CINENOVA 2022 – SESSÃO #8

Há um profeta nas Olaias, tenham cuidado! (2021)

de Lucas Camargo de Barros

Há um profeta nas Olaias, tenham cuidado! (2021), de Lucas Camargo de Barros © Direitos Reservados

Portugal, 1911. A implantação da República traz consigo a liberdade religiosa e a aceitação de diversidade de credos. Na mata, A Brasileira traz de volta os mortos — quando não consegue ressuscitar uma criança, apaixona-se por sua mãe e faz disso sua missão. Um filme mudo, salvo alguns murmúrios e lamentos que lhe oferecem uma aura assombrada enfatizada pelo azul monocromático, Há Um Profeta Nas Olaias, tenham cuidado! é um filme de amor e de mortos que junta tradicional e moderno num passado quimérico.

Kenia Pollheim Nunes

Os Tempos Conturbados (2021)

de Carlos Alberto Tavares Pedro

Os Tempos Conturbados (2021), de Carlos Alberto Tavares Pedro © Direitos Reservados

Censura, medo e uma nova realidade. Através das palavras de Filomena Lopes, regressamos organicamente a uma Angola recém-independente e a todo o seu poder monumental, capacidade destrutiva e esperança transformativa. Ritmicamente, um conjunto de fotografias agem enquanto testemunhos de um passado vivido, harmonizando o som da voz com a sua potência visual. Assim, Os Tempos Conturbados percorre esta experiência coletiva ao salientar uma das várias histórias pessoais que dela fizeram parte. Dando uma cara aos eventos e aos sentimentos, Carlos Pedro abre um baú geracional de desalento e frustrações, criando um ambiente para, como Filomena espera, os seus espectadores “saberem o que é que é Angola! Mas as histórias verdadeiras.”

Margarida Nabais

Isthmus, a Narrowing of Land (2022)

de Mara Chavez

Isthmus, a Narrowing of Land(2022), de Mara Chavez © Direitos Reservados

“Somos os frutos do vento – e fomos semeados, regados e cultivados pela sua mestria.”

Uma História Natural do Vento, Lyall Watson, p. 18

Em Isthmus, a Narrowing of Land, a câmara aparentemente móvel de Mara Chavez, obedece a um único princípio de movimento – o vento. Amorfo, invisível, o vento é a mais vital das presenças para as populações indígenas Zapotec e Ikoots, que habitam Isthmus, e sem ele não podem sobreviver. Sob a ameaça da exploração capitalista do seu território, que invade o horizonte da imagem com eólicas, alegadamente motivada pela procura de energias sustentáveis, a luta destes povos tem no mar e na terra, fontes essenciais da sua subsistência, os seus maiores aliados. A poética visual, aliada à experimentação sonora, deixa ecoar no filme, como num sussurro de um segredo que o vento anuncia, a sabedoria ancestral indígena sob o risco do seu desaparecimento junto com o desaparecimento da terra que dá solo ao seu povo.    

Cátia Rodrigues

Love, Death and Everything in Between (2022)

de Soham Kundu

Love, Death and Everything in Between (2022), de Soham Kundu © Direitos Reservados

O luto é das mais dolorosas e marcantes experiências humanas, um movimento simultaneamente consciente e inconsciente do confronto com a finitude, sendo por isso, uma extensão, ou projecção, da nossa própria morte. Assim, a morte de um filho é sempre prematura, sendo esse luto, o mais inaceitável de todos. A partilha do luto não o facilita, porventura ainda o complica, pois nem todos lutamos do mesmo modo. Esta batalha, antes de ser partilhada, é individual — este é o movimento tripartido do filme, a confluência de três lutos distintos: a mãe, o pai e a namorada. Cada um, primeiro, de seu modo individualizado, atende às suas próprias feridas, sofre a sós, para apenas depois sofrer em conjunto. Nessa reunião da dor e da ausência, encontramos a renovada vontade da presença, por fim o gesto de paz e silêncio possíveis. 

Diogo Albarran

Lugar Nenhum (2021)

de Pedro Gonçalves Ribeiro

Lugar Nenhum (2021), de Pedro Gonçalves Ribeiro © Direitos Reservados

A voz silenciosa que paira sob a aura azul magnética de Nowhere conduz-nos num solilóquio partilhado, atingido por uma avalanche de perguntas que se instalam num deserto de respostas. Perante a colouer des notre rêves, aqui coletivizando o tal quadro de Miró, há um espaço infinito de introspecção, de liberdade para questionar a própria liberdade e a melancolia que esta inerentemente acarreta dentro do espaço queer. Cada passo dado em frente aparenta impulsionar um novo obstáculo, estendendo o caminho a percorrer num túnel solitário.  

Assim, meditando sobre o estado da identidade dos homens gay no novo milénio, Pedro Gonçalves Ribeiro desvenda com este filme-ensaio as contradições e ambiguidades que vêm com ela, a sua representação nos media, a prática do cruising e até uma simples música. É a evocação de um apelo extenuado, mas intimorato, pela aceitação e a manifestação da diferença. Tudo, evidentemente, ao som da eterna questão de Cher – Do you believe in life after love?

Margarida Nabais

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Lugar Nenhum (2021), de Pedro Gonçalves Ribeiro © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #7

Espelho Eu (2022)

de Beatriz Alves Ribeiro

Espelho Eu (2022), de Beatriz Alves Ribeiro © Direitos Reservados

A primeira curta-metragem de Beatriz Alves Ribeiro é uma fantástica estreia, que revela desde imediato um grande domínio imagético, rítmico e crítico. O filme confronta a noção de ser mulher nos anos 70 em Portugal, a partir dos livros Enciclopédia da Mulher, tecendo uma profunda crítica a uma imagem absurda e desajustada aos padrões de hoje. A crítica é, de certo modo, autossuficiente, no sentido em que a mera recontextualização dos livros para os dias de hoje é suficiente para perceber o absurdo dos padrões e expectativas que tornavam a mulher um ser dependente – da casa, dos filhos, do marido, da família, etc. A mulher era assim apresentada de um modo serviçal – compreendendo-se a mulher perfeita como uma fada do lar. Partindo do passado e ajustando-o ao presente, o filme questiona também essa mesma evolução, o que é ser mulher hoje e o que será amanhã. Será possível um futuro livre dos fantasmas do passado-presente?

