Mato seco em Chamas vence Competição nacional e Internacional do IndieLisboa 2022

Nunca se viu nada assim. Pelo menos no Indie. Um filme que vence a Competição Internacional e também a Competição Nacional. Pois Mato Seco em Chamasdo brasileiro Adirley Queirós e da companheira portuguesa Joana Pimenta, cometeu a proeza de convencer os diferentes elementos do júri e arrebatar ambos os prémios. Venceu o principal prémio internacional, ou seja, o Grande Prémio de Longa Metragem Cidade de Lisboa, bem como o Prémio Allianz para Melhor Longa Metragem Portuguesa. O filme recebeu ainda um terceiro prémio, o do júri universitário.

O casal Adirley e Joana está de parabéns pela ousadia de trazerem à tela um cinema descomprometido com os centros de poder, justamente apostado numa dinâmica de pura e desafiante liberdade criativa. Em causa, a deriva empoderada de várias mulheres (só uma Gleide Firmino é profissional) que compõem um retrato de uma zona do Brasil, a Ceilêndia, nos arredores de Brasília (de onde é natural o próprio Adirley), com a mira apontada às políticas públicas de terra (e cultura) queimada do presidente Jair Bolsonaro.

Pierre Léon e Rita Durão em O trio em mi bemol, de Rita Azevedo Gomes – © Basilisco Filme]

Já antes se salientara a enorme pujança do cinema português na 19ª edição do IndieLisboa, mas longe de imaginar este resultado tão avassalador. Até porque há ainda que acrescentar alguns títulos. Desde logo, o prémio de melhor realização atribuído a Rita Azevedo Gomes, pelo seu trabalho em O Trio em Mi Bemol. E ainda a distinção de Ana Sofia Fonseca pelo musical Cesária Évora.

Já nas curtas metragens, a distinção para Domy + Ailucha, Cenas Kets!, um filme colaborativo de Ico Costa, além de Um Caroço de Abacate, de Ary Zara, ficou com o Prémio Novo Talento. No plano internacional, o prémio foi atribuído ex-aequo entre Mistida, de Falcão Nhaga, a curta que irá ser exibida em Cannes, e The Parent´s Room, de Diego Marcon, venceu o Prémio de Melhor Animação. 

Medusa, de Anita Rocha da Silveira © Best Friends Forever

Foi ainda em língua portuguesa premiado o filme da brasileira Anita Rocha da Silveira, com Medusa.

Na secção Silvestre, o Melhor Filme foi para Cette Maison, de Miryam Charles, ex aequo com Nous, Étudiants!, de Rafiki Fariala. Por fim, no formato de curta metragem, foi distinguido o Constant, de Sasha Litvintseva e Beny Wagner. 

O festival terminou igualmente em português com a exibição de A Viagem de Pedro, da brasileira Laís Bodanzky. A próxima edição do IndieLisboa realiza-se de 27 de abril a 7 de maio de 2023.

Os filmes premiados vão ser exibidos entre segunda e quarta-feira, no Cinema Ideal.

Paulo Portugal

Palmarés 19º IndieLisboa 

Competição Internacional
Grande Prémio de Longa-Metragem – Mato Seco em Chamas de Joana Pimenta e Adirley Queirós (Brasil/Portugal)
Prémio Especial do Júri – Medusa de Anita Rocha da Silveira (Brasil)
Grande Prémio de Curta-Metragem – Mistida de Falcão Nhaga (Portugal) e The Parent’s Room de Diego Marcon (Itália)
Melhor Curta de Animação – The Parent’s Room
Melhor Curta Documental – Urban Solutions de Arne Hector, Luciana Mazeto, Minze Tummescheit e Vinicius Lopes (Alemanha/Brasil)
Melhor Curta de Ficção – Escasso de Gabriela Gaia Meirelles e Clara Anastácia (Brasil)


Competição Nacional
Melhor Longa-Metragem – Mato Seco em Chamas
Melhor Realização para Longa-Metragem Portuguesa – O Trio em Mi Bemol de Rita Azevedo Gomes
Melhor Curta-Metragem – Domy+Ailucha: Cenas Kets! De Ico Costa
Prémio Novo Talento – Um Caroço de Abacate de Ary Zara
Prémio Novíssimos – Tindergraf de Júlia Barata


Prémios do Público
Longa-Metragem – Cesária Évora de Ana Sofia Fonseca (Portugal)
Curta-Metragem – Um Caroço de Abacate
Indie Junior – Luce e o Rochedo de Britt Raes (Bélgica/França/Holanda)
Prémio Silvestre de Melhor Longa-Metragem – Cette maison de Miryam Charles (Canadá) e Nous, étudiants! de Rafiki Fariala (República Centro-Africana/França)
Prémio Silvestre de Melhor Curta-Metragem – Constant de Sasha Litvintseva e Beny Wagner (Alemanha/Reino Unido)
Prémio IndieMusic – Love, Deutschmarks and Death de Cem Kaya (Alemanha)
Prémio Amnistia Internacional – Urban Solutions
Prémio Árvore da Vida – Viagem ao Sol de Ansgar Schäfer e Susana de Sousa Dias (Portugal)
Prémio Escolas – By Flávio, de Pedro Cabeleira (Portugal/França)
Prémio Universidades – Mato Seco em Chamas

[Foto em destaque: Andreia Vieira em Mato Seco em Chamas, de Adirley Queirós e Joana Pimenta © Cinco da Norte, Terratreme Filmes]

COW: o mundo através dos olhos de uma vaca

Com estreia internacional no Festival de Cannes de 2021 e passagem pela secção Silvestre do IndieLisboa no passado dia 3, Cow acompanha o dia a dia de Luma, uma vaca leiteira numa quinta de produção industrial de leite em Kent, na Grã-Bretanha. Esta é a primeira incursão de Andrea Arnold no documentário, mas a cineasta não é nenhuma desconhecida, tendo vencido o Prémio do Júri em Cannes por três vezes com Red Road (2006), Fish Tank (2009) e American Honey (2016). Este é, contudo, o seu projeto mais pessoal.

O filme abre com um parto, numa cena imersiva em que se destaca desde logo a proximidade da câmara e o som, permitindo observar em detalhe visceral Luma a dar à luz. «É uma menina», ouvimos. Com estas três palavras, fica traçada uma profecia cruel, um futuro igual ao da mãe – ser engravidada, produzir leite, ser engravidada de novo, num ciclo ininterrupto.

Cow, de Andrea Arnold © BBC Films

A rotina de Luma é repetitiva: dá à luz, é ordenhada, come, dorme, muge, é inspecionada regularmente para ver se o útero está a sarar bem, tudo isto enquanto a câmara da diretora de fotografia, Magda Kowalczyk, a segue de perto ao longo de cerca de quatro anos de filmagens. Não vale a pena esperar pelos plot twists – esta é uma história real e sabemos como termina. À medida que a rotina se repete, não sem alguns problemas de ritmo na terceira parte do filme, Luma demonstra cada vez mais dificuldades físicas. Quanto tempo até já não aguentar mais? é a pergunta que se vai impondo conforme o filme avança.

Ao longo dos 90 minutos, mantém-se o estilo à la cinéma vérité: não há narração voice over, não há texto, não há vídeo, o diálogo é quase inexistente, e a utilização exclusiva de câmera de mão num ângulo quase sempre ao nível do olhar da vaca reforça intencionalmente a experiência de empatia. É a perspetiva de Luma que seguimos sempre. Mesmo nas ocasionais aparições dos trabalhadores da quinta, o filme nunca adota a sua perspetiva, com a câmara a manter-se quase sempre abaixo do nível das suas caras. Ao mesmo tempo, a banda sonora diegética de música pop, proveniente da rádio que os trabalhadores da quinta ouvem enquanto desempenham as suas tarefas diárias, parece não condizer com aquilo a que assistimos, dando azo a cenas caricatas que podem retirar alguma seriedade ao filme, como o ritual de acasalamento de Luma ao som de Kali Uchis ou a ordenha mecânica do dia enquanto se ouve Billie Eilish.

