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Super Natural – Por uma arte mais transgressora

Super Natural é daqueles raros filmes que poderiam, e talvez deveriam, ser exibidos num museu. Não por uma qualquer sublimação digna de passar a linha imaginária que atribui o rótulo de arte aos objectos.

Antes pelo contrário, ao manifestar tão peremptoriamente a necessidade de aproximação da obra ao espectador, na incessante busca por um possível diálogo, criou uma ruptura naquilo que esperamos de uma dada obra, neste caso cinematográfica. Quando se entra numa sala de cinema para ver um filme, é criada uma expectativa, consciente ou inconsciente, quer seja por se ler algo acerca da obra ou pelo mero caso de se tratar de cinema. O Cinema padece do mesmo mal que todas as outras artes, que todas as outras palavras – é uma palavra, um rótulo, uma ideia abstracta que tenta comunicar algo — neste caso um filme.

[“filme”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (em linha), 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/filme, consultado em 12-02-2022].

Deve ser ingrato ser filme, ser rotulado antes de visto, antes que haja o menor contacto, a menor comunicação. Felizmente, apesar de ser um filme, Super Natural é também muito mais que isso. Super Natural é celulóide. Pertence à classe de compostos criados a partir da nitrocelulose e de cânfora, onde também se incluem corantes e outros agentes. A celulóide é mais conhecida por ser um dos elementos necessários à feitura de películas para cinema. Se a partir deste ponto é suposto deduzir que Super Natural é a própria película, ignorando os restantes elementos que a incluem, ou se é o elemento em si que com o espectador comunica, não há forma de saber.

Super Natural é, sem dúvida, um filme transgressivo, que pensa o cinema, e por extensão a si, de um modo muito particular, o do contacto/comunicação. A subversão do formato é observável desde os primeiros momentos da obra, servindo como ponto de fuga para as restantes explorações temáticas. Este não é, no entanto, o primeiro filme subversivo de Jácome, que já em Past Perfect (2019) brinca com a forma, molda o diálogo, utiliza as legendas como modo de conversa entre 2 seres que desconhecemos. As imagens são muitas vezes sobrepostas, deformadas, manipuladas e tortas — há beleza num certo desconcerto.

Super Natural pega na fórmula do filme que o precede e continua a manipulação, a invenção e a reinvenção. O filme começa com o ecrã a negro, durante mais do que o tempo habitual, subida e silenciosamente aparecem as legendas do filme “Has it started yet?” (I don’t know, you tell me). Começa de seguida um breve momento de meditação e introspecção, quando a celulóide, ainda sem revelar a sua identidade, pede ao espectador que relaxe, que respire fundo e sinta o seu corpo. Este limpa palato é fulcral não só na introdução do personagem, mas também como gesto artístico, desaburguesado, desrotulado e desmedido. Uma provocação ao tradicionalismo, visando assim aproximar-se, tanto quanto possível, do espectador – a voz amarela de Past Perfect é abdicada em prol de um contacto mais directo em Super Natural. Este filme-conversa, onde um flúido e bizarro som eletrónico que acompanha as legendas como que falando, é super natural. A película representa, acima de tudo, a vontade de comunicação, a tentativa de fuga à prisão da não comunicação, da obra in vitro.

Diogo Albarran

[Foto em destaque: © Ukbar Filmes – Super Natural]