Diogo Albarran

Punkada (2022)

de Gonçalo Barata Ferreira

Punkada (2022), de Gonçalo Barata Ferreira © Direitos Reservados

É no meio de um descampado com uns barracões, onde está estacionado um velho e podre autocarro, que Punkada decorre. Os décors, adereços e guarda-roupa remetem para outra década do século passado, procurando retratar o quotidiano decadente dos Biqueira d’aço, uma banda punk em autodestruição. 

Tentando fazer jus ao conteúdo da história, o filme tenta também ser punk na sua forma. Disperso em sequências desconexas, num fluxo de imagens onde salta à vista a película 16mm, Punkada serve-se de um bom domínio da técnica (recorde-se que o filme é uma produção da Universidade Lusófona) para enfatizar a energia da banda e guiar o espectador num delírio musical.

Ricardo Fangueiro

Night By Night (2021)

de Jules Mathôt

Night By Night(2021), de Jules Mathôt © Direitos Reservados

A noite é azul e a lua é amarela. Night By Night poderia ter sido inspirado no quadro “A Noite Estrelada” de Van Gogh, para onde a nossa mente divaga naqueles que são os planos de animação artesanal do filme: as ruas e os prédios noturnos. À la Janela Indiscreta de Hitchcock, o filme revisita o cinema noir e inspira-se em filmes americanos de culto.

Um detetive privado é contratado para investigar um pianista misterioso. O ver e ser visto são as questões essenciais deste filme, que destaca objetos que servem para espiar (ver ainda mais) como binóculos, e outros como um revólver, um rádio, um telefone, e uma máquina de escrever. Há uma preocupação do realizador em destacar os aspectos visuais do filme, quer os seus objetos, quer as suas cores. E são as próprias cores que fazem a ponte com a música jazz, se pensarmos nos quadros, com destaque para a cor azul e amarela, de Piet Mondrian. O jazz contribui para a estética do noir, e é parte essencial da personagem que o detetive espia.

Night By Night apoia-se e inspira-se em muitas referências fortes e reconhecíveis do espectador, o que o torna apetecível aos olhos deste.

Inês Moreira

In a kinda ordinary system (2021)

de Mikołaj Piszczan

In a kinda ordinary system (2021), de Mikołaj Piszczan © Direitos Reservados

Como seria nascer e morrer na Polónia, durante o regime comunista da 2ª metade do séc. XX? E como seria o intervalo entre o choro inaugural e o suspiro final?

Na tradição do cinema russo da década de 1920, In a kinda ordinary system é uma sinfonia, não da cidade, lembrando Dziga Vertov, mas da existência mais simples, desde o seu primeiro momento até ao seu inevitável desaparecimento, naquele que foi possivelmente o mais complexo dos regimes políticos e sociais. Realizado inteiramente a partir de imagens de arquivo, a montagem, herdeira e aprendiz do cinema de Sergei Eisenstein, deixa entrever pelos diferentes estádios da vida as contingências impostas pelas ideias de ordem, disciplina e obediência que regiam a relação entre o cidadão e a sociedade comunista polaca. Haveria à data outro modo de lhes escapares que não caminhar em linha recta em direcção à morte, na esperança de um recomeço, em liberdade, para e do comunismo? 

Cátia Rodrigues

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Night By Night(2021), de Jules Mathôt © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #6 

Wings for Butterflies (2021)

de Tilly Wallace

Wings for Butterflies (2021), de Tilly Wallace © Direitos Reservados

Nesta curta-metragem, uma animação produzida a partir de pinturas sobre vidro mergulha-nos em campos etéreos. Numa floresta embebida de tinta violeta, o filme impressionista, quase-abstrato e com transições como que líquidas entre planos, faz parecer, por vezes, que aquele mundo retratado se trata de um devaneio pessoal. Na verdade, as suas árvores têm raízes muito firmes e reais — poderiam ser as Sequóias-vermelhas nas costas californianas, em perigo de extinção. Também a personagem humana poderia ser histórica — quem sabe não se chama Julia Butterfly Hill? Num movimento contrário, porém, o mérito de Wings for Butterflies é demonstrar que, mais do que uma fantasia que poderia ser real, o real é, também, na sua própria concretude, místico, inspirador e vivo

Laila Nuñez

Night Visit (2021)

de Mya Kaplan

Night Visit (2021), de Mya Kaplan © Direitos Reservados

A meio da noite, Ruthie é surpreendida em casa pelo guarda noturno que diz ter ouvido um barulho. Reconhecendo-o de vista e atraída por ele, aproveita o momento para o seduzir e os dois acabam por se envolver. Tudo se adensa quando, perante a confusão lá fora, ele resolve sair à pressa.

Numa busca angustiante pela verdade, a protagonista entra em conflito com aquilo que sente, procurando equilibrar o amor com a necessidade de confrontar o rapaz. 

Mya Kaplan mostra uma capacidade de construir uma forte tensão dramática, resultando numa obra fulgurante de cariz psicológico.

Ricardo Fangueiro

Mar de Azul (2022)

de Juan Carlos Ballesteros 

Mar de Azul (2022), de Juan Carlos Ballesteros © Direitos Reservados

“(…)

mas levamos anos

a esquecer alguém

que apenas nos olhou”

José Tolentino Mendonça, Calle Principe, 25

Prelúdio junto ao mar. Que pode um encontro contra a vastidão do tempo? Uma série de fotografias procura na palavra a cristalização do berço originário, os braços da mãe que se retêm na memória como o instante inteiro de felicidade. 

