Laranjas Sangrentas: muito choque, pouco sumo

Laranjas Sangrentas (Oranges sanguines) integrou as sessões da meia-noite no Festival de Cannes de 2021, fora de competição, e, por cá, foi o vencedor do Prémio do Público do MOTELX em 2021. Agora, tem estreia marcada para dia 9 de junho, em exclusivo no Cinema Ideal.

Um casal de reformados tenta ganhar um concurso de dança para pagar uma enorme dívida. Um ministro da economia é suspeito de fraude fiscal. Uma adolescente teme a sua primeira experiência sexual. Laranjas Sangrentas utiliza a fórmula muito comum de ir revelando, ao longo do filme, como todos estes fios narrativos estão interligados. No centro, a uni-los, um advogado que tenta subir na carreira apesar das suas inseguranças.

Esta comédia negra, realizada por Jean-Christophe Meurisse, é uma sátira da sociedade contemporânea francesa e dos monstros por ela produzidos, debruçando-se sobre temas como a opressão, a vingança, os vencedores e os vencidos. O tom começa leve e humorístico, com o júri do concurso de dança a discutir quem levar à final. Logo nestes diálogos iniciais, são trazidos à luz temas que tendem a gerar algum desconforto: os patrocinadores do concurso privilegiam a diversidade, influenciando o júri a escolher um casal de idosos; uma outra dançarina aparenta ter um condicionamento físico, o que os leva a uma discussão sobre se devem ou não privilegiar um participante com incapacidade física. A hipocrisia de tomar este tipo de decisões com base numa lógica análoga a um mero preenchimento de quotas de forma a manter uma boa imagem é o primeiro dedo apontado à sociedade contemporânea. Não é o único: temas como a corrupção, o “politicamente correto”, o capitalismo e a masculinidade opressora vão surgindo, mas Meurisse não chega a conceder a nenhum deles a profundidade que merece.

Laranjas Sangrentas, de Jean-Christophe Meurisse © Direitos Reservados

A comédia quase absurdista também não é inteiramente consistente. Algumas cenas, como a ginecologista demasiado sincera e direta, não são mais do que sketches medianos que, no melhor dos casos, levam ao esboçar de um sorriso; outras merecem maior destaque, como a entrevista à la Alta Definição dada pelo Ministro da Economia. Ao que parece, gozar com a hipocrisia de políticos corruptos é um tiro quase sempre certeiro.

Mas que não se engane quem acha que o filme mantém este mesmo tom durante toda a sua duração, já que, a meio, Meurisse dá uma reviravolta para ir beber um pouco do horror (anti-)niilista de um Haneke, sem, contudo, atingir níveis de qualidade que se aproximem. Conteúdos gráficos e chocantes não serão novidade para qualquer pessoa que veja filmes minimamente provocadores, mas em Laranjas Sangrentas é difícil encontrar propósito por detrás das não uma, não duas, mas três cenas de violação – sendo uma delas particularmente retratada como uma piada para fazer rir o público. Sem surpresas, este aspeto tem sido alvo de várias críticas negativas.

Laranjas Sangrentas tenta ser mais do que aquilo que consegue, efetivamente, alcançar. Não parece ser suficientemente engraçado para ser uma boa comédia, nem suficientemente assustador para ser um bom filme de terror. Não é tão absurdo, provocador ou transgressivo como parece tentar ser; pretende ser chocante e arrojado, mas o objetivo permanece incerto. Tenta piscar o olho ao feminismo, mas o sucesso, por via de uma narrativa rape/revenge, é dúbio. O que resta é um meio termo hesitante e pouco marcante.

Provocadora, engraçada, violenta, cínica e niilista, a longa-metragem de Meurisse não irá resultar para toda a gente – ou se adora, ou se odeia. No final de contas, o ponto em que o filme se demonstra mais confiante é a ideia de que os monstros estão em todo o lado, ninguém é inocente e não existem vítimas absolutas – cada pessoa tem em si um monstro opressor com sede de poder.

Marta Batista

[Foto em destaque: Laranjas Sangrentas, de Jean-Christophe Meurisse © Direitos Reservados]


After Yang
: em defesa da ficção científica

Quando o android Yang se avaria, Jake procura uma forma de o reparar. Pela sinopse, o mundo futurista de robôs e clones baseado no conto de Alexander Weinstein poderia ser um blockbuster repleto de espetáculo tecnológico. Em vez disso, After Yang é aquilo que faz a ficção científica no seu melhor: ao invés de adotar como foco a tecnologia, utiliza-a como meio para desenvolver uma reflexão profundamente humana em que as personagens são o verdadeiro foco.