O resultado da abordagem que privilegia a neutralidade e a objetividade, fazendo da câmara um mero observador, é um filme que não se pretende didático ou acusatório, nem tão-pouco tenta passar uma mensagem política associada ao veganismo. Em vez disso, trata-se de uma demonstração sóbria da vida de Luma, num exercício de criação de empatia que também a ausência de narração propicia, obrigando o espectador a virar-se para as suas próprias reflexões e a retirar as suas conclusões. Sem romantismos ou juízos de valor, o resultado é um esforço sincero por fazer com que as pessoas não apenas olhem, mas vejam verdadeiramente estas vacas e as suas vidas. «Sinto que no mundo não nos vemos uns aos outros. Não vemos as outras coisas vivas», afirma Arnold em entrevista ao New York Times. «Só queria genuinamente perceber se, seguindo-a com regularidade, seria possível criar uma ligação verdadeira, vê-la». O objetivo parece ficar cumprido, pelo menos para a realizadora: Arnold acredita que Luma, que tinha perfeita noção das câmaras à sua volta, parecia sentir-se «vista».

Mas talvez seja possível ir para lá do simples dia a dia de uma vaca. Observando o quotidiano de Luma, somos inevitavelmente confrontados com questões complexas, muitas das quais tendemos a evitar. Por várias vezes, parece que a vemos fitar diretamente a câmara. E ainda que talvez não seja oportuno projetar nesse olhar as nossas próprias emoções e pensamentos antropomórficos, é difícil evitar questionar se o que avistamos nele poderá ser desespero, sofrimento, ou até mesmo um olhar que nos julga.

Cow, de Andrea Arnold © BBC Films

Arnold reconhece a derradeira anonimidade de Luma – esta é a sua história, mas poderia ser de outra vaca qualquer. O filme não esconde a dura realidade das vacas leiteiras, a verdade desconfortável de uma vida abreviada e em que predomina o sofrimento. Estes animais vivem com pouco espaço e em condições muitas vezes deploráveis; são obrigados a engravidar sucessivamente, por vezes através de violenta inseminação artificial, de forma a produzir leite de modo contínuo; as suas crias são-lhes retiradas logo após o nascimento; e, quando os níveis de produção começam a decrescer, são enviadas para abate, geralmente com 4 a 6 anos de vida, apesar de a sua longevidade natural ser de cerca de 20 anos. São objetos maquínicos ao serviço dos desejos humanos.

Num filme com este objeto, são, portanto, escassas as cenas de pendor positivo ou esperançoso. Num destes raros momentos, após as vacas terem sido temporariamente libertadas para pastar ao ar livre, Luma parece observar um pôr do sol impressionante. Mais uma vez, se está realmente a apreciar a beleza do céu ao final do dia não passará, provavelmente, de uma projeção puramente humana. Mas o momento é real. Nunca poderemos conhecer a verdadeira personalidade, emoções e reações de Luma. Mas talvez o reconhecimento de que estas existem, sejam elas quais forem, seja um importante primeiro passo.

Marta Batista

[Foto em destaque: Cow, de Andrea Arnold © BBC Films]

Às Vezes os Dias, Às Vezes a Vida: entre a ficção e a realidade

Janine Gonçalves, argumentista e realizadora de Pombal, estreia-se no Indielisboa com Às Vezes os Dias, Às Vezes a Vida. Lena, uma mulher com dois trabalhos e uma filha para cuidar. Uma descoberta do que resta desta vida e do seu próprio corpo. A realizadora portuguesa que, em 2015, já tinha realizado Eu, Por Ti, Quem Era?, um documentário performativo sobre a sua própria família, brinca muito bem com esta fronteira entre ficção e realidade. O tema da família, mais uma vez presente na Competição Nacional desta edição do Indielisboa, é um tema próximo para Janine Gonçalves, que traz muito da sua experiência pessoal para dentro dos seus filmes.

O trabalho de realização acaba por ser um trabalho extremamente introspectivo, mesmo quando os temas não são próximos do realizador. Há neste trabalho uma necessidade de doação, ou seja, doar qualquer coisa de si em prol do filme, para assim lhe podermos chamar o seu filme. É como se o filme saísse das “entranhas” do realizador. E este Às Vezes os Dias, Às Vezes a Vida sai, efetivamente, das “entranhas” de Janine Gonçalves, é notório desde os primeiros minutos. Em primeiro lugar, as filmagens decorreram na sua terra natal – Pombal – que desde logo ajuda a situar a história num plano mais pessoal do que propriamente o ficcional. Isto, por muito que não seja dito, é de fácil perceção pela forma como todas as personagens secundárias interagem entre si. Estes não-atores pombalinos alinharam com Janine nesta aventura, e acabaram por segurar muito bem a moldura para Lena, interpretada por Kim Ostrowskij, a única atriz de profissão de toda a curta-metragem.

Vezes os Dias, Às Vezes a Vida, de Janine Gonçalves – © Waves of Youth

O filme é muito centrado nesta personagem, que aparece em praticamente todos os planos. Lena é uma mulher viúva, mãe de uma filha, e que trabalha para conseguir pagar as suas contas, não querendo voltar para a casa dos seus pais. A força desta mulher é visível no filme, mesmo que o seu rosto não nos seja dado assim tanto. Na maioria das vezes, a câmara filma Lena de costas ou em planos muito aproximados. Ambas as escolhas estéticas acabam por fragmentar, de certa forma, a personagem, visualmente, o que pode ser um indicativo da própria fragmentação do seu interior. 

Estamos perante uma mulher, como tantas outras mulheres, que vê as 24 horas do seu dia-a-dia ocupadas pelo seu trabalho (trabalhos) e pela sua família, e a sua própria vida parece perder-se no meio disso. Muitas vezes, temos a sensação de que não existe mais nada para além das obrigações diárias. Onde é que fica a identidade desta mulher? Onde é que ficam os seus hobbies e gostos pessoais? Onde é que fica o seu tempo consigo mesma? Esta é uma história de autoconhecimento, de amor próprio ou, pelo menos, de uma procura por este amor. E se Janine Gonçalves nos diz que esta Lena é um reflexo da sua mãe, podemos interpretá-la ainda como um reflexo dela mesma, e de nós todas, mulheres.

Ás Vezes os Dias, Às Vezes a Vida, de Janine Gonçalves – © Waves of Youth

  O nosso corpo é revelador do nosso interior e nem sempre tiramos o tempo necessário para cuidar dele ou apreciá-lo. A masturbação, tema introduzido no filme através de uma conversa de rádio, é uma das formas de amor pelo nosso próprio corpo. A linguagem da masturbação é uma linguagem de cuidado e de descoberta, e para Janine Gonçalves e para a sua personagem principal esta descoberta parece ser necessária, contrariamente ao que é dito por uma das personagens secundárias presentes no carro (que vimos a descobrir no final da sessão ser a própria mãe da realizadora). Infelizmente, ainda há um preconceito muito grande face à masturbação e ao prazer da mulher, no geral. Para muitos, sexo ainda é sinónimo de procriação e não de amor, intimidade e prazer.  Este filme vem um pouco em jeito de chamada de atenção para esta necessidade de amor próprio. Não há mais nenhuma forma de amor se não houver, primeiro, amor próprio – há uma incapacidade de amar o próprio se o amor por nós mesmos for escasso. 

A curta-metragem de Janine Gonçalves é ela mesma uma forma de amor próprio: desta personagem que descobre o seu corpo outra vez, numa cena muito bonita que joga com os vários reflexos dos espelhos presentes na sua casa de banho; e ainda da própria Janine e da sua mãe, indiretamente. Por vezes, a vida não parece sorrir, parece dominada, assim como o filme, pelos tons azuis, soturnos e melancólicos, mas é preciso sorrir para ela na mesma. E esta mensagem paira na sala de cinema após a exibição deste pequeno mas belo filme. Às Vezes os Dias, Às Vezes a Vida, em competição nacional no Indielisboa, pertence à sessão de Curtas Nacionais 1, ao lado de Cemitério Vermelho, de Francisco Lacerda, Idade Óssea – Um Filme em Sete Quadros, de Isabel Aboim Inglez, e Tornar-se um Homem na Idade Média, de Pedro Neves Marques.