Em Mar de Azul, Juan Carlos Ballesteros escreve-nos para travar o avanço do tempo, fugidio por natureza como o é o breve encontro por entre pinturas e desenhos a que pétalas azuis roubaram a sua atenção, deixando-o escapar. Mas, não fossem elas, e no lugar daquele que nos olhou restaria apenas o recorte vazio da sua ausência, como se nunca ali estivesse estado. 

Cátia Rodrigues

Alaúde (2021)

de João Pedro Barbosa Magalhães

Alaúde (2021), de João Pedro Barbosa Magalhães © Direitos Reservados

A música é um dos grandes mistérios deste nosso planeta, uma vibração sonora que se sente, uma ligação ontológica que parte de uma necessidade inidentificável, de expressão quase abstracta. A música pode representar tudo e nada, representa para quem toca, mas também para quem ouve. É esta a simples, mas muito forte descoberta do pequeno protagonista António, que é apanhado de surpresa quando um rancho folclórico tradicional passa em frente a sua casa, tocando e dançando. Este pequeno momento é o catalisador de todo o filme, movendo a acção e plantando uma semente em António, que irá agir de um modo inesperado. A curiosidade e a necessidade de aprofundar este novo contacto levam-no a cometer um erro, o que não seria problemático se, embora a tenra idade, António não partilhasse já de tantas responsabilidades em casa. O seu pai, Victor, conta com o filho para o ajudar em todas as tarefas, ensinando-o a viver através da projeção da sua própria vida na do filho, uma educação através do contacto. É central também a este filme a noção de aldeia, comportando ela também uma ideia de tradição, muito viva nas aldeias, mas moribunda nas cidades. Com efeito, muito do charme do filme reside neste cenário de aldeia, de quem vive de forma isolado e precária, com poucos contactos, mas com grande noção de tradição e continuidade – António é, de certo modo, uma extensão do seu pai. Apesar de alguma rigidez educativa, no final vemos um grande vislumbre de compaixão e compreensão – não são precisas muitas palavras quando se tem música.

Diogo Albarran

Filme de Quarto (2021)

de Raffaella Rosset

Filme de Quarto (2021), de Raffaella Rosset © Direitos Reservados

“Quanto tempo desmorona um prédio?” pergunta-nos a mulher que habita um apartamento no centro de São Paulo, a 110 metros do chão, por baixo do João e por cima da Dona Magli. Este está quase vazio, apenas existe uma poltrona, diversos garrafões de água, tanto cheios como vazios, e um projetor que dá ver imagens do apartamento que pertencem a outros tempos e parecem deixar saudade. Entretanto o mesmo é invadido por uma inundação.

Tiago Leonardo

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Filme de Quarto (2021), de Raffaella Rosset © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #5  

Ready-made (2022)

de Corentin Courage

Ready-made (2022), de Corentin Courage © Direitos Reservados

Em março de 2021, o Ministério da Justiça francês anunciou a construção de uma prisão às portas da pequena cidade de Crisenoy, perto de Paris. Na altura, e até ao início deste ano, acendeu-se um grande debate em torno da legitimidade da decisão, firmemente repudiada pelos habitantes da comuna. As suas reivindicações eram mais do que justas — para que a nova penitenciária pudesse acolher 1000 lugares, 20 hectares de terras agrícolas teriam de ser ocupados; além disso, preocupavam-se com a própria segurança, serenidade e com a queda na especulação imobiliária da região. 

Ready-Made, de Corentin Courage, leva-nos a inquietações ainda mais estruturais: qual é a verdadeira utilidade de uma prisão? Porque a tomamos como uma instituição de existência óbvia, inquestionável? Com claras influências da teoria teatral de Brecht e do cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, a penitenciária é, aqui, levada ao seu extremo banal. Torna-se uma espécie de jogo da macaca. Denunciando a sua uniformização arquitetónica e sistêmica, a curta-metragem explora a prisão enquanto objet trouvé, incontestavelmente normalizado e excessivamente reproduzido.

Laila Nuñez

Mergen (2020)

de Raiymbek Alzhanov

Mergen (2020), de Raiymbek Alzhanov © Direitos Reservados

Mergen é filho do guerreiro Akbar e, ao deparar-se com uma Ásia dividida e devastada pelo conflito, vê-se na obrigação de substituir o seu pai ausente. Este é um filme que se vê envolto em camadas ritualísticas e espirituais, e que conta com cenários e figurinos que denotam este ambiente de magia antiga. A avó de Mergen é o pilar da família: é ela que dá força ao neto para conseguir enfrentar os soldados e é também ela que lhe permite ver aquilo que ele não conseguiria ver num estado normal. Sentimos uma sobrecarga emocional muito grande e um sentido de proteção que vem de todos os elementos desta família: a avó quer proteger o neto; o neto quer proteger a mãe; a mãe quer proteger os soldados feridos. Neste sentido, é interessante ver como as fortes figuras femininas inspiram este pequeno rapaz, e o fazem ser muito mais do que apenas “filho de guerreiro”. 

É, portanto, a ideia de coletivo e de sacrifício pelo coletivo que estão no centro desta curta-metragem do Cazaquistão, que se realça pela beleza da sua fotografia.

Inês Moreira

ELLE (2021)

de Alexandra Kurt

ELLE (2021), de Alexandra Kurt © Direitos Reservados

Elisabeth, ou Elle,  é uma mulher na casa dos 50 anos, com uma vida e um casamento estagnados que passa por uma enorme mudança quando é desafiada por Júlia, uma estudante de cinema, a ser protagonista do seu mais recente filme. Acompanhamos Elle, Julia, e colegas de quarto da mesma, num dia de verão cheio de alegria que se transforma numa jornada de redescoberta; como diz Júlia, “Ela não está perdida”. 

A saída da rotina e da estagnação do dia-a-dia faz com que Elle se torne não só a protagonista do filme de Julia mas da sua própria vida.

Tiago Leonardo

Transportation Procedures for Lovers (2021)

de Helena Estrela

Transportation Procedures for Lovers (2021), de Helena Estrela © Direitos Reservados

Onde fica o amor com a distância? No isolamento provocado pelo Covid-19. Como nos transportamos para junto dos nossos entes queridos quando a Fedex se recusa a transportar qualquer tipo de corpo? São essas as questões que este irónico exercício de correspondências efetuado durante a quarentena se propõe a responder.