Conhecido pelos seus videoensaios sobre o estilo de cineastas conceituados, Kogonada estreou-se na realização em 2017 com a longa-metragem Columbus. Se essa foi a sua primeira tentativa enquanto realizador, After Yang (A Vida Depois de Yang) é a sua consolidação enquanto uma das vozes a seguir no cinema contemporâneo. A produção da A24 chega agora às salas portuguesas após estreia internacional no Festival de Cannes de 2021 e um Prémio Alfred P. Sloan no último Festival de Sundance.

Em After Yang, Jake (Colin Farrell) e Kyra (Jodie Turner-Smith) vivem uma vida aparentemente normal com a sua filha chinesa adotada, Mika (Malea Emma Tjandrawidjaja), e o seu «irmão» artificial. Yang (Justin H. Min) é um «tecnosapiens» cultural, um robô cujo propósito é ajudar Mika a aproximar-se das suas heranças culturais. No entanto, ele acaba por fazer mais do que isso, já que Jake e Kyra são pais distantes que passam pouco tempo em casa – um mal moderno ubíquo na atualidade – e sentem dificuldades em criar uma ligação com a sua filha. E Mika vai crescendo, mesmo quando eles não estão lá para o testemunhar.

Numa sequência de créditos iniciais inesquecível, a família participa numa competição virtual de dança contra outras famílias do mundo. É um momento íntimo, cómico e encantador, mas provavelmente a única cena durante todo o filme que nos fará soltar um riso. É neste contexto que o robô da família avaria, iniciando assim a vida titular depois de Yang. O que se segue é a missão de Jake para o reparar, que o leva numa viagem profundamente comovente através das memórias de Yang e o permite conhecer o «tecno» de formas que nunca imaginara possíveis.

After Yang, de Kogonada © A24

Yang começara, através de um dispositivo interno que lhe permitia gravar e armazenar alguns segundos por dia, a memorizar os momentos que considerava mais importantes: Mika a dar os primeiros passos; cenas da beleza quotidiana como a luz solar a bater nas folhas das árvores, um prato de fruta ou os raios de sol a entrar pela janela adentro; ternurentas cenas de família entre Mika e os pais; um arco-íris ou as primeiras flores da primavera; momentos românticos entre Jake e a Kyra; um sapo num dia chuvoso; a sua própria figura a olhar-se ao espelho; e inúmeras memórias de uma rapariga misteriosa, sugerindo que Yang estaria apaixonado por ela. Através do olhar de Yang, Kogonada é capaz de capturar de forma brilhante, naquela que é talvez a sequência mais tocante do filme, a beleza da vida em cada instante, invocando paralelamente questões mais óbvias acerca da capacidade de um ser artificial se apaixonar ou da sensibilidade que lhe permite decidir quais os momentos que deseja recordar. As respostas que Jake encontra nas memórias de Yang podem não permitir tê-lo de volta, mas talvez tragam algum conforto na sua ausência e uma oportunidade de reencontro para esta família em que todos se encontram tão distantes.

After Yang, de Kogonada © A24

Kogonada cria uma linguagem muito própria, mergulhada num tom melancólico e até de mistério, sem aderir às convenções narrativas e de género mais comuns. A direção de arte é um dos destaques a nível técnico, evidente nos cenários elegantes da casa futurista, mas também a fotografia de Benjamin Loeb e a palete de cores distintiva em que se realçam os verdes da flora omnipresente. A montagem, do próprio Kogonada, é também admirável, sobretudo na opção de cruzar e repetir diferentes takes da mesma cena nos momentos em que assistimos a recordações de Jake ou Kyra. Esta repetição desorientadora transmite de forma habilidosa a instabilidade e volatilidade da memória humana, especialmente quando contrastada com as memórias de Yang, perfeitamente armazenadas num dispositivo externo e reproduzíveis com total exatidão. O ritmo silencioso e minimalista do filme não faz dele, em momento algum, demasiado lento – cada cena é absolutamente essencial e faz a história avançar sem um momento desperdiçado e em apenas 96 minutos. Esta pode, no entanto, ser uma faca de dois gumes, já que a duração é talvez demasiado curta para a amplitude de temáticas que o filme tenta explorar, ficando a sensação de que o desenvolvimento poderia ter sido mais aprofundado. Ao mesmo tempo, After Yang está muito dependente de uma ligação emocional entre o espectador e estas personagens, tornando-se uma obra com mais estilo do que substância caso esta ligação não se verifique.