Inês Moreira

[Foto em destaque:  Às Vezes os Dias, Às Vezes a Vida, de Janine Gonçalves – © Waves of Youth]

Love Letter e os reflexos de uma guerra

Um ano e meio depois da desocupação americana no Japão, estreia-se Kinuyo Tanaka como realizadora com Love Letter (1953), filme que segue um retornado da guerra que ajuda mulheres japonesas a escrever cartas para soldados americanos, enquanto procura o seu amor de infância pelas ruas de uma Tóquio destruída pela guerra. 

Baseado no romance de Fumio Niwa e com argumento de Keisuke KInishita, este foi um melodrama muito bem recebido pela crítica, estreando no Festival de Cinema de Cannes. O filme é protagonizado pelos astros Mori e Kuga: o soldado retornado e a pan pan girl – arquétipos do cinema japonês do pós-guerra. No final dos anos 40/início dos anos 50, as más condições e a falta de fonte de rendimento fizeram com que as ruas japonesas se enchessem de mulheres chamadas coloquialmente de pom pom girls ou pan pan girls. Estas solicitavam, maioritariamente, soldados americanos em busca de um futuro melhor. Eram associadas, ainda, ao termo arcaico “fallen woman” usado para descrever as mulheres que tinham perdido a sua inocência e entregado a sua alma ao pecado. 

É com estas duas personagens que Tanaka inicia a sua curta carreira como realizadora, sendo a segunda mulher a realizar filmes no Japão, ela que era uma das mais conceituadas atrizes japonesas. A Love Letter seguem-se The Moon Has Risen (1955), The Eternal Breasts (1955), The Wandering Princess (1960), Girl of Dark (1961) e Love Under the Crucifix (1962). Enquanto atriz, Tanaka conta com mais de 200 créditos, sendo reconhecida pelas suas participações regulares nos filmes de Kenji Mizoguchi. 

sighsandwhispers: Pan Pan Girls in Postwar Japan

Série de fotos intitulada “Pan-Pan Women in Japan Post WWII” – © John W. Bennett

O mais curioso em Kinuyo Tanaka foi a decisão de iniciar esta carreira trazendo-nos um filme construído a partir da perspetiva masculina. Não é Michiko, a protagonista feminina interpretada por Yoshiko Kuga, que vemos desde o início do filme, aliás esta é até mesmo uma não presença em toda a primeira metade do filme, sendo-nos apresentada através de uma fotografia que a personagem masculina segura. E é esta personagem masculina, Reikichi, interpretada por Masayuki Mori, que acompanhamos desde o início e é pela sua história que o espectador inicia o seu processo de empatização. Só mais tarde temos acesso à versão feminina deste romance. 

Love Letter é um filme que, do ponto de vista formal, se revela muito simples e direto, e talvez a narrativa acabe por ganhar destaque com isso, não se perdendo em experimentalismos. Podemos, contudo, destacar, pelo menos, duas grandes cenas: a da reunião dos dois protagonistas no comboio e a cena final. Tanaka faz uso dos planos aproximados do rosto das personagens, os close-ups, quer para destacá-los no meio da multidão, quer para destacar as suas emoções. Apesar de este ser um filme que se apoia na carta e na palavra, as emoções formam grande parte do seu conteúdo narrativo, e são transmitidas de forma exemplar por este elenco talentoso. 

A cena final nada mais é que planos intercalados, numa montagem um tanto rápida, de Reikichi e Michiko, que nunca chegam a realmente ficar juntos durante o filme, apenas podemos supor esse final para casal precisamente através desta cena. A personagem feminina é vista com um olhar mais aproximado do que a masculina, e apenas filmando as suas expressões, Tanaka eleva o seu filme a uma sublimidade belíssima. No comboio, mais ou menos a meio do filme, estamos perante uma sequência mais intensa e dinâmica, ao nível dos planos, terminando naquele que é o melhor enquadramento de todo o filme, um casal apaixonado emoldurado pela janela do próprio comboio. O espectador parece ser transportado para um museu. 

Este é um filme que se apoia muito nesta contemplação das imagens e dos seus temas. É um filme que exige uma certa predisposição à reflexão e um olhar atento para o seu conteúdo. Destacando-se a rivalidade entre os Estados Unidos e o Japão, inimigos da guerra e do pós-guerra, somos confrontados com esta até mesmo nas pequenas histórias que intercalam o plot central. Tanaka traz-nos um filme muito humano e emocional, que não parece ter pretensiosismos, mas que, no entanto, reflete este amor da realizadora pelo ato de fazer filmes, ela que dizia ser “casada” com o cinema.

Love Letter, de Kinuyo Tanaka – © Shintoho Film Distribution Committee

“Todos nós somos responsáveis pela guerra. Todos nós sofremos nestes tempos de pós-guerra. Quem não for responsável, que atire a primeira pedra.”, diz Naoto Yamaji (interpretado por Jukichi Uno) a Reikichi, e, de certa forma, também ao espectador. Estas três frases poderiam, muito bem, funcionar como resumo daquilo que é a essência e o espírito deste filme. Um filme que nos fala sobre as consequências e os reflexos de uma guerra que destruiu vidas inteiras. Uma guerra que moldou e continua a moldar narrativas, ainda que em períodos históricos diferentes.

 Ao ver este filme, pensamos em como todas estas questões continuam tão atuais nos tempos modernos, e em como estas palavras de Naoto poderiam ser tão relevantes ainda nos dias de hoje. É estranho num filme cujo título contém a palavra “amor”, conseguir-se estabelecer paralelos com os nossos tempos, onde o amor parece ser escasso. Talvez Tanaka apenas quisesse ressalvar essa crença numa prevalência do amor face à guerra e à crueldade. Love Letter é, portanto, um filme a ser revisitado, primeiro, por ser uma obra-prima do cinema do pós-guerra, e, em segundo, por haver nele uma esperança na exaltação deste amor.

O Programa 5L, no qual Love Letter está inserido, é uma secção do Indielisboa em parceria com o festival internacional de literatura e língua portuguesa, que tem como tema as Imagens da Escrita. Os cinco filmes selecionados conectam-se pela presença da carta. Ao lado de Love Letter, vemos News From Home, de Chantal Akerman, Correspondências, de Rita Azevedo Gomes, Cartas da Guerra, de Ivo M. Ferreira e I Fidanzati, de Ermanno Olmi. Numa secção onde percebemos a importância da ligação entre a escrita e o cinema.

Love Letter (1953) - IMDb
Cartaz de Love Letter, de Kinuyo Tanaka – © Shintoho Film Distribution Committee

Inês Moreira

[Foto em destaque: Love Letter, de Kinuyo Tanaka – © Shintoho Film Distribution Committee]

Rua dos Anjos: O cinema como lugar de encontro

E se um filme fosse construído a partir do encontro entre duas pessoas? Rua dos Anjos procura ser a resposta a esta pergunta, ao centralizar tematicamente a partilha de histórias e ofícios entre as duas realizadoras, Renata Ferraz e Maria Roxo, nesta que é a primeira longa-metragem de ambas, selecionada para a Competição Nacional desta 19ª edição  IndieLisboa.

Foi tão cedo quanto em 2014 nasceu o embrião criativo da obra, filho de um interesse pessoal de Renata Ferraz pelo universo pouco conhecido do trabalho sexual, particularmente no que toca à sua dimensão performativa. Afinal, “a prostituta é a melhor atriz do mundo”, diz Maria Roxo a certo ponto. E ninguém o saberia melhor do que a própria, que passou mais de duas décadas a desempenhar uma variedade de papéis. 

É a partir deste ponto de contacto, entre duas vivências aparentemente distantes, mas de facto muito próximas, que o filme se desenvolve. Na troca bidirecional de técnicas profissionais, Renata oferece a sua experiência no cinema e Maria a sua experiência no trabalho sexual. No estúdio escuro onde a ação (maioritariamente) se passa, o encontro  entre as duas mulheres é materializado nesse espaço, terreno neutro onde as ideias fervilham, mas também a realidade do exterior. 