Esta investigação sem grandes conclusões entende apenas que às vezes os corações podem colapsar como a economia.

Tiago Leonardo

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Transportation Procedures for Lovers (2021), de Helena Estrela © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #4 

My thoughts are going to end me (2022)

de Weronika Nowacka

My thoughts are going to end me (2022), de Weronika Nowacka © Direitos Reservados © Direitos Reservados

Qual analogia melhor daria conta de nos fazer compreender o interior do nosso cérebro, esse espaço onde se alojou, historicamente, o intelecto e o ato de pensar? Weronika Nowacka tenta algumas das mais habituais: gavetas, uma malha de redes, um computador, um jogo de tabuleiro, um labirinto, uma prisão. A figura da clausura implica, porém, a possibilidade do seu contrário — a fuga para a liberdade. Não é este o caso. Em My thoughts are going to end me, a realizadora polaca descreve este tão conhecido conflito entre nós e os nossos pensamentos, como se se tratasse de agências distintas, autónomas, num jogo de poder onde a mente é sempre a vencedora. A tentação irrefreável de escapar à sua velocidade e manipulação é sempre frustrada. Haverá solução? Será pela via racional? Poderia a imaginação de uma nova paisagem mental — em vez de gavetas num depósito empoeirado, grãos de areia macios numa praia quente, por exemplo — transformar, também, a forma como lidamos e reconciliamo-nos com a nossa consciência repudiada?

Laila Nuñez

Anok (2022)

de Laura Duarte Pires

Anok (2022), de Laura Duarte Pires © Direitos Reservados

Confrontando-nos com uma técnica e narrativa bastante simples — sobre a qual não deixamos de nos perguntar se motivada por uma identificação individual com a personagem —, Laura Pires nos guarda, não obstante, um final surpreendente e provocador. Desafiando este que é ainda um dos grandes tabus de género, alegadamente pouco discutido mesmo dentro das militâncias feministas, a realizadora transmuta a conhecida máxima de Espinosa para lançar ao público o questionamento: o que pode o corpo envelhecido

Laila Nuñez

A Wish Beyond Death (2022)

de Anna Maria Leventi

A Wish Beyond Death (2022), de Anna Maria Leventi © Direitos Reservados

Um humilde carteiro que fez do ofício o seu próprio nome — “the Postman” — é interrogado sobre a sua vida. A princípio, o seu quotidiano parece pacífico, ordinário e repetitivo. Todos os dias, leva as suas cartas a cada porta das Colinas do Deserto; todos os dias, através da sua janela, observa, também, a Mulher Areia a dançar pelo povoado. O desaparecimento repentino desta figura feminina e mitológica que habita as suas lembranças traz-lhe o vazio da saudade e o terror de uma morte, talvez, mais violenta do que se imaginava. Valendo-se de diversas técnicas visuais, combinadas a um trabalho de voz e composição sonora, a realizadora grega Anna Maria Leventi arrisca a criação de uma narrativa a partir do desenvolvimento de um único personagem, que pode provar-se capaz de muito mais do que apenas entregar cartas. 

Laila Nuñez

A Maior Gaiola do Mundo (2022)

de Marta Ribeiro e Catarina Colaço

A Maior Gaiola do Mundo (2022), de Marta Ribeiro e Catarina Colaço © Direitos Reservados

Confinado numa gaiola, um pássaro espreita por entre grades a dor do mundo que aflige a dança e o ciclo da vida, toda a solidão, a nostalgia e a saudade que atravessam gerações. Após um debate tentador com a sua própria sombra, o pássaro conquista, finalmente, a liberdade dos céus — apenas para aperceber-se cativo numa gaiola ainda maior, do tamanho do mundo.

Laila Nuñez

Olive and Otis (2022)

de James Leong Holston

Olive and Otis (2022), de James Leong Holston © Direitos Reservados

Um filme de terror em estilo de animação CalArts, Olive and Otis entrega, em cores contrastantes e movimentos adstritos, uma história de descamação. Inspira-se em clássicos de terror como Carrie e no body horror de Cronenberg para narrar o processo labiríntico do descascar de uma pele antiga e a instalação numa nova. A dismorfia corporal e a transição de género são aqui exploradas de maneira sufocante, com uma banda sonora que faz lembrar as notas de Angelo Badalamenti, contribuindo para o mergulho na angústia de Otis que, em flashes, encara o seu duplo e o palimpsesto de um “eu” de outrora.

Kenia Pollheim Nunes

Alien Human (2021) 

de Wen Pang

Alien Human (2021) , de Wen Pang © Direitos Reservados

Na mente dos outros, todos somos extraterrestres, e este filme é uma tentativa de chegar à mente dos “outros”. Partindo de uma tira de banda desenhada (Wang Yuewei) composta por quatro histórias diferentes (“Pearl”, “Goldfish”, “Sea” and “Hole”), esta animação propõe-se a entrar na mente de um extraterrestre. A dada a altura, o narrador questiona se a espécie humana é a única capaz de causar dor psicológica entre os seus, realçando a visão que se pretende aqui procurar sobre a nossa espécie, aos olhos de um extraterrestre. Num tom sereno e poético, o filme lembra um pouco a série The Midnight Gospel na tentativa de aliar uma visão filosófica a imagens surreais, desta feita, através de poemas. 

Ricardo Fangueiro

Wonderfully Made (2022)

de Joseph Hoh

Wonderfully Made (2022), de Joseph Hoh © Direitos Reservados

Numa caverna como a de Platão, onde as sombras pintam as paredes criando uma galáxia infinita, lança-se o mote a Wonderfully Made. A animação em 2D, pela mão de Joseph Hoh, esculpe o pequeno Nino, as incríveis constelações, e a paisagem estonteante que este passa a conhecer, mas só a partir do momento em que esconde a sua maior insegurança. Esta jornada de Nino pelas maravilhas do Universo é uma ode à criação e à aceitação, mostrando quão mais bonito é o mundo quando a capacidade de abraçar as “imperfeições” supera os muros que se erguem à volta de inseguranças.