A extensão ambiciosa dos temas a abordar faz com que o filme possa ser lido a partir de várias lentes: a família e a herança cultural, a perda e o luto, o estatuto da inteligência artificial, a memória, as nossas relações face à tecnologia, a complexidade das relações interpessoais ou, pura e simplesmente, a beleza de se estar vivo. After Yang é sobre tudo isto e talvez mais, e Kogonada é cauteloso em levantar as perguntas certas sem oferecer respostas concretas. Quando Jake pergunta a Ada (Haley Lu Richardson), a jovem por quem Yang estaria apaixonado, se este alguma vez se debatera com o facto de ser um «tecno», ou se alguma vez manifestara o desejo de ser humano, Ada, que é um clone, não consegue conter um riso abafado – «Isso é uma pergunta tão humana de fazer, não é? Vocês assumem sempre que os outros seres querem ser humanos, mas o que há de tão bom em ser humano?». Um dedo apontado ao antropocentrismo que tão bem nos caracteriza. Contudo, há algo na cena em que Yang e Jake conversam sobre chá que sugere que talvez a personagem de Colin Farrell tenha algumas razões para ponderar a questão, nomeadamente quando Yang diz «quem me dera que, para mim, o chá chinês não fosse apenas factos». Do mesmo modo, a sua coleção de borboletas sugere, no mínimo, uma sensibilidade e admiração pela vida para além dos «factos» que as suas memórias já haviam revelado.

After Yang, de Kogonada © A24

O filme não se preocupa em responder a questões práticas sobre as tecnologias que habitam este mundo: o funcionamento e origens dos clones e dos androides; a cápsula que se conduz sozinha e os transporta para onde querem; a menção a «memórias» que se vendem numa loja; a tecnologia avançada de videochamada que utilizam para comunicar à distância. Todas estas inovações integram harmoniosamente o universo e são periféricas para a história que Kogonada quer contar, que é verdadeiramente humana, colocando After Yang no mesmo universo em que poderíamos encontrar a obra literária de Kazuo Ishiguro ou filmes como o célebre Her (2013) de Spike Jonze.

After Yang é uma demonstração do poder da ficção científica para nos fazer olhar para dentro. Afinal, este género de contar histórias não se restringe apenas a cenários ambiciosos de guerras intergalácticas ou de contacto com espécies extraterrestres, mas também pode oferecer, de modo mais subtil, através da tecnologia e da ciência, um espelho para nós próprios, levantando aquelas que são as grandes questões acerca da humanidade e das relações humanas. Kogonada executa assim mais um pequeno passo na já longa missão de reconhecimento da ficção científica enquanto género digno de prestígio entre os críticos, algo que, salvo raras exceções – vêm imediatamente à memória clássicos como 2001: Odisseia no Espaço, Stalker ou Solaris –, ainda está longe de ser a realidade comum.

Marta Batista

[Foto em destaque: After Yang, de Kogonada © A24]

COW: o mundo através dos olhos de uma vaca

Com estreia internacional no Festival de Cannes de 2021 e passagem pela secção Silvestre do IndieLisboa no passado dia 3, Cow acompanha o dia a dia de Luma, uma vaca leiteira numa quinta de produção industrial de leite em Kent, na Grã-Bretanha. Esta é a primeira incursão de Andrea Arnold no documentário, mas a cineasta não é nenhuma desconhecida, tendo vencido o Prémio do Júri em Cannes por três vezes com Red Road (2006), Fish Tank (2009) e American Honey (2016). Este é, contudo, o seu projeto mais pessoal.

O filme abre com um parto, numa cena imersiva em que se destaca desde logo a proximidade da câmara e o som, permitindo observar em detalhe visceral Luma a dar à luz. «É uma menina», ouvimos. Com estas três palavras, fica traçada uma profecia cruel, um futuro igual ao da mãe – ser engravidada, produzir leite, ser engravidada de novo, num ciclo ininterrupto.

Cow, de Andrea Arnold © BBC Films

A rotina de Luma é repetitiva: dá à luz, é ordenhada, come, dorme, muge, é inspecionada regularmente para ver se o útero está a sarar bem, tudo isto enquanto a câmara da diretora de fotografia, Magda Kowalczyk, a segue de perto ao longo de cerca de quatro anos de filmagens. Não vale a pena esperar pelos plot twists – esta é uma história real e sabemos como termina. À medida que a rotina se repete, não sem alguns problemas de ritmo na terceira parte do filme, Luma demonstra cada vez mais dificuldades físicas. Quanto tempo até já não aguentar mais? é a pergunta que se vai impondo conforme o filme avança.

