Tavares © Direitos Reservados]

Berlinale 2022 – A nossa experiência e os nossos 5 melhores filmes (I)

A Berlinale é um dos maiores festivais de cinema do mundo. Cobre não só os melhores filmes, que depois passam para o circuito comercial, mas também muitos filmes a que o público dificilmente terá acesso. Assim sendo, para mim, a prioridade foi seguir mais perto a secção Fórum, não só por representar, em grande parte, esse segmento menos mediático, como também proporcionar uma oferta mais variada e, a meu ver, mais interessante.

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Hot in Day, Cold at Night – A ilusória vida dos fantasmas

Young-tae e Jeong-hee vivem numa situação precária, com trabalhos part-time que permitem pouco mais do que o estritamente necessário. Tendo feito o pacto de nunca aceitar um empréstimo privado, em tempos de crise e conflito, Jeong-hee cede à pressão e aceita a dívida em segredo. Os dois colectores do empréstimo, meticulosos e ligeiramente assustadores nas suas simpáticas ameaças, aparecem um dia em casa da mãe de Jeong-hee, pressionando-a para pagar o que deve. 

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Call Jane – Social Causes Pro Bono

Call Jane, by Phyllis Nagy premiered at Sundance 2022, on the 21st of January, 2022. The film follows Joy, a pregnant married woman who, due to a heart condition, might have health issues if her pregnancy proceeds. After trying various methods do stop the pregnancy, she finds the “Jane Collective”, a group of women who run and illegal abortion clinic.

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Super Natural – Por uma arte mais transgressora

Super Natural é daqueles raros filmes que poderiam, e talvez deveriam, ser exibidos num museu. Não por uma qualquer sublimação digna de passar a linha imaginária que atribui o rótulo de arte aos objectos.

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