Kenia Pollheim Nunes

Dear Yeda (2022)

de Renata Pereira

Dear Yeda (2022), de Renata Pereira © Direitos Reservados

Dear Yeda, por Renata “Renny” Pereira, é prova da intimidade que partilham o cinema e os processos de rememoração. Em apenas dois minutos, e a partir de pequenos amuletos que conjuram as lembranças passadas – uma xícara, um azulejo, a letra cursiva, o cheiro amanteigado, uma pequena escultura de um veado em madeira –, o filme se desenrola como uma epifania lírica e sinestésica: uma memória, ela mesma. Entre arquivo e desenho, entre o familiar e o universal, costura-se um passado contaminado pelo presente e pelo futuro. É assim que, nesta espécie de filme-carta-testamento, o gesto de Renny é, em última instância, o de animar a memória perdida e devolvê-la à sua avó.

Laila Nuñez

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Dear Yeda (2022), de Renata Pereira © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #3 

to you(th) (2022)

de Mira Merheb

to you(th) (2022), de Mira Merheb © Direitos Reservados

“Se recebesses um bilhete de avião para qualquer outro país e o voo estivesse marcado para amanhã, fazias as malas e partias imediatamente para o aeroporto?” É esta pergunta proferida pela realizadora ao seu parceiro que abre to you(th) e desencadeia um diálogo aberto e honesto sobre o presente e o futuro. Para qualquer outra pessoa, seria uma proposta simples. Para eles, pode significar a promessa de um amanhã. Alain e Mira, libaneses, refletem sobre o medo e a instabilidade que regem os seus dias, questionando-se como será possível dizer adeus às pessoas e aos lugares que lhes são caros ao mesmo tempo que acolhem uma nova realidade, que certamente também será dura. A curta-metragem forma-se, assim, como uma despedida cautelosa às caras e aos cenários que a cineasta terá de eventualmente deixar para trás, de mão dada àquele que espera levar com ela. São memórias enlaçadas belissimamente, compostas de momentos de tom agridoce, sobre os quais a incerteza paira. 

Margarida Nabais

Mesa Posta (2022)

de Beatriz de Sousa

Mesa Posta (2022), de Beatriz de Sousa © Direitos Reservados

Um “documentário” que faz uso de um dispositivo diferente: uma narração que se acompanha de elementos visuais que ajudam na absorção da mesma. A narradora é uma contadora de histórias e nós somos os seus ouvintes. Contudo, o filme poderia ser outras coisas: uma performance, na qual poderíamos ter esta “contadora de histórias” ao vivo, ou podíamos, até mesmo, vê-la em loop numa instalação de um museu. É, para além da história que conta, um questionamento sobre a arte e as formas de fazer arte.

Mesa Posta conta-nos, através de gestos mundanos e simples, uma história de extrema violência entre dois elementos de um casal. Uma história de desamor, de preconceito e de machismo. Uma reflexão sobre o passado, o presente e o futuro, sobre religião e opressão, onde a mesa serve de base a isto tudo, como numa verdadeira casa de família. O visual segue o oral, e o oral apoia-se no visual. E cenas como uma violação são visualmente descritas como um esmagar de uma manga. 

Inês Moreira

Wetsuit (2022)

de João Salgado

Wetsuit (2022), de João Salgado © Direitos Reservados

Wetsuit é um filme capaz, que não só apresenta uma grande capacidade técnica, mas também um grande, ainda que por vezes desagradável, domínio narrativo. A adolescência passa naturalmente por cometer erros, por hesitações e inconsequências, o que acaba por vezes a saber a pouco quando filtrada por uma estética que lhe é tão oposta. A rudeza, infantilidade e, até violência, é-nos ainda assim transmitida, ainda que de outros modos, principalmente através de alguns mecanismos narrativos – que se revelam em momentos como o do “pastel-de-rata”, ou do grupo de rapazes a urinar para cima do fato do rapaz, ou, no final  do filme, com o rapaz a  desaparecer em direção ao mar de prancha na mão. O filme estabelece que algo de mau está ou vai acontecer, no entanto, isso não é suficiente, o incómodo não reside na insinuação, reside no confronto. Com efeito, é nestes três momentos de acção-reação que o filme se foca – três histórias, três rapazes, três fases diferentes da adolescência, três respostas ao confronto. A identidade fílmica gira em torno dessa adolescência surfista, do wetsuit (embora isso sirva mais como cenário/ambiente do que como motor da história, ainda que também o seja, quer isto dizer que o filme funcionaria noutro contexto). O mar joga, obviamente, um grande papel na curta, não só como lugar paisagístico, mas sobretudo como lugar afetivo – uma permanência e uma imanência. Um caos organizado que medeia sempre um antes e um depois, que primeiro separa para depois voltar a juntar.

Diogo Albarran

Ciervo (2020)

de Pilar Garcia-Fernandezsesma

Ciervo (2020), de Pilar Garcia-Fernandezsesma © Direitos Reservados

Ciervo revela-se como uma obra sensível e profundamente tocante. A animação de Pilar Garcia-Fernandezsesma segue a metamorfose de uma rapariga num universo familiar que oscila entre a sensibilidade do lado materno e a hostilidade da figura paterna. Sem recorrer a nenhum diálogo, mas simplesmente retratando o quotidiano de uma família através dos seus gestos e acções, contando com um desenho de som vital para a envolvência do filme, percebemos, numa ligação alegórica entre a criança e os cervos, o ambiente que a rodeia e molda a sua sensibilidade. 