Ao longo dos 90 minutos, mantém-se o estilo à la cinéma vérité: não há narração voice over, não há texto, não há vídeo, o diálogo é quase inexistente, e a utilização exclusiva de câmera de mão num ângulo quase sempre ao nível do olhar da vaca reforça intencionalmente a experiência de empatia. É a perspetiva de Luma que seguimos sempre. Mesmo nas ocasionais aparições dos trabalhadores da quinta, o filme nunca adota a sua perspetiva, com a câmara a manter-se quase sempre abaixo do nível das suas caras. Ao mesmo tempo, a banda sonora diegética de música pop, proveniente da rádio que os trabalhadores da quinta ouvem enquanto desempenham as suas tarefas diárias, parece não condizer com aquilo a que assistimos, dando azo a cenas caricatas que podem retirar alguma seriedade ao filme, como o ritual de acasalamento de Luma ao som de Kali Uchis ou a ordenha mecânica do dia enquanto se ouve Billie Eilish.

O resultado da abordagem que privilegia a neutralidade e a objetividade, fazendo da câmara um mero observador, é um filme que não se pretende didático ou acusatório, nem tão-pouco tenta passar uma mensagem política associada ao veganismo. Em vez disso, trata-se de uma demonstração sóbria da vida de Luma, num exercício de criação de empatia que também a ausência de narração propicia, obrigando o espectador a virar-se para as suas próprias reflexões e a retirar as suas conclusões. Sem romantismos ou juízos de valor, o resultado é um esforço sincero por fazer com que as pessoas não apenas olhem, mas vejam verdadeiramente estas vacas e as suas vidas. «Sinto que no mundo não nos vemos uns aos outros. Não vemos as outras coisas vivas», afirma Arnold em entrevista ao New York Times. «Só queria genuinamente perceber se, seguindo-a com regularidade, seria possível criar uma ligação verdadeira, vê-la». O objetivo parece ficar cumprido, pelo menos para a realizadora: Arnold acredita que Luma, que tinha perfeita noção das câmaras à sua volta, parecia sentir-se «vista».

Mas talvez seja possível ir para lá do simples dia a dia de uma vaca. Observando o quotidiano de Luma, somos inevitavelmente confrontados com questões complexas, muitas das quais tendemos a evitar. Por várias vezes, parece que a vemos fitar diretamente a câmara. E ainda que talvez não seja oportuno projetar nesse olhar as nossas próprias emoções e pensamentos antropomórficos, é difícil evitar questionar se o que avistamos nele poderá ser desespero, sofrimento, ou até mesmo um olhar que nos julga.

Cow, de Andrea Arnold © BBC Films

Arnold reconhece a derradeira anonimidade de Luma – esta é a sua história, mas poderia ser de outra vaca qualquer. O filme não esconde a dura realidade das vacas leiteiras, a verdade desconfortável de uma vida abreviada e em que predomina o sofrimento. Estes animais vivem com pouco espaço e em condições muitas vezes deploráveis; são obrigados a engravidar sucessivamente, por vezes através de violenta inseminação artificial, de forma a produzir leite de modo contínuo; as suas crias são-lhes retiradas logo após o nascimento; e, quando os níveis de produção começam a decrescer, são enviadas para abate, geralmente com 4 a 6 anos de vida, apesar de a sua longevidade natural ser de cerca de 20 anos. São objetos maquínicos ao serviço dos desejos humanos.

Num filme com este objeto, são, portanto, escassas as cenas de pendor positivo ou esperançoso. Num destes raros momentos, após as vacas terem sido temporariamente libertadas para pastar ao ar livre, Luma parece observar um pôr do sol impressionante. Mais uma vez, se está realmente a apreciar a beleza do céu ao final do dia não passará, provavelmente, de uma projeção puramente humana. Mas o momento é real. Nunca poderemos conhecer a verdadeira personalidade, emoções e reações de Luma. Mas talvez o reconhecimento de que estas existem, sejam elas quais forem, seja um importante primeiro passo.

Marta Batista

[Foto em destaque: Cow, de Andrea Arnold © BBC Films]

𝑹𝒆𝒖𝒏𝒊𝒂̃𝒐 (𝑴𝒂𝒔𝒔) – 𝐩𝐞𝐫𝐝𝐨𝐚𝐫 𝐩𝐚𝐫𝐚 𝐬𝐨𝐛𝐫𝐞𝐯𝐢𝐯𝐞𝐫

𝑅𝑒𝑢𝑛𝑖𝑎̃𝑜 (𝑀𝑎𝑠𝑠) chegou esta semana aos cinemas portugueses, infelizmente passando despercebida por muitos, naquela que é a estreia de Fran Kranz enquanto realizador e argumentista. Em foco, o frente-a-frente entre os pais de uma vítima e os pais do autor do crime para uma conversa dolorosa, numa tentativa de seguir em frente.

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