Rua dos Anjos, Renata Ferraz, Maria Roxo © KINTOP

Neste sentido, Rua dos Anjos é muito consciente da sua existência inserida numa espécie de refúgio atemporal, palco de convergência empática, mas também  de exposição constante. Assim, o objeto artístico autorreferencial sobre o ato de cocriar torna-se igualmente, por vontade própria, sobre Maria Roxo, que sempre soube que a sua vida daria um filme. Nesta dimensão (auto)biográfica, evidencia-se uma saliente veia política no destaque inevitável sobre quanto o retrato pessoal de um indivíduo, e principalmente o de uma mulher, é marcado pelas circunstâncias que o rodeiam e a classe social onde se insere. 

Nas interações entre as duas, isto nunca é esquecido, mas se a lembrança de diferentes experiências é constante, também a empatia o é e, acima de tudo, o respeito mútuo. Num filme que trabalha tanto a partilha de controlo sobre a criação, é da mesma forma aberto quanto à dinâmica de poder que o posicionamento à frente da câmara implica. Ou seja, da violência que se aflige ao pressionar o botão de gravar, revelando-a estética e conceptualmente, ao incluir sequências que paradoxalmente podem ser chamadas de behind the scenes

Rua dos Anjos, Maria Roxo © KINTOP

Neste contexto, a vida de Maria não é apenas exposta e moldada a partir da visão de um realizador, neste caso Renata, mas também pelas suas próprias mãos e limites. Talvez por isso, numa procura de equilíbrio, peça uma espécie de quid pro quo à sua compatriota, em forma de entrevista. Deste modo, tanto uma quanto outra estão implicadas no filme. Não num método mutuamente exploratório, contudo, mas sim em prol da construção de uma ponte entre as duas e, acima de tudo, à ordem de uma agência sob a própria história.   

Este é um caso particular, no entanto, uma vez que Maria Roxo infelizmente faleceu antes de poder completar a obra ou até mesmo iniciar o seu processo de montagem. Há, então, uma dimensão homenageante que transcende a sua ideia de criação partilhada, sendo que, apesar de não existir o filme que poderia ter sido, sobrevive em força, no seu lugar, Rua dos Anjos. E talvez o melhor que podemos fazer em sua honra é resistir à imaginação de qualquer outra obra senão a que temos, porque, como Maria dizia, “A imaginação vai só até onde a gente quer. Nunca vai até à realidade.”

Margarida Nabais

[Foto me destaque: Rua dos Anjos, Renata Ferraz, Maria Roxo © KINTOP]

Viagem ao Sol – Susana de Sousa Dias e Ansgar Shaefer: “porque não existem crianças nas imagens de arquivo?”

Foi curioso perceber, ao longo da conversa com Susana de Sousa Dias e Ansgar Schaefer (realizada via zoom – ela nos Estados Unidos, ele em Lisboa), que a origem de Viagem ao Sol, o documentário incluído na Competição Nacional de longas-metragens do IndieLisboa, baseado em imagens de arquivo de crianças austríacas refugiadas depois da 2ª Guerra Mundial, tem precisamente 30 anos. Justamente na altura em que ambos se conheceram e iniciaram uma mútua colaboração na produtora Kintop. Uma investigação que esteve igualmente relacionada com o projecto de doutoramento de Ansgar, sobre a deslocação de refugiados judeus para Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. Isto já depois da tese de mestrado sobre crianças de origem alemã em Portugal durante o mesmo período.

Neste documentário co-assinado por ambos (a primeira vez que tal acontece) aborda-se o papel da memória das crianças austríacas acolhidas no nosso país pela Caritas Portuguesa no pós-guerra (1939-45), capaz de fornecer um estudo desse olhar, ao mesmo tempo que oferece uma visão sobre os padrões culturais e sociais vigentes durante o Estado Novo. 

“Nessa altura disseram-me que havia muitas crianças”, precisa Ansgar no início da conversa. “Mas não fazia sentido, porque as crianças judaicas não foram da Alemanha para Portugal. Foram antes para a Inglaterra.” E a razão para esta realidade estava relacionada com a proibição de Salazar em deixar entrar judeus em Portugal. “Depois da guerra é que temos esta situação”, prossegue. “O início da investigação foi mesmo o meu trabalho sobre refugiados judeus que viviam na Alemanha da Segunda Guerra Mundial. Foram várias pessoas que me falaram disso.” Mais tarde, o projecto assumiria uma forma ligeiramente diferente, acabando mesmo por se chamar O Menino Austríaco. No entanto, seria interrompido e retomado depois em 2016.

Deixar vir a mim as criancinhas!

“É Interessante perceber que estas crianças austríacas fazem parte da memória colectiva de Portugal”, explica o produtor da Kintop. “Há inúmeras famílias que têm ou tiveram contacto com crianças austríacas. Existe em Bragança várias aldeias com crianças austríacas”. Ao todo, terão vindo para Portugal 5500 crianças austríacas eram 5500, sendo que apenas algumas centenas alemãs. “Mesmo assim, era muito para uma sociedade. Depois temos as imagens oficiais de crianças a descer do barco que se viam nos jornais de actualidade. Quem ia ao cinema conhecia aquelas imagens.” Fundamental para a pesquisa feita para este projecto foi o contacto do Sr. Ingo Koenig, da embaixada austríaca, que possuía uma base de dados com milhares de nomes de crianças austríacas da Cáritas. “Foi através destas indicações que conseguimos entrar em contacto com as pessoas e fazer as nossas entrevistas”, revela-nos Ansgar.

Por ser turno, Susana de Sousa Dias chama a atenção para o dado interessante de se constatar como “estas crianças austríacas fazem parte da memória colectiva de Portugal”. Sendo mesmo possível hoje em dia a sua localização. “Há inúmeras famílias que têm ou tiveram contato com crianças austríacas. Aldeias em Bragança, com crianças austríacas.”

Naturalmente, toda esta investigação apenas se torna possível com recurso a elementos de arquivo – um método de trabalho seguido ao longo da muito consistente filmografia da investigadora Susana de Sousa Dias – como Natureza Morta (2005), refletindo sobre a opacidade das imagens, ou 48 (2010), recorrendo a fotografias de presos durante a vigência do Estado Novo; ou ainda Luz Obscura (2017), indagando o sentimento de perda por parte de familiares do dirigente comunista Octavio Pato, ou até Fordlandia Malaise (2019), ao confrontar o espaço de memória e a actualidade da cidade industrial criada por Henry Ford na Amazónia em 1928.

Curioso neste filme é perceber com Ansgar quem tem as imagens e quem não as tem. Portanto, quem tem ou não direito à imagem. “Nem todas as crianças têm imagens. Desde logo, aquelas crianças que não tiveram experiências tão boas, como as que tiveram experiências maravilhosas. É sempre a mesma coisa, não é? Quem tem direito à imagem e quem não tem direito à imagem.“ Ao que Susana complementa: “a própria existência de imagem é a prova da forma como foram acolhidos, em que meios é que foram” e numa segunda fase, “a dificuldade em encontrar os materiais que as próprias famílias nos deram, imagens da época onde houvesse uma criança na imagem”. Razão pela qual esta abordagem se revelou completamente nova para ambos. “Porque nunca andámos à procura de crianças. A verdade é que as crianças não existem nas imagens de arquivo. Isso é que é muito interessante. Porque isso também só realizamos na própria investigação, na própria montagem à procura de imagens. As crianças normalmente estão na margem. Essa mudança de paradigma apenas ocorreu ao longo das últimas décadas. Como é que a comunidade olha para a criança?”

As imagens que nos olham

Ora é precisamente esse tratamento da imagem e o que ela nos mostra e releva que procuramos compreender com Susana de Sousa Dias. “O que é importante na imagem é tentar perceber o que é que ela tem lá dentro. E perceber o que ela mostra a superfície. Neste caso, grande parte do material do filme são imagens familiares. É muito interessante olhar para aquelas imagens e perceber o que é que elas mostram e o que elas escondem. E perceber também que é preciso ter em atenção que são fotografias muito codificadas. São imagens de família feitas de acordo com os modos de representação daquela época. E também são sempre tiradas pelo elemento masculino da família. Há uma série de coisas que acontecem naquela imagem, que é preciso perceber que está lá. Bem como a ideia de Portugal que aparece no fundo. Olhando para as imagens conseguimos detetar muito mais do que aparentemente estão a mostrar. “

Viagem ao Sol ©Kintop

Seguramente, imagens que nos olha e interpelam. “Sim, há sempre uma interpelação”, confirma a realizadora. “Até porque nestas imagens as pessoas olham para a câmara, portanto estão a olhar para nós. Mas aparece também esta ideia de contra campo. Há um olhar que nos é devolvido. O filme trabalha também esse aspecto. Depois há ainda a importância do som. O som foi muito trabalhado. E a questão do próprio testemunho. “ Ao fim e ao cabo elementos fulcrais sobre o reconhecimento da época.” Susana explica: “Por um lado, temos a questão do olhar da criança. Ou seja, são adultos que falam, mas de repente a criança irrompe no discurso. Nós tentámos seguir o filme por aquela perspetiva. O que é que esta criança viu?” E depois tudo aquilo que nos revela sobre Portugal: “São crianças que vêm, numa situação muito particular, com toda essa experiência de guerra. De repente observam um país que para elas é estranho e revela novas dimensões. Isso suscita toda uma série de questões. 