Ricardo Fangueiro

Dogs do not eat grass (2022)

de Júlia Bagossy

Dogs do not eat grass (2022), de Júlia Bagossy © Direitos Reservados

Uma sessão de terapia com “O Beijo” de Gustav Klimt como pano de fundo parece-nos à partida sugestivo. Torna-se ainda mais quando, a meio, o psicoterapeuta enumera uma série de “lésbicas famosas”, uma estratégia no mínimo caricata no que se revela uma senda para a autoaceitação. Quando o barulho do pedal da bicicleta é sinónimo de mágoa e pede-se a Deus coragem para enfrentar um olhar fulminante, estamos perante ao que parece tratar-se de uma história de (des)amor, em que Berci, o cão, revela-se um fiel escudeiro. 

Kenia Pollheim Nunes

No Fim do Mundo (2021)

de Abraham Escobedo-Salas 

No Fim do Mundo (2021), de Abraham Escobedo-Salas © Direitos Reservados

É entre ruína e escombros que Cecílio traça a sua rota diária, em biscates como vender carcaças de eletrodomésticos abandonados. “A droga é o meu trabalho”, diz a certa altura do documentário, e é aí que percebemos que de nada vale o flyer sobre “ultrapassar os vícios” estrategicamente posicionado no pequeno “altar” onde Cecílio prepara o próximo consumo. O olhar penetrante do homem que mira o Largo de São Domingos em Lisboa e corre para apanhar o comboio é acompanhado de chamadas frustradas que caem, do outro lado, chegam apenas ao Voicemail.

Vencedor do 1.º lugar no Prémio de Melhor Curta-Metragem de Documentário nos Sophia Estudante, No Fim do Mundo pinta uma paisagem de entulho e deserção de uma periferia relegada ao esquecimento que poderia pertencer a um filme de Pedro Costa. Nela, narra-se sem floreados a vida de um homem que não vê nostalgia nas fotografias de um tempo passado, mantendo-se fiel à rotina de um vício.

Kenia Pollheim Nunes

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: Mesa Posta (2022), de Beatriz de Sousa © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #2 

Fiquei na Praia (2022)

de Francisca Alarcão

Fiquei na Praia (2022), de Francisca Alarcão © Direitos Reservados

Apresentado como um filme dos alunos da licenciatura em cinema da ESTC, Fiquei na Praia, realizado por Francisca Alarcão, prima pela beleza minimal das suas imagens e narrativa, que acompanha Laura no esforço emocional que lhe causa a mudança para o seu primeiro apartamento. Nesse período de mudança, é invadida por fragmentos de memórias da praia onde costumava passar férias com os seus pais.

Fazendo uso de planos fixos e numa mesma cadência do princípio ao fim, o filme demonstra com delicadeza o processo de despedida da infância e a procura por um novo lugar de emancipação.

Ricardo Fangueiro

Boys (2021)

de Raghuvir Khare

Boys (2021), de Raghuvir Khare © Direitos Reservados

Uma inocência de Nouvelle Vague com a solidão bucólica de Tarkovsky: Boys, de Raghuvir Khare, capta a profundeza leve de duas crianças, dois amigos, a trilharem os caminhos das suas próprias curiosidades sexuais. Ao desvendar a confusão que partilham Tomas e Arno, por tantos reconhecida com grande tabu e perturbação, a curta-metragem apela por um olhar sensível àquela que é uma experiência tão basilar — o surgimento ainda sem nome e sem conceito do desejo, do medo, da euforia, da rejeição. É como se o realizador indiano nos recordasse de uma memória universal, um rito de passagem histórico (ou pré-histórico?), o nosso sentido perdido do erótico enquanto brincar. Assim, é num espaço rural e pacato, livre de quaisquer estímulos midiáticos que pudessem supostamente “justificar” tal movimento, que os mistérios e as contradições do sensual, do sensacional, se vão percorrendo e revelando numa descoberta mútua.

Laila Nuñez

Tormento (2022)

de Arturo Mombiedro

Tormento (2022), de Arturo Mombiedro © Direitos Reservados

Tormento é um filme sobre perda e memória, um diálogo entre presente e passado, mediado/personificado através da figura paternal. Assombrados por uma mãe vegetativa, e um pai que, no seu luto, se refugia num passado alegre e vivo, o conflito surge na interação entre o luto antecipatório dos filhos, que discutem estas presenças ausentes. Este conflito encontra no seu auge uma grande questão central, o que fazer face ao estado vegetativo da mãe — poupá-la de uma vida indigna, suspensa artificialmente, ou honrando a sua memória, cuidando dela até ao fim, porventura não pelo seu bem, mas pelo bem dos próprios. O jogo entre interior e exterior no filme, figurado através dos olhos vagos do pai, apresenta um contrapeso feliz, que torna a situação ainda mais infeliz. No auge da discussão, o pai sai de casa, cambaleia entre tempos, sofrendo simultaneamente o antes, o agora e o depois. No fim, sobra a dor, o tormento de uma decisão impossivelmente satisfatória.

Diogo Albarran

Lugares de Ausência (2021)

de Melanie Pereira

Lugares de Ausência (2021), de Melanie Pereira © Direitos Reservados

Tudo está coberto de lençóis dados a ver através de planos fechados que aos poucos se vão abrindo como as janelas desta casa. As mãos que abrem janelas, são as mesmas que esticam sons e constroem filmes. Estas partem à descoberta de outras mãos; mãos cobertas de cimento ou com luvas amarelas das limpezas, em busca de pontos de convergência.

Esses pontos encontram-se na 3, rue do Quartier e 4, rue de la Fontaine, onde nasceu uma família de 4, entre duas ruas, dois países e duas casas; na casa velha forrada a madeira escura; e na casa grande debaixo do sol e com cheiro a eucalipto. 

Tiago Leonardo

In Between Glass and Walls (2022)

de Razan Hassan

In Between Glass and Walls (2022), de Razan Hassan © Direitos Reservados

Anne Gehring é uma atriz que se vê incapaz de aceitar o seu filho com Síndrome de Down. Na luta por ultrapassar esta incapacidade encontra-se com Sara van Ketel, uma mulher de 32 anos também ela com Síndrome de Down. As duas preparam uma peça de teatro que fala sobre tudo isto, e este é o mote para In Between Glass and Walls.

É uma história tocante que coloca uma mãe em conflito com a sua capacidade de maternidade e de se encarar como mãe daquela criança. Essa luta é refletida nos grandes espelhos que compõem as imagens do filme, e que se revelam elementos essenciais à narrativa. As duas “personagens principais” questionam-se muito sobre esta capacidade de se conseguirem ver, e o espelho parece ser o indicativo visual disso: é ele que reflete de que forma e o quanto elas se vêem.

  • “Quando alguém olha para ti, o que é que achas que vêem primeiro?” (Anne)
  • “Que tenho Síndrome de Down.” (Sara)

O preconceito em relação ao Síndrome de Down está tão vinculado que até mesmo as próprias pessoas que apresentam o síndrome se revêem nele, deixando de se conseguir definir ou ver para além dele. 

É nesta necessidade de ver para além do problema que estas duas mulheres se encontram e partilham este filme.

Inês Moreira

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

[Foto em destaque: In Between Glass and Walls (2022), de Razan Hassan © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 – SESSÃO #1 

Bloody Gravel (2022)

de Hojat Hosseini

Bloody Gravel (2022), de Hojat Hosseini © Direitos Reservados

Um campo aberto desértico dita o destino das personagens. Pânico, ansiedade, medo e uma reflexão tardia de esperança pavimentam o caminho que percorrem num carro abarrotado, rumo a uma nova realidade. É este o campo de batalha de Bloody Gravel, que reside perto da fronteira afegã que Bashir e Roya, grávida, lutam para atravessar clandestinamente. A câmara acompanha apressadamente a viagem, tentando acompanhar aquilo que se desenrola incontornavelmente. O tempo que passa não é aquele que permite recuperar o fôlego, mas sim o que não deixa folga para a reflexão. Não há minutos suficientes num dia para debates morais e no horizonte já se avista a vida de amanhã.

Margarida Nabais

A Straight Strory (2021)

de João Garcia Neto

A Straight Strory (2021), de João Garcia Neto © Direitos Reservados

Uma voz feminina narra as ações de um homem que tira fotos incessantemente a partir de um comboio e é delas que este filme se compõe. Ela não sabe o que lhe desperta tanto interesse, apenas desconfia que quando este pára ocasionalmente é porque viu algo que lhe persiste e precisa que os seus olhos respirem

Uma viagem de comboio entre Poznan e Lublin, na Polónia, torna-se tão mais do que isso. Transforma-se num ensaio cinemático do que é visto através dos vidros, mas também acerca do que neles é refletido; mas para este homem, dasimagens do interior, só uma interessa. 

Tiago Leonardo

When Light Goes (2021)

de Pratish Shrestha

When Light Goes (2021), de Pratish Shrestha © Direitos Reservados

À beira do rio Koshi, no Nepal, um casal idoso leva a cabo a sua rotina: a mulher trabalha fora, o homem fica em casa a tomar conta dos terrenos e dos bodes. Os filhos, esses partiram: rumaram para fora depois de casados, em busca de trabalho e condições de vida mais propícias a um futuro reluzente. A técnica Pratish Shrestha é crucial em When Light Goes, um exercício etnográfico que privilegia a paisagem que se calca no trabalho árduo. À luz do dia, recebem uma visita inesperada, que suscita as memórias dos filhos e desperta um olhar crítico a questões como a globalização – que leva para longe quem nos era próximo –, as injustiças laborais que assolam todos os países mas, especialmente, países como aquele aqui retratado, o Nepal. Já as sombras da noite vêm trazer novas preocupações e medos, prendendo o espectador ao ecrã, na expectativa de ouvir algo para além dos gafanhotos e da respiração do velho que o acompanhanuma busca noturna.

Kenia Pollheim Nunes

Pirite (2022)

de Heldér Beja

Pirite (2022), de Heldér Beja © Direitos Reservados

Pirite é um filme experimental que lembra filmes como Koyaanisqatsi, de Godfrey Reggio, onde a paisagem ocupa um lugar de reflexão sobre a ação humana. 

Nesta curta-metragem, são as Minas de São Domingos, no distrito de Beja, o cenário e elemento que se vai repetir, em planos longos e morosos, e que nos mostram as ruínas de algo antes ocupado e explorado. Aqui também vemos uma espécie de reflexão sobre o humano na forma de ausência deste.

Pyrite é, sobretudo, um filme que coleciona sensações e as entrega ao espectador, dando por si a pensar sobre os barulhos, as cores e as texturas destas imagens.

Inês Moreira

A Felicidade e Coisas Mórbidas (2022)

de Débora Gonçalves

A Felicidade e Coisas Mórbidas (2022), de Débora Gonçalves © Direitos Reservados

Em A Felicidade e Coisas Mórbidas, assistimos ao afastamento precoce da realizadora do seu próprio filme. Deixando o filme órfão, a partir desse momento seguimos a sua equipa na busca por aquilo que poderia ser um desejo visual post mortem.

De uma beleza singular, o filme vai alternando entre o percurso da equipa e as pequenas narrativas que são encontradas naqueles lugares, num olhar premente sobre a morte, o fim e o que fica para contar.

Ricardo Fangueiro

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português

[Foto em destaque: Pirite (2022), de Heldér Beja © Direitos Reservados]

CINENOVA 2022 | SESSÃO DE ABERTURA 

Rua dos Anjos (2022)

de Maria Roxo e Renata Ferraz 

Um encontro no passado entre Maria Roxo, trabalhadora sexual nascida em Moçambique, e Renata Ferraz, realizadora e actriz brasileira, ascende ao tempo presente sob o nome de Rua dos Anjos, a primeira longa-metragem de ambas e a última de Maria. No palco diáfano da intimidade, Renata e Maria entregam uma à outra ensinamentos dos seus ofícios, desvelando as singularidades da história de vida de cada uma para juntas se constituírem uma multidão, mesmo que Maria se tenha ido embora com tanta pressa…

Rua dos Anjos, Maria Roxo © KINTOP

O minimalismo da mise-en-scène dispõe os elementos necessários para o devir actriz-realizadora de Maria e o devir actriz-trabalhadora sexual de Renata. Duas cadeiras, uma cama, um espelho, um tecido rendilhado, e pouco mais. É este “pouco mais”, este resto, que se deita na cama, que espreita pela renda do tecido, que “olha” do espelho. É este resto que excede o espaço fílmico, tornando-se o máximo, o superlativo silencioso, de cuja presença se mostra Maria. É este resto que dá substância à tensão no jogo entre o esforço de aproximação e o refúgio da distância. 