Para o filme, Susana e Ansgar falaram com mais de 50 pessoas, embora tenham sido selecionadas apenas cerca de vinte. “Nós tentamos ir pelas pessoa e pela experiência individual que eles contam”, esclarece Sousa Dias. “Tentamos criar uma voz que pudesse, de certa forma, transmitir aquilo que foi a experiência numa imaginação mais coletiva. Este não é um filme de personagens. Estas pessoas vão contando as suas experiências e vão oferecendo um quadro. Foi esta experiência do que era Portugal da altura.” Por outro lado, a possibilidade de perceber as leituras que esta realidade poderá ter nos dias de hoje. Sobretudo num contexto tão semelhante, com uma guerra a decorrer actualmente na Europa que produziu já um tremendo fluxo de milhões de refugiados. “Exatamente, uma coisa que é muito importante para nós é como é que tudo isto ressoa nos dias hoje. Pois, lá está, temos as meninas loiras de olhos azuis, eram as primeiras a ser escolhidas. As morenas, as mais escuras, ficavam atrás. Claramente temos aí um padrão”, entende Susana.

Interessante é perceber como é que tudo isto chega ao nosso presente. Ou não chega. Até porque o relevo está precisamente na “importância de escavar os factos. E o que foi apagado da História, da memória. Porque há memórias fortes e memórias fracas. E as fracas são as mais interditas, são proibidas.” Até porque as (na altura) crianças não poderiam verbalizar esta experiência”. Por isso, tudo passa pela possibilidade de “dar voz às crianças, mas de forma a que elas – adultas hoje – possam avaliar uma memória infantil, mesmo que sobre uma memória distante”. No fundo, algo que “apela à memória infantil”, como esclarece Ansgar. Susana completa a ideia referindo que “não procurámos os adultos a reflectir sobre experiências do passado. O que tentamos foi perceber como é que essa criança emergia que era conforme nos dava as imagens e as vivências e a experiência. Isto normalmente são narrativas menores, mas aqui são as mais relevantes. Pode revelar-nos algo de novo. “

O poder do som

Uma nota ainda sobre o muito relevante trabalho do som levado a caso pelo estúdio Kintop, responsável também por outros filmes em diferentes secções do IndieLisboa, como Red Africa, de Alexander Markov, Rua dos Anjos, de Renata Ferraz e Maria Roxo. “Para nós, o som é sempre muito importante”, confirma Susana de Sousa Dias. “Basicamente temos aqui três níveis”, completa Ansgar Schaefer. “Temos a imagem, temos a fala e temos o som. Ou seja, nunca temos uma correspondência total das três coisas. Podemos ver que as pessoas dizem, mas ao mesmo tempo ouvir uma música, com violinos. No fundo, cada coisa tem uma via autonóma.” Precisamente o que foi feito com o documentário de imagens de arquivo de Red Africa, em que o som de propaganda soviético foi totalmente retirado e retrabalhado com sons puramente essenciais, conotando a imagem com outras capacidades de leitura suportadas pelo poder da imagem.

Rua dos Anjos ©Kintop

No caso de Viagem ao Sol, trata-se sobretudo de analisar uma memória que é parcelar, como reflecte Susana: “As imagens são mediadas por diferentes olhares. Quando são construídas mostram uma determinada realidade. Nós trabalhamos com esses níveis, não para reforçar alguma coisa, mas precisamente para quebrar esses laços e poder criar uma abertura, para que a coisa seja pensada para além daquilo que está a aparecer. Isso para nós é importante. A ideia é quebrar essas associações, essas redundâncias. Para tentar direcionar o espectador naquilo que está a ver. Não induzir uma leitura específica para cada coisa.” 

Fundamental é neste plano o trabalho do som composto por Didio Pestana (músico, compositor e sound designer – com trabalho conjunto com o Gonçalo Tocha), desenvolvido com a intervenção de Susana e Ansgar. De resto, um trabalho semelhante ao realizado em Natureza Morta (2005). Ou seja, como explica Susana de Sousa Dias, “não é o compositor que vai fazer o som sobre as imagens, mas dá-nos o som que é montado com as imagens. Isso é muito importante neste processo. O som tem de estar ligado com as imagens e com o que está a ser dito.

Regresso a Forlândia

Entretanto, valerá a pena referir que Susana trabalha já em dois projectos diferentes. Um deles será um complemento a Fordlândia Malaise (2019). Voltou ao Brasil em 2021, à região da Amazónia e à vila Fordlândia, para fazer uma espécie de díptico, em que a segunda parte se vai Fordlandia Panaceia. “Isto para trabalhar uma série de questões que ficaram em aberto”, como nos confessa. “De repente surgiram uma série de uma série de novidades. Interessou-me aprofundar todas as questões envolvidas na criação daquela company town. E sobretudo, pensar o que lá estava antes e o que está atualmente.” O outro decorre em Angola e foi interrompido pela pandemia. “Tivemos agora em fevereiro e março em Angola. Supostamente já devia estar feito. É sobre a Fazenda Tentativa, uma fazenda criada no princípio do século vinte e fim do século dezanove. Foi considerada uma fazenda modelo. Durante a guerra colonial a tropa portuguesa foi sede de um batalhão. É uma história dramática ali. E outra vez, é uma história que se faz por camadas. Através daquela fazenda consegue-se abordar diferentes semanas temporais, históricas, com apagamentos históricos, apagamentos da História, a apagamento da memória também. E vir até a actualidade.”

Fordlandia Malaise ©Kintop

Susana de Sousa Dias sintetiza desta forma ambos os projectos: “Tanto na Fordlandia como neste projecto,  a questão tem a ver como como é que todas estas histórias, todos os estes apagamentos, como é que isso nos permite ainda poder escavar? Para trazer até o presente algo que foi sendo esquecido, foi apagado. E como é que isto pertence ao nosso futuro. É sempre uma questão também do presente . É sempre esta dimensão, ou seja, não é ir ao passado. É ver como é que tudo isto chega ao nosso presente. E como é que se reconstrói no nosso presente.” De certa forma, essa pesquisa do passado para representa o nosso presente poderá constituir o objectivo do cinema de memória de Susana de Sousa Dias e Ansgar Schaefer.

Paulo Portugal

[Foto em destaque: Viagem ao Sol ©Kintop]

Alexander Markov – Red Africa: “Aqui vemos a manipulação da propaganda”

Alexander Markov regressa ao IndieLisboa para apresentar Red Africa (hoje, dia 5, no Ideal, às 22h), um documento que parte do projecto anterior (Our Africa, Indie 2019), abordando a partir de um ângulo mais profundo a questão da propaganda soviética nos países africanos acabados de sair do colonialismo. Nesta co-produção entre a Rússia e Portugal (Kintop e RTP) parte-se igualmente do imenso arquivo de imagens captadas por documentaristas soviéticos durante várias décadas, desde os anos 60 até à queda da União Soviética. Aí se capta a utopia e aproximação geopolítica ao continente africano, incluindo as colónias portuguesas, sublinhadas pelo trabalho muito cuidado na edição sonora, permitindo uma reflexão analítica e uma leitura mais apurada sobre o seu próprio contexto de propaganda. Algo que nos permite perceber o que se esconde por detrás do verniz ideológico do glamour desta URSS e da máscara destinada a vender o paraíso socialista da época. O segredo desta leitura reside no apurado desenho de som não linear que combina som oficial de discursos, com material recriado, além de banda sonora captada na época. 

Inevitavelmente, um filme que nos remete para a actualidade de hoje vivida no conflito com a Ucrânia, onde o lado militarista vigoroso eclodiu depois de anos de soft power com diversos líderes europeus.

Falámos com o documentarista Alexander Markov (49 anos) durante a apresentação de Red Africa no recente festival de cinema documental Visions du Réel, ocorrido em Nyon, na Suíça.

Red Africa (Imagem: Kintop)

Gostei muito do seu filme. Especialmente, o meticuloso trabalho com o som e a forma como é montado. Pode descrever-nos esse processo? 

Comecei a trabalhar com o som na Rússia, com um ótimo diretor de som, o Sergey Moshkov, que trabalhou com o Alexander Sokurov em vários projectos (Moloch, Taurus, A Arca Russa, Pai e Filho…). Para mim, era muito importante retirar todo o som da propaganda soviética, muito aborrecido, que descrevia os países africanos a iniciarem um percurso no comunismo. A ideia do som foi sendo desenvolvida ainda em S. Petersburgo. 

A pós-produção de som já foi feita nos estúdios de Lisboa?

Sim, entretanto, vim para Lisboa fazer a pós-produção, com um dos maiores realizadores e misturadores de som, o Pedro Góis, de Lisboa. Gostei imenso de trabalhar com ele. Na verdade, na altura, ele não tinha percebido bem a razão para eu não aproveitar o som original. Mais tarde escreveu-me a dizer que compreendera tudo e apoiava a minha forma de criação. No fundo, percebeu essa dimensão essencial que não era afectada pelo som – quase como um filme mudo. 

Sim, completamente. Isso dá-nos uma outra visão do que realmente vemos. 

Certo. Era uma essência que deveria ser muito concreta. Por exemplo, o som das medalhas dos soldados na Tânzania ou os soldados congoleses quando se encontram com o Patrice Lumumba (1925-1961). Esse é um som militarista. Isso é apenas um exemplo da opção por este caminho. Nem todos sons deveriam ser gravados, mas numa forma dramática. Esse drama e o som deveriam trabalhar juntos. Essa era a ideia principal. 

Sim, totalmente diferente do som original e da mensagem de propaganda…

Por vezes colocava o áudio soviético, só para me lembrar desse ponto de vista. Qual era o ponto e vista dos realizadores na altura, dos estúdios, dos patrões comunistas. No fundo, o que eles pensavam de África, como eles vendiam o continente africano aos soviéticos, mas também aos próprios africanos. 

No fundo, uma forma de censura

Repare, trata-se de uma co-produção entre a URSS e os países africanos. Os profissionais de cinema estavam entre os dois tipos de censura. Do lado soviético e do lado africano. O que é compreensível.

Fale-me do trabalho realizado em Lisboa, no estúdio Kintop.

Sim, foi aí que fizemos mistura de som. O Pedro Góis deixou a sua opinião, já que a minha versão não estava ainda muito trabalhada. É a visão dele que está agora mais presente. De uma forma em que agora já não temos receio do silêncio. Nesse sentido, o silêncio é também a nossa arma. Como sucede, por exemplo, no funeral do Leonidas Brejnev (1906-1982), onde os diversos líderes comunistas de todo o mundo vão despedir-se dele. Porque também têm receio dos seus próprios regimes. É isso que se vê também no seu olhar. Por isso, decidimos fazê-lo sem silêncio. Por vezes, com uma música.

Por falar no Kintop, gosto imenso do trabalho da Susana Sousa Dias e da forma como ela usa as imagens de arquivo. Fale-me um pouco do trabalho que realizou com ela e com o Ansgar (Schaefer).

Eu também aprecio muito o trabalho da Susana. Conheci-a, a ela e ao Ansgar, em São Petersburgo, mas apenas nos conhecemos. Na altura descrevi a minha ideia para um projecto Our Africa. Ela gostou. Ela e o Ansgar acharam que faria sentido concorrer ao ICA com um projecto focado nas antigas colónias portuguesas. Decidimos o conteúdo em 2019, no qual esteve envolvida toda a equipa do Kintop. 

A cena inicial de Red Africa com os escravos parece ser a única que destoa do conjunto, pois parece mais ficcionada. Como foi criada?

Essa cena, com os escravos africanos, na ilha Gora, no Senegal, foi criada pelo realizador soviético Yuri Aldokhin. Nessa altura, tinha apenas 23 anos. Na verdade, toda a equipa era contra a inclusão desta cena. Já não me lembro porquê, mas a Susana disse que era muito boa e que deverei ficar. Pois indica a forma como os soviéticos imaginavam a escravatura. Devo acrescentar que o Yuri Aldokhin foi o único cameraman em 30 anos, de Moscovo, a criar um registo ficcional sobre a escravatura. Os outros mostram apenas lugares com as estátuas de colonizadores, usando voz off a explicar ao público russo o que era a escravatura. O plano com o homem sentado num lugar estranho é único e diz muito sobre as reflexões soviéticas sobre a escravatura nessa altura. Especialmente nos anos 1960. 

Como foi o trabalho de investigação com o arquivo? Em que momento entra a produção portuguesa?

Sobre o arquivo tenho de dizer que estou muito grato à diretora do African Film Festival NY, a Mahen Bonetti, minha amiga. Conheci-a em 2006, em Poughkeepsie (perto de Nova Iorque) e acabei por trabalhar também, como investigador, para esse festival. Ela conhecia material de russos filmado em países africanos. Ao longo de sete anos fizemos diversos programas especiais focados em diferentes países africanos. Pensei na ideia em 2011, mas não foi nada fácil encontrar financiamento. Agradeço à Kintop por ter mostrado interesse.

Fale-me do trabalho de arquivo em concreto. O que procurava e o que encontrou?

O arquivo fílmico é vasto, existe muito material de propaganda, mas é algo especial, pois não é realista, é material criado. Às vezes sinto que estou dentro de uma ficção. Eram comissões em que faziam uma espécie de publicidade, na minha opinião. Eles eram quase como turistas nos países africanos. Por vezes tinham cinco dias para filmar, outras duas semanas, às vezes dois meses. Esse era um objectivo da diplomacia russa. 

Algo em que a Rússia tem uma grande tradição. 

Sim, eles sabiam como criar todo aquele glamour nos anos 1960, mas também em 1970 e nos anos 1980. E sabiam também como adaptar cada filme às diferentes situações. Fosse amigável ou relações internacionais com países africanos. Esses filmes são um produto especial dos estúdios soviéticos que trabalham de forma muito estreia com a diplomacia. 

Red Africa, de Alexander Markov ©direitos reservados

Sim, era uma imagem típica de propaganda…

O problema é que os filmes se parecem muito uns com os outros. São muito semelhantes. Era um problema dramático, mas também para a montagem porque todas as imagens têm o mesmo estilo. Funcionou de uma forma formalista, mas estranho do ponto de vista dramático. Mesmo assim encontrei sequências muito boas com o Brejnev, sobretudo quando ele observa países africanos e o vemos nas ruas a mostrar o seu colonial mood – um mood de soft power. Depois os planos dos soviéticos a cortarem as árvores e a sua satisfação. Ensinam os africanos à sua maneira. Tudo isso parece muito colonial. Isso foi um presente para mim. É uma forma da propaganda se apresentar a si própria. Isso foi bom do ponto de vista dramático. 

Podemos dizer que foi essa mesma propaganda que esteve na origem do que se passa hoje com a invasão a Rússia na Ucrânia? 

É uma boa pergunta. Para mim, é claro que o império russo era já uma nação militarista. Completamente militarista. Tal como a União Soviética. A propaganda usa a expressão “Miru Mir” (em russo) que significa “a paz para o mundo”. Portanto, lutamos pela liberdade (risos), ou seja “lutamos” … pela liberdade. É o que diz a propaganda soviética. Agora sabemos que o regime do Putin investiu muito em armamento. 

Aparentemente, pouco ou nada mudou…

Neste ponto de vista, nada mudou. A Federação Russa consiste em várias federações pertencentes também ao império soviético, com o centro em Moscovo. Tal como o soft power que vemos em Red Africa. Claro que usam a mesma propaganda. Mas o que é mais importante são as ambições de império que vemos no solo africano. Não foi muito difícil. Venderam armas, treinaram os oficiais, ajudaram as guerrilhas. Algo que parece ser contra o poder colonial, embora tenha o seu lado militarista. Nesse cenário militar da URSS e da Federação Russa e do Império Russo nada mudou no princípio imperialista. Moscovo sabe viver, sabe como controlar as fraquezas deste território. O que percebemos é que este poder militarista foi preparado ao longo de vinte anos. Vemos agora o resultado, completamente agressivo. 

A ideia era mostrar todo esse processo até ao colapso da URSS, certo?

Sim, e a esperança da independência da Ucrânia, da Bielorrússia, da Lituânia, da Látvia, da Estónia… Esses países tiveram sorte e são independentes. Mas para a Ucrânia e a Bielorrússia é mais difícil devido à missão da nova Federação Russa, a Federação Russa do Putin. Podemos comparar estas ambição com a História deste território. Um paralelo que podemos criar com a história de Ivan, o Terrível ou outros czares, que foram também completamente militaristas. E encontrar as raízes para a propaganda no século XX, durante a 1ª GM, mas também a 2ª GM. É claro que estou apenas a pensar na União Soviética e na forma como colapsou. Este contraste entre o paraíso socialista africano e a queda a União Soviética. Aqui vemos a forma da manipulação da propaganda, a forma como gostam de ser vistos. Vemos o que criaram num filme soviético. A verdade mostra outro quadro da vida, outros quadros da vida.

Paulo Portugal

[Foto em destaque: Alexander Markov na Nazaré]

Competição Nacional de Curtas do IndieLisboa: Um Olhar Diferente Sobre a Família

Lugar que nos é próximo, a família tem sido, repetidamente, tema no cinema português. As duas jovens realizadoras em competição no Indielisboa, Inês Luís e Mafalda Salgueiro, ambas selecionadas para a Competição Nacional de Curtas, abrem-nos as portas para as suas famílias, ainda que de modos muito distintos.

Em Antes de Mim, O Fim, documentário de Inês Luís, somos transportados para antes do seu nascimento, como se ela marcasse o “fim” deste filme. Esta curta-metragem portuguesa revela-se interpelativa pois faz o espectador questionar-se sobre o percurso que levou à sua existência, e é esta mesma questão que leva Inês Luís a embarcar nesta aventura.

 A verdade é que vemos, muitas vezes, filmes onde a família é tema central e onde somos apresentados a esta família do ponto de vista do realizador, ou pelo menos sabemos que ele é parte da história. E apesar de podermos sempre afirmar que um filme é feito da perspetiva de quem o realiza, aqui o sentimento é ligeiramente diferente. Primeiro, porque a realizadora ainda não existia na altura em que a maioria das imagens de arquivo que nos mostra foram gravadas ou tiradas e, segundo, porque muito da história do filme em si nada tem a ver com ela diretamente. Só a vemos verdadeiramente a poucos minutos do filme terminar, e apenas somos levados até ela pelo título do filme, que nos fala dela mesma na primeira pessoa. A sua ligação à narrativa é simples: Ana e Nan são seus pais. 

Inês Luís constrói o seu filme a partir de fotografias e vídeos caseiros que os seus pais foram tirando ao longo da sua relação. Mais do que uma história familiar, estamos perante uma história de amor. Um romance real mas que, em muito, parece um romance “à filme”. Este lado ficcional do documentário de Inês Luís deve, em muito, ao carisma que ambas as “personagens” (pai e mãe de Inês) têm e demonstram, quer à frente quer atrás da câmara. E apesar da narrativa não se apoiar em eventos que transcendem a vida mundana, e sim em acontecimentos simples e quotidianos, não deixamos de ser agarrados ao ecrã do início ao fim por este casal apaixonado. 

Comezainas, de Mafalda Salgueiro – © IndieLisboa

“Cozinhar é dar carinho” é o que nos diz a mãe de Mafalda Salgueiro. Comezainas difere logo à primeira vista de Antes de Mim, O Fim pelo género: filme de animação. Apoiando-se na mesma no dispositivo do vídeo caseiro, Mafalda Salgueiro anima por cima deste. A animação funciona muito bem na medida em que nos oferece as cores, as texturas e, diria até, os sabores e os cheiros que tornam este filme numa experiência tão sensorial e bela.

A própria realizadora, na apresentação do filme, diz-nos que esta foi a única forma que encontrou de abrir as portas da sua casa e deixar-nos entrar. A verdade é que se notou desde cedo este espírito acolhedor da sua família, que transportou os rissóis do filme para o próprio cinema São Jorge. O espectador entrou naquela casa. E, embora estejamos perante uma animação, o filme tem um lado muito próximo, e parece conseguir colocar o espectador ao lado da mãe de Mafalda enquanto ela conta como fez rissóis pela primeira vez aos 13 anos e como toda a gente da família dela queria que ela os fizesse mais vezes.

Da sopa de coentros, às migas com costado, aos rissóis de pescada, este filme deixa-nos entrar e senti-lo. É um filme que evoca a alegria na sala e que nos faz querer também estarmos perto da nossa família. 

O amor pode ser visto de muitas formas. E se em Antes do Mim, no Fim sentimos o amor romântico transformar-se num amor familiar. Essa transformação pode ainda rimar com o título que avizinha um fim de qualquer coisa. Em Comezainas, o amor vem em forma de cuidado. O cuidado que se tem com o outro a quem queremos dar uma reconfortante refeição. Um amor em forma de rissol: quentinho e saboroso. 

Aquilo que une os dois filmes é talvez a sua vontade de olhar de forma diferente para um tema comum do cinema português e, ainda assim, perpetuar a sua ligação com o amor. Num deles: uma bonita e simples história de amor. No outro: uma receita de aquecer o coração. O tom jocoso que domina ambos leva o público a nunca perder o sorriso na cara. E cinema é sobre isso mesmo: sobre agarrar espectadores, fazê-los sentir coisas e fazê-los querer voltar à sala de cinema para repetir a dose. 

Ambos os filmes estão presentes na sessão Curtas Nacionais 3, ao lado do filme experimental Subir e Sumir, de Francisco Queimadela e Mariana Caló, e de By Flávio, a curta-metragem selecionada para a Berlinale, de Pedro Cabeleira. A próxima sessão será no dia 8 de maio, pelas 21h30, no Cinema São Jorge.

Cartaz de Comezainas, de Mafalda Salgueiro – © IndieLisboa

Inês Moreira

[Antes de Mim, O Fim, de Inês Luís – © IndieLisboa]

Águas do Pastaza – entre a vida, a infância 

Águas do Pastaza não é um filme antropológico, nem tão pouco etnográfico. E ainda bem, pois todos sabemos os perigos que a antropologia visual corre quando olha a vida dos outros. Alertados de antemão para estes limites de acesso da representação, a sinopse do filme suscita imediatamente uma certa apreensão face ao que vamos ver. Porém, desde logo ela se dissipa nas palavras de Agostinho da Silva escolhidas pela realizadora, Inês T. Alves, para anunciar, logo no primeiro plano do filme, o que nos será mostrado daí em diante.

“As qualidades infantis deveriam conservar-se até à morte, como qualidades distintivamente humanas – as da imaginação, em vez do saber, do jogo, em vez do trabalho, da totalidade, em vez da separação.”

Águas do Pastaza, de Inês T. Alves ©Oublaum 

Águas do Pastaza é um filme sobre a infância e não um estudo sobre as crianças das comunidades Achuar, que habitam a floresta da Amazónia junto à fronteira que separa o Equador do Peru. Pode ser uma infância outra, remota a um tempo que já não existe na memória de muitos de nós, até mesmo estranha, mas é a infância, em todo o seu esplendor, do qual todos nós guardamos uma imagem, que nos olha do lado do ecrã. Estranha porque as crianças protagonistas da infância que o filme mostra parecem demasiado autónomas para serem crianças.  Das duas uma: ou as crianças são adultos em potência, isto é, aqueles que se caracterizam por um modo de existência definido pelas qualidades do saber, do trabalho e da separação, ou as crianças são mais adultas que os adultos, e são-no na medida em que precisamente se mantêm crianças, ou seja, na medida em que as qualidades da imaginação, do jogo e da totalidade, ao invés de descobrirem, exprimem um modo de sintonia mais autêntico com o meio. É isto que Santo Agostinho pretende ver conservado, e que Águas do Pastaza pretende mostrar. Elas andam de catanas na floresta à procura de comida, pescam, lavam a sua roupa, cozinham a sua comida, tudo sem a presença de um adulto. Tratando-se de um documentário e não de uma ficção, devemos, na medida do possível, acreditar no que vemos, isto é, nessa forma de vida das crianças – é este o segredo do filme, explicitamente colocado em palavras por Agostinho da Silva. Não obstante essa autonomia ser impressionante, o que está em causa é uma forma de vida, que o filme não só nos mostra em plena harmonia com o meio, razão pela qual não estranhamos ver uma criança manusear com tanta perícia uma catana e, com igual perícia, um telemóvel, como também nos mostra a possibilidade de reter a infância, de fazê-la durar mesmo nas acções menos infantis. 

Águas do Pastaza, de Inês T. Alves ©Oublaum 

Entre banhos, a brincadeira, entre a pesca, a tranquilidade, entre o cozinhar, a cooperação, … entre tudo, entre a vida, a infância. E não há maior dificuldade para o cinema do que a de mostrar a infância, porque aquilo que dela é mais visível constitui uma das maiores dificuldades para a representação cinematográfica, para não falar do invisível. À parte alguns planos que parecem retirados dos documentários sobre a vida selvagem, os quais têm o mérito de recordar as manhãs de fim-de-semana da infância, e que a televisão portuguesa muito gostava de acompanhar com esse género de documentários, Águas de Pastaza supera essa dificuldade, isto é, torna visível o invisível, com toda a delicadeza e respeito que a infância exige, mostrando-nos a totalidade de existir sempre criança. Como no último plano do filme, onde, voltadas de costas para nós, as crianças correm livres e sorridentes em direcção à àgua, como se só assim o mergulho fosse possível. 

E por muito longínquas que sejam as águas do Pastaza, o rumor da natureza que as cerca é o rumor que se impõe nem que não seja apenas numa memória de infância de qualquer um de nós. Já o dissemos, é um filme sobre a infância, mas não sobre a nossa, como é claro. Contudo, e aí reside a beleza do filme, ele olha-nos, lembra-nos esse precioso passado ou, quem sabe, somos nós que o olhámos e lembramos o presente esquecido através do filme, pois são qualidades intrínsecas que permanecem de algum modo durante toda a vida. 

Cátia Rodrigues

[Foto em destaque: Águas do Pastaza, de Inês T. Alves ©Oublaum ]

Lisboa, cidade triste e alegre: Uma Cidade Despersonalizada

Este filme tem o mérito de entender que qualquer tentativa de procurar um título que melhor se lhe adequasse seria em vão. 

O mais recente documentário de João Trabulo, exibido na secção de Sessões Especiais do IndieLisboa, é uma homenagem ao trabalho de duas grandes figuras da fotografia portuguesa. Elas são Victor Palla e Manuel Costa, autores de um dos livros de fotografia com maior projeção internacional de sempre, o qual se intitula precisamente Lisboa, Cidade Triste e Alegre, publicado pela primeira vez em 1959. Este livro circulou por fascículos em pleno regime fascista, pois, só desta forma – enviando os fascículos diretamente para o correio dos poucos que sabiam da sua existência – era possível escapar à censura.

Uma imagem com texto, pose

Descrição gerada automaticamente
Lisboa, cidade Triste e Alegrem de Victor Palla e Manuel Costa © Pierre von Kleist

 Depois de esquecido por quase meio século, foi, em 2003, considerado por Martin Parr e Gerry Badger, no seu livro The Photobook: A History, um dos livros de fotografia mais importantes do pós-guerra. Mas, sem nunca abandonar o livro, falemos um pouco do filme. 

Chegámos a Lisboa pelo rio, como no início do Recordações da Casa Amarela, mas esta já não é a Lisboa de César Monteiro, muito menos a Lisboa que nos é apresentada por Victor Palla e Manuel Costa. É uma cidade moderna construída sobre todos esses lugares famosos que nunca veremos. O filme quer mostrar esse contraste.

Entendemos que muitos destes lugares ainda existem, no entanto já não seriam hoje um tão fiel retrato de Lisboa, se for ainda possível fazer um. Em 2019, por ocasião dos 25 anos de Lisbon Story, Wim Wenders esteve em Lisboa e afirmou que presentemente – pelo menos no ocidente – seria impossível voltar a fazer filmes sobre cidades. Tal seria consequência natural da globalização.

 Somos levados a questionar o que caracteriza um lugar. O que faz deste livro um retrato tão fiel de Lisboa é provavelmente o que transforma um espaço num lugar. Para discutir isto são então chamados a intervir no documentário Álvaro Siza Vieira – que partilha a atividade profissional com os dois autores do livro – e Teresa Siza. Numa conversa informal entre ambos fica esclarecido que para se retratar uma cidade é preciso captar-lhe a vida. Os espaços são necessários, mas não suficientes.

O que caracteriza então a vida de uma cidade? Serão com certeza as pessoas que a habitam, herdeiras do seu passado. Jorge Silva Melo, que tão recentemente nos deixou, diz-nos, no documentário que é comum que os velhos abandonem gradualmente as cidades, mas nunca tão radicalmente como acontece hoje. Uma cidade que quase ficou sem habitantes, sem ninguém que salvaguarde a sua cultura. Não seria esta a característica que constituía a impossibilidade de filmar cidades para Wenders? A ausência de uma cultura própria? O encenador deixa-nos ainda com o aterrador testemunho que cito de memória: “O cinema poderá continuar a viver nas casas, mas sem as pessoas o que será feito do Teatro”.

Quando Thomas Struth começa a fotografar ruas de cidades alemãs, e até americanas, ele fá-las representar quase sempre vazias, como forma de representar uma vida feita no privado, um certo recolhimento. Estas contrastam completamente com as ruas de cidades asiáticas cujo artista entende terem uma vida social muito mais ativa. Certamente que se fotografasse Lisboa na época do livro, o fotógrafo alemão representaria a cidade cheia de gente, pois a vida fazia-se nas ruas. Vitor Palla e Manuel Costa souberam vê-lo.

Thomas Struth - Contemporary Art Part II Lot 241 May 2011 | Phillips
Nanjing Xi Lu, Shanghai, de Thomas Struth © Phillips

O filme vai deixando estas questões no ar e avança para a outra grande questão que faz deste livro um objeto tão relevante da história da fotografia a nível internacional, que é o entendimento da natureza fragmentária do próprio processo fotográfico, natureza partilhada com a poesia. 

Através desse entendimento, os dois autores, talvez precisamente por não serem fotógrafos de formação, são capazes de olhar para a imagem e retirar dela o que mais lhes interessa, realizando crops, algo muito mal visto à época. Todas essas imagens – que poderiam ter-se ficado pelos parentescos circunstanciais ao neorrealismo italiano – são instrumentalizadas em função de um objeto que é em si um livro de poesia gráfica, mais até do que de fotografia. É como se a máquina fosse um estorvo necessário à sua produção. Isso constitui uma revolução.

Ao longo do documentário passamos por diversos planos – por norma fixos – desta nova Lisboa, alternados pelas fotografias do livro, que, como documentos históricos, são reveladoras das mudanças, e claro, pelo testemunho de quem viveu nesta antiga cidade, cheia de personalidade, mas nunca descrita como melhor. Marcada pela pobreza da maioria, que, no entanto, parece recordar esses tempos distantes com alguma nostalgia típica da infância, mas reconhecendo-os sempre como difíceis. 

O documentário termina como começa, pelo rio, como quem acompanha uma personagem que está de visita, um olhar de fora.

São ainda de realçar as intervenções de Sérgio Mah, André Príncipe, José Pedro Cortes, e Margarida Gil, para além de todos os que já foram mencionados.

Tiago Leonardo

[Foto em destaque: Lisboa, cidade Triste e Alegre, de João Trabulo  © IndieLisboa]