A união do universo da realização com o universo do trabalho sexual no mesmo palco, na mesma imagem reflectida no espelho, é o que, em última instância, faz delas realizadoras do mesmo filme. Maria tomou a câmara sem que nenhuma legitimação fosse precisa por parte de Renata, que, por sua vez, abraçou as diretrizes de Maria para reclamar uma vivência, um lugar, mesmo que apenas o do filme, num universo no qual nunca ultrapassou as paredes da representação. Tudo se passa como na preparação de um actor para uma peça, da qual a vida de Maria foi a mais real das encenações. Primeiro, o abandono de si, depois a representação, sob pena do peso de quem somos se tornar intolerável.

Se nos parece que o trabalho de actriz de Renata caminha em direcção ao encontro com a vida de Maria, como se já não se tratasse da interpretação de uma trabalhadora sexual, em sentido universal, mas da interpretação herdeira da história de Maria. Todavia, na relação entre elas, ainda que se mostre no filme como horizontal, impõe-se visível o abismo intransponível entre a representação e o real, o filme e a vida. Porque a própria vida está muitas vezes encarregue de distender os limites da nossa imaginação, que, nas palavras de Maria, “só vai até onde a gente quer”. Renata não pode imaginar a vida de Maria, ou de qualquer trabalhadora sexual, porque não a viveu. A distância que vai de uma para outra firma-se na crueldade a que a vida atirou impiedosamente Maria, ainda que a única medida de comparação para o sofrimento seja a subjectividade. Não obstante, o filme não normaliza a realidade de uma, Maria, nem radicaliza a realidade de outra, Renata. Antes, é a mediação da aproximação ao outro, qualquer coisa de intermédio, na intransponível distância que vai de mim para o Outro.

Sob a forma de entrevista, que Rua dos Anjos pede de empréstimo à tradição documental do cinema brasileiro, a subjectividade interpela o substracto ficcional do filme pela confidência. Maria conta-nos a sua vida, que em (quase) nada vota ao segredo, liberta do pudor da aparência, e Renata expõe, a pedido de Maria, um segredo imensurável, de que o tremor das mãos não esconde o medo. No final, é a confidência que lhes vai permitir reconhecerem-se uma à outra em toda a magnitude de serem aí, uma com a outra, no mundo, no filme. O gesto de criação cinematográfica advém desse reconhecimento para cumprir, no filme de Maria e Renata, o cinema como a arte que, nas palavras de Serge Daney, “nos deu acesso a outras experiências que não as nossas e permitiu-nos partilhar, mesmo que por breves segundos, qualquer coisa de muito diferente.”.  

Rua dos Anjos, Maria Roxo © KINTOP

Rua dos Anjos não é um filme sobre Maria, mas antes uma aprendizagem partilhada da distância que cabe num “com”, um projecto cúmplice das duas, como o anuncia Renata no prólogo, necessário à força do desaparecimento precoce e inesperado de Maria: “Eu não quero fazer um filme sobre você, eu quero fazer um filme com você.” Perante este propósito, o filme alcança uma dimensão auto reflexiva sobre as possibilidades da sua própria existência enquanto trabalho inteiramente colaborativo, ao qual acresce uma maior responsabilidade ética em relação ao outro. Não deverá o olhar que procura a revelação do outro perante a câmara e faz dela o sujeito do filme interrogar-se acerca do que de si é testemunho dessa revelação e do que de si é mostrado em relação com ela? 

Cátia Rodrigues

Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português

[Foto em destaque: Rua dos Anjos, Maria Roxo © KINTOP]

O CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português está de volta à Cinemateca Portuguesa e à FCSH

De 22 a 26 de Novembro, a 4.ª edição do Festival de Cinema Interuniversitário Português CINENOVA oferece ao público estreias nacionais e internacionais e atividades paralelas, de forma a motivar o diálogo e o debate em torno do tema Cinema e Conhecimento. 

O festival começa hoje, dia 22 de novembro, com a sessão de abertura na Cinemateca, pelas 19h, com a exibição do documentário Rua dos Anjos, de Maria Roxo e Renata Ferraz. 

Entre os dias 23 e 25 decorrerão as sessões de visionamento das curtas-metragens em competição, assim como atividades paralelas ligadas à cobertura jornalística de um festival de cinema, o cinema de animação em Portugal e exibição dos filmes Banana Motherf*cker Onde o meu amigo pintou um quadro, de Pedro Florêncio. 

O último dia de festival, 26 de novembro, será dedicado à entrega de prémios – Melhor Filme, Melhor Filme Português, Prémio Público -, com uma homenagem ao Professor João Mário Grilo – um importante nome na construção do cinema em Portugal e cujo percurso a NOVA FCSH teve o prazer e privilégio de acompanhar de perto. 

Nesta edição, o CINENOVA conta com um júri renomeado, tanto nível nacional como internacional. 

Para avaliar a competição internacional contamos com Elena Calvo (júri experienciada em festivais de cinema e programadora) e dois docentes da NOVA FCSH, Luís Mendonça (professor de cinema e fotografia) e Margarida Medeiros (professora e fundadora do CINENOVA). Quanto à competição nacional, teremos a realizadora, argumentista e escritora Inês Gil, a professora de cinema Raquel Freire e o Mestre em Arte e Multimédia pela FBAUL, Rodrigo Gomes.

A programação completa do festival pode ser consultada